LUIZ ANTÔNIO FRANÇA JACOBI
UNIÃO HOMOAFETIVA: ASPECTOS HISTORICOS, SOCIAIS,
ANTROPOLOGICOS E JURIDICOS DA HOMOSSEXUALIDADE
CANOAS, 2010
LUIZ ANTÔNIO FRANÇA JACOBI
UNIÃO HOMOAFETIVA: ASPECTOS HISTORICOS, SOCIAIS,
ANTROPOLOGICOS E JURIDICOS DA HOMOSSEXUALIDADE.
Trabalho de conclusão apresentado para a
banca examinadora do curso de Direito do
Unilasalle - Centro Universitário La Salle, como
exigência parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Direito.
Orientação: Prof. Me. Clóvis Dvoranovski.
CANOAS, 2010
LUIZ ANTÔNIO FRANÇA JACOBI
UNIÃO HOMOAFETIVA: ASPECTOS HISTORICOS, SOCIAIS,
ANTROPOLOGICOS E JURIDICOS DA HOMOSSEXUALIDADE.
Trabalho de conclusão aprovado como
requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Direito do Curso de Direito do
Centro Universitário La Salle – Unilasalle,
pela seguinte banca examinadora:
Aprovado pela banca
____________________________
Prof. Me. Clóvis Dvoranovski
Unilasalle
Orientador
________________________________
Profª. Mª. Fernanda Correa Osório
Unilasalle
________________________________
Prof. Me. Jaime Antonio Nalin
Unilasalle
A minha mãe Ezi França Jacobi incansável
incentivadora pelo que sou e pelo que realizo.
Ao meu pai Mildon Jacobi In Memoriam.
O universo coloca em minhas mãos
calejadas, punhados de estrelas maduras,
que como grãos de areia, vão caindo uma a
uma, deixando um rastreado luminoso pelos
caminhos de minha existência. (Luiz Antônio
França Jacobi. Canoas, 30.03.2010).
RESUMO
Este trabalho de conclusão de curso focaliza o tema das uniões homoafetivas. São
vistos nele os aspectos históricos, sociais, antropológicos e jurídicos da
homossexualidade. São analisados passo a passo, a sua evolução em paralelo com
a evolução da humanidade. Além de conceituar o significado de homossexualidade
mostra, também, suas origens históricas e o comportamento social das culturas
primitivas, ou ainda, pela mesma ótica, o comportamento homossexual nas
sociedades antigas gregas e romanas. Aborda os aspectos do violento contraste
entre a Idade Média e o Renascimento. A II Grande Guerra foi tematizada bem como
os seus efeitos posteriores que abriram passagem para o mundo contemporâneo. A
partir desse ponto, mostra o nascimento e a evolução do Movimento Gay bem como
a formação da teoria “Queer” estudada na seqüência. O ponto chave deste trabalho
são os dois capítulos finais, considerados alma e coração deste estudo que mostra o
homossexual como ser possuidor de direitos, como o da dignidade do ser humano, e
o de igualdade, ambos princípios amparados pela nossa Constituição de 1988.
Palavras-chave:
Homoafetividade,
União,
Movimento
Dignidade da pessoa humana, Princípio da igualdade.
Gay,
Teoria
“Queer”,
ABSTRACT
This final paper of the course focuses on the theme of the homoaffective unions. In it
historical, social, anthropological and juridical aspects of homosexuality are
regarded. S These aspects and their evolution in parallel with the evolution of the
humanity are analyzed step by step. Besides conceptualizing the meaning of
homosexuality, it also shows their historical origins and the social behavior of the
primitive cultures, or yet, through the same view, the homosexual behavior in the
ancient Greek and Roman societies. It broaches the aspects of the violent contrast
between the Middle Ages and the Renaissance. The II Great World War was themed
as well as its aftereffects that opened way to the contemporary world. From this point
on, it shows the birth and the evolution of the Gay Movement, as well as the
formation of the “Queer” theory studied in sequence. The two final chapters are the
key point of this paper, considered as soul and heart of this study that shows the
homosexual as a being possessor of rights, such as the dignity of the human being,
and the one of equality, both principles supported by our Constitution of 1988.
Keywords: Homoaffective, union, Gay Movement, “Queer” theory, human person
dignity, equality principle.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................09
2 CONCEITO..............................................................................................................11
3 ORIGENS HISTÓRICAS E CULTURAS PRIMITIVAS...........................................13
4 A GRECIA E ROMA ANTIGAS..............................................................................17
5 A IDADE MÉDIA E O RENASCIMENTO................................................................23
6 A II GUERRA E O APÓS GUERRA......................................................................27
7 O MUNDO CONTEMPORÂNEO...........................................................................32
8 O MOVIMENTO GAY.............................................................................................38
9 A TEORIA QUEER – UMA PÓS IDENTIDADE.....................................................45
10 O HOMOSSEXUAL, OS DIREITOS HUMANOS E A DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA....................................................................................................................49
11 A UNIÃO HOMOAFETIVA E O PRINCÍPIO DA IGUALDADE............................60
12 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................70
REFERÊNCIAS .........................................................................................................76
APÊNDICE A - Jurisprudências .......................................................................80
9
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho tem o propósito de demonstrar de forma clara e objetiva os
aspectos históricos, sociais, antropológicos e jurídicos da homossexualidade e é
meu desejo que ele contribua de alguma forma, para possibilitar uma visão menos
preconceituosa acerca da homoafetividade.
Nele me coloco não só como acadêmico, mas também como partícipe, haja
vista que vivo a intensidade desse assunto desde meu primeiro respirar e que me
acompanha no dia a dia.
Procurarei mostrar desde seus primórdios, até a atualidade as transformações
que acompanham ao longo dos séculos a historia da evolução do homem.
Não me restringirei aqui somente ao território nacional, mas desejo deixar
uma clara visão deste assunto, mesmo que feito em abordagem rápida a cerca de
outros países onde vemos uma evolução, como um fenômeno mundial, contribuindo
de forma clara para que preconceitos sejam extirpados e que a exclusão seja não
erradicada, pois sabemos ser impossível, mas minimizada, propiciando dessa
maneira um convívio pacífico dos diferentes, mas iguais.
Para fazer a análise adequada há a necessidade de citar, na linha do tempo,
e trazer até o presente os aspetos históricos das relações homossexuais na
antiguidade e seguindo passo a passo pela Grécia e Roma antigas, pela Idade
Média também conhecida como idade das trevas, pelo renascimento até chegar ao
século XX, com o aparecimento dos movimentos de massa chamados de
“Passeatas Gay” que exigem liberdade e direitos sociais e econômicos, e incluindo
nisso tudo a elite social e econômica, pois, a homossexualidade é um fenômeno que
posso afirmar com certeza ser presente em todas as camadas sociais, econômicas e
religiosas. Mais democrático impossível.
Os direitos humanos, por conseguinte, também serão abordados, e junto a
eles a dignidade da pessoa humana, bem como a união homoafetiva e o princípio da
igualdade, sendo estes dois capítulos, os finais, alma e coração deste trabalho.
Na abordagem desse trabalho, procurarei referir-me a homoafetividade tanto
a masculina e a feminina, muito embora esteja dando ênfase a masculina.
10
É proposital o uso da linguagem na primeira pessoa, pois, neste trabalho
estou imprimindo vivencias pessoais, tomando, portanto o cunho biográfico em
determinados capítulos muito embora sejam também consideradas as visões
jurisprudenciais e das obras consultadas.
Procurarei manter, por fim o itálico nas citações de termos e expressões bem
como finalmente os trechos de língua estrangeira que sofrerão livre tradução e
colocados como notas de rodapé.
11
2 CONCEITO
Para conceituar a homossexualidade1, busquei a etimologia da palavra
homossexual. A origem dela é grega “Homo” ou “Homeo”, que exprime basicamente
a idéia de igual, análogo, semelhante. Em síntese homóloga ou semelhante ao sexo
que a pessoa tem ou aspira ser.
Friamente o dicionário eletrônico Houais diz que homossexual é: “que ou
aquele que sente atração sexual/e ou mantém relação carnosa e/ou sensual com
indivíduo do mesmo sexo”.
Em um entendimento mais conservador, ou seja, não modernizado, e com o
olhar de uma medicinal legal e psicológica dos meados do século XX, temos autores
que conceituam a homossexualidade como:
Na visão médico-legal de Delton Croce2 e Delton Croce Filho “configura a
atração erótica por indivíduos do mesmo sexo. É perversão sexual que atinge os
dois sexos, podendo ser masculino e feminino”
Outra visão em mesmo sentido é a de Hélio Gomes3 que diz ser a
homossexualidade “uma perversão sexual que leva os indivíduos a sentirem-se
atraídos por outros do mesmo sexo, com repulsa absoluta ou relativa para os de
sexo oposto”
Modernamente o pensamento jovem de Fabrício Viana4 apresenta a
homossexualidade como “muito mais do que a orientação sexual por pessoas do
mesmo sexo, e, por isso, envolve também afetividade e relacionamentos. não
apenas sexo com o mesmo sexo”. Concordo plenamente com esse conceito e
afirmo sublinhando que se trata, pois, em relação ao afeto, de uma sociedade, que
em nada se diferenciam os vínculos heterossexuais e os homossexuais que tenham
esse valor como forma estruturante.
1
O vocábulo homossexualidade foi criado pelo médico Karoly Maria Benkert e introduzido na
literatura técnica no ano de 1869. Karl-Maria Kertbeny ou Károly Mária Kertbeny (batizado como KarlMaria Benkert) (24 de Janeiro de 1824 – 23 de Janeiro de 1882) nasceu em Viena, na Áustria, filho
de um escritor e de uma pintora. Foi um jornalista austro-hungáro, escritor, poeta e activista dos
direitos humanos, conhecido por ter criado a palavra homossexual.
2
CROCE, Delton. 1995, p.600.
3
GOMES, Helio.1987, p.412.
4
Fabrício Viana é bacharel em Psicologia, gay assumido e autor do livro que fala sobre a
homossexualidade (erroneamente citado na mídia de homossexualismo) intitulado ”O Armário –
Vida e Pensamento do Desejo Proibido” – Site do livro: www.oarmario.com.
12
Neste pensar vemos claramente que as palavras e raízes gregas podem ser
traduzidas por “sexo (ou amor)” entre iguais, e que elaboradas de forma mais
humana nos finais do século XX, e atentos aos problemas de semântica os
sociólogos e antropólogos cunharam a expressão “Homoerotismo”, para se pensar
ações e posturas e definir categorias da sociedade que não viam diferenças num
relacionamento entre o mesmo gênero ou entre diferentes gêneros.
O pensar da sexualidade se torna a meu ver mais interessante, independente
de culturas e épocas, e respeita ao mesmo tempo a historicidade das ações
humanas, o que em outro dizer, significa o mesmo quando me refiro que um
determinado elemento histórico só existe, e só pode existir em determinado período
de tempo e cito como exemplo temporal a Grécia antiga.
O conceito homoerótico, portanto, determina tipos de ações sem supor que
outra forma seja necessária para a sua existência, sem haver, portanto a
necessidade de se categorizar nós os indivíduos homossexuais como sujeitos de um
grupo social que não existe naturalmente nas sociedades humanas.
A meu ver, esse jovem conceito, proporciona um encontro entre os iguais e já
está sendo largamente utilizado e reconhecido inclusive no meio jurídico, modernizase através dos tempos e serve para demonstrar que os hábitos humanos, mesmo os
considerados mais primitivos e intuitivos como alimentar-se, beber água e fazer sexo
não são tão naturais, mas invenções culturais e como tal possuem suas formas
históricas.
Em fim esse novo conceito vem de encontro às palavras de Roger Raupp
Rios5 que diz ser “um novo caminho que considero apropriado para a superação da
exclusão e da discriminação dos indivíduos em função de suas preferências
sexuais”.
5
RIOS, 2001, p.60.
13
3 ORIGENS HISTORICAS E CULTURAS PRIMITIVAS
A homossexualidade6 sempre existiu no curso da humanidade e era
encontrada entre muitos povos, tanto os chamados selvagens, como nas antigas
civilizações, e sua prática era conhecida também entre os romanos, egípcios, gregos
e assírios.
Para entendê-la de uma maneira prática sem ser muito extensivo se faz
necessário um breve olhar sobre como ela era vista, desde os primórdios da
humanidade, e com os olhos daquela época.
A história retoma um tempo em que não havia necessidade de distinguir o
relacionamento entre pessoas do mesmo sexo – para os povos antigos, o conceito
de homossexualidade simplesmente não existia.
Nas tribos primitivas da Oceania, um dos estudos mais antigos já realizados
pelo homem (cerca de 35.000 anos atrás) deixa clara a existência de relacionamento
sexual entre pessoas do mesmo sexo, onde os mais velhos iniciavam os mais
jovens na vida adulta.7
Havia tribos na Melanésia em que os meninos ao atingirem certa idade, eram
separados de suas mães e ficavam com os pais na casa dos homens.
Ao atingirem a puberdade, eles eram entregues a um tio materno para que
este pudesse iniciá-lo como homem, envolvendo então sexo oral e a penetração
anal.
O povo Kiman, da mesma região bem como os Marind acreditava que
somente com a penetração anal e com o sexo oral o jovem poderia receber a
semente (o esperma) da virilidade, e então, dessa forma tornar-se adulto e vigoroso
tanto quanto o seu iniciador.
Mostra-nos ainda a história que essa relação entre iniciador e iniciado durava
aproximadamente de 3 a 4 anos, período este que depois de transcorrido, o jovem
passaria a integrar aquela sociedade como adulto e isso fazia com que lhe fosse
permitido ao mesmo tempo formar a sua própria família.
6
7
A homossexualidade é tão antiga quanto à heterossexualidade. Esta assertiva é atribuída a Goethe.
VIANA, Fabrício. 2007, p.63.
14
É interessante salientar que ao constituir sua própria família ele não
interrompia suas praticas homossexuais, pois, poderia ser convocado para iniciar um
sobrinho e qualquer momento.
Nota-se então que esse ritual passava-se de geração em geração, fazendo
parte integrante da cultura daqueles povos sendo tido como habito natural e,
portanto sem haver qualquer tipo de discriminação.
Os Marind, em seus rituais diversos, há um que cabe destacar pela sua
curiosidade, que era chamado de Soson. Soson era um gigante castrado que usava
um colar de cabeças ao redor do pescoço. A história leva a crer tratar-se de um
ídolo com um grande Phalo vermelho, que representava o seu pênis e ficava em
determinada área da floresta para onde os meninos eram levados até ele pelos
homens e sem a presença das mulheres.
Nesse ritual, os homens mais velhos dançavam com os garotos ao redor do
Phalo e iniciavam uma grande orgia masculina onde qualquer adulto poderia
penetrar um dos meninos iniciados.
Entre os Sambias e os Grandes Nambas, que habitavam o interior da ilha de
Moluca8 (uma das ilhas que faz parte do arquipélago da Melanésia9), havia uma
relação semelhante ao ritual relatado entre os Marind. Para eles também a ingestão
de esperma bem como a penetração representava a possibilidade de transmissão
de virtudes como a bravura e a coragem, essenciais para a guerra e a caça, dos
mais velhos para os mais jovens.
Um fato curioso é que nas tribos em que não existiam esses rituais de
iniciação haviam os chamados berdaches10 que nada mais eram os meninos que
não se adaptavam ou não se identificavam como homens e não possuíam
habilidades para a caça ou guerra e levavam o mesmo etilo de vida das mulheres e
a troca de seu gênero era aceita normalmente pela comunidade.
8
As Ilhas Molucas (ou Malucas, do árabe Jazirat al-Muluk, "ilha dos reis") são um arquipélago da
Insulíndia são constituídas por cerca de 1.000 ilhas e que faz parte da Indonésia, localizado entre as
Celebes (Sulawesi) e a Nova Guiné. É limitado a sul pelo Mar de Arafura, a oeste pelos mares de
Banda e das Molucas e a norte pelo Mar das Filipinas e a noroeste pelo Mar das Celebes.
9
Melanésia (do grego "ilhas dos negros") é uma região da Oceania, no extremo oeste do Oceano
Pacífico e a nordeste da Austrália, que inclui os territórios das ilhas Molucas, Nova Guiné, ilhas
Salomão, Vanuatu, Nova Caledónia e Fiji.
10
Vocábulo provavelmente derivado de bardaj, termo utilizado na Pérsia para designar homens
afeminados e parceiros sexuais passivos. Sociologicamente o berdache poderia ser descrito como
uma solução elegante e generosa para acolher indivíduos desadaptados à dualidade masculino/
feminino.
15
Eles não só viviam entre as mulheres bem como também se relacionavam
sexualmente com os homens, podendo viver junto a um deles ou tornar-se amante
declarado de um casal ou ainda, em determinado momento, se desejassem, viver
com uma mulher, pois, tudo era possível e aceito.
Eles os berdaches eram vistos ainda como seres mágicos e possuidores de
um sensitivismo com a capacidade mediúnica de ver coisas e sinais especiais para a
tribo e junto a isso possuíam o poder da cura, o que os fazia serem ainda mais
respeitados.
Através da história nos é mostrado ainda que muitos deuses antigos não têm
sexo definido. Alguns, como o popularíssimo hindu Ganesh, da fortuna, teriam até
mesmo nascido de uma relação entre duas divindades femininas. Não é nada difícil
perceber que, na Antiguidade, o sexo não tinha como objetivo exclusivo a
procriação. Isso começou a mudar, porém, com o advento do cristianismo.
Boa parte do modo como os povos da Antiguidade encaravam o amor entre
pessoas do mesmo sexo pode ser explicada – ou, ao menos, entendida – se
levarmos em conta suas crenças religiosas e noutros, além disso, a carreira militar,
uma vez que a pederastia que é a prática sexual entre um homem e um rapaz mais
jovem11
era
atribuída
aos
deuses
Horus
e
Set,
que
representavam
a
homossexualidade e as virtudes entre os cartagineses, dóricos citas e mais tarde
pelos normandos.
Um dos mais antigos e importantes conjuntos de leis do mundo, elaborado
pelo imperador Hammurabi na antiga Mesopotâmia em cerca de 1750 a.C., contém
alguns privilégios que deveriam ser dados aos prostitutos e às prostitutas que
participavam dos cultos religiosos. Eles eram sagrados e mantinham relações com
os homens devotos dentro dos templos da Mesopotâmia, Fenícia, Egito, Sicília e
Índia, entre outros lugares. Herdeiras do Código de Hammurabi, as leis hititas que
datam de cerca de 3 mil anos atrás chegam a reconhecer uniões entre pessoas do
mesmo sexo.
A prática homossexual acompanha par a passo a história da humanidade e
sempre foi aceita, o que se nota são restrições quanto ao exagero em relação a sua
externalidade, haja vista que alguns homossexuais parece não terem noção de que
esse exagero nos seus trejeitos está, muito embora vivamos em um mundo mais
11
HOUAIS, Antônio. 2006.
16
dinâmico e civilizado, lhes resultando num fechar de portas; portas estas que
poderiam lhes proporcionar um futuro promissor, mas que com suas atitudes que por
vezes exageradas e provocativas, talvez pela imaturidade comportamental, os fazem
viver na clandestinidade social, muitos jogados a prostituição como última forma de
sobrevivência, quando sobrevivem ao uso das drogas e ao crime.
17
4 A GRECIA E ROMA ANTIGAS
As culturas primitivas, relatadas, trouxeram suas influencias através dos
tempos e chegaram até a Grécia e Roma antiga. As diferentes culturas e civilizações
sempre revelaram de forma ou outra a sua existência, quer seja por mitos, lendas,
relatos e até encenações.
Isto é visto nos ritos gregos de iniciação onde o homem mais velho (erastes12)
iniciava um jovem efebo, aquele que atingia a idade da puberdade, (erômeno13), na
vida adulta. Esse comportamento era aceito e fazia parte da sociedade. Conta a
história, no dizer de Fabrício Viana14 que as famílias ficavam esperando que seus
jovens fossem seduzidos por um homem mais velho. Se isso não acontecesse, essa
rejeição ou falta de interesse no jovem era mal vista socialmente e representava
uma grande vergonha para a família do garoto15.
O filósofo grego Sócrates (469-399), adepto do amor homossexual, pregava
que o coito anal era a melhor forma de inspiração – e o sexo heterossexual, por sua
vez, servia apenas para procriar. Para a educação dos jovens atenienses, esperavase que os adolescentes aceitassem a amizade e os laços de amor com homens
mais velhos, para absorver suas virtudes e seus conhecimentos de filosofia. Após os
12 anos, desde que o garoto concordasse, transformava-se em um parceiro passivo
até por volta dos 18 anos, com a aprovação de sua família. Normalmente, aos 25
tornava-se um homem – e aí se esperava que assumisse o papel ativo.
12
Na Grécia Antiga, o erastes (em grego, ἐραστής = amante, cujo plural é "erastoi") era um homem
aristocrata envolvido em um relacionamento com um adolescente do sexo masculino denominado
eromenos (em grego, ἐρστής, cujo plural é "eromenoi"). O relacionamento entre o eromenos e o
erastes era muito mais amplo que meramente sexual, como atesta a variação de nomes nas diversas
polei. Em Esparta (onde leis regulavam esse relacionamento), era eispnelas, (inspirador). Em Creta,
philetor (amigo).
13
O eromenos (em grego, ἐρώµενος – plural: "eromenoi") era um adolescente do sexo masculino
envolvido em uma relação amorosa com um homem adulto, denominado erastes (em grego, ἐραστής
– plural: "erastoi. Em Atenas, o eromenos era também camado "paidika". Em Esparta, era aites
("ouvinte"). Em Creta, era kleinos ("glorioso"). Se um eromenos houvesse lutado numa batalha ao
lado do erastes, era chamado parastathenes ("o que se posta ao lado").
14
VIANA, Fabrício. 2007, p.65.
15
Este fato vergonhoso era visto desta forma na ilha de Creta. A consumação do namoro entre
rapazes nascidos na ilha de Creta se dava por um rapto, onde o enamorado informava a família do
escolhido, e este raramente recusava o que era tido como honraria tanto para o escolhido como para
a família.
18
Naquela época, por exemplo, era um privilégio dos bem nascidos. Era o
cotidiano dos deuses, reis e heróis16. Nesse viés vê-se claramente que aquela época
a bissexualidade17 estava incrustada no cotidiano social, e a heterossexualidade,
aparece então como uma forma reservada a procriação. A homossexualidade era
vista como necessidade natural, que se restringia à ambientes cultos, manifestações
legítimas da libido e não se tratando de uma degradação moral, como foi inserida
mais tarde com as mutações dos costumes e códigos sociais no decorrer do tempo
e levando-se em conta também o posicionamento geográfico do local.
Todavia sabe-se que foi entre os gregos que a homossexualidade18 é uma
realidade humana, que segundo Maria Berenice Dias, sempre existiu desde as
origens da historia humana, foi mais visivelmente aceito e por que além de
representar à época os aspectos militares e religiosos, os gregos também atribuíam
a homossexualidade características de intelectualidade, estética corporal e,
sobretudo de ética comportamental o que na visão de muitos estudiosos tratar-se
aquela época como a “idade de ouro” da Grécia e, portanto a valoração da
homossexualidade era tamanha que o relacionamento homossexual era tido como
mais nobre do que heterossexual, haja vista a recomendação de sua prática, e de
registros históricos que apontam como um padrão normal de comportamento.
Para ilustrar este trabalho, é possível aqui destacar, na área da
intelectualidade cinco fontes mais importantes que cabem ser citadas, a saber:
a) a poesia homossexual, do final do período arcaico e início do período
clássico: a mais importante concentração de poesia homossexual antes do
período helenístico. São os 164 últimos versos (Livro II) da coletânea de
versos atribuídos a Teógnis19 e Mégara. Trata-se de uma sucessão de
16
DIAS, Maria Berenice. 2006, p 27.
Esse tema e tratado nos diálogos de Platão.
18
DIAS, Maria Berenice. 2006, p. 27.
19
Teógnis (em grego, Θέογνις - Théognis, na transliteração) de Mégara foi um poeta lírico grego do
Século VI a.C. Escreveu durante a chamada crise da polis arcaica, marcada pelo crescimento
demográfico, por grandes movimentos migratórios, e pelo surgimento de homens de grande prestígio
político que, com o apoio do povo mais pobre, tornavam-se chefes da polis - os chamados "Tiranos".
Grande parte das elegias de Teógnis podem ser caracterizadas como poesia social, com fortes tons
conservadores no sentido da crítica das transformações sociais de seu tempo. Teógnis, como fonte
documental, além de conter informações riquíssimas sobre as transformações do século VI a. C. em
algumas poleis (plural de polis) gregas, é fonte fundamental para o estudo do conceito arcaico de
hybris, ou "desmedida", encarado pelo autor como comportamento típico dos Tiranos, que por sua
"desmedida" se tornam mais poderosos que os outros cidadãos, e assim destroem a boa ordem da
polis. Em tempo: no período arcaico, os "cidadãos" eram apenas a elite de grandes proprietários de
terras, o que significa que o regime político pode ser caracterizado como "oligarquia", governo de
poucos.
17
19
poemas breves de caráter predominantemente homossexual, dirigidos a
garotos ou expressando o sentimento com relação a eles;
b) a comédia ática20, especialmente Aristófanes21 e seus contemporâneos sendo
a homossexualidade uma boa fonte de material humorístico para ele, como se
vê em suas onze peças compostas entre 425 e 328 a.C;
c) Platão, que nasceu em 428 e faleceu em 347 a.C. Ele tratou o amor que é
despertado pelo estímulo da beleza visual. É, sobretudo em dois trabalhos, o
Banquete22 e o Fedro, que Platão considerava o amor homossexual como o
ponto de partida do qual ele desenvolverá sua teoria metafísica;
d) um discurso de Esquines23, a Acusação de Timarco, em 364 a.C, onde o
político Timarco, foi processado por ter infringido uma lei que estabelecia que
um cidadão ateniense que se prostituisse em troca do uso homossexual do
seu corpo, deveria ser impedido de participar da vida política. A acusação de
Timarco, de Esquines, é uma versão escrita do principal discurso de
acusação, e o seu valor é duplo. Trata-se do único trabalho que restou, na
literatura grega, em tamanho substancial (são 45 páginas em uma edição
moderna), que trata inteiramente de relações e de práticas homossexuais;
20
Relativo à Ática (região da Grécia onde se localiza Atenas), ou o que é seu natural ou habitante.
Aristófanes, em grego antigo Ἀριστοφάνης, (c. 447 a.C. - c. 385 a.C.) foi um dramaturgo grego. É
considerado o maior representante da Comédia Antiga. Nasceu em Atenas e, embora sua vida seja
pouco conhecida, sua obra permite deduzir que teve uma formação requintada. Aristófanes viveu
toda a sua juventude sob o esplendor do Século de Péricles. Aristófanes foi testemunha também do
início do fim daquela grande Atenas. Ele viu o início da Guerra do Peloponeso, que arruinou a hélade.
Ele, da mesma forma, viu de perto o papel nocivo dos demagogos na destruição econômica, militar e
cultural de sua cidade-estado. À sua volta, à volta da acrópole de Atenas, florescia a sofística - a arte
da persuasão -, que subvertia os conceitos religiosos, políticos, sociais e culturais da sua civilização.
Conta-se que teve dois filhos, que também seguiram a carreira do pai.
22
Platão - O Banquete (428 a.C - 348 a.C) "Se houvesse maneira de conseguir que um estado ou um
exército fosse constituído apenas por amantes e seus amados, estes seriam os melhores
governantes da sua cidade, abstendo-se de toda e qualquer desonra. Pois que amante não preferiria
ser visto por toda a humanidade a ser visto pelo amado no momento em que abandonasse o seu
posto ou pousasse as suas armas. Ou quem abandonaria ou trairia o seu amado no momento de
perigo?"
23
Ésquines (Atenas, cerca de 390 a.C. - Rodes, 314 a.C.), foi um orador ateniense. Pertencia a uma
família de poucas posses. Isso, no entanto, não o impediu de casar-se com uma mulher oriunda de
uma família muito mais rica. O interesse pela política sempre o acompanhou, mas foi somente em
348 a.C. que se lançou como orador. Pronunciou, então, um discurso contra Filipe da Macedônia.
Devido à tensão política, Ésquines foi enviado em embaixada para Megalópolis com o intuito de
preparar uma liga pan-helênica contra a Macedônia. O projeto fracassou e Ésquines percebeu que
Atenas ficaria isolada. Em vista disso, Ésquines procurou uma política de concessões. Em 346 a.C.
foi encarregado de negociar a paz com os macedônios. No ano seguinte, contudo, Ésquines foi
acusado por Demóstenes de se deixar corromper por Filipe, mas conseguiu a absolvição
especialmente por seus discursos Contra Timarco e Sobre a Embaixada. Por volta de 337 a.C.,
atacou em discursos Ctesifon, que propusera dar a Demóstenes uma coroa de ouro. No fim da vida,
retirou-se para Éfeso e depois para Rodes, onde foi professor de retórica. Ésquines foi um dos
maiores oradores gregos de que se tem notícia.
21
20
e) a poesia homossexual do período helenístico, onde há um número
considerável de peças breves que foram compostas sobre o tema
homossexual a partir do século III a.C.
Neste contexto histórico tenho de fazer justiça a história homossexual vinda
da Grécia antiga citando Safo24.
Ela foi a mais forte expressão da emoção homossexual feminina na literatura
Grega25. Essa forte expressão é encontrada em suas poesias, pois, ela é tida como
a mais famosa das poucas poetisas gregas.
Pelo que consta em registros históricos, ela viveu em meados do século VII a.
C., o que significa dizer imediatamente após o épico Homero do século VIII a. C. e a
celebração por Safo do amor lésbico tem vigor, como se escrito ontem26 sendo
considerada a mais importante poetisa lírica da antiguidade a tal ponto de ser
comparada a Homero, pois, afirma-se que se Homero era “o poeta”, ela seria
chamada “a poetisa”27 sendo que sua poesia era considerada das mais sublimes.
Dentre os gregos que lhe foram contemporâneos e posteriores, Safo era
considerada uma dos chamados "Nove Poetas Líricos". Os outros eram: Álcman,
Alceu, Estesicoro, Ibico, Anacreonte, Simonides, Píndaro e Baquilides.
Provavelmente nascida na cidade de Eresos no interior da ilha e tenha se
mudado para Mitilene sua principal cidade e capital da ilha de Lesbos, no mar Egeo
por volta de 630 e 612 a.C. Era de família nobre e teve acesso á cultura e as artes,
estudando música, canto e dança.
Presumem os historiadores que em conseqüência de agitações políticas
tenha sido exilada na cidade de Pirra e posteriormente teve de deixar a ilha de
Lesbos e se transferir para Sicília, destino de desterro também do poeta Alceu, e
consta também ser lá seu lugar de morte.
Teria dito ela que “necessitava de luxo como do sol” e buscou partilhar seus
conhecimentos com outras jovens, criando um espaço de arte e cultura que passou
a ser considerado a primeira “Escola de aperfeiçoamento”, ou mais provavelmente
um templo de adoração as musas, mais precisamente a deusa Afrodite.
Ela inspirava suas “hetairai” que significava amigas e não alunas, sendo a sua
preferida a jovem Átis.
24
Em grego: Σαπφώ.
DOVER. J. K. 2007, p 239.
26
SPENCER. Colin. 1996, p 43.
25
21
De sua obra chegaram até nós fragmentos de poemas e talvez uma única ode
completa, pois a moral hipócrita da igreja condenou Safo no século XI, com a
queima de toda a sua obra que formava 9 volumes.
No entanto, ressurge ela qual Fênix de suas cinzas nos fins do século XIX
onde 2 arqueólogos ingleses descobriram em Oxorimo sarcófagos envoltos em tiras
de pergaminho, onde uma delas eram legíveis 600 versos de Safo. Mais
recentemente, em 2004, foi descoberto por pesquisadores da Universidade de
Colônia, na Alemanha, um poema de Safo do século III a.C. já tendo sido publicado
no ano seguinte 2005, onde ela expressa seu amor por suas companheiras na ilha
de Lesbos
Transcrevo aqui um fragmento do poema dedicado por ela a sua predileta
Atis:
Semelhante aos deuses parece-me que há de ser o feliz
mancebo que, sentado à tua frente, ou ao teu lado,
te contemple e, em silêncio, te ouça a argêntea voz
e o riso abafado do amor. Oh, isso - isso só - é bastante
para ferir-me o perturbado coração, fazendo-o tremer
dentro do meu peito!
Pois basta que, por um instante, eu te veja
para que, como por magia, minha voz emudeça;
sim, basta isso, para que minha língua se paralise,
e eu sinta sob a carne impalpável fogo
a incendiar-me as entranhas.
Meus olhos ficam cegos e um fragor de ondas
soa-me aos ouvidos;
o suor desce-me em rios pelo corpo, um tremor [...]
Portanto, percebe-se que Safo é realmente merecedora de ser comparada a
uma Fênix. Ela se sobrepõe com o vigor de seus versos ao mito da ave e é
eternizada juntamente com os fragmentos de sua obra ao ser citada em obras e até
mesmo em trabalhos acadêmicos, mesmo que sucintamente como neste.
A relação homossexual na Grécia antiga deixava claro que na relação sexual
cabia ao mais velho o papel ativo e nunca o passivo28 e assim que iniciado e
prolongando-se por aproximadamente dois anos, eles deveriam se separar cabendo
ao mais jovem constituir sua família envolvendo-se com uma mulher. Caso o
relacionamento tivesse uma continuidade na vida adulta, ou se o ato fosse praticado
28
Como quem desempenhava o papel passivo eram rapazes, mulheres e escravos – todos excluídos
da estrutura do poder – clara relação entre masculinidade-poder político e passividade-feminilidadecarência de poder.
22
entre adultos, a prática seria condenada pela sociedade recaindo sobre eles a
vergonha.
Na Roma antiga, a sociedade era separada rigidamente entre escravos e
seus senhores podendo estes terem seus rapazes prediletos.
Entre os romanos, os ideais amorosos eram equivalentes aos dos gregos. A
pederastia (relação entre um homem adulto e um rapaz mais jovem) era encarada
como um sentimento puro. No entanto, se a ordem fosse subvertida e um homem
mais velho mantivesse relações sexuais com outro, estava estabelecida sua
desgraça – os adultos passivos eram encarados com desprezo por toda a
sociedade, a ponto de o sujeito ser impedido de exercer cargos públicos. Era uma
forma de preconceituar, a passividade, ao lhe atribuir o papel como se feminino
fosse.
Mas em Roma como bem escreve Napoleão Dagnese29 pouco se fez para
salvaguardar a nobreza dos sentimentos relacionados à sexualidade, também
caindo puramente aos aspectos no final do Império.
A degradação do poder na Roma antiga acompanhou a degradação e de
seus personagens como30 Nero (que se casou com Pitágoras) e Calígula, que era
conhecido por suas façanhas estranhas ao bem comum dos cidadãos são exemplos
de degradação do poder absolutista e da homossexualidade, outrora enobrecida por
Julio Cesar.
No entanto a homossexualidade era vista como de procedência natural, ou
seja, no mesmo nível das relações entre casais, entre amantes ou de senhor e
escravo.
Há época o preconceito da sociedade romana decorria da associação popular
entre passividade sexual e impotência política31
É de se concluir então que a homossexualidade era praticada na Grécia e
Roma antigas e entre vários outros povos, com algumas regras específicas em cada
um deles, sem contudo haver punições ou condenações explícitas por sua prática, o
que veio a ocorrer somente quatro séculos depois, na era cristã (342 d.C.), onde o
mundo ocidental passou a assistir proibições, inclusive sob pena de morte, de
práticas homossexuais através do Imperador Constantino.
29
DAGNESE. 2000, p 15.
DAGNESE. 2000, p 15.
31
SOUZA apud DINIZ, 2006, p. 27.
30
23
5 A IDADE MEDIA E O RENASCIMENTO
A vitória do cristianismo é o marco terminal da sociedade antiga, e partindo do
pressuposto de que nos primeiros séculos do cristianismo, os cristãos conciliavam
os valores enraizados da antiguidade, que começavam a ser chamados de pagãos e
a fé.
Temo então a partir dessa assertiva que existe uma dificuldade de se saber,
no decorrer da história, onde a moral antiga e a cristã convivem ou separam-se nos
primeiros séculos do cristianismo, bem como em delimitar temporalmente com certa
precisão, quando ocorreu à passagem da ilimitada aceitação das relações
homossexuais romanas até as fogueiras inquisidoras é de difícil resolução.
Vimos que na antiguidade as relações homossexuais eram não só toleradas
como eram ritualizadas, o que ao contrário do cristianismo e judaísmo foi o período
da ignorância e da obscuridade da civilização e do direito, produzindo desigualdades
e desequilíbrio nas mais variadas áreas da civilização.
A Europa, do século IV até o renascimento, assistiu uma implacável
perseguição aos homossexuais, os pecadores contrários aos desígnios divinos e por
que não dizer também, na visão daquele período os co-responsáveis pelos males do
mundo. Dessa forma, por exemplo, em 654 d.C, por edito do rei Alarich II da
Noruega, restava aos homossexuais três alternativas de pena a escolher: auto
castração, ser enterrado vivo ou ser queimado vivo.
No entanto, é através de Gregório II, no século XIII, que foi publicado, sob a
influência de Tomas de Aquino um código penal válido para todo o império cristão,
com forte apelo ao Direito Natural, observando uma ótica conveniente à época do
que se imaginava natural. Muito embora esse código fosse inovador em princípios,
alguns valores que proporcionam posteriormente nos séculos XIV e XV o
recrudescimento contra a sodomia na Europa, sendo fundadas na Itália associações
como collegium Sodomitarum e o Ufficiali della Notte que se encarregavam de
perseguir, investigar e até mesmo em aplicar penas preventivamente.
Nesse obscurantismo criado pelas mãos judaico-cristãs permaneceu a
aprovação exclusiva do sexo dentro do matrimônio visando à procriação, bem como
a hostilidade entre a homossexualidade confeccionando-se e distribuindo-se
manuais penitenciais para confessores bem como a sua associação à heresia e as
24
repetidas condenações repetidas nos concílios (1102, 1120, 1179) bem como a
expulsão dos clérigos envolvidos nas práticas de atos homossexuais.
O acirramento da moral oriunda da reforma religiosa e da contra reforma é
sem sobra de dúvidas, a meu ver a má influência cristã na formação da mentalidade
sexual ocidental, sendo inequívoca a prevalência da visão repressiva e condenatória
da homossexualidade nas concepções religiosas ocidentais.
Curioso o fato de que muito embora toda essa carga repressiva na Idade
Média a homossexualidade estava mais presente nos mosteiros32 e acampamentos
militares. Mesmo assim, curiosamente, era a igreja através da Inquisição, a maior
perseguidora dos homossexuais33.
A igreja católica dentre tantas alegações, considerava as relações entre
pessoas do mesmo sexo uma verdadeira perversão, uma aberração da natureza,
sendo que até hoje a masturbação e o sexo infértil são considerados antinaturais, e,
daí a condenação principalmente a homossexualidade masculina, por haver perda
de sêmen, sendo que o relacionamento entre mulheres era considerado apenas
lascívia embutindo-se ai, ao meu entender uma discriminação, que diminuía a
mulher, e deixando a entender que era, portanto menos perigosa.
Voltando a Tomas de Aquino, que justificava o sexo como o caminho da
procriação, em face da necessidade de ocupar a terra, haja vista que na época a
expectativa de vida era de 30 anos e a religião ao formar a família, exige-lhe
32
Na Idade Média, o meio monástico era um terreno propício para a sodomia: a Regra de São Bento
previa que os monges deviam dormir cada um em uma cama, de preferência em um mesmo local,
com sacerdotes mais antigos que cuidariam deles. Os regulamentos de Cluny proibiam que os
noviços ficassem sozinhos ou na companhia de um só professor. Se um dentre eles, à noite, tivesse
de sair para satisfazer suas necessidades, tinha de estar acompanhado por um mestre e por outro
jovem munido de lanterna. Foi em meio a esse ambiente que Arnaud de Verniolle, subdiácono fugido
das prisões da ordem dos franciscanos no século XIV, acusado de heresia e de sodomia, afirmou ter
sido iniciado nas práticas homossexuais por um colega mais velho, que se tornara padre. Aos 12
anos, seu pai o colocou em uma escola de Pamiers comandada pelo mestre Pons de Massabuc para
aprender gramática. Arnaud dividia o quarto com seu professor e outros jovens. “Quando eu morava
naquele quarto, fiquei dormindo na mesma cama, durante cerca de seis semanas, com Arnaud
Auréol. Depois de duas ou três noites que passamos juntos, ele, pensando que eu dormia me tomou
nos braços e me prendeu entre suas coxas, colocando seu membro viril entre as minhas e, como se
estivesse com uma mulher, se mexeu e ejaculou em minhas pernas. Quase sempre, a cada noite que
dormíamos juntos, ele recomeçava esse pecado. Como eu, naquele tempo, era ainda uma criança,
apesar de não gostar do ato, não ousava contá-lo a ninguém, por pudor.”:<
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/o_amor_que_levava_a_fogueira. > acesso em
28.09.2009.
33
DINIZ. 2006, p 27.
25
imperiosamente a sua continuidade34, deixando claro ser o amor carnal um rival do
amor de Deus.
Os sentimentos e os costumes então se transformaram como já se sucedera
com a política e entramos no período histórico chamado de Renascimento.
Com a Renascença, teve início uma mudança radical na mentalidade da
sociedade ocidental, a partir das revoluções artística, religiosa, política e científica.
Nele o protestantismo com sua reforma trouxe um forte impacto social, mas
não mudou a idéia de não aceitação dos homossexuais. Estabeleceram-se a
Reforma Protestante, o positivismo e o modelo econômico industrial. Entre os
séculos XVII e XIX, consolidou se gradativamente o projeto da Modernidade, tendo
como objetivo a produção de mercadorias para o desenvolvimento e o progresso
social.
Foi na Itália que se começou a dar atenção às artes e ciências e a tolerância
homossexual começou a ter um lugar mais claro acendendo a luz onde antes eram
só trevas.
Assim, as personalidades hoje reconhecidas mundialmente, deram início em
seu tempo à reversão do quadro de intolerância instalado na idade das trevas.
Leonardo Da Vinci a meu ver, o único homem que se pode atribuir o título de gênio,
pela sua incursão sábia em vários segmentos tanto da arte como das ciências,
manteve um romance com Jacopo Saltorelli em 1746. Michelangelo (falecido em
1.564) com Tomaso Del Cavalieri; e o pintor genovês Giovanantonio Bazzi (1477 –
1549).
O Renascimento permitiu nova emergência da homossexualidade na
sociedade. Os escritos didáticos de Antônio Rocco (1586 – 1652) com o título de
Alcibiade fanciullo a Scola esclarecem o autoconhecimento e a liberdade de amar e
tratavam de convencer os alunos á prática do sexo livre argumentando que a
homossexualidade é uma ação natural, cuja própria natureza estimula essa ação
face ao amor e ao erotismo, parecia, pois, existir uma tradição cristã tolerante.
Seu contemporâneo inglês William Shakespeare35, defendia para alguns, a
sua homossexualidade em versos, enquanto Christopher Marlowe36 (1564 – 1593),
34
COULANGES. 2002, p 54.
William Shakespeare (batizado em 26 de Abril de 1564 – 23 de Abril de 1616) foi um poeta e
dramaturgo inglês, tido como o maior escritor do idioma inglês e o mais influente dramaturgo do
mundo. É chamado freqüentemente de poeta nacional da Inglaterra e de "Bardo do Avon" (ou
simplesmente The Bard, "O Bardo").
35
26
fundador do teatro Elizabetano inglês, questionava os valores pré determinados com
a tragédia Eduard II.
A França de Henrique II37 que pouco evitou reinar acompanhado por belos
rapazes mostrou-se relativamente liberal. Ainda na França onde o meio urbano tinha
um papel importante no desenvolvimento da homossexualidade, Chartres, Sens,
Orléans e Paris seriam seus centros mais destacados, Felipe de Órleans38, irmão de
Luiz XV, era conhecidamente homossexual, a despeito da corte alemã, onde eles
não eram tolerados.
Muito embora personalidades em seu tempo, não evitavam que fossem
condenados como sodomitas. Neste sentido, Foucault defendera no século XX que
a partir do final do século XVI os códigos da decência e da grosseria mudaram
radicalmente39. Esse processo em minha ótica ainda nos atormenta em pleno início
do século XXI.
36
Christopher Marlowe (batizado a 26 de fevereiro de 1564 – morto em 30 de maio de 1593) foi
dramaturgo, poeta e tradutor inglês, e viveu no Período Elizabetano. É considerado o maior
renovador da forma do teatro do período com a introdução dos versos brancos, estrutura que será
empregada por Shakespeare).
37
Henrique II (em francês Henri II; Saint-Germain-en-Laye, Yvelines, 31 de Março de 1519 – Paris, 10
de Julho de 1559) foi rei da França de 1547 até sua morte. Frequentemente considerado rei
secundário, continuou a obra do pai de quem foi o quarto filho. Em seu reinado, vivia-se na França o
apogeu do Renascimento.
38
Filipe Charles d'Orléans, também conhecido como Filipe II, duque d'Orleães, (Saint-Cloud, 2 de
agosto de 1674 – Versalhes 2 de dezembro de 1723) foi o segundo filho de Felipe de França e de
Isabel Carlota do Palatinado. Foi Duque de Chartres, Duque de Orléans (1701), Duque de Valois,
Duque de Nemours e Duque de Montpensier.Regente da França de 1715 a 1723. Sendo sua
regência durante a menoridade de Luís XV a última no reino da França, ele ainda é habitualmente
chamado de O Regente e seu governo de La Régence.
39
DAGNESE. 2000, p 17-18.
27
6 A II GUERRA E O POS GUERRA
As mudanças sociais no mundo contemporâneo se deram com o advento do
iluminismo e o direito penal, então reformado de maneira a afastar penas fundadas
em determinações divinas e que permitiram a aparição mais ou menos aberta de
comportamentos afetivos que anteriormente precisavam se ocultar.
A literatura oitocentista trouxe à tona questões de identidades discordantes
com o socialmente esperado, ou seja, aqueles personagens que não correspondem
à anatomia, e as escolhas amorosas e desde então o homoerotismo começou a
ocupar cada vez mais o seu lugar.
Como exemplo de personagem Vautrim de Honoré de Balzac, que, com suas
práticas sexuais anticonvencionais e com valores morais tidos como rebeldes para a
época, criou uma imagem romantizada de homossexual exteriorizado.
Até o final do século XVIII, o direito canônico, a lei civil e a pastoral cristã
estabeleceram o lícito e o ilícito dos atos sexuais até que a assembléia constituinte
francesa de 1791 não condenou os homossexuais penalmente, posição reiterada
pelo Code Pénal napoleônico de 181040, passando a ser considerado naquele país
um mero vício.
Mas, a despeito da posição francesa que se compunha com a italiana o
Direito Penal alemão através do § 143 do Código Penal da Prússia não só
condenava a sodomia como a equiparava a zooerastia41, e impunha penas de 6
meses a 4 anos de prisão. Essa posição infelizmente mantida no § 175 do Código
Penal de 1815.
Há que se registrar que diante desse código que criminalizava atos
homossexuais houve uma concentração de ativistas com grandes esforços para
acabar com tal penalização e contando com o apoio de entidades científicas, dentre
elas se pode destacar o Comitê Científico Humanitário, fundado em 1897, liderado
pelo médico Magnus Hirschfeld e seguido por grande número de intelectuais esse
movimento cresceu, fortaleceu-se e se expandiu até a ascensão do nazismo que,
conforme mostra a história acirrou uma cruenta intensificação, durante a II Guerra
40
41
DAGNESE. 2000, p 18.
Bestialidade, bestialismo, zoofilia erótica. Sexo com animais.
28
Mundial42, um dos mais sangrentos exemplos de violência que enviou centenas de
milhares de homossexuais para a morte, nos campos de concentração43, onde eram
marcados com o triangulo rosa, que anos mais tarde se tornaria um dos principais
símbolos da nossa luta contra a opressão homossexual.
É inequívoca a visão repressiva e condenatória da homossexualidade por
Hitler, com a ascensão do seu partido nacionalista o que fez com que em 1932 fosse
acrescentado no parágrafo 175 do Código Penal Alemão que beijos e fantasias
homossexuais eram crimes passíveis de punição, com a estimativa de que na época
houve o extermínio de 50.000 a 80.000 pessoas. Esses números são considerados
demasiados baixos, e de difícil computação dado o fato do artigo 175 ter sido
mantido na Alemanha Ocidental pós guerra o que levou poucos sobreviventes a se
pronunciarem e a exigirem indenização.
Há que se atentar ao fato de que os prisioneiros homossexuais dos campos
de concentração não foram considerados vítimas de perseguição Nazista na guerra.
As indenizações e pensões sociais atribuídas a outros grupos de prisioneiros foram
negadas aos gays, que continuavam a ser considerados criminosos.
As estimativas variam fortemente quanto ao número de homens gays que
morreram nos campos de concentração durante o Holocausto, situando-se entre os
5 e os 15 mil. Os números mais elevados incluem gays que eram judeus e/ou
comunistas. Os registros referentes às razões do internamento em muitos casos não
existem, tornando difícil estimar com precisão quantos homens gays pereceram nos
campos da morte e ainda marcados com um triangulo rosa em seus trajes prisionais.
Os homens gays sofreram tratamentos invulgarmente cruéis nos campos de
concentração. Além de serem agredidos pelos guardas alemães, eram perseguidos
muitas vezes também pelos outros prisioneiros. Sob a política Arbeit macht frei
("Libertação pelo Trabalho") nos campos de trabalhos forçados, recebiam
regularmente os trabalhos mais pesados ou perigosos. Os soldados da SS utilizaram
muitas vezes o triângulo rosa, que os homens gays eram obrigados a usar, como
alvo para prática de tiro.
Esse tratamento cruel pode ser atribuído tanto às opiniões dos guardas da SS
como às atitudes homofobicas generalizadas na sociedade alemã da época. A
42
A Segunda guerra mundial pode ser entendida a partir das relações internacionais, do
imperialismo, do crescimento do nacionalismo e do desenvolvimento da indústria bélica. Com a crise
mundial de 1929, o nacionalismo cresceu, bem como a extrema direita (os regimes totalitários).
43
A meu ver Auschwitz-Birkenau, é o campo de morte mais importante nesse conflito humanitário.
29
marginalização dos gays na Alemanha refletia-se nos campos de concentração.
Muitos foram espancados até a morte por outros prisioneiros. Outros morreram às
mãos de médicos nazistas em experiências "científicas" destinadas a localizar o
"gene gay" de forma a encontrar "curas" para as futuras crianças arianas que fossem
gays.
É em 1933 na Alemanha que publicações homossexuais foram proibidas e
recolhidas e em seguida, a privacidade das moradias pode ser violada
indiscriminadamente como forma de controle e vigilância
44
e locais públicos para
homossexuais sofreram limitações, pois Berlim possuía bares e cabarés
freqüentados pela comunidade homossexual e a restrição ao seu acesso dava-se
pelo argumento da purificação da raça, sendo os homossexuais vistos como impuros
e sua prática comparada ao aborto.
Os jogos olímpicos de 1936 foram bem-vindos, pois, com eles houve um
afrouxamento no numero de prisões e nada mais foi do que cautela do regime de
Hitler45 perante a comunidade internacional que voltava seus olhos para as terras
germânicas.
Em 1941, o nazismo, sustentava que a homossexualidade era incompatível
com o Nacional Socialismo, já que não permitia a reprodução, necessária para
perpeturar a raça superior. Da mesma forma, a masturbação era considerada
perniciosa pelo Reich que veio a ressuscitar a pena de morte para homossexuais – e
de maneira mais atenta aos descobertos entre os militares – que também eram
considerados contaminados pela peste homossexual que trazia ao entendimento
dele um risco potencial aos jovens de sexualidade saudável, pois seus filhos que
viriam a nascer dariam continuidade à pureza da raça ariana e seriam essenciais e
seriam eles essenciais para os nefastos e carnificínicos planos do Führer.
Sob o domínio do III Reich46 homossexuais, ciganos, antifascistas, judeus e
demais criminosos bem conheceram a sua sede de sangue através dos campos de
concentração para que lá fossem exterminadas as ameaças sociais.
44
DAGNESE. 2000, p 19.
Hitler acreditava que a homossexualidade era um "comportamento degenerativo" que ameaçava a
capacidade do estado e o "caráter masculino" da nação. Os homens gays eram denunciados como
"inimigos do estado" e acusados de "corromper" a moral pública e ameaçar o crescimento
populacional alemão.
46
Na Alemanha, com a implantação do III Reich, o Tratado de Versalhes foi desrespeitado, levando a
reorganização das Forças Armadas e ao desenvolvimento da produção de armamentos. Iniciava-se
então a política de expansão territorial – proclamando a raça germânica como superior.
45
30
A França invadida, por sua vez validava essas ações abastecendo esses
campos enviando para a Alemanha essas pessoas socialmente indesejadas sob o
amparo de Vichy e ratificado pelo do de Gaulle através de lei específica nº 744 de
06.08.1942, cujo conteúdo só foi definitivamente sepultado em 1982 por Françoise
Mitterrand47.
O que mais nos apavora é o fato de que todo esse banho de sangue foi
fundamentado juridicamente por despachos do governo nazista, deixando bem a
mostra mais uma vez a fragilidade das garantias legais, o que demonstra que os
artifícios jurídicos acabam sendo manipulados com grande facilidade para que
possam dar legitimidade aos interesses das classes dominantes. Estas leis anti gay
nazistas apenas foram banidas em 1994, embora tanto a Alemanha Ocidental como
a Alemanha Oriental tenham liberalizado as suas leis criminais contra a
homossexualidade entre adultos nos finais dos anos 1960.
O que se pode aprender desta história é o quão vulneráveis somos nós os
homossexuais perante a opinião pública, haja vista cidades liberais e avançadas
como foi Berlim na década de 1920, que possuía a fama da capital homossexual, e
que podemos de maneira perfeita comparar com São Francisco nos Estados Unidos,
nos tempos de hoje.
Hoje, a Alemanha retrata-se perante a comunidade homossexual com um
memorial48, que é um monumento com a forma de um cubo49, instalado no parque
central de Tiergarten, e homenageia os 7 mil homossexuais assassinados em
campos de concentração, além dos mais de 50.000 que foram processados por sua
orientação sexual entre 1933 e 1945 o e monumento dialoga com as colunas cinza
retangulares do memorial aos 6 milhões de judeus assassinados pelos alemães.
47
O sofrimento dos homossexuais não terminou depois do fim da guerra, uma vez que as leis antihomossexuais dos Nazistas não foram suprimidas, tal como aconteceu com as leis anti-semíticas, por
exemplo. Alguns homossexuais foram obrigados a terminar a pena a que estavam condenados pelo
Governo Militar Aliado do pós-guerra na Alemanha. Outros, ao regressar a casa e aos seus países de
origem tiveram que manter o silêncio sobre o seu sofrimento, por medo de discriminação, pois as
chamadas leis sobre a sodomia só acabariam por cair na Europa Ocidental nos anos 1960 e 1970.
48
O amor que não ousa dizer o nome. Como se estivesse olhando através de uma janela, o
observador vê uma cena de filme em preto-e-branco: dois homens se beijando projetados no interior
de um bloco retangular de concreto de cerca de quatro metros de altura.
49
Num misto de instalação e escultura, o duo de artistas Michael Elmgreen e Ingar Dragset projetou o
memorial dos homossexuais perseguidos pelo regime nacional-socialista, que o ministro alemão da
Cultura, Bernd Neumann, inaugurou em Berlim.
31
A Alemanha deseja, com este monumento, manter acordada a lembrança da
injustiça e estabelecer um sinal duradouro contra a intolerância, a hostilidade e a
exclusão de gays e lésbicas, explicam os dizeres ao lado do novo memorial.
Com isso vemos que as mudanças sociais no mundo contemporâneo
permitem a aparição mais ou menos aberta de comportamentos afetivos que
anteriormente precisavam ser ocultos.
A questão das identidades discordantes com o socialmente esperado, ou
seja, aquelas que não correspondem à anatomia, e das escolhas amorosas
homoeróticas, está ocupando cada vez mais lugar na mídia e nas discussões
jurídico-sociais e profissionais, mas enfrentam-se ainda muitos preconceitos
derivados de antigas formas de pensar que obstaculizam ou até impedem o
surgimento de pontos de vista livres de ideologias ou moralismo.
32
7 O MUNDO CONTEMPORÂNEO
Após o período da II Guerra Mundial, e a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, muito se tem pleiteado em busca dos direitos civis
homossexuais, nas décadas subseqüentes.
Nos anos 50, por exemplo, a discrição e o enrustimento “inside the closet”,
expressão usual que se traduz como, dentro do armário, ou seja, que se oculta, era
normal, pois era remanescente a homofobia havendo inclusive cassação de políticos
Gays nos Estados Unidos sob a alegação – e muito lembrando a propaganda
nazista – de que um homossexual poderia poluir um escritório do governo. Cabe
lembrar que na Inglaterra sob o comando do então Primeiro Ministro Tony Blair,
houve revelações de que em seu gabinete haveria um considerável número de
homossexuais, e mesmo assim, não houve queda de destaque no cenário mundial
daquele país. Em outro dizer, a Inglaterra manteve a sua integridade enquanto
nação demonstrando assim que esses fatos em nada abalaram a vida política e
social daquele parlamento, em não tomar medidas homofóbicas.
Em 1956 o psicólogo Evelyn Hooker, lançou tese, segundo a qual não há
conexão entre homossexualidade e psicopatologia fazendo com que naquela
metade do século XX se pudesse visualizar os primeiros pleitos em busca da
aceitação social e de direitos civis com discursos esforçados para demonstrar que o
que se pensava à época ser uma deficiência fisiológica e psicológica não seria
necessariamente um impedimento na integração dos homossexuais em direção ao
progresso social e construtivo da humanidade.
Percebe-se também naquela época que houve a tentativa de se quantificar os
homossexuais no mundo atribuindo-lhes a décima parte da população global, muito
embora outros estudos realizados posteriormente por volta dos anos 80 indicassem
percentuais de 2 a 5 por cento, daí a origem do termo minoria sexual e que nos anos
90 retornaria ao percentual de dezena, ou seja, 10 por cento da população mundial.
Isso nos faz lembrar Alfred Kinsey, que publicou em 1948 um estudo
revelador com o título de Comportamento sexual no masculino humano, e que pelo
impacto de seu conteúdo permaneceu seis meses na lista de Best Seller do The
New York Times, defendendo a tese de que o sexo homossexual permanecia de
33
grande interesse para muitos americanos, talvez por que eles, provavelmente,
gostassem dele, mas publicamente tivessem de odiá-lo50.
Já os anos 60 nos trouxeram a luz da humanidade uma nova releitura do
Renascimento, onde se percebe uma movimentação mundial, em que homossexuais
saíram em busca de modelos de comportamento, ou seja, uma nova modalidade
social de vida emergente. Sem raízes tradicionais e tanto hierárquicas, como
culturais, esses novos nichos começaram a surgir em cidades como São Francisco e
Nova York, e guardando as escalas proporcionais também no Brasil51, nas cidades
de Rio de Janeiro e de São Paulo que na condição de grandes metrópoles, foram
acolhedoras de jovens do interior, que com sua “cara e coragem” se permitiram sair
de seus “esconderijos” localizados nas pequenas cidades ou lugarejos para irem ao
encontro do seu sonhado destino o qual seria buscar seus desejos sem a
necessidade de manifestarem no seio familiar a sua orientação sexual e evitando
assim as discussões às agressões e humilhações a que muitos eram submetidos,
por suas mães desencantadas, por pais e até mesmo por irmãos e irmãs que
inconformados com a “fatalidade” que se abateu naquele teto, indo inclusive a
extremos de serem expulsos de casa quando não assassinados.
Com a afluência dessa nova identidade social aos grandes centros surgiu
também uma vasta gama de variedades e estilos, que despertaram para o “boom”
da revolução sexual, de acordo com a fantasia sexual de cada um como, por
exemplo, “leather”, “Army”, “Navy”, “Bodybuilder”, “Drag Queen”, “Yupp”, etc.
Foi nesta época, para ser mais preciso no dia 28 de junho de 1969, que nove
policiais de Manhattan, invadiram agressivamente o bar Stonewall, situado na
Christopher Street, lugar de boemia homossexual, com a desculpa de que vendia
bebidas alcoólicas sem licença. O que naquela noite pareceria mais uma
manifestação homofóbica, homossexuais se uniram para se defender, travando uma
50
DAGNESE. 2000, p 22.
Conforme James N. Green, brasilianista, em seu livro Além do Carnaval, A homossexualidade
masculina no Brasil do Século XX.. p.409. São Paulo. UNESP: 1999, o fim dos anos 60 e o início
da década de 70 foram uma época de revolta política e social, onde as idéias de contracultura haviam
penetrado no Brasil e influenciavam muitos jovens da classe média. Entre os novos desafios aos
valores sociais hegemônicos estava o uso de drogas, uma rejeição à sociedade de consumo – que
era promulgada pela política oficial – e a desestabilização dos códigos sexuais, especialmente nas
questões da virgindade feminina antes do casamento e da heterossexualidade normativa para
homens e mulheres. O tropicalismo, com Gil, Caetano, Maria Bethânia e Gal Costa, trazia à cena a
imagem de uma sensualidade despudorada, e seus membros não faziam questão de desmentir as
especulações de gênero tradicionais.
51
34
batalha de pedras e garrafas com os policiais52 e acabou a data entrando para a
história e perpetuando-se como o marco para o movimento gay internacional dada a
repercussão gerada na época. O amor que não ousava dizer seu nome tinha saído
às ruas53.
Já na década de 70, nos Estados Unidos começava a surgir o movimento
homossexual organizado, utilizando-se de instrumentos de mídia e com a
participação de defensores políticos o que nos leva a ver que uma civilização inteira
cresceu até a sua maturidade, onde o culto ao sexo tomou vulto nos centros urbanos
de tal forma que não ocorreu em qualquer outro período da história da humanidade
em termos de sofisticação e acessibilidade, mas que a meu ver teve vida efêmera,
posto que nos anos 80 surge a AIDS para assolar a vida vindo a corroer a
sexualidade gay masculina, trazendo uma confusão moral ao mundo54. Dessa forma
as primeiras vítimas da AIDS começaram a aparecer e multiplicando-se em
velocidade espantosa, devido à alta rotatividade de parceiras e ao não costume de
se usar preservativos, que na época, nem se cogitava a tamanha importância desse
hábito, por isso tão pouco difundido.
Em 1982 surgem os primeiros doentes de AIDS identificados no Brasil: dois
rapazes com Sarcoma de kaposi55 que tinham estado recentemente nos Estados
52
Os freqüentadores do bar tendiam a ser jovens e não brancos. Muitos eram Drag Queens e muitos
vinham do crescente gueto de foragidos que viviam no outro lado da cidade. Naquela noite,
entretanto, na medida em que os policiais os retiravam do bar, uma multidão se aglomerou na rua.
Vaias e assobios eclodiram quando um camburão partiu com o balconista, o segurança e três Drag
Queens. Poucos minutos depois, um policial tentou levar a última cliente, uma lésbica, para uma
viatura próxima, no meio dos espectadores. “Ela resistiu e lutou da porta até o carro” relatou o Village
Voice. Nesse momento, “a cena se tornou explosiva... Latas, e garrafas de cerveja foram atiradas
contra as janelas e uma chuva de moedas desabou sobre os policiais... A multidão irrompeu a atirar
pedras e garrafas... Do nada, apareceu um parquímetro arrancado e usado como porrete na porta do
Stonewall. Ouvi vários gritos de “vamos pegar gasolina”, mas o clarão de fogo que surgiu em seguida
na janela do Stonewal foi outro choque”. Reforços vieram resgatar os policiais acuados no bar em
chamas, mas seu trabalho mal tinha começado. A rebelião prosseguiu noite adentro, com travestis
porto-riquenhos e garotos de rua liderando ataques contra fileiras de policiais uniformizados, depois
batendo em retirada e se reagrupando nas vielas e travessas do Village. Na noite seguinte, pichações
com a frase “Gay Power” apareceram nos muros da Chistopher Street. D’EMILIO, John. Sexual
Politics, Sexual Communities.2ª ed. Chicago, The University of Chicago Press, 1998, p.231-232
(tradução dos autores). apud FACCHIN, Regina. SIMÕES, Júlio Assis. Na trilha do Arco-íris. Do
movimento homossexual ao LGBT. Editora Perseo Abramo. São Paulo. 2009, p.46.
53
Ibid., p.45.
54
FACCHIN; SIMÕES. 2009, p.128.
55
O sarcoma de Kaposi é uma neoplasia endotelial de origem capilar ou linfática. São descritos três
grupos clínicos: o sarcoma de Kaposi clássico que acomete homens idosos, procedentes do
mediterrâneo e do oeste da Europa, com lesões particularmente em membros inferiores, de
crescimento lento e baixa letalidade. O segundo tipo é conhecido como o sarcoma de Kaposi
endêmico africano podendo acometer adultos, com apresentação clínica similar a forma clássica, e
crianças sendo nestas uma doença rapidamente progressiva e fatal. O terceiro grupo é conhecido
como o sarcoma de Kaposi epidêmico que acomete pacientes imunocomprometidos, incluindo
35
Unidos, e em 1983 o estilista Marcus Vinícius Resende Gonçalves, o Markito, com
31 anos deu ressonância a doença e ao medo por ela despertado56.
Se no Renascimento, vê-se que naquele período um inquestionável período
em que a produção cultural humana tivesse sido realizada por homossexuais, na
virada do século XX a humanidade seria presenteada com movimentos de apoio e
prevenção ao HIV nunca antes tão ágil e prontamente vistos como em outras
epidemias.
A AIDS surpreendeu então, o ativismo homossexual brasileiro numa situação
paradoxal, pois, enquanto grande parte dos grupos existentes se desestruturava,
acontecia uma expansão publicitária do espetáculo gay fazendo inclusive aumentar
a visibilidade das travestis, como no caso de Roberta Close, vedete dos verões
carioca depois de estrelar um videoclipe da canção “Close” do compositor Erasmo
Carlos
57
o “tremendão”, e sendo depois a atração principal da edição de maio da
revista masculina Play boy.
aqueles com AIDS. Entre os pacientes acometidos pela AIDS o sarcoma de Kaposi é mais
freqüentemente encontrado em homens homossexuais, sendo mais raramente descrito em usuários
de drogas intravenosas e nas mulheres.
Estudos epidemiológicos e de história natural apontam para uma provável etiologia infecciosa do
sarcoma de Kaposi. Neste sentido vários estudos foram conduzidos e diferentes agentes foram
incriminados e posteriormente afastados. Os trabalhos mais recentes indicam que um vírus da família
herpes - denominado Herpesvirus hominis 8 (HHV-8) ou herpes vírus associado ao sarcoma de
Kaposi (KSHV) - está fortemente relacionado à etiopatogenia desta doença, inclusive nos pacientes
com as formas clássicas desta neoplasia.
Nos pacientes com AIDS a pele e as mucosas são mais freqüentemente acometidas, sendo
representadas por lesões que podem variar desde pápulas e nódulos violáceos ou avermelhados até
lesões vegetantes e eventualmente necróticas. As lesões podem ser localizadas ou acometer vários
sítios de pele e mucosas. Associado às lesões cutâneas pode ainda ocorrer um prejuízo da
drenagem linfática resultando em grande edema, principalmente em membros inferiores e face.
O acometimento visceral do sarcoma de Kaposi é mais freqüentemente encontrado em trato
gastrointestinal e nos pulmões. No trato digestivo as áreas mais freqüentemente acometidas são a
boca, o estômago, o duodeno e o reto, geralmente ollgossintomático podendo em alguns casos
determinar obstruções ou sangramentos. Na endoscopia as lesões são modulares e de aparência
vascularizada, variando em tamanho e número. O sarcoma de Kaposi pulmonar é bastante
sintomático e com alta letalidade, observando-se vida média de três meses após o diagnóstico. Os
sintomas incluem dispnéia, tosse importante não produtiva, dor torácica e menos freqüentemente
febre; bronquioconstrição e bemoptóicos eventualmente ocorrem. A broncoscopia revela maís
freqüentemente lesões pequenas de coloração avermelhada e aspecto vascularizado, sendo bem
visibilizadas na mucosa endobrônquica, embora o parênquima pulmonar seja o principal sítio de
acometimento da doença. Outras vísceras, incluindo o fígado, linfonodos, pâncreas, baço entre
outros, podem ser acometidos. Apesar de o sarcoma de Kaposi ser uma doença agressiva nos
pacientes com AIDS, geralmente não é uma causa direta de morte. In: <
http://www.aids.gov.br/livro/c6c03.htm > acesso em 17.03.2010.
56
Lembro-me perfeitamente que na época foi criado em Porto Alegre o GAPA RS Grupo de Apoio e
Prevenção a AIDS que é uma organização não-governamental, sem fins lucrativos, sem conotação
religiosa, sem vinculação político-partidária, buscando marcar as ações pela democracia, a luta pelos
direitos humanos e o empoderamento das populações vulneráveis socialmente. Atualmente tem sua
sede na Rua Luiz Afonso, 234, bairro Cidade Baixa.
57
Ibid., p.129.
36
Nessa época a epidemia deu seu revés, ensejando uma inusitada
aproximação entre os ativistas homossexuais e as autoridades médicas no processo
que culminou com o surgimento da primeira ONG-Aids brasileira na capital paulista o
GAPA – Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS, e como resposta governamental foi
adotado um programa estadual de saúde em São Paulo, o primeiro criado no país,
sob a direção do médico Paulo Teixeira.
De início as ações governamentais foram lentas, claramente por se crer na
época ser doença de gays, uma fórmula, a meu ver, usada para oprimir mais ainda
os homossexuais, logo não carecedoras de imediatismo humanitário para serem
ajudados, mas ao constatar-se que também heterossexuais estavam sendo
infectados em mesmo nível e velocidade, o panorama da transmissão viral fez com
que o governo revisse seu pensar.
A epidemia, então, deu ensejo a uma inusitada aproximação entre os ativistas
homossexuais e as autoridades médicas, tendo os anos de 1985 a 1989, como
“anos eróicos58” de luta contra a AIDS. Nesse período as iniciativas da sociedade
civil contra a epidemia foram estruturadas em torno de atuações mais pessoais do
que institucionais, como as do Betinho (Herbert de Souza), o do cartunista Henfil seu
irmão e do ex-guerrilheiro Herbert Daniel.
A necessidade de apoio as vítimas da doença, de origem desconhecida, e de
tratamento ignorado, os homens gays construíram organizações de luta, até mesmo
para ajudar a enterrar grupos inteiros de amigos com um valor e trabalho ético que
foi exemplar, pois, se o governo a meu ver tivesse tido semelhante atitude à época a
transmissão do vírus poderia facilmente ter sido contida. Somente em 1988
consolidou-se um Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis
(DST) /AIDS dentro da estrutura do Ministério da Saúde.
A importância dos recursos vindos dos projetos relacionados ao combate ao
HIV-Aids foi muito significativa para o reflorescimento do movimento homossexual
brasileiro, pois além de aumentar o número de pessoas que se envolveram no
movimento buscando informações e apoio, o crescimento de ONGS voltadas á
prevenção do HIV-Aids aumentou a infra-estruturar do movimento, onde grupos
aprenderam a pedir verbas tanto para governos estaduais e federal, quanto para
organizações internacionais, recursos esses que ofereceram a possibilidade de
58
FACCHINI; SIMÕES. 2009, p.131.
37
alugar locais que também servem de ponto de reunião dos ativistas gays e
lésbicas59.
Foi nos anos 90 tanto pela necessidade de apoio as vitimas da doença, seja
pelos problemas familiares decorrentes da epidemia, a comunidade gay foi forçada a
estabelecer-se como o fez, ainda que apenas de fato, pois outra batalha ainda
estaria por vir, ou seja, o reconhecimento do direito.
59
Green apud FACCHINI. 2009, p.133.
38
8 O MOVIMENTO GAY
Como me referi anteriormente que “O amor que não ousava dizer seu nome
tinha saído às ruas”, aludindo ao fato da “batalha” do bar Stonewall, também no
Brasil o amor que não ousava dizer seu nome tinha começado a sair às ruas. Na
mesma década, a de 70, com o fenômeno denominado de “boom gay” aqui se
iniciou o movimento gay brasileiro, porém de forma pacífica com a exposição de
telas do artista Darcy Penteado60 que foi um dos fundadores do jornal “O Lampião”,
do qual eu fui assinante por um ano, sendo a princípio o periódico destinado ao
público gay, não pornográfico brasileiro.
As telas na exposição mostravam nus masculinos com caráter homoerótico.
Artistas que faziam presença constante na música brasileira como Gal Costa e Maria
Betânia – do chamado movimento tropicalista – e mais tarde por volta dos anos 80,
Cazuza, Marina Lima, Ney Matogrosso e Lecy Brandão, Simone e Renato Russo
vieram a público assumindo a sua condição sexual.
Essa entrada em cena destes artistas que acima mencionei, teve importância
em nível nacional com o chamado “outgoing”, qual seja à saída do armário, pois
contribuiu sobremaneira para que tantas outras pessoas oprimidas com a sua
condição, e submetidos aos desejos dos pais, irmãos, parentes e até mesmo de
vizinhos tivessem visto neles uma válvula de escape para incursionarem no mundo
da visibilidade abandonando os guetos, boates desqualificadas, serviços de
prostituição, em fim, fez com que abandonassem o submundo indigno de cidadão de
segunda classe para virem a equiparar-se aos auto intitulados de “normais”
61
. Com
isso o Brasil aprendeu a respeitar grandes figuras públicas nos campos das artes e
ciência, apesar de serem homossexuais.
O teatro, com a peça “Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá”, de Fernando
Melo, de sucesso nacional, foi aplaudidíssima em Nova York. Desponta na mesma
60
Possuo deste artista o primeiro romance gay brasileiro que leva o título de “Nivaldo e Jerônimo”,
que conta a história de um rapaz, o Nivaldo, e de um professor o Jerônimo que se apaixonam, mas
que fez com que no decorrer da relação amorosa deles, Jerônimo por sua consciência política e
social pelo qual passava o Brasil na época, fosse participar da guerrilha do Araguaia. O romance,
conta aspectos históricos e em riqueza de detalhes de como era a vida no dia a dia de um
acampamento guerrilheiro. Este romance, além de seu aspecto histórico como primeiro romance gay
brasileiro tem o valor de contar parte da história brasileira, mostrando o outro lado da moeda, haja
vista que para o governo militar, só importava a versão do governo ditatorial.
61
DAGNESE, 2000, p. 30.
39
ocasião Nelson Rodrigues com sua obra “O anjo pornográfico” e que foi perseguido
pelo regime militar, vindo a falecer em 1980. No mesmo trilhar Oswald de Andrade,
fez sucesso e visibilidade com a até hoje famosa obra “Beijo no Asfalto”
62
, que
trazia a temática do desejo homossexual, rompendo com as relações entre o agente
reprimido e o agente repressor e enfrentando o preconceito em massa63.
Com o regime militar exilando grande parte da intelectualidade brasileira, o
contato dela com o mundo exterior foi imenso, dando ensejo ao enfeito contrário do
pretendido pelos militares qual seja o de fechar o Estado ao exterior. E o “tiro saiu
pela culatra”, pois, em sua “volta ao lar”, os intelectuais nos trouxeram experiências
extraordinárias, colhidas no cenário internacional, tanto social, como político, cultural
e capitalista, ou seja, grandes avanços que vieram sobremaneira influenciar os que
aqui ficaram e que souberam aproveitar essas experiências para investir em uma
luta pela igualdade de condições, melhoria de vida e pela democracia.
Entre tantas idéias trazidas, uma delas era a da criação de um movimento gay
brasileiro, e que seria paralelo a outros grupos que emergiam, quais seriam o dos
negros e o das mulheres.
Tímido, no seu início, por volta dos anos 70 e 80, o jornal “O lampião”, do qual
já fiz referência de ter sido assinante, e que hoje não existe mais, deu partida a uma
série de publicações em nível nacional, ou local, inclusive em bairros, usando-se
muito na época o mimeógrafo para reproduzir as poucas ou única página de notícia
para serem distribuídos ao público gay em seus pontos de encontro.
Em 1975, o renomado novelista Aguinaldo Silva publicou seu primeiro
romance intitulado “Primeira carta aos andróginos”, bem como houve a publicação
de outra obra de Darcy Penteado, e que despontava com o título de “A meta”.
Apesar da censura do governo na década de 70, as informações sobre o
surgimento e o crescimento do movimento internacional de gay e lésbicas
começaram a encontrar espaço na imprensa brasileira64.
62
Em minhas lembranças pessoais, em 1980, o diretor de teatro Bruno Barreto, lança o filme com
roteiro adaptado da referida obra de Nelson Rodrigues, tendo como ator principal o nosso
conterrâneo gaucho Tarcísio Meira, cuja trama se dava entre o diálogo do seu personagem que
dirigia um carro, e outro personagem, também masculino, que interpretava a vítima do atropelamento
que estendido na rua agonizando a beira da morte e nos braços do seu algoz mantiveram diálogo em
que a vítima pedia um beijo de despedida da vida, sendo que o referido beijo é tido como o primeiro
beijo entre dois homens na história do cinema brasileiro.
63
Ibid., p.31.
64
Green., 1999, p 416.
40
Muito embora a animosidade e a simpatia dependendo do veículo que
publicava as notícias se alternassem, o noticiário internacional era reproduzido por
eles e tendiam a dar a impressão de certo positivismo aos movimentos gays
internacionais, ou seja, em suas entrelinhas podia-se sempre vislumbrar além da
simpatia, a admiração pela coragem de luta desses grupos.
Nos anos seguintes, os principais jornais do país noticiaram entre outros fatos
internacionais que trouxeram como informação aos leitores brasileiros de que grupos
gays e lésbicas estavam reivindicando “status” legal para casamento de pessoas do
mesmo sexo e eliminar a classificação da Associação Psiquiátrica Americana, que
descrevia a homossexualidade como doença
65
. Na mesma ocasião, foi publicada
com o título “O direito de não ser maldito” uma reportagem sobre as atividades da
Frente de Liberação Sexual Argentina, o único grupo de direitos gays sul-americano
existente na época.
O acesso a informação começou então a se proliferar cada vez mais, com o
surgimento da chamada imprensa alternativa que visava como publico alvo
estudantes, intelectuais e jovens de modo geral, informando sobre mudanças
políticas e culturais que ocorriam nos demais países.
As referencias ao homoerotismo, tal qual na grande imprensa eram escassos,
tendo como exceção um jornal que teve vida curta, o “Já”, que era produzido por um
grupo dissidente do Pasquim. O referido jornal tinha uma coluna intitulada de “Gay
Power” e uma série de notas breves e notícias resumidas66.
O Brasil teve um jornalismo gay independente e que fez história, sendo que
em 1976, o termo inglês “gay” já tinha se tornado familiar para cariocas e paulistas,
pois a mídia passou a usar a expressão “Gay Power”, fazendo referencia ao
movimento existente nos Estados Unidos.
Por volta da década de 70, as influências da revolução sexual do fim da
década de 1960 e o movimento gay internacional ofereciam formas diferentes de
pensar os papeis sexuais e de posicionar-se perante os modelos hegemônicos, e
ajudaram as pessoas a agir com mais abertura em relação a sua sexualidade67.
Foi em torno da década de 80 que a maioria dos artistas e membros da sub
cultura passam a adotar em definitivo o termo “gay” como palavra para auto
65
Ibid., p.417.
Green., 1999, p.417.
67
Ibid., p.424.
66
41
identificar sua pessoa no sentido sexual. Estava assim se consolidando uma nova
identidade no cenário brasileiro, tendo os indivíduos uma auto-aceitação cada vez
maior e inclusive em 1968, um artigo sobre a homossexualidade publicada pela
revista “Realidade”, mostrava que nenhum dos homens entrevistados considerava
sua orientação como uma doença68.
Na política, o Partido Comunista Brasileiro o PCB, foi hegemônico, e em suas
fileiras havia o pensar de que o homossexualismo era um produto da decadência
burguesa69, e fazia na época grande influência entre os artistas e intelectuais, porem
com suas disputas internas muitos simpatizantes da esquerda sofreram um
ostracismo social quando assumiram seus desejos sexuais, como por exemplo, cito
Fernando Gabeira, hoje Deputado Federal, e que muito embora não se identificando
como gay fez diversas críticas a posição antifeminista e anti gay das diversas
organizações de esquerda com os quais tivera contato quando viveu numa
comunidade de exilados na Europa, após o famoso seqüestro do embaixador
americano Elbrich, em 1969.
Muito embora a discriminação partidária e de haver perseguições policiais e o
indevido agir de uma censura castradora nos meios de comunicação, seja teatro,
radio e televisão, houve várias tentativas de grupos se reunirem para se manterem
unidos e coesos na luta pela igualdade dos direitos, o reconhecimento da cidadania,
e de uma qualidade de vida igualitária. Alguns grupos tentaram manter-se unidos por
algumas reuniões e chegaram a uma tentativa de formar um grupo gay com enfoque
político, pois foram discriminados nos seus partidos de origem, como citei o PCB.
No dia 4 de julho, no Rio de Janeiro, repórteres afluíram para cobrir um
evento em que iria acontecer e que seria um primeiro encontro gay, que havia sido
noticiado através de panfletagem distribuída nos lugares de encontro dos
homossexuais, bem como para a mídia, e enquanto isso acontecia oito camburões e
setenta homens do Departamento Geral de Investigação Especial cercaram o local,
que era os jardins do Museu de Arte Moderna.
Esse cerco policial, certamente intimidou as pessoas que para lá se
deslocaram para participar do encontro inusitado. A força policial e repressiva
“assustou” quem por lá chegava mansamente, e o encontro não ocorreu, pois as
pessoas ao notarem a movimentação, preferiram não se aproximar e sim,
68
Green., 1999,.426.
Ibid., p.427.
69
42
disfarçadamente passear pelas áreas vizinhas e irem se dispersando de forma a não
serem identificadas, e o esforço da mobilização não saiu dos sonhos.
Isto denota que a repressão na época era enorme, pois, o governo militar via
em qualquer evento público político ou semi político um potencial subversivo. Ora,
os homossexuais possuíam espaços próprios e fechados, como as discotecas e
saunas nas quais poderiam a meu ver se reunirem sem serem molestados, no
entanto percebo que optaram por espaço público, para terem a visibilidade tão
almejada, ou seja, um lugar para reivindicare e exigir dignidade, igualdade, respeito
e, tempestivamente constituir aquele ato em um desafio aos militares.
Além de lançarem esse desafio, e de se fazerem visíveis aos olhos da
sociedade, é meu entender que eles iriam aproveitar a ocasião também para
confraternizar de maneira ordeira e pacífica, além de terem também a oportunidade
de se conhecerem melhor uns aos outros e tecerem a partir daquele momento um
perfil concreto do que é ser homossexual e de como se é discriminado deixando
claro quem eram e para o que vieram, ou seja, em busca de sua identidade, lutando
por uma vida digna e terem o direito de serem respeitados e aproveitar a ocasião
que se mostraria uma excelente oportunidade para lançarem luz ao mundo de suas
exigências como, por exemplo, melhores oportunidades de vida, bem como o
respeito e igualdade de condições como seres humanos a exemplo do que já estava
acontecendo em outros países.
Em abril de 1980, ativistas de oito grupos reuniram-se em São Paulo para o
primeiro encontro Nacional de Grupos Homossexuais Organizados. Mil lésbicas e
gays superlotaram o teatro Ruth Escobar para assistir a uma cerimônia fechada do
evento70·.
Passadas algumas semanas, exatamente no primeiro de maio, um grupo de
50 gays e lésbicas assumidos marchou pelas ruas, juntando-se a marcha de
centenas de milhares de outros brasileiros, em São Bernardo do Campo, conhecido
como o ABC paulista.
Aquele pequeno, mas coeso grupo, ali se fez presente para dar apoio à greve
geral dos sindicalistas cuja paralisação fez com que o nebuloso governo militar
tivesse decretado estado de sítio e convocado o segundo exército.
70
Green, 1999, p.430.
43
Aqueles 50 corajosos, a meu ver foram heróis, marcharam sob uma faixa
onde estava escrito: “Contra a discriminação ao (à) trabalhador (a) homossexual”.
Inteligentemente o grupo ativista gay e lésbico distribuiu panfletos que
ligavam a luta dos grevistas com a dos oprimidos, quais seriam negros, mulheres e
homossexuais e nele denunciavam, por exemplo, a discriminação no trabalho, e
conclamando a toda a classe trabalhista para em reunião de esforços dar fim a
essas práticas.
No momento em que o pequeno e valente grupo adentrou o estádio de futebol
para se fazer visto e presente em uma assembléia, no fim da passeata, foram
ovacionados e aplaudidos por milhares de pessoas.
Passado algum tempo dessa façanha apoteótica de visibilidade nacional, que
foi dada graças a imprensa na época, para ser mais preciso em 13 de junho de
1986, quinhentas pessoas se reuniram nas escadarias do teatro municipal para
protestar contra as prisões de 1.500 gays, travestis e prostitutas que havia ocorrido
no centro de São Paulo, no mês anterior.
São Paulo, a terra da garoa, neste dia, presenciava ativistas, sob garoa fina,
protestarem e pedirem a demissão do delegado de polícia e convocaram a
assembléia para uma passeata no centro da cidade. Após discursos breves, entre
eles o sempre citado Darcy Penteado, bem como demais outras figuras públicas, a
multidão saiu em protesto, contra a arbitrariedade das prisões entoando Abaixo a
repressão, amor e mais tesão71.
Neste momento foi havia nascido o movimento gay brasileiro onde foi
desfraldada a bandeira do arco-íris72.
71
Green, p.436.
No início dos anos 70, nos Estados Unidos, havia várias bandeiras arco-íris usadas como símbolos
do Internacionalismo e da unidade entre os povos. Mas no final da década, a sua associação ao
orgulho gay estava já bastante marcada.
Foi na San Francisco Gay Freedom Day Parade que foi usada pela primeira vez com a intenção clara
de simbolizar o orgulho gay, a 25 de Junho de 1978. Esta primeira versão foi criada por Gilbert Baker,
e tinha mais duas barras que a versão atual, uma rosa-salmão e outra turquesa. A barra salmão
acabaria por ser abandonada devido à dificuldade em encontrar tecido desta cor para produzir as
bandeiras. Mais tarde era abandonada a barra turquesa, por razões estéticas.
O uso generalizado da bandeira arco-íris em manifestações LGBT começa nos anos 80 sendo hoje
reconhecida mundialmente como o símbolo das minorias sexuais.
É impossível determinar a sua versão original, já que o seu uso acontece desde há muito e em
diferentes partes do mundo, por exemplo, durante a Guerra dos Camponeses, no século XVI na
Alemanha, foi usada como sinal de esperança na nova era. Thomas Muentzer, sacerdote que apelou
à revolta dos camponeses, é muitas vezes retratado segurando uma bandeira arco-íris. Atualmente a
bandeira é sobretudo reconhecida como símbolo do movimento LGBT. Sendo também usada como
símbolo da Paz. In:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Bandeira_arco-%C3%ADris > acesso em 21.03.2010.
72
44
Já em 1995, ocorreu no transcurso da história a 17ª Conferência Internacional
da International Lesbian and Gay Association (ILGA) no Rio de Janeiro com uma
presença de 84 entidades entre elas 34 grupos gays mistos, três grupos
exclusivamente lésbicos e três grupos de travestis 73,
Na ocasião ocorreram 26 oficinas e grupos de trabalho, sobre temas variados
sendo que o material dessa atividade resultou em um relatório de duzentas páginas
em português e inglês, organizado pelo grupo Dignidade de Curitiba.
A referida conferência contou com aproximadamente 1.200 participantes
recebendo na ocasião apoio considerável do Ministério da saúde, por meio do
Programa Nacional de DST e AIDS, da Secretaria Estadual da Saúde do Rio de
Janeiro, pela divisão de controle de DST e AIDS, pelo Sindicato dos Bancários, do
Sindicato dos Previdenciários e dos trabalhadores na Universidade do Rio de
Janeiro, de duas ONGS internacionais ligadas à temática de direitos humanos e de
quatro empresas privadas.74
Foi justamente naquela conferência que aconteceu a primeira Parado do
Orgulho LGBT celebrada no Brasil.
Essa manifestação encorajou a organização de passeatas em outras cidades
do país, em consonância com a das grandes paradas que aconteciam nas principais
cidades do mundo75, como São Francisco, por exemplo. Assim, no Rio até o ano de
2002, se calculava a presença de 200.000 pessoas aproximadamente. Em são
Paulo a participação foi praticamente se duplicando a cada ano chegando a
ultrapassar a barreira de um milhão e meio de pessoas em 2.009 algo inusitado em
termos de manifestação política para o nosso país, se tornando uma data
expressiva, inclusive do ponto de vista turístico, haja vista a enormidade de pessoas
de outras localidades e de outros países, que por lá aportam para participar do
brilhantismo da festa e desde então, o brilho do arco-íris nunca mais se apagou.
73
FACCHIN; SIMÕES. 2009, p.144.
Ibid., p.144-145.
75
FIGARI, Carlos, 2007, p 483.
74
45
9 A TEORIA “QUEER” – UMA PÓS-IDENTIDADE
Para se alcançar uma compreensão mais plena e eficaz das relações
homoeróticas e de seu modo de se relacionarem com diferentes grupos sociais e
culturais, deve-se abordar teorias que atuam no meio da contrastante vida do ser
humano.
Demonstrei que o movimento “Gay” trouxe à luz do mundo, os que antes
eram discriminados, devido seu comportamento por demonstrarem envolvimento
com pessoas da mesma identidade sexual.
Nesse mundo pós-moderno, contemporâneo e globalizado, vemos que
algumas coisas não se ajustaram ainda, ou se consolidaram, em poucos lugares,
onde o mundo em que o conjunto de relacionamentos, por ser complexo, é marcado
pelo grande avanço social e cultural o que trouxe à luz uma pacífica relação com a
diversidade.
Nas demais regiões, em que o social e o cultural não atingiram patamares
paralelos a dignidade do ser humano, marcados por passos vigorosos nos
processos de mudanças, o que é diferente, pelo simples fato de não ser corriqueiro
é muitas vezes, para não dizer em sua maioria, tido como “Queer”, ou seja,
estranho. Essa referencia que faço é direta em relação à homossexualidade e a vida
“Gay”.
Para tanto, a ocasião requer atenções para refletir de que maneira podemos
entender a questão e trabalhar para que ela, de alguma maneira possa vir se
encaixar na vida, em seu dia-a-dia, de modo a adequar uma compreensão e moldar
o sistema binário existente – masculino e feminino – como peças de um quebra
cabeças, que no passar dos tempos, esta peça estranha deverá se encaixar, de
modo adequado as demais, com naturalidade aparecendo em sua montagem final a
figura do ser humano.
Em meu pensar ele, nada mais é do que o ser humano visto por ele mesmo,
interagindo e se completando, aceitando e sendo aceito ao mesmo tempo, com suas
qualidades, defeitos e diversidades, tanto em sonho como em realizações.
Para que isso aconteça, há a necessidade, em meu ponto de vista de se
simplificar o pensamento. Tornar o “Queer”, o estranho, o esquisito, conhecido,
46
lapidando, trabalhando o pensamento humano a fim de que se possa incluí-lo e ser
assim aceito na sociedade, não mais como um “Queer”, um corpo estranho, mas
como parte integrante do grande e único todo, que é a raça humana.
Para demonstrar, esse meu apelo ao igualitarismo e a sua simplificação de
sentimentos e diferenças temos de usar de concepções, que foram exaradas dos
primeiros estudos gays e lésbicos, que recentemente, no século XX, foi denominado
de “Queer Theory” que oferece ao nosso conhecimento vasto leque de
possibilidades teóricas e lógicas.
Como resultado de recentes desenvolvimentos entre uma variedade de
tradições disciplinares diferentes, as abordagens teóricas e metodológicas cada vez
mais sofisticadas tem tornado possível ultrapassar muitas das limitações que
caracterizam a interpretação da diferença sexual no passado e oferecem exemplos
de como começar a compensar as compreensões exóticas da homossexualidade76.
Com a história, gays e lésbicas ganharam estudos em antropologia
oferecendo uma interpretação mais sofisticada da homossexualidade, pois, ela
mesma vem transformando-se através dos tempos. Compare-se, por exemplo, como
era a homossexualidade na antiguidade – Grécia e Roma antigas – com o Rio de
Janeiro, hoje no século XXI.
O
desenvolvimento
heterossexualistas
foram
desses
os
que
estudos
deram
culturais,
o
impulso
feministas
para
e
anti-
possibilitar
o
desenvolvimento da “Queer Theory”, onde o pós-estruturalismo e a pósmodernidade deram condições para a discussão da produção literária e cultural de
grupos sociais tradicionalmente marginalizados e não reconhecidos pela cultura
dominante77
As “minorias78” sexuais são hoje, muito mais visíveis do que antes, tornandose mais acirrada a luta entre elas e os conservadores79, mas as chamadas
“minorias” sexuais estão cada vez mais visíveis e, conseqüentemente não se pode
traduzi-las numa inferioridade numérica, pelo contrário, como uma “maioria
76
PARKER, 2002, p.24.
LUGARINO. Mário César. Cópia fotostática do Texto exarado da Revista do Núcleo
transdisciplinar de Estudos do Gênero – NUTEC – Universidade Federal Fluminense – 1º
semestre de 2001. Volume 1. Nº 2, gentilmente fornecido pelo Professor Orientador Clovis
Dvoranowsk.
78
Minorias, no entender de Guacira Lopes Louro são os sujeitos que, por qualquer razão ou
circunstancia, escapam da norma e promovem uma descontinuidade na seqüência.
79
LOURO. Guacira Lopes. Cópia fotostática do Texto exarado da Revista de Estudos Femininos,
Vol.9, nº2. Florianópolis. 2001, gentilmente fornecido pelo Professor Orientador Clovis Dvoranowsk.
77
47
silenciosa”, que ao se politizar, convertem o gueto em território e o estigma em
orgulho.80
Por mais estranho que pareça o estranho passa a tomar uma visibilidade e
passa a ser aceito em alguns setores sociais de forma crescente e tempestivamente
os tradicionais recrudescem sua luta realizando ataques, campanhas a favor da
“tradição”, da família, chegando muitas vezes ao extremo de agressibilidade verbal e
física.
O “Queer” provoca tudo isso, pois, na conceituação de Guacira Lopes Louro,
em seu livro Um corpo estranho – Ensaios sobre a sexualidade e teoria Queer, nas
páginas 7 e 8 ela faz a afirmação de que Queer é tudo isso: é estranho, raro,
esquisito. Queer é também, o sujeito da sexualidade desviante – homossexuais,
transexuais, travestis Drags. É o excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito
menos “tolerado”. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem
o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas
regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambigüidade, do “entre
lugares”, do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba,
provoca, fascina.
Ao encontro desse pensamento, Mário César Lugarino, em seu texto
publicado na Revista do Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero – NUTEC,
na página 37 faz referencia a Oswald de Andrade que em 1931, pensando a cultura
brasileira, reconhece a diferença como uma marca indelével em nosso
relacionamento exótico e impor, dizendo “Nunca fomos catequizados! Fizemos
carnaval”, pois para ele as leis da cultura não teriam sido absorvidas, foram
canibalizadas e, portanto, usadas como um mero instrumento de aparato cultural.
Em outro dizer, Oswald de Andrade deixa claro que somos mediados pela
antropofagia, isto é, absorvemos a cultura num imenso multiculturalismo81.
Isto posto, podemos aduzir que há uma ambigüidade cultural, portanto devem
ser entendidos pelas sociedades periféricas, sejam elas no Brasil, África,
América,Oceania, Oriente, ou Europa.
80
Ibid., opus citatum.
LUGARINO. Mário César. Cópia fotostática do Texto exarado da Revista do Núcleo
transdisciplinar de Estudos do Gênero – NUTEC – Universidade Federal Fluminense – 1º
semestre de 2001. Volume 1. Nº 2. p. 37.
81
48
Esse
pensamento
leva
a
refletir
o
binarismo
de
identidade
hetero/homossexual como um buscar dar conta das diferenças de classe, raça,
nacionalidade, local, razão, geográfica e também ideológica e política.82
Ao se reverenciar a cultura, há que se falar em pedagogia, pois, o poder do
saber, dá sentido às sociedades contemporâneas sugerindo novas formas de pensar
a cultura, o conhecimento, o poder e a educação.
Com isso as diferenças deixariam de estar do “lado de fora” e seriam
compreendidas como indispensáveis para a existência do ser humano, deixando,
portanto de ser ausente para se fazer presente, se fazendo sentir, assombrando e
desestabilizando, pois, estariam “do lado de dentro”, numa sociedade plural,
imprescindível nos conflitos e nas negociações construtivas, deixando claro, o
espaço que cada sujeito hetero/homossexual ocupa.
Assim, há que se pensar em uma pedagogia “Queer”, que nos obriga a
considerar o impensável, o que é proibido pensar, em vez de simplesmente
considerar o pensável, o que é permitido. Uma pedagogia e um currículo Queer,
estriam voltadas para o processo de produção das diferenças e trabalhariam,
centralmente, com a instabilidade e a precariedade de todas as identidades83 e isto a
meu ver também colocaria em cheque a naturalização da “suposta” superioridade
heterossexual. Assim “o combate á homofobia iria amenizar, pois a ignorância não é
“neutra”, nem tampouco um “estado original”, pois ela é efeito e não uma ausência
de conhecimento84.
Essa pedagogia, não deverá ser vista como uma pedagogia do oprimido, ao
contrário ela seria libertadora, pois acabaria com o sentimento, ou pelo menos
diminuiria em muito o homofóbico, haja vista que infelizmente, desprezar
homossexuais, em nossa sociedade e em nossos dias é ainda corriqueiro.
Esta pedagogia poderá ser vista como uma manobra subversiva, pois vem
desafiar o que não é inteligível, ou seja, o que não se consegue explicar e deverá
assumir tempestivamente os riscos da transformação, fazendo com que o que é
problema hoje, o fato de ser “Queer”, seja reconhecido e aceito; admitido e acolhido
como verdade.
82
Ibid., p.39.
LOURO, 2008, p 48.
84
Ibid., p.50.
83
49
10. O HOMOSSEXUAL, OS DIREITOS HUMANOS E A DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA
Ao tratar do assunto o homossexual, os direitos humanos e a dignidade da
pessoa humana, para um melhor entendimento do assunto, se faz necessário uma
breve historicidade para mostrar sua evolução, a sua conceituação e a sua
colocação no mundo moderno do século XXI.
Partindo-se do clássico universo grego, vemos que aquela civilização foi à
pedra angular para as inúmeras teorias jurídicas e também de projetos políticos.
Ao iniciar a abordagem do assunto que me disponho a trabalhar neste
capítulo procuro também fazer referencia a origem histórica do princípio
constitucional da proteção e da dignidade da pessoa humana.
O nascedouro do termo dignidade vem do latim “dignitas”, significando dentre
outros respeitabilidade, consideração, estima. Por outro lado o termo pessoa
também tem sua origem latina e advém da expressão “per-sonare” referente às
máscaras dos atores teatrais utilizadas para a difusão da voz dos atores, passando
depois a servir de designação da própria personagem representada85.
É certo que para a filosofia e política clássica, o homem não passava de um
animal político ou social, tendo sua vida vinculada à própria vida do Estado,
portanto, sabe-se que a sua conceituação sobre a dignidade não se fazia presente.
Em contraponto no entendimento estóico86, a dignidade era tida como a
qualidade que por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no
sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção
esta que se encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção de liberdade pessoal
de cada indivíduo87 - o homem como ser livre e responsável por seus atos e seu
destino – bem como a idéia de que todos os seres humanos, no que diz respeito a
sua natureza, são iguais em dignidade.
85
SARLET, 2009, p. 32.
Ingo Wolfgang, em nota de rodapé a pagina 33 menciona Cícero, como um filósofo estóico, que em
sua obra Dos Deveres, Livro III, em conferiu a dignidade um sentido mais amplo, fundado na natureza
humana e na posição superior ocupada pelo ser humano no cosmos e prescrevia que o homem deve
levar em conta os interesses de seus semelhantes, pelo simples fato de também serem homens,
razão pela qual todos estão sujeitos as mesmas leis da natureza, que proíbe que uns prejudiquem
aos outros.
87
SARLET, 2009, p. 32.
86
50
Com o advento do cristianismo, baseado na fraternidade, veio à humanidade
mudar a sua mentalidade e conseqüentemente seus valores, objetivando a obtenção
da igualdade entre todos os homens e a abolição da escravatura88 mudança esta
iniciada no final do Império romano com a proibição de crueldades contra os
escravos imposta pelo Imperador Constantino, a qual foi referendada depois, pelo
triunfo dos movimentos abolicionistas do século XIX e do início do século XX.
O conceito de pessoa sofreu alterações com o passar dos séculos e passou a
designar o ser humano como um ente capaz de adquirir direitos e contrair
obrigações, focado em si mesma e não mais na vida do Estado, evidenciando dessa
maneira, a própria dignidade da pessoa através da afirmação de direitos específicos
do indivíduo diante do Estado89 o que hoje no moderno ordenamento jurídico está
alicerçado no reconhecimento do ser humano como o centro e o fim do próprio
direito, fazendo com que repouse na dignidade da pessoa humana o valor básico,
central e precípuo do Estado Democrático de Direito.
Aristóteles discorria que justo é aquilo que é bom e melhor para os homens,
bem como da série de bens que constitui esse bom e melhor na comunidade90,
razão pela qual podemos inferir que só podemos visar o que é bom baseados na
experiência de juízos de ações corretas. Dizia ainda que o homem só existe no
ambiente político e social da comunidade, cuja finalidade é o bem viver de cada
um91 com isso ele queria dizer que o homem seria o seu próprio árbitro, soberano e
artífice, dotado da capacidade de ser e obter aquilo que ele próprio deseja92.
No decorrer dos tempos e no âmbito do pensamento jusnaturalista dos
séculos XVI e XVII, a concepção da dignidade humana, assim como a idéia de um
direito material em si, passou por um processo de racionalização, mantendo-se,
entretanto a noção fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e
liberdade e que o monarca deveria respeitar a dignidade da pessoa humana,
considerada esta como a liberdade do ser humano de optar de acordo com sua
razão e agir conforme seu entendimento e sua opção93, e que vem de encontro ao
pensamento de Immanuel Kant, que concebia que a dignidade humana partia da
autonomia ética e a considerava fundamento de dignidade, sustentando que o ser
88
BAHIA, 2006, p 46.
Ibid., p.47.
90
RIOS, 2002, p. 27.
91
RIOS, 2002, p. 27.
92
SARLET, 2009, p. 34.
93
Ibid., p.35.
89
51
humano não podia ser tratado – nem por ele próprio – como objeto. Ainda dizia ele
que o homem de maneira geral como ser racional, existe com um fim em si mesmo,
não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade94.
Na evolução histórica e também cultural, algumas declarações de direito
foram elaboradas, porém, com alcance limitado, pois, beneficiavam tão-somente a
classe dominante. Exemplo disso foi na Idade Média, onde surgiram alguns
antecedentes mais diretos de declarações de direito, embasados na teoria do direito
natural, limitando o poder dos monarcas – era o aparecimento do princípio das leis
fundamentais do Reino – outorgando a proteção de direitos notadamente individuais,
embora fossem ainda direcionados a grupos sociais como fez o Rei Afonso IX na
Espanha estabelecendo as garantias dos mais importantes direitos das pessoas
como a segurança, o domicílio, a propriedade, a atuação em juízo, etc.95
Temos que em 1215, sob a pressão dos barões ingleses, o Rei João Sem
Terra, editou a magna carta, que marcou o início da limitação do poder estatal,
dando garantia aos proprietários de terras e não a toda a sociedade, pois, naquele
passo inicial, os direitos fundamentais tinham por finalidade assegurar a liberdade,
um valor supremo, direito esse que julgavam superior os demais e poucas eram as
concessões em benefício do povo. Visto por outro ângulo, pode-se afirmar que nada
mais era conceder privilégios de liberdade ou dar regalias para nobreza,
prerrogativas para a igreja, liberdades municipais e direitos corporativos que na
verdade não eram tão reconhecidos como direitos gerais, mas obrigações concretas
daqueles reis que subscreviam. A finalidade dela nada mais era do que estabelecer
um “modus vivendi” entre reis e barões, que reconheciam a supremacia do rei em
troca de certos direitos de liberdade.
No evoluir histórico, apenas para citação, temos o “Petition of Rights”
assinado em 1628, na Inglaterra por Carlos I, “Habeas corpus Act” assinado por seu
sucessor Carlos II em 1679 e o “Bill of Rights” subscrito em 1689 por Guilherme
d’Orange, que fazia referencia ao direito de petição, à proibição dos tribunais de
exceção e de penas cruéis, não possuindo elas o sentido moderno que só surgiram
no século XVIII com as revoluções americana e francesa.
94
95
Ibid., p.35-36.
PALAZZOLO apud SILVA, 2001, p.155.
52
Montesquieu, com o desenvolvimento da divisão dos poderes, é que deu
impulso ao surgimento da garantia constitucional e a forma de organização do
Estado com a função de proteger os direitos fundamentais.96
Ainda, na evolução das declarações podemos citar a Declaração de Direitos
do bom povo de Virgínia, que foi a primeira a efetivar o indivíduo com liberdade e
igualdade, bem como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França
em 1789, que lançaram uma nova ordem social, muito embora a Constituição
americana de 1789, já ter sido promulgada e emendada dando o nascedouro ao “Bill
of Rights”.
Dentre todas as declarações, foi a Declaração dos Direitos do Povo
Trabalhador e Explorado, da então URSS – União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas – em 1917 que convergiu valores de liberdade conjugados aos de
igualdade, e sendo seguida pelas demais Constituições sociais do século XX, como
a mexicana, por exemplo, que incluiu primazmente a igualdade incorporando ainda
direitos sociais, culturais, econômicos e sociais.
A declaração de 1948, ainda que de início considerada não como tratado,
mas como acordo internacional97, ou seja, sem força de lei, logo passou a ser
considerada internacionalmente, como um instrumento de grande influência jurídica
e política na segunda metade do século XX, fazendo luz ao Direito Internacional,
tomando caráter de tratado com força jurídica obrigatório, por conseguinte
vinculante, pois interpreta a expressão dos direitos humanos precisamente nos
artigos 1º, 3º e 55 da declaração.
A referida declaração foi recepcionada desde o seu surgimento, pelo Brasil
em seu nascer na data de 10 de dezembro de 1945, na Assembléia Geral das
Nações Unidas.
Em nossa Constituição é acolhida no artigo 5º, parágrafos 1º e 2º e o que nos
faz comentar que da Declaração da ONU de 1945, e da nossa é que ambas são
omissas no que se refere à proteção dos homossexuais, tendo em vista que há
inclusões de proteção a grandes vítimas do holocausto e é clara e, aos olhos de hoje
96
Os termos direitos humanos e direitos fundamentais são utilizados muitas vezes como sinônimos,
mas a expressão direitos fundamentais deve ser reservada para designar os direitos positivados em
nível interno, enquanto a formula direitos humanos consideraria os direitos naturais positivados nas
declarações e convenções internacionais, relacionados às exigências básicas dos direitos de
liberdade, dignidade e igualdade, que não alcançam estatuto jurídico positivado.
97
DAGNESE, 2000, p 54.
53
embaraçosa se ignorando o contexto das crenças (inclusive com manto científico) da
época, ainda descrente da natureza positiva do fato (e não ato) homossexual98.
Então vejamos o artigo II da referida Declaração, que diz “Ipsis litteris”:
1) “Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie,
seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer
outra condição”. (Grifos nossos).
Pois bem, ainda que o referido artigo seja omisso aos grupos por orientação
sexual, vê-se que ele se refere a judeus e não arianos, vez que a Declaração
emergiu como reação ás atrocidades nazistas, ao referir-se a grupos religiosos e
sociais, deixando a margem minorias outras, também vítimas do preconceito e que
também necessitam de compreensão, tolerância e amizade.
Muito embora seja notório que a sexualidade integra a própria condição
humana, ninguém pode se realizar como ser humano se não tiver assegurado o
respeito ao exercício da sua sexualidade, conceito que compreende tanto a
liberdade sexual como a liberdade a livre orientação sexual.
A sexualidade é um elemento da própria natureza humana, seja
individualmente, seja genericamente considerada. Sem liberdade sexual, sem direito
ao livre exercício da sexualidade, sem opção sexual, falta-lhe a liberdade, que é um
direito fundamental99.
No entendimento empírico-científico entende-se que a homoafetividade é tão
normal quanto a heterossexualidade, não podem os casais homoafetivos serem
discriminados em relação aos casais heterossexuais por conta unicamente da
mesma norma de proteção jurídica concedida e estes por intermédio das citadas
técnicas interpretativas, sendo preconceituoso o sentido contrário100
Percebe-se que a interpretação extensiva e a analogia são exteriorizações do
princípio da igualdade101, pois, visam tratamentos iguais102. Isto significa que o valor
98
Ibid., p.55.
DIAS, 2006, p 73.
100
VECCHIATTI, 2008, p 130.
101
O mestre em Direito Constitucional Paulo Bonavides, em sua obra Curso de Direito Constitucional.
Malheiros. 18ª edição atualizada. Pagina 176. São Paulo: 2006, diz que de todos os direitos
fundamentais, o da igualdade é aquele mais tem subido de importância no Direito Constitucional de
nossos dias, sendo, como não poderia deixar de ser, o direito chave, o direito guardião do Estado
social. E concordo indubitavelmente quando ele afirma que de todos os direitos, da sua ordem
99
54
protegido pela igualdade constitucional103, é também assegurado aos homossexuais
o mesmo tratamento jurídico para evitar arbitrariedades, favorecimentos despóticos
de determinados grupos ou pessoas em relação a outras.
Nesta contemporaneidade, é no seio familiar que se vê fundada a plena
igualdade entre os membros. Anteriormente havia a figura do pai e marido, o chefe
absoluto, e com o advir da Constituição cidadã de 1988 surge uma nova voz no
cenário; o filho, a criança, a esposa, o adolescente, o homossexual, a mulher. Em
outro dizer, a família tinha um fim em si mesma, pois visava unicamente garantir a
perpetuação da espécie, diferente de hoje em que as pessoas se unem para ficar
mais seguras por que entendem que, com isso, terão melhores condições de
alcançarem a felicidade, e este pensar também se estende aos homossexuais, pois
resulta do entendimento do direito de todos viverem suas vidas da melhor maneira
possível, de acordo com suas próprias escolhas, cada um dentro de suas
características, se homo ou heteros, desde que não prejudiquem terceiros, e devem
ser aceitos e respeitados, também por todos, acima de tudo.
Da mesma forma a localização geográfica de residência não deve ser critério
para diferenciação, e no seguir este pensamento, também se estende este
entendimento quanto à cultura104, para cujo conteúdo seja visto como material de
princípio da dignidade105 da pessoa humana.
O ser humano homossexual em nada difere dos seres heterossexuais. Pelo
contrário ele é albergado em seus direitos, no que tange, por exemplo, do direito da
jurídica ele é o que materializa a herança clássica e que com esta se compõe um eixo ao redor do
qual gira toda a concepção estrutural do Estado democrático contemporâneo.
102
E aqui, ao tratar da igualdade, vislumbro que o respeito à dignidade humana também se dá por
intermédio do reconhecimento das uniões das pessoas do mesmo sexo ao âmbito do direito familiar.
103
É meu entender que o viés constitucional vê os direitos humanos e a dignidade da pessoa
humana, em todas as suas manifestações e aplicações, ou seja, guarda e protege a todos com o
mesmo empenho contra agressões, viabilizando a todos de forma ética e jurídica a mesma medida,
portanto neste ponto, entendo que ai se encontra também a dignidade do homossexual.
104
Nessa linha de pensamento, vejo que fica demonstrado que há um sentido cultural que é fruto do
trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo, razão pelo qual as dimensões naturais
e culturais da dignidade da pessoa se complementam e se integram mutuamente, por que não se
pode perder de vista que a dignidade da pessoa humana é algo irrenunciável, mas o reconhecimento
daquilo que é exigido – a observância da norma – impõe ao mesmo tempo sua observância e
respeito não podendo uma ser desvinculada da outra, tampouco da evolução histórica.
105
Definida como possuidora de um valor próprio, que identifica o ser humano como tal, a dignidade é
algo real e clara, que faz parte nuclear da pessoa humana e é, portanto inalienável e que qualifica o
ser humano como tal e que dele não deve ser destacado como finalidade integrante e irrenunciável
da própria condição humana. Importa dizer que ela é considerada como sendo a capacidade
potencial que cada ser humano tem de autodeterminar sua conduta, não dependendo da sua efetiva
realização no caso da pessoa em concreto, de tal sorte que também o absolutamente incapaz (por
exemplo, o portador de grave deficiência mental) possui exatamente a mesma dignidade de qualquer
outro ser humano física e mentalmente capaz.
55
personalidade que representa o conjunto de caracteres de cada indivíduo, ou seja, a
parte mais intrínseca do se humano. Nisso podemos apontar, que em nosso século
há métodos de reprodução e manipulação genético-humanos nos quais vejo
corresponder a um direito de 3ª geração106 e quiçá inaugurando um direito de nova
geração, qual seria o direito Homossexual.
Eles são absolutos com eficácia “erga omnes”, pois seu respeito é imposto
pelo Estado bem cujo por particulares, portanto, irrenunciáveis, não podendo seu
titular abdicar deles tampouco de transmiti-los a outrem.
No quesito igualdade há que se afirmar, de maneira inconteste que ela,
representa no seio da humanidade uma obrigação imposta aos demais públicos,
tanto na elaboração quanto a aplicação da lei, com isso Roger Raupp Rios, em seu
livro O princípio da Igualdade e a discriminação por Orientação Sexual, página 31,
segue o pensamento do Konrad Hesse que afirma haver a igualdade perante a lei
igualdade formal que diz respeito á igual aplicação de direito vigente sem distinção
com base no destinatário da norma jurídica, sujeito a efeitos judiciais decorrentes da
normatividade existente; a igualdade na lei (igualdade material), por sua vez exige a
igualdade de tratamento dos casos iguais pelo direito vigente, bem como a
diferenciação no regime normativo em face de hipóteses distintas.
Como visto na ótica de Rios e Hesse o quesito igualdade independe de o
sujeito ser heterossexual ou homossexual o que nos leva a falar de liberdade, pois,
106
A desembargadora Maria Berenice Dias em sua obra União homossexual – O preconceito e a
justiça visualizam os direitos em gerações e afirma textualmente na página 73 que a sexualidade é
um direito de primeira geração. Em seu pensamento afirma ainda que não se pode deixar de
considerar a livre orientação sexual como um direito de segunda geração, pois a hipossuficiência
social que se dá por preconceito e discriminação gera, por reflexo, a hipossuficiência jurídica.
A deficiência jurídica relega à margem do Direito certas categorias sociais. Não se pode, portanto,
deixar de incluir como hipossuficientes os homossexuais. Ela conclui em sua analise a página 74, que
igualmente o direto a sexualidade avança para ser inserido como um direito de terceira geração, que
compreende os direitos decorrentes da natureza humana, tomadas não individualmente, mas
genericamente, solidariamente.
Ela encerra a sua analise afirmando que as gerações dos direitos servem para alcançar a realização
de todos os cidadãos, havendo a necessidade de que as relações homossexuais, crivada pelos
preconceitos, não sejam excluídos do mundo do Direito, pois, a intolerância social deve-se contrapor
a higidez dos conceitos jurídicos.
Visto esse pensar da referida autora, nota-se que as características homossexuais podem se socorrer
do princípio jurídico do respeito à dignidade humana, posto que são os princípios da liberdade e da
igualdade, colocados pelo legislador constitucional em nossa Carta Constitucional em seu inciso III do
seu primeiro artigo.
Há que se esclarecer também que o inciso I do artigo 5º de nossa Constituição declara que homens e
mulheres são iguais em direitos e obrigações, e trata-se de um objetivo jurídico do Estado à
promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça, sexo, cor, idade e de quaisquer outras formas
de discriminação, o que se conclui que se o direito a identidade sexual é direito fundamental,
necessariamente também o é a identidade homossexual e, por conseguinte, a união homoafetiva
também o é.
56
entendo que nós homossexuais, temos nela um eterno conquistar, na medida em
que cresce o domínio do homem sobre a natureza, consistindo, portanto, na
coordenação consciente dos meios necessários a realização da felicidade pessoal.
Para esta realização pessoal, o ser homossexual tem de ter também, como os
demais gêneros humanos seu direito a privacidade e a intimidade assegurados,
pois, são inerentes ao individuo humano, sendo, pois, lógico decorrentes do princípio
constitucional de proteção a dignidade do ser humano como instrumento
fundamental, tendo em vista que tanto a vida privada – que envolve seus
relacionamentos pessoais, desejos e aspirações – quanto à intimidade – em relação
a relações subjetivas e de trato íntimo – fazem, por conseguinte parte da estrutura
do ser homossexual. Nesse olhar temos como exemplo, também a Convenção
Americana de Direitos Humanos, mais conhecida como “Pacto de San José da
Costa Rica” precisamente em seu artigo 5º que consagra o direito a integridade
pessoal e que aqui transcrevo:
Art. 5º Direito à integridade pessoal
1)
Toda Pessoa tem direito a que se respeite a sua integridade física,
psíquica e moral.
2)
Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos
107
cruéis, desumanos ou degradantes . Toda pessoa privada de liberdade
deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.
Na esfera penal e processual penal temos que com vistas ao direito material e
processual penal, o Estado deve obrigatoriamente, pautar a sua atenção não
devendo se distanciar dos limites que lhe são impostos na condição de acusados,
107
Nessa reflexão vê-se que a história das políticas criminais revela que penas cruéis foram sendo
gradativamente substituídos por penas mais brandas. Da mesma maneira a evolução das penas
gravosas para penas mais humanas e de formas mais simples para formas mais diferenciadas de
penalização tem prosseguido, permitindo que se vislumbre ainda o quanto deve ser superado.
Nesse trilhar Ingo Wolfgang Sarlet, p.63 de sua obra Dignidade da Pessoa Humana e Direitos
Fundamentais na Constituição Federal de 1.988 faz menção à imposição de pena de morte que,
para que além do direito a vida, ofende a dignidade da pessoa pelo fato de que se force dessa
maneira o condenado a viver com a iminência da morte decretada, bem como que ela, a morte,
implica na violação da integridade corporal da pessoa e que ao se executar a pena o Estado toma do
executado a sua autonomia pessoal e não o considera como uma pessoa com um valor próprio, de
tal forma que não apenas a dignidade do executado é violada, mas também a de todos os envolvidos
no processo.
É meu pensar que uma pena de prisão em regime fechado, mesmo que inicial, embora seja uma
medida inquestionável ela se constitui a meu ver uma restrição da liberdade pessoal, mas
plenamente justificável pela necessidade de coibir e prevenir violações de dignidade e direitos
fundamentais de terceiros, mas que essa condenação deve, contudo ter o mesmo conteúdo de
dignidade assegurada ao preso, por mais horrendos que tenham sido seus crimes.
57
por exemplo, principalmente para que seja dado ao homossexual um tratamento
digno.
Na seara criminal a dignidade do homossexual bem como dos demais
gêneros, representa ao acusado o direito de defesa ativa e efetiva no processo e
bem como os heterossexuais, a desobrigação de falar contra a sua vontade.
É de se bem notar que a Constituição de 1988, em seu artigo 5º e incisos
trouxe a lúmen importantes exigências do Estado, que aqui é necessário observar,
sob pena de desrespeitar também ao homossexual, preceitos esses lá descritos que
servem para representar a enorme preocupação com a igualdade do ser humano,
sob o interesse de cuidar da segurança do coletivo tanto hetero como homossexual.
O princípio da dignidade humana, portanto, também homossexual, se
apresenta mais evidente quando trata questões que envolvem liberdades de
escolha, e no caso do meu trabalho a da orientação sexual, deixando a mostra à
inegável assertiva de que a sexualidade é um dos componentes intrínsecos a
qualquer ser humano, por conseguinte se estende aos homossexuais masculinos e
femininos.
Só a condição de a pessoa mostrar desejo ou conduta sexual para outro do
mesmo sexo, do sexo oposto ou ainda de ambos, não estaria apta a justificar
aplicação de tratamentos social e legal diferenciados, pois, o princípio da igualdade
é uma obrigação imposta aos poderes públicos, e por isso, deve ser assegurado ao
homossexual, tanto a igualdade na lei, quanto a igualdade perante a lei.
O texto constitucional brasileiro, implicitamente admite, permite e protege a
homoafetividade, pois veta a distinção de sexo, raça, cor e religião no território
nacional.
Tem-se que historicamente as transformações sociais antecipam-se aos
acontecimentos jurídicos, daí a sociedade, metamórfica como é a nossa, não ficar
imóvel, no aguardo das leis, e nisso também os homossexuais clamam por proteção
estatal e solução justa nos conflitos que surgem diariamente nos fóruns.
Vê-se, na minha visão de acadêmico que abrem-se então as chamadas
lacunas de direito, visto que em meu pensar, e com base no artigo 4º da Lei de
Introdução ao Código Civil e ao amparo do artigo 126 do Código de Processo Civil,
determinarem que em casos lacunosos sejam aplicados a analogia aos costumes e
dos princípios gerais do direito com o digno fim de assegurar uma interpretação útil
as leis vigentes, com expressão ao ponto de vista social e humano.
58
Assim sob a ótica das leis acima referidas há o reconhecimento de que,
mesmo havendo lacunas na legislação o ser homossexual pode e deve exercitar sua
orientação sexual, e podemos ir mais longe nesse pensar, ao inferir que há a
existência, por analogia de um “Direito Constitucional Homossexual” ainda mais se
levando em conta o PNDH – Plano Nacional de Direitos Humanos que vem para
afirmar que os direitos humanos são fundamentais a todas as pessoas, sejam elas
mulheres,
negros,
homossexuais,
índios,
idosos,
pessoas
portadoras
de
deficiências, populações de fronteiras, estrangeiras e emigrantes, refugiados,
portadores do HIV positivo, crianças e adolescentes, policiais, presos, despossuídos
e os que têm acesso a riqueza108.
Vemos que a perspectiva de pessoas com orientação sexual dissonante da
levada a efeito pela maioria da sociedade são cidadãos como os outros, e, portanto,
com seus deveres e direitos a cumprir também.
O homossexual é um sujeito de direito e deveres. A sua orientação sexual
não pode nem deve ser considerada um fator determinante para manutenção de
discriminação, pois o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana nos faz
ver que em sendo homossexual uma pessoa deve ser aceito e respeitado pelo
ordenamento jurídico como ele é e não como a sociedade gostaria que fosse.
Conclui-se, portanto, que a Constituição Federal deva refletir seus efeitos
para todas as pessoas que compõem a sociedade para a qual foi promulgada. Em
outras palavras, a não tutela dos direitos do cidadão homossexual masculino e
feminino representa a inaceitável criação de “castas sociais” nos fazendo retroceder
aos primórdios da civilização, o que não mais é possível em pleno século XXI.
Afirmo que não há como desvincular o homossexual da qualidade de cidadão
brasileiro. A discussão preconceituosa a que somos diariamente expostos é sempre
revestida de um colorido de deboche mostrando preconceitos pelo simples fato de
sermos diferentes, afinal o que é desconhecido no meio social, mesmo que se
trabalhe, estude e produza, é visto como “Queer”, ou seja, meio cidadão, ou cidadão
de segunda classe.
Vemos então que o ordenamento jurídico brasileiro, não possibilita dentro
dele, que uma pessoa plenamente capaz possa ter sua cidadania caçada em razão
de sua orientação sexual assumida.
108
BAHIA, 2006, p 101.
59
Resta atentar ao fato que vivemos numa sociedade que estigmatiza e
ridiculariza as pessoas ao exercerem sua orientação sexual diferente. Não é
negando o direito à igualdade que fará com que nós os homossexuais
desapareçamos. Pelo contrário, lutaremos. Sempre nos faremos presentes lutando
para termos na integralidade o direito de sermos cidadãos brasileiros.
60
11 A UNIÃO HOMOAFETIVA E O PRINCÍPIO DA IGUALDADE
As uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo são uma conseqüência
direta e inevitável da existência de uma orientação homossexual. É um fato da vida,
que não é interditado pelo direito e diz respeito à privacidade do ser humano.
Observando o universo afetivo humano, posso afirmar sem sobra de dúvidas que
elas – as uniões homoafetivas – existem e continuarão a existir independentemente
do reconhecimento jurídico do Estado e a meu ver, seguirá o mesmo caminho que o
concubinato trilhou109, ou seja, vencendo as mesquinharias sociais sujeitas ao jogo
de aparências que foram derrotadas com a promulgação da Constituição cidadã de
1988.
As últimas décadas têm culminado em um processo lento e gradual de
superação de preconceitos e de discriminações110 e inúmeras pessoas passaram a
viver sua plenitude sexual e afetiva, assumindo publicamente suas relações
homoafetivas.
No Brasil e no mundo, milhões de pessoas convivem em parcerias, contínuas
e duradouras, caracterizadas pelo afeto e por um projeto comum de vida.
A aceitação social é recente, e atualmente, nas mídias em geral, o
homossexual vem deixando de ser tratado como elemento caricato e palhaço, para
ser finalmente mostrado sem estereótipos. Alguns produtos midiáticos recentes
constituem exemplos concretos, como é o caso do hollywoodiano Brokeback
Mountain, representado por dois caubóis – standarts da cultura chauvinista
americana111 – e da novela Senhora do Destino, evidenciado por duas moças livres
109
Penso que é perverso impor às uniões homossexuais a mesma trilha percorrida pela doutrina e
pela jurisprudência com relação às relações entre um homem e uma mulher fora do casamento, até o
advir da nova conceituação de família dada pela Constituição de 1988, trazendo para o mundo
jurídico a união estável.
110
Ao observar alguns amigos gays percebo que o tratamento discriminatório está tão enraizado e
incorporado a paisagem social do mundo que até eles como próprias vítimas de discriminação tem
dificuldade em perceber tais eventos, e até mesmo de reagir a eles.
111
Outro filme recente chama-se Milk – A voz da igualdade, que conta uma história que se passa nos
anos 1970, onde um nova-iorquino chamado Harvey Milk resolveu viver em São Francisco com o
namorado, abrindo uma pequena loja de revelação fotográfica Castro Câmera num bairro operário.
Milk surpreendeu a todos ao se tornar um verdadeiro agente de mudanças. Numa época em que o
preconceito e a violência contra homossexuais eram aceitos abertamente como norma, Milk buscou
direitos iguais e oportunidades para todos, mergulhando de cabeça nas turbulentas águas da política.
In: <http://epipoca.uol.com.br/filmes_detalhes.php?idf=21203> acesso em 28.09.2009.
Na vida real, é o primeiro cidadão eleito abertamente gay na Califórnia. Harvey Milk foi
supervisor da cidade de San Francisco, no Estado da Califórnia em 1978, pelo distrito de Castro,
61
de qualquer estereótipo. Ao mesmo tempo em que se observa o avanço desta
tendência, nota-se a reação de grupos que a execram, sejam religiosos112 ou
políticos.
A constituição de 1988 que procurou organizar uma sociedade sem
preconceitos e sem discriminação, fundada na igualdade de todos, não contém
norma expressa acerca da liberdade de orientação sexual113. Em outro modo de
dizer ela não faz menção a uniões homoafetivas, contudo refere-se a uniões
heterossexuais, reconhecendo como entidade familiar a união estável entre homem
e mulher, em seu artigo 226 § 3º114 “in verbis”:
Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua
conversão em casamento.
Seguindo a mesma linha de pensamento o Código Civil que em seu artigo
1723 diz:
É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e
estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Vê-se então, de forma clara, que neste conjunto de princípios aos olhos da
hermenêutica que há uma lacuna na lei a ser tempestivamente observada por
analogia, pois as características previstas nas uniões estáveis estão também
presentes nas uniões estáveis de pessoas de mesmo sexo, portanto, merecedoras
de igual tratamento o que no dizer de Daniel Sarmento, há a idéia de que os
homossexuais devem ser tratados com o mesmo respeito e consideração que os
onde após cinco derrotas consecutivas, mas com apoio dos gays que saíram do “Guarda roupa”,
entre eles caminhoneiros, operários e professores Gays, preteridos no país em seu emprego,
combatendo o puritanismo americano. Após sua vitória política chega ao poder, em defesa de direito
de igualdade para todos previsto na Constituição Americana. Uma onda libertária sexual se espalha
por todos Estados Unidos, com início das “Paradas Gay”. Mas pela sua ousadia, foi ele assassinado
juntamente com o Prefeito do distrito de Castro, por George Moscone, um supervisor puritanista
católico irlandês Dan White.
112
As religiões calcam a homoafetividade como um pecado e suas atitudes são um entrave ao
reconhecimento jurídico das relações homossexuais. Deve-se notar que esse agir por parte dos
religiosos, é incompatível com a laicidade do Estado, em seu artigo 5º, VI e 19, I.
113
BARROSO. Luis Roberto. Diferentes mas iguais: O Reconhecimento jurídico das relações
homoafetivas no Brasil In:< http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/diferentesmasiguais_171109.pdf >
acesso em 28.09.2009.
114
Na verdade o que existe é uma simples recomendação em transformá-la em casamento. Em
nenhum momento é dito não existirem entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo.
Exigir a diferenciação de sexos do casal para merecer a proteção do Estado é fazer distinção odiosa,
mostrando uma postura nitidamente discriminatória, que contraria o princípio da igualdade, ignorando
a vedação de diferenciar pessoas em razão de seu sexo.
62
demais cidadãos, e que a recusa estatal ao reconhecimento das suas uniões implica
não só na privação de uma série de direitos importantíssimos de conteúdo
patrimonial e extra patrimonial, como também importa em menosprezo à sua própria
identidade e dignidade115. E, em concordância com esse pensamento posso afirmar
que não subsiste qualquer argumento razoável para negar aos homossexuais o
direito116 ao pleno conhecimento das relações afetivas estáveis que mantêm, com
todas as conseqüências jurídicas disso decorrentes, pois, deve haver uma
concordância recíproca entre o ser e o dever ser tanto é assim que nem mesmo se
discute o direito à constituição de família por casais heterossexuais inférteis, ou que
não pretendam ter filhos
Ao longo do tempo o homossexual tem sido visto de forma depreciativa,
desde a antiguidade, passando pelo Medievo, Iluminismo, a II Grande Guerra
Mundial, onde fomos massacrados chegando-se ao Mundo Moderno onde ainda
somos tratados com intolerância117, truculência118 e desapreço. Mas está se vendo
que os bons ventos estão mudando o rumo, em relação ao modo de vida “Queer”
homossexual, pois passeatas e manifestações, em diferentes partes do mundo nos
vêm dando gradativa visibilidade nos permitindo ocupar espaços públicos,
derrotando a opressão e nos proporcionando a oportunidade de desfrutar de nosso
afeto e buscar pela nossa felicidade.
Vejo que em superados certos obstáculos preconceituosos pode-se aplicar os
princípios de dignidade da pessoa humana, da igualdade e por analogia os
princípios gerais do direito com toda ênfase que possa haver.
115
SARMENTO, 2008, p. 61-62.
Nesse sentido Cláudio José Amaral Bahia, em sua obra Proteção Constitucional à
Homossexualidade. p 103 Mizuno. São Paulo: 2006, diz “in verbis”: a não-tutela dos direitos afetos
ao cidadão homossexual representa a inaceitável criação de “castas sociais”, remontando aos
primórdios da civilização, o que, premissa vênia, não se mostra mais plausível. Mais adiante ele diz
que não há como desvincular do homossexual a qualidade de cidadão brasileiro por inteiro e não pela
metade como hoje, infelizmente se observa.
117
Se for realmente sério o desejo do Estado brasileiro de combater a intolerância e a violência, tem
obrigação de dar o exemplo em não nos discriminar, impondo-se a um auto-respeito para que
possamos ser tratados com a mesma consideração dada aos heterossexuais.
118
Conforme Luiz Mott, em seu ensaio Homo-afetividade e direitos humanos. p.514. Revista
Estudos Feministas. Florianópolis. Maio/agosto 2006. São crimes de ódio, em que a condição
homossexual da vítima foi determinante no “modus operandi” do agressor. Portanto, “crime
homofóbico”, motivado pela ideologia preconceituosa dominante em nossa sociedade machista, que
vê e trata o homossexual como presa frágil, efeminado, medroso, incapaz de reagir ou contar com o
apoio social quando agredido. Tais crimes são caracterizados por altas doses de manifestação de
ódio: muitos golpes, utilização de vários instrumentos mortíferos, tortura prévia.
116
63
A interpretação constitucional, como a interpretação jurídica em geral, não é
um exercício abstrato de busca de verdades universais e atemporais119. Na verdade
é meu entender, que toda interpretação é produto de uma época, pois faz parte de
momentos da história da humanidade, dependendo da época em que se vive
envolvendo normas pertinentes e circunstâncias, que na época envolvem o
intérprete da lei e o imaginário social.
Ao se falar sobre o interprete da lei, há que se referir ao dever ético dele, pois
deve ao fazer suas analises, deixar de lado a sua pré-concepção, ou seja, desfazerse de seus preconceitos pessoais enraizados na cultura social a que foi criado.
Nisso quando me referi ao dever ético, quero tratar da existência de uma
honestidade intelectual, para que ela seja transparente e que com isso permita a
compreensão correta da fundamentação adotada bem como o autocontrole de sua
crítica vendo com isso que a homoafetividade é um fato da vida, e as relações
homoafetivas são atos lícitos pertinentes a esfera privada de cada um, não sendo
negativa nem positiva, da mesma forma que outras características humanas, como a
cor da pele por exemplo.
Nesse meu pensar, o interprete deve usar da razão e não de concepções
particulares120, sejam elas religiosas ou políticas sendo seu papel, como
representante do Estado o de acolher e não rejeitar aqueles segmentos sociais que
são vítimas de preconceitos e intolerância.
Quero com isso afirmar que a homoafetividade não é uma opção, mas um
fato de vida, e que não viola nenhuma norma jurídica tampouco capaz de afetar
negativamente a vida de terceiros, muito embora esses – terceiros – queiram ligar
um modo de vida dito de “correto”, em particular, o seu modo de vida para nós
homossexuais.
Em resumo, os sentimentos e escolhas pessoais não devem comprometer a
sua sensibilidade de captar o sentimento social e acima de tudo deve inspirar-se
pela razão. O desejável, e que vejo ser possível é que um interprete seja consciente
das circunstancias proporcionando dessa forma uma distribuição igualitária da lei,
muito embora alguns grupos, como os religiosos, por exemplo, venham em sentido
contrário.
119
SARMENTO, 2008, p .5.
Vejo que assim como existe um direito da livre determinação dos povos, por analogia deve existir
um direito de livre determinação do indivíduo.
120
64
Contudo nota-se uma indiferença por parte do Estado, que revela um juízo de
desvalor, ao não dar reconhecimento jurídico que merecem as relações
homoafetivas, em contrapartida do reconhecimento, a sua não extensão traduz
menor consideração aos homossexuais.
O Estado, assim, na minha ótica, permanece na sua cega caminhada como
inimigo das minorias sendo protagonista de uma repressão, impondo uma moral
dominante, não deixando nos lembrar que ele seja visto como um Estado solidário,
portanto, um agente de tolerância e inclusão social.
O reconhecimento das relações homoafetivas por parte do Estado deve
permear pelo ambiente filosófico aproximando o direito da ética, iluminando o
princípio da dignidade da pessoa humana, em sua essência, que são os direitos
fundamentais, fazendo com que também se proporcione à mesma luz a segurança
jurídica, que como princípio, deve dar previsibilidade e estabilidade a todas as
pessoas, a despeito de sua origem e de suas características pessoais, pois, todas a
meu ver, e creio ser entendimento pacífico e universal, que todos têm o direito de
desfrutar da proteção jurídica que estes princípios lhe oferecem.
Com isso pode-se afirmar, com toda clareza, que o mundo acadêmico me
proporcionou firmar ainda mais a idéia que eu possuía de que somos livres, iguais e
temos o direito de vermos e sentirmos que o nosso desenvolvimento e nossas
relações pessoais sejam abraçadas por um regime justo.
É ao Estado que compete a ação de promover esses valores que mencionei a
toda a sociedade, elevando todo cidadão ao mesmo patamar político, ético e social.
Nisso depreende o entendimento de que a Constituição não deve fornecer
leitura homofóbica e deslegitimadora no que tange as relações de afeto, pois, a
exclusão dos homossexuais, do regime de união estável, a meu ver mostra que não
seriamos merecedores de igual respeito, em outro dizer, se daria entender que o
universo homoafetivo é menos importante, por conseguinte menos correto, em fim
menos digno.
O pensamento medieval jurídico deve sucumbir perante uma visão mais
abrangente de realidade e começar a desatar os “nós” que ignoram as relações de
afeto de pessoas de mesmo sexo.
É notório o significado do artigo 3º da nossa Carta que inquestionavelmente e
normativamente deixa claro ser objetivos da República o “construir uma sociedade
livre, justa e solidária” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
65
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. É o artigo 5º da
mesma Carta que avaliza o que acima transcrevi, quando afirma que “todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e vejam que foi o
Constituinte que mencionou expressa rejeição ao racismo e a discriminação contra
as mulheres.
As incertezas jurídicas fomentadas por manifestações contraditórias do Poder
Público em suas decisões judiciais conflitantes pelo Brasil a fora, afeta a segurança
jurídica
e
criam
problemas
para
as
pessoas
diretamente
envolvidas
e
concomitantemente para a sociedade.
Os principais afetados são os envolvidos nas relações homoafetivas, pois
trazem reflexo negativo direto em seu projeto de vida e também patrimonial,
portanto, natural que queiram ter previsibilidade em temas que envolve partilhas de
bens, herança, deveres de alimentos e assistência recíproca, entre outros.
É de se deixar claro que para o reconhecimento do direito de partilha, não
basta apenas à existência de um patrimônio. É indispensável que o patrimônio tenha
sido construído no período da união, pois caso um dos companheiros já seja
proprietário de certos bens antes de se unir ao outro, de regra, também não será
partilhado quando da dissolução da união. Por certo que essa união no pensamento
de Fernanda de Almeida Brito que vier ser objeto de normatização, cujos
fundamentos e finalidades deverão se assemelhar aos da união estável, jamais
poderá ser denominada de casamento, na sua concepção sócio-jurídica, como não
se pode também assim considerar a união estável. Igualmente inadmissível a
denominação de cônjuge aos conviventes homossexuais, vocábulo esse privativo do
homem e da mulher unidos pelo matrimônio121.
Desta forma, o desafio do mundo moderno é de como acompanhar e
incorporar as transformações que tem havido na sociedade familiar. O modelo antigo
de família, patriarcal e hierarquizado, centrado em um casamento, com a finalidade
de procriar mudou. Hoje com o advir de novos tempos constitucionais o que une
pessoas é o afeto, a assistência mútua com o objetivo de firmar uma relação íntima
e estável, entrelaçando vidas, e dando praticidade à existência, o que resulta de um
importante processo de evolução impulsionado pela jurisprudência. O que antes era
negado, o concubinato e filhos fora do casamento, por exemplo, agora, após a
121
BRITO, 2000, p. 50.
66
mutação social, há maior relevância a pessoa humana desmistificando-se assim que
família só se constituiria a partir do casamento.
Muito embora a Constituição de 1988 faça menção apenas à união estável
entre homem e mulher, e seguida pela legislação ordinária, o Constituinte deixou o
tema em aberto a evolução dos costumes do direito.
Visto isto, não vejo incompatibilidade entre união estável de pessoas de
mesmo sexo e a união estável entre pessoas de sexo diferentes, pois, o não
reconhecimento das uniões homoafetivos não beneficia em nada as uniões ditas
“normais”
ou
“convencionais”
e
muito
menos
promove
qualquer
valor
constitucionalmente protegido.
Ao se analisar o artigo 226 § 3º da Constituição, vê-se que os princípios
constitucionais e a nova concepção de família122 nos faz concluir que o regime
jurídico deve ser estendido às relações homoafetivas, de forma imediata, embora a
referência “homem e mulher” não traduz em momento algum uma vedação da
extensão aos homossexuais, pois essa indicação foi ocluída para superar a
discriminação que havia nas relações entre homens e mulheres fora do casamento.
Essa norma foi ponto culminante de uma longa evolução que elevou a
equiparação entre companheira e esposa, sendo assim a constituição não impõe a
proibição da extensão do regime jurídico da união estável aos homossexuais. O que
existe aí é uma lacuna – silêncio da lei – que faz notar unicamente a falta de uma
regra jurídica, onde o processo de preenchimento de eventuais vazios, pois, na
omissão ou lacuna da lei o juiz deve recorrer à analogia, aos costumes e aos
princípios gerais do direito que possam funcionar como porta pela qual os valores
éticos passam para o mundo jurídico. Nisso a hipótese do reconhecimento da união
estável homoafetiva é um instrumento de analogia da lei.
Uma vez admitida esta analogia, conclui-se que a Constituição reconhece
expressamente três tipos de família: a proveniente do casamento (art. 226, §§ 1º e
2º); a decorrente de união estável entre pessoas de sexo diferente (art. 226, § 3º); e
a família monoparental, seja ela formada por apenas um dos pais e seus
descendentes (art. 226, § 4º), deixando acentuado, um tipo de família não
expressamente reconhecido: a união homoafetiva.
122
É preciso anotar que o reconhecimento jurídico da união entre pessoas do mesmo sexo em nada
comprometeria o instituto do casamento, no que ele tem de mais essencial, ou seja, uma comunhão
de vida entre duas pessoas, decorrente de um ato solene, gerador de uma gama de direitos e
deveres patrimoniais e não patrimoniais para os cônjuges.
67
Muito embora a falta de norma específica, o reconhecimento desse quarto
tipo de família seria imposto pela presença de elementos essenciais que
caracterizam as uniões estáveis e as entidades familiares, pois, o amor é o que
caracteriza a entidade familiar e não a diversidade de gênero, por que é o afeto a
mais pura exteriorização do ser humano e do seu viver, e a marginalização das
relações entre pessoas de mesmo sexo constituem forma de privação do direito à
vida, sendo a sua negação, forma manifesta de preconceito e discriminação.
Não basta, portanto, o reconhecimento de meras sociedades de fato, como
vem acontecendo na jurisprudência brasileira, muito embora que o reconhecimento,
de forma precária e estagnada, deixa a entender que elas sejam instituto jurídico do
direito das obrigações. Já a união estável é um instituto de direito de família.
A desembargadora aposentada Maria Berenice Dias, em sua obra
Conversando sobre homoafetividade nos relata que começou uma mudança, e
justamente com a Justiça Gaucha123, que ao definir competência aos juizados
especializados da família para apreciar as uniões homoafetivas, como entidades
familiares, peculiaridade esta que evidenciou um enorme deslocamento das ações
sobre as uniões do mesmo sexo das varas cíveis para os juizados de família, sendo
este o grande marco que ensejou a orientação da jurisprudência rio-grandense. E
que a definição das competências envolvendo uniões homossexuais provocou o
envio de todas as demandas que tramitavam nos juizados cíveis para a jurisdição de
família. Também os recursos migraram para as câmaras que detêm competência
para apreciar essa matéria124.
Lastimável saber que em outros estados da federação ainda não são tomadas
as mesmas atitudes, apesar de a sociedade de fato já ser uma evolução, apesar de
ainda ser negada a sua natureza familiar, as relações homoafetivas existem muitas
vezes visíveis e noutras tantas invisíveis, mas vê-se que houve uma abertura no
caminho e é imperioso que os juízes se sensibilizem dando uma maior atenção
sendo que o símbolo da imparcialidade não pode mais servir de empecilho
123
Há um elogio a Justiça rio-grandense por parte do professor Cláudio José Amaral Bahia, em sua
obra Proteção Constitucional à Homossexualidade. p 108. Mizuno. São Paulo: 2006, que diz
vislumbrar uma chance bastante clara de mudanças nos conceitos e interpretações jurisprudenciais
até hoje vigentes, uma vez que já se percebe, de maneira inequívoca, o surgimento de decisões
judiciais luzeiras, mormente aquelas proferidas no âmbito do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio
Grande do sul, o qual reconheceu as uniões homoafetivas como verdadeiras “famílias” e estabeleceu
que as ações relativas ao reconhecimento e dissolução de tais uniões sejam devidamente
processadas por vara especializada, qual seja, a Vara de Família.
124
DIAS, 2004, p. 58.
68
impedindo os homossexuais de constituírem suas famílias. Há a necessidade
premente da justiça, neste sentido deixar de ser cega e surda, para poder ver e ouvir
o clamor de uma nova realidade social.
Nesse ponto, vê-se claramente que os homossexuais estão impedidos de
manterem sua identidade, de constituírem famílias, negando a um grande grupo de
pessoas uma das dimensões básicas da afetividade caracterizadas pelo visível
preconceito, incompatibilizando-se com s valores constitucionais.
Sem sombra de dúvidas, é meu pensamento que, as uniões homoafetivas
constituem entidades familiares, muito embora falte disciplina específica para tal,
elas devem reger-se pelas mesmas regras da união estável entre homem e mulher.
Ao reconhecer as uniões homoafetivas como fatos lícitos e relativas à vida
privada de cada um, deve o Estado respeitar a diversidade, fomentar a tolerância e
contribuir de forma ativa e eficaz para que sejam superadas as barreiras do
preconceito e da discriminação.
Os princípios constitucionais de igualdade, da dignidade125 da pessoa
humana e de liberdade impõem a extensão do regime jurídico da união estável as
uniões homoafetivas.
A igualdade importa em reconhecimento, a dignidade, diz respeito ao
desenvolvimento da personalidade de cada um e a liberdade, impõe o oferecimento
de condições que sejam objetivas e que nos permitam fazer escolhas legítimas e o
princípio da segurança jurídica impõe, há seu tempo e modo, um valor interpretativo,
por que indica previsibilidade e compreensão adequada do direito, que possa
propiciar de tal forma previsibilidade nas condutas e estabilidade nas relações.
Para concluir o meu entendimento sócio-jurídico sobre uniões homoafetivas e
o princípio da igualdade, devo deixar claro que as uniões homoafetivas configuram
verdadeiras entidades familiares. Fato esse evidente, pois, trata-se de seres
humanos e como tal, sejam homens ou mulheres, os formadores dessa união, há
um efetivo vínculo de afeto, de sexo, sendo, portanto estáveis e duradouras.
Quando se originam as uniões, tanto hetero como homoafetivas, não se
pensa no seu fim, o que prevalece por evidente é a busca pela felicidade, e elas são
eternas enquanto duram conforme já dizia nosso poeta Vinicius de Morais126.
125
Privar uma pessoa de sua dignidade é a meu ver, o mesmo que expô-la a situações de risco social
injustificado, podendo ensejar no comprometimento as suas condições materiais mínimas para a vida
digna.
69
Abre-se então, aos olhos do legislador, para seu vislumbre a família127 pósmoderna, para que ele compreenda e aprenda que existe complexidade nos
sentimentos e relacionamentos humanos e que se faz necessário um reconstruir,
tomando consciência e fazendo sua a tarefa de des-historizar o velho e tradicional
sistema e tomar consciência da existência dos novos modelos de uniões afetivas,
tanto heterossexuais como homossexuais, para construir as bases de um efetivo
desenvolvimento do direito de família, onde a proteção da dignidade humana e dos
valores da igualdade, da solidariedade e do pluralismo, tão fundamentais como
comenta Roger Raupp Rios para que a Constituição e a vida coletiva possam
florescer128. Só assim, concordando com ele, o direito de família atualizado pelas
uniões de pessoas de mesmo sexo, masculino ou feminino, colaborará para a
democratização da intimidade de todos.
126
Vinicius de Moraes (Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1913 — Rio de Janeiro, 9 de julho de 1980)
foi um diplomata, dramaturgo, jornalista, poeta e compositor brasileiro. Poeta essencialmente lírico, o
poetinha (como ficou conhecido) notabilizou-se pelos seus sonetos. Conhecido como um boêmio
inveterado, fumante e apreciador do uísque, era também conhecido por ser um grande conquistador.
In: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes > acesso em: 13.04.2010. Sua obra mais
lembrada é o soneto da Felicidade que diz: De tudo ao meu amor serei atento/ Antes, e com tal zelo,
e sempre, e tanto/ Que mesmo em face do maior encanto/ Dele se encante mais meu pensamento./
Quero vivê-lo em cada vão momento/ E em seu louvor hei de espalhar meu canto/ E rir meu riso e
derramar meu pranto/ Ao seu pesar ou seu contentamento/ E assim, quando mais tarde me procure/
Quem sabe a morte, angústia de quem vive/ Quem sabe a solidão, fim de quem ama/ Eu possa me
dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto
dure. In: <http://www.pensador.info/soneto_da_felicidade_de_vinicius_de_moraes/> acesso em
13.04.2010.
127
BAHIA. Cláudio José Amaral, em sua obra Proteção Constitucional à Homossexualidade. p
101. Mizuno. São Paulo: 2006 refere-se à família com roupagem moderna que deve ser considerada
como um legítimo espaço de preservação e tutela de dignidade da pessoal humana, não parece ser
possível o não reconhecimento da parceria homossexual formada pela junção de valores,
pensamentos e afetividade, como entidade familiar, pois seria aceitar a nefasta idéia da existência de
cidadãos brasileiros de primeira e de segunda escala, o que se cumpre a todo custo evitar.
128
RIOS, 2001, p.126.
70
12 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho a que me propus, sobre a questão homoafetiva, faço
inicialmente uma abordagem conceitual de homoafetividade classificando ser ela
muito mais do que a orientação sexual por pessoa do mesmo sexo, pois, envolve
também a afetividade.
Em outro passo, imprimo um conhecimento das origens históricas, bem como,
detalho fatos históricos conhecidos de várias culturas primitivas.
Avançando no tempo, relato o comportamento homoafetivo, na clássica
Grécia e Roma antiga, descrevendo a iniciação do jovem efebo, por exemplo,
comentando sobre Sócrates, adepto do amor homossexual, do privilégio que era ser
homossexual entre os bens nascidos, não se tratando de degradação moral e que
faz parte de uma estética comportamental sendo tida pelos estudiosos como “a
idade do ouro”, sendo visivelmente aceito nas linhas militares e religiosas. O
especial destaque é para a área da intelectualidade, onde citei Platão com sua obra
“o banquete”.
Passando por Roma antiga não vimos muita diferença, pois também eles
tinham ideais amorosos equivalentes dos gregos. O que a diferencia da Grécia é
que ela pouco fez para salvaguardar a nobreza dos sentimentos relacionados à
sexualidade, e a degradação do poder romano antigo, acompanhou seus
personagens como Nero e Calígula, que outrora foi enobrecido por Júlio Cesar.
Um passo adiante na história nos colocamos na idade média, também
chamada de idade das trevas, onde se assistiu uma implacável perseguição aos
homossexuais, sendo que através de Gregório II, no século XIII, por influência de
Tomaz de Aquino, foi publicado um código penal válido para todo o império cristão
com forte apelo ao Direito natural, absorvendo uma ótica conveniente à época,
recrudescendo ainda mais, sob sua influência nos séculos XIV e XV, a perseguição
aos homossexuais, dando origem ao “Colegium Sodomitarium” e o “Officiale Della
Notte” que se encarregava de perseguir, investigar e até mesmo aplicar penas
preventivas.
Mais adiante, com o renascimento é que surgiu uma mudança radical na
sociedade ocidental a partir das revoluções artística, religiosa, política e científica. O
renascimento permitiu uma nova emergência da homossexualidade revertendo o
71
quadro de intolerância sob a influência das personalidades hoje reconhecidas como
Leonardo Da Vinci, entre outros nos diversos segmentos, tanto das artes como das
ciências.
A humanidade da mais um passo com o advento do iluminismo onde o direito
penal tratou de afastar penas fundadas em determinações divinas. A literatura trouxe
a tona questões de identidades discordantes com o socialmente esperado, e desde
então o homoerotismo começou a ocupar cada vez mais seu lugar, como exemplo o
personagem Vautri de Honoré Balzac.
A história, mais adiante do tempo, nos mostra também a ascensão do
nazismo durante a II Guerra Mundial, um dos mais sangrentos exemplos de
violência que enviou centenas de milhares de homossexuais para a morte, nos
campos de concentração onde eram marcados em suas vestes prisionais por um
triangulo rosa. Hoje, no pós-guerra, relatamos que a Alemanha retratou-se perante a
comunidade homossexual com um memorial em forma de cubo instalado no parque
central de Tiergarten, homenageando os 7.000 homossexuais assassinados em
campos de concentração, além dos 50.000 que foram processados e condenados
entre 1933 e 1945.
Olhando para um futuro mais promissor mostramos o mundo contemporâneo
comentando sobre as décadas de 50 e 60 e enfatizando o dia 28 de junho de 1969,
data em que policiais invadem agressivamente o bar Stonewall, noite que ficou
conhecida pela resistência dos homossexuais que se perpetua na história como
marco para o movimento gay internacional.
Em contrapartida, mais tarde, pela década de 80 a AIDS, surpreende o
mundo e o ativismo homossexual, que em contrapartida faz emergir importantes
grupos de ONGS-AIDS, como o GAPA – Grupo de Apoio e Prevenção a AIDS por
nós conhecidos como “anos eróicos” em que o governo consolidou seu Programa
Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) /AIDS, dentro do Ministério
da Saúde.
No passo seguinte do meu trabalho, dou a ele uma conotação autobiográfica,
pois, refiro-me ao movimento gay, época que vivi minha plenitude juvenil nos
sabores e dissabores do início de um mundo novo que nascia para mim e para
milhares de brasileiros e que me faz recordar que fui assinante do jornal “O lampião”
e também falo sobre o romance de Darcy Penteado “Nivaldo e Jerônimo” e os 50
corajosos que marcharam no ABC paulista apoiando o movimento sindical e que ao
72
mesmo tempo reivindicou direitos e se tornou visível, sendo que esses “heróicos
anônimos” abriram caminho para outros que evoluíram hoje nas conhecidas
“Paradas Gays” sendo a de São Paulo, a maior do Brasil, e considerada também a
maior do mundo, se tornando esta manifestação destaque turístico, por ser a maior
manifestação social, encobrindo em números o de participantes de outras
manifestações.
Em seqüência a teoria “queer” foi tratada de forma a trazer uma melhor
compreensão
sobre
as
relações
homoeróticas
num
mundo
pós-moderno,
contemporâneo e globalizado, onde o ser humano é visto por ele mesmo,
interagindo e se completando, aceitando-se e sendo aceito ao mesmo tempo, com
suas qualidades, defeitos e diversidades, tanto em sonho como em realização.
Nesta fase trato o “queer”, o estranho, o esquisito, a fim de poder incluí-lo e ser
aceito numa sociedade não mais como um “corpo estranho”, mas como parte
integrante do grande e único todo, que é a raça humana.
Na seqüência, o penúltimo capítulo, trato do homossexual fazendo referencia
aos direitos humanos e a dignidade humana. Abordo neste capítulo desde o
nascedouro do termo dignidade, formando contraponto no estoicismo, e em nota de
rodapé, faço referência ao livro III da obra Dos Deveres de Cícero com o cristianismo
que é baseado na fraternidade mudando a mentalidade e valores objetivando igualar
a todos e abolindo a escravatura.
Mostro que houve alterações no conceito de pessoa com o passar dos
séculos, bem como o discurso de Aristóteles sobre o que é justo e o que é bom para
os homens.
Nessa evolução histórica, mostro a limitação dos monarcas, onde surgiram
embasamentos que antecederam declarações de direitos, e em breve evoluir
histórico a importância de Montesquieu, com a divisão dos três poderes que
impulsionaram o surgimento da garantia constitucional e a forma de organização do
Estado com a função de proteger os direitos fundamentais, passando pela
declaração de Direitos do bom povo de Virgínia; a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, na França em 1789; a Declaração dos Direitos do Povo
Trabalhador e Explorado em 1917 da então URSS – União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, até chegar às demais a exemplo da mexicana, tida como a
primeira constituição social do século XX, por ter incorporado direitos sociais,
culturais e econômicos.
73
Par e passo com o tempo citamos a declaração de 1948, que de início foi
considerada como um tratado internacional e que se tornou na segunda metade do
século XX objeto de força jurídica obrigatória face o Direito internacional. Nisso a
nossa constituição é vista como acolhedora dessa declaração em seu artigo 5º, §§
1º e 2º, porém omissa a grupos quanto a sua orientação sexual.
Clarifico ser notório que a sexualidade integra a própria condição humana e
que ninguém pode se realizar como ser humano se não tiver assegurado o respeito
ao exercício de sua sexualidade, defendendo assim a liberdade sexual bem como a
liberdade a livre escolha da orientação sexual.
Faço perceber que é no seio familiar que se vê fundada a plena igualdade
entre seus membros, pois resulta a dignidade ser decorrente de um entendimento de
que todos vivem suas vidas da melhor maneira possível, de acordo com suas
próprias escolhas dentro de suas características, sejam elas hetero ou homo, desde
que não venham essas escolhas a prejudicar terceiros.
Deixo claro ser a dignidade da pessoa humana como possuidora de valor
próprio, que identifica o ser humano como tal, fazendo parte nuclear do ser humano,
sendo inalienável e irrenunciável da própria condição humana.
Afirmo incontestemente que o ser humano homossexual em nada difere dos
seres heterossexuais, e que são albergados no que tange os direitos a
personalidade, por exemplo, pois representa um conjunto de caracteres de cada
indivíduo, ou seja, a parte mais íntima do ser humano. Mostro ainda que para a
realização pessoal o ser homossexual tem seu direito a privacidade e a intimidade,
por óbvio decorrentes do princípio constitucional de proteção e dignidade de ser
humano.
Enfatizo citando a Convenção Americana de Direitos Humanos, “o Pacto de
San José da costa Rica” em seu artigo 5º que consagra o direito a integridade
pessoal.
Faço considerações de que o princípio da dignidade humana é também
homossexual, pois, envolvem liberdade de escolha de orientação sexual e deixo
evidente a assertiva de que a sexualidade é um dos componentes intrínsecos a
qualquer ser humano e, por conseguinte se estende aos homossexuais masculinos
e femininos.
Refiro-me ao texto constitucional brasileiro que implicitamente admite, permite
e protege a homoafetividade, pois veta a distinção de sexo, raça, cor, religião e
74
mostro que com isso abrem-se lacunas no direito que devem ser tratadas em
conformidade com o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que determina
que nos casos lacunosos sejam aplicados a analogia os costumes e os princípios
gerais do direito, do ponto de vista social e humano.
Também afirmo ser o homossexual um sujeito de direitos e deveres, e que
sua orientação sexual não deve ser fomento para discriminação eis que a
Constituição Federal deve refletir seus efeitos para todas as pessoas que compõe a
sociedade para a qual foi promulgada.
Por fim, analiso, no último capítulo a união homoafetiva, em consonância com
o princípio da igualdade, pois elas existem e sempre existirão independentemente
de reconhecimento jurídico do Estado, e que devem ser deixadas de lado as
mesquinharias sociais, pois, no Brasil milhares de pessoas vivem em parcerias
contínuas e duradouras caracterizadas pelo afeto e por um projeto de vida em
comum.
Enfatizo que a aceitação social é recente, e a mídia tem papel preponderante
muito embora mostre o lado caricato e palhaço, ao contrário de outros segmentos,
como o cinematográfico.
Mostro que a constituição de 1988, que ao ser formulada, procurou o
constituinte organizar uma sociedade sem preconceitos e sem discriminação
fundada na igualdade de todos por isso não contém norma expressa acerca da
liberdade de orientação sexual.
Tratei em esclarecer que o interprete das lacunas de direito, tem o dever ético
ao fazer suas analises, deixar de lado seus preconceitos pessoais enraizados na
cultura social a que foi criado. Quero com isso me referir a uma honestidade
intelectual que permita a compreensão correta da fundamentação adotada bem
como autocontrole de sua crítica para que possa ver a homoafetividade ser um fato
de vida e que as suas relações são atos lícitos e pertencentes à privacidade de cada
indivíduo.
Assim, na seqüência desse pensamento, afirmo que a homoafetividade não é
uma opção, mas um fato de vida e que não viola nenhuma norma jurídica e
tampouco afeta negativamente a vida de terceiros.
Dou notoriedade ao artigo 3º da nossa Constituição haja vista ela ser
inquestionável e objetiva ao ensejar a construção de uma sociedade livre, justa e
75
solidária, bem como promotora do bem de todos sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Reforço minhas convicções com o artigo 5º da mesma Carta, onde lá o
constituinte deixou claro que todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza.
Friso não haver incompatibilidade entre união estável de pessoas do mesmo
sexo ou não, pois o não reconhecimento das uniões homoafetivas não traz
benefícios aos ditos “normais”.
Nesta linha, analiso o artigo 226 § 3º da Constituição fazendo ver que é de
fácil entendimento que o regime jurídico ali expresso deve ser estendido às relações
homoafetivas, pois, ela ali foi colocada para assegurar as relações fora do
casamento que veio a evoluir e equiparar esposa (o) e companheira (o) e se
vislumbra, portanto a sua extensão aos homossexuais.
O reconhecimento das uniões homoafetivas como fatos lícitos, deve ser
respeitado pelo Estado, visto como um princípio de igualdade entre seus cidadãos,
respeitando a diversidade, fomentar a tolerância e contribuir de forma ativa e eficaz
para que os débeis conceitos cresçam e superem os fortes preconceitos.
Visto isto, é imperioso afirmar que os princípios constitucionais de igualdade e
da dignidade da pessoa humana e também o da liberdade impõe a extensão do
regime jurídico da união estável as uniões homoafetivas.
A igualdade para nós homossexuais importa em reconhecimento e a
dignidade nos diz respeito ao desenvolvimento de nossa personalidade e de
liberdade individual que nos possibilitem fazer escolhas legítimas e constituímos
nossas famílias, pois somos seres humanos e como tais, desejamos manter vínculos
de afeto e de sexo estáveis e duradouros.
O direito a igualdade nas uniões homoafetivas objetiva a formação de família,
de buscar a felicidade.
A proteção da dignidade humana e os valores da igualdade, bem como da
solidariedade são plurais na sociedade moderna do século XXI, e a Constituição é o
caminho que assegura o florescer desses direitos que democratiza a intimidade do
ser humano.
Com este trabalho, quero deixar espaço para reflexão e discussão sobre o
assunto tão evitado, para que todos possam extrair uma lição de que a escolha é um
direito constitucional de qualquer cidadão.
76
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80
APÊNDICE A - Jurisprudências
AÇÃO DECLARATÓRIA. RECONHECIMENTO. UNIÃO
ESTÁVEL.
CASAL
HOMOSSEXUAL.
PREENCHI-
MENTO DOS REQUISITOS. CABIMENTO.
A ação declaratória é o instrumento jurídico adequado
para reconhecimento da existência de união estável entre
parceria homoerótica, desde que afirmados e provados os
pressupostos próprios daquela entidade familiar.
A sociedade moderna, mercê da evolução dos costumes
e apanágio das decisões judiciais, sintoniza com a
intenção dos casais homoafetivos em abandonar os
nichos
da
segregação
e
repúdio,
em
busca
da
normalização de seu estado e igualdade às parelhas
matrimoniadas.
EMBARGOS
INFRINGENTES
ACOLHIDOS,
MAIORIA.
EMBARGOS INFRINGENTES
QUARTO GRUPO CÍVEL
Nº 70011120573
COMARCA DE PORTO ALEGRE
C.W.T.L.C.M.
.
EMBARGANTES;
M.P.
EMBARGADO.
.
ACÓRDÃO
POR
81
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes do Quarto Grupo Cível do
Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, acolher os embargos infringentes,
vencidos os Desembargadores Antonio Carlos Stangler Pereira e Sérgio Fernando
de Vasconcellos Chaves
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes
Senhores
Desembargadores
ANTONIO
CARLOS
STANGLER
PEREIRA
(PRESIDENTE), MARIA BERENICE DIAS, RUI PORTANOVA, LUIZ FELIPE
BRASIL SANTOS, SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES E JOSÉ
S. TRINDADE.
Porto Alegre, 10 de junho de 2005.
DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS,
Relator.
RELATÓRIO
DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS (RELATOR) Adoto, de início, o relatório constante no parecer do douto Procurador
de Justiça, Dr. Miguel Bandeira Pereira (fls. 246-257), a seguir transcrito e
complementado:
“Apreciando
apelação
interposta
pelo
Ministério
Público, nos autos de ação declaratória de reconhecimento
de união estável promovida por CW e TLCM, a Colenda 8ª
Câmara Cível desse Tribunal, por maioria, deu parcial
provimento
à
inconformidade,
assentando
a
impossibilidade do reconhecimento de união estável entre
dois homens, de modo a merecer proteção do Estado
82
como entidade familiar, face o art. 226, § 3° da Co nstituição
Federal (fls. 199 a 203).
O voto condutor da maioria proveu o recurso apenas
para reconhecer a existência de sociedade de fato entre os
autores, em que a contribuição de cada um deva ser
apurada de acordo com a sua eventual participação na
formação do patrimônio, através de posterior liquidação de
sentença.
O douto voto minoritário, da lavra do eminente
Desembargador Rui Portanova, que negava provimento ao
apelo do Ministério Público, assentou a existência de
lacuna no direito para a solução concreta, além da
ausência de proibição legal no reconhecimento da união
estável na hipótese. Afirmou, ainda, que a completude do
sistema jurídico pode abarcar essas relações de afeto,
mesmo sem expressa previsão da lei a respeito. Por fim,
asseverou que a analogia mais adequada para preencher a
lacuna existente na lei é a figura da união estável e não a
da sociedade de fato, haja vista que os requerentes não se
uniram com fim de exercerem atividade econômica, mas
tão-somente pelo afeto mútuo.
Ao acórdão foram opostos embargos de declaração
pelos autores (fls. 208 a 213), desacolhidos (fls. 216 a
217), após o que sobreveio o presente recurso de
embargos infringentes, onde os recorrentes reafirmam que
“mantêm sim, entre si, de há tempos uma união estável
entre pessoas do mesmo sexo, a qual pretendem dar
continuidade ad eternum, compartilham domicílio civil, os
afazeres da residência, bem como as obrigações daí
decorrentes, e pretendem deixar, um para o outro, todo o
patrimônio do qual possam dispor entre si, bem como os
direitos futuros sobre benefício previdenciário.” Informam a
aquisição conjunta de imóvel no sentido de demonstrar os
seus propósitos, argumentando, também, em torno do valor
83
constitucional da dignidade humana. Concluem deva
prevalecer o voto vencido (fls. 222 a 233).
Respondido o recurso (fls. 238 a 242) pelo agente
ministerial com atuação junto à 8ª Câmara Cível, subiram
os autos, vindo, a seguir, com vista.”
O Ministério Público manifesta-se pelo conhecimento e desacolhimento
do recurso.
É o relatório, que foi submetido à douta revisão.
VOTOS
DES. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS (RELATOR) A providência nos reservou, neste crepúsculo de poder jurisdicional, o
exame de autos peculiares. Em primeiro, pelo tema sempre instigante. Depois, pelas
excelentes e eruditas peças subscritas pelos advogados Roger Caetano e Cláudio
Tessari, pelos agentes do Ministério Público, João Hubert Jacottet Neto, Ricardo
Moreira Lins Pastre e Miguel Bandeira Pereira, e pela sentença da operosa e culta
magistrada Dr.ª Maria Inês Claraz de Souza Linck.
Os apelados ajuizaram uma ação declaratória para afirmar a união
estável que os vincula há mais de quinze anos, timbrada pelo afeto, companheirismo
e carinho, sob o mesmo teto, com notoriedade e de forma ostensiva.
Observe-se que bem poderiam se socorrer de provimento nº 06/04CGJ, deste Tribunal, que autorizou “as pessoas plenamente capazes independente
da identidade ou oposição de sexo, que vivam uma relação de fato duradoura, em
comunhão afetiva, com ou sem compromisso patrimonial” a registrar documentos
que digam respeito a tal relação e que se estende também às pessoas que
pretendam construir uma união afetiva na forma do expediente referido. A leitura
deste provimento deixa à calva a inexistência de qualquer veto à orientação sexual,
franqueando o registro a qualquer parelha que viva em união estável, desde que
formada por pessoas capazes e em público congresso afetivo.
É conhecida a posição que adotei em 14 de março de 2001, quando a
Sétima Câmara, por maioria acolheu por primeira vez no País a possibilidade de
84
reconhecer-se a relação homoerótica uma união estável (AC 70001388982), que
peço vênia para transcrever e adotar como fundamento deste voto:
“Leciona Rainer Czajkowski que a relação sexual entre duas pessoas
capazes do mesmo sexo é um irrelevante jurídico, pois a relação homossexual
voluntária, em si, não interessa ao Direito, em linha de princípio, já que a opção e a
prática são aspectos do exercício do direito à intimidade, garantia constitucional de
todo o indivíduo (art. 5º, X).
Nessa medida, a escolha por essa conduta sexual não poderá
acarretar, para os envolvidos, qualquer tipo de discriminação, o que decorre do
princípio da isonomia.
Todavia, por mais estável que seja, a união sexual entre pessoas do
mesmo sexo, que morem juntas ou não, jamais se caracteriza como uma entidade
familiar, o que resulta, não de uma realização afetiva e psicológica dos parceiros,
mas da constatação de que duas pessoas do mesmo sexo não formam um núcleo
de procriação humana e de educação de futuro cidadãos.
A união entre um homem e uma mulher pode ser, pelo menos
potencialmente, uma família, porque o homem assume o papel de pai e a mulher de
mãe, em face dos filhos.
Parceiros do mesmo sexo, dois homens ou duas mulheres, jamais
oferecem esta conjugação de pai e mãe, em toda a complexidade psicológica que
tais papéis distintos envolvem.
Como argumento secundário, arremata o festejado mestre paranaense,
a união de duas pessoas do mesmo sexo não forma uma família porque,
primeiramente, é da essência do casamento, modo tradicional e jurídico de constituir
família, a dualidade de sexos.
Em segundo lugar porque mesmo as uniões livres estáveis,
consagradas
pela
Constituição
como
entidades
familiares,
são
formadas
necessariamente por um homem e uma mulher (art. 226, par. 3º).
Menos por força da Constituição expressamente dizê-lo, mais por que
a concepção antropológica de família supõe as figuras de pai e de mãe, o que as
uniões homossexuais não conseguem imitar.
Ainda, se numa família monoparental, o ascendente que está na
companhia do filho resolve ter uma relação com terceiro do mesmo sexo, ainda que
de forma continuada, isto não implica, juridicamente, trazer este terceiro para dentro
85
da noção de família, mesmo que haja moradia comum, pois família continua sendo,
aí, o ascendente e seu filho, excluído o parceiro do mesmo sexo daquele.
Não vinga, aqui, o argumento de que nessas famílias monoparentais
não exista a figura de pai e mãe, pois falta a figura de outro ascendente; mas a
substituição só é admissível juridicamente, para o parceiro integrar o ente familiar,
se houver respeito à dualidade de sexos que originariamente se apresentava, o que
só acontece com nova esposa ou companheira do pai, que substitui a mãe.
Portanto, é admissível o reconhecimento judicial de uma sociedade de
fato entre os parceiros homossexuais, se o patrimônio adquirido em nome de um
deles resultou da cooperação comprovada de ambos, sendo a questão de direito
obrigacional, nada tendo a ver com a família (Reflexos jurídicos das uniões
homossexuais, Jurisprudência Brasileira, Editora Juruá, Curitiba, 1995, p. 97/107).
Não é a posição que se adotará, como adiante se justifica.
É que o amor e o afeto independem de sexo, cor ou raça , sendo
preciso que se enfrente o problema, deixando de fazer vistas grossas a uma
realidade que bate à porta da hodiernidade, e mesmo que a situação não se
enquadre nos moldes da relação estável padronizada, não se abdica de atribuir à
união homossexual os mesmos efeitos dela.
É de Rodrigo da Cunha Pereira a afirmação de que nas culturas
ocidentais contemporâneas, a homossexualidade tem sido, até então, a marca de
um estigma, pois se relega à marginalidade aqueles que não têm suas preferências
sexuais de acordo com determinados padrões de moralidade.
Essa
estigmatização
não
é
só
em
relação
à
homo
ou
heterossexualidade, mas para qualquer comportamento sexual anormal, como se
isto pudesse ser controlado e colocado dentro de um padrão normal (Direito de
Família. Uma abordagem psicanalítica, Editora Del Rey, Belo Horizonte,1997, p. 43).
É que o sistema jurídico pode ser um sistema de exclusão, já que a
atribuição de uma posição jurídica depende do ingresso da pessoa no universo de
titularidades que o sistema define, operando-se a exclusão quanto a pessoas ou
situações às quais as portas de entrada da moldura das titularidades de direitos e
deveres é negada.
Tal negativa, emergente de força preconceituosa e estigmatizante dos
valores culturais dominantes em cada época, alicerçam-se em juízo de valor
depreciativo, historicamente atrasado e equivocado, mas esse medievo jurídico deve
86
sucumbir à visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os
diversos aspectos que emanam das parcerias de convívio e afeto (Luiz Edson
Fachin, Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo, em “A nova família:
problemas e perspectivas”, Editora Renovar, Rio, 1997, p.114, passim).
É
irrefutável que a homossexualidade sempre existiu, podendo ser
encontrada nos povos primitivos, selvagens e nas civilizações mais antigas, como a
romana, egípcia e assíria, tanto que chegou a relacionar-se com a religião e a
carreira militar, sendo a pederastia uma virtude castrense entre os dórios, citas e os
normandos.
Sua maior feição foi entre os gregos, que lhe atribuíam predicados
como a intelectualidade, a estética corporal e a ética comportamental, sendo
considerada mais nobre que a relação heterossexual, e prática recomendável por
sua utilidade.
Com o cristianismo, a homossexualidade passou a ser tida como uma
anomalia psicológica, um vício baixo, repugnante, já condenado em passagens
bíblicas (com o homem não te deitarás, como se fosse mulher: é abominação,
Levítico, 18:22) e na destruição de Sodoma e Gomorra.
Alguns teólogos modernos associam a concepção
bíblica de
homossexualidade aos conceitos judaicos que procuravam preservar o grupo étnico
e, nesta linha, toda a prática sexual entre os hebreus só se poderia admitir com a
finalidade de procriação, condenado-se qualquer ato sexual que desperdiçasse o
sêmen; já entre as mulheres, por não haver perda seminal, a homossexualidade era
reputada como mera lascívia.
Estava, todavia, freqüente na vida dos cananeus, dos gregos, dos
gentios, mas repelida, até hoje, entre os povos islâmicos, que tem a
homossexualidade como um delito contrário aos costumes religiosos.
A Idade Média registra o florescimento da homossexualidade em
mosteiros e acampamentos militares, sabendo-se que na Renascença,
artistas
como Miguel Ângelo e Francis Bacon cultivavam a homossexualidade.
Do ponto de vista psicológico e médico, a homossexualidade configura
a atração erótica por indivíduos do mesmo sexo, uma perversão sexual que atinge
os dois sexos, sendo considerado homossexual quem pratica atos libidinosos com
indivíduos do mesmo sexo ou exibe fantasias eróticas a respeito (Delton Croce e
Delton Croce Júnior), ou inversão sexual que se caracteriza pela atração por
87
pessoas do mesmo sexo (Guilherme Oswaldo Arbenz), ou, ainda, por perversão
sexual que leva os indivíduos a sentirem-se atraídos por outros do mesmo sexo
(Hélio Gomes), com repulsa absoluta ou relativa para os do sexo oposto (Fernanda
de Almeida Brito, União afetiva entre homossexuais e seus aspectos jurídicos,
Editora LTr, São Paulo, 2000, p.46/48).
Teorias de cunho psicanalítico, social e biológico explicam as causas
da homossexualidade sob diferentes pontos de vista, havendo se alterado o
conceito, eis que a homossexualidade deixou de ser tida como uma patologia, tanto
que, em 1985, o Código Internacional de Doenças (CID) foi revisado, mudando-se o
homossexualismo, então entre os distúrbios mentais, para o capítulo os sintomas
decorrentes de circunstâncias psicossociais, ou seja, um desajustamento social
decorrente da discriminação religiosa ou sexual.
Em 1995, na última revisão, o sufixo ismo, que significa doença, foi
substituído pelo sufixo idade, que designa um modo de ser, concluindo os cientistas
que a atividade não podia mais ser sustentada enquanto diagnóstico médico, por
que os transtornos derivam mais da discriminação e da repressão social, oriundos
de um preconceito do seu desvio sexual.
A proibição da homossexualidade é considerada como violação aos
direitos humanos pela Anistia Internacional, desde 1991 (Fernanda de Almeida Brito,
ob.cit. p. 43/46).
Ensina o lusitano Asdrúbal de Aguiar que, genericamente, os sexos de
nomes contrários se atraem e os de sexo do mesmo nome repelem-se, daí chamarse o homossexualismo de inversão sexual, cumprindo, desde logo, distinguir entre
os indivíduos capazes de relacionar-se com outros do sexo homônimo, os que assim
procedem por um pendor independente de sua vontade (verdadeiros homossexuais,
invertidos) e os que se comportam por imitação, por vício, por curiosidade ou até por
divertimento (pseudo-homossexuais ou perversos), criando-se duas grandes
categorias de homossexualidade, a inversão e a perversão (Américo Luís Martins da
Silva, A evolução do Direito e a realidade das uniões sexuais, Editora Lúmen Juris,
Rio, 1996, p.300).
Lembra Edward Wilson que a história genética da humanidade
propugna uma moral sexual mais liberal, na qual as práticas sexuais devem ser
consideradas primeiro como mecanismos de união e apenas secundariamente como
meios de procriação e que o comportamento homossexual tem sido censurado pelas
88
sentinelas da moral ocidental judaica-cristã, e tratado como doença na maioria dos
países (A natureza humana, Editora da USP, 1981, p.141).
Para Desmond Morris, todavia, a função primária do comportamento
sexual é a reprodução da espécie, a qual é manifestamente posta de lado no
acasalamento homossexual, ressaltando ele que nada existe biologicamente
anormal num ato de pseudocópula homossexual, o que muitas espécies fazem, em
variadíssimas circunstâncias, sendo a constituição de casais homossexuais apenas
despropositada sob o aspecto reprodutivo, visto que não produz descendência e que
desperdiça adultos potencialmente reprodutores (Américo Luís Martins da Silva, cit.
p. 305).
Não é negando direitos à união homossexual que far-se-á desaparecer
o homossexualismo, como acentua Marilene Silveira Guimarães, pois os
fundamentos dessas uniões se assemelham ao casamento e à união estável, sendo
o afeto o vínculo que une os parceiros, à semelhança dos demais casais, e que gera
efeitos jurídicos.
A homossexualidade é considerada um distúrbio de identidade e não
mais uma doença, não sendo hereditária nem uma opção consciente, eis que, como
ensina o psicólogo Roberto Graña, a homossexualidade é fruto de um prédeterminismo psíquico primitivo, também estudado a partir das contribuições da
etiologia sob a denominação de imprinting, originado nas relações parentais das
crianças desde a concepção até os três ou quatro anos de idade. Já aí, nessa tenra
idade, constitui-se o núcleo da identidade sexual na personalidade do indivíduo, que
será mais ou menos corroborado de acordo com o ambiente em que ele se
desenvolva, o que posteriormente determinará sua orientação sexual definitiva.
Portanto, a homossexualidade não é opção livre, é determinismo psicológico
inconsciente (Reflexões acerca de questões patrimoniais nas uniões formalizadas, in
Direito de família, aspectos constitucionais, processuais e civis, Ed. RT, v. 2. p.
201/202).
Esclarece Oswaldo Pataro que, na etiologia do homossexualismo em
seres humanos, apontam-se quatro possibilidades explicativas: anomalia genética,
perturbação endócrina, condição psicológica ou mistura de duas ou mais dessas
possibilidades.
Freud, um dos primeiros a idealizá-la, aceitava que a orientação era
uma anormalidade do desenvolvimento emocional, sendo fator essencial a fixação
89
do jovem à sua mãe e hostilidade ao pai, o que acabaria por levá-lo a uma tendência
de comportamento feminino; ou seja, as formas de homossexualismo masculino e
feminino representam uma espécie de imaturidade emocional decorrente da falta de
identificação com o papel adulto em seu próprio sexo.
Após várias teorias, lembra Pataro que a psicanálise propôs que o
homossexualismo é um desvio adquirido do impulso sexual, que expressa um
fracasso do aparecimento edipiano e uma regressão a impulsos e fantasmas prégenitais, derivado de diversos fatores, uns constitucionais, outros acidentais e ainda
outros pertencentes à estrutura familiar e às personalidades dos pais (Américo Luís
Martins da Silva, cit. p. 304/305).
Anote-se que a tese de que o homossexualismo provém do estado da
natureza com origens biológicas e não culturais ganha corpo atualmente, em vista
de descobertas por cientistas canadenses de que a região do cérebro ligada às
funções de aprendizagem é 13% maior nos homossexuais, restando sugerido que
há um componente biológico na orientação sexual; sublinhe-se, também, que o
corpo caloso do cérebro, ligado à habilidade verbal e motora, é também maior
naquele núcleo (Witelson,1994), que gêmeas idênticas têm três vezes mais
probabilidades de serem lésbicas que gêmeas fraternas (Pillard e Bailey, 1993), que
os homossexuais têm mais microestrias em suas impressões digitais (Kimura, 1994),
e que o hipotálamo, parte do cérebro que regula o apetite, a temperatura do corpo e
o comportamento sexual, é menor nos homossexuais (Levay, 1994).
Afirma Luis Muñoz Sabaté que “la homosexualidad es tal vez una de
las desviaciones sexuales que más dificilmente podría ser atacada o reprobada com
base solamente a argumentos derivados de una sexología comparada.Tanto si nos
remontamos a las costumbres de las sociedades paralelas a la nuestra, o incluso si
acudimos a las conductas de otras especies animales habremos de rendirnos a la
evidencia de que se trata de um fenómeno corriente sobre el cual se han añadido
diversas consideraciones de orden cultural y alguno que otro prejuicio.
Nuestra sociedad ocidental mantiene una actitud totalmente prohibitiva
de la homosexualidad. Esta proihbición se refleja no solamente em una serie de
pautas morales y religiosas, calificando de vergonzoza,ridícula, denigrante o
pecaminosa este tipo de conducta sino tambiém em determinadas sanciones
jurídicas, que en algunas épocas o países han llegado incluso a la castración y la
pena de muerte” (Sexualidad y derecho. Elementos de sexologia jurídica, Editorial
90
Hispano-Europea, Barcelona, 1976, p.199/201).
Helmut Thielick, ex-Reitor das Universidades de Tübingen e Hamburgo,
alude
que
dificilmente
homossexualidade
na
se
ética
pode
esperar
teológica do
uma
atitude
protestantismo
unânime
sobre
a
alemão,
pois
“el
desconcierto frente a um fenómeno considerado um tabú religioso se pone de
manifesto también em que casi siempre se encuadra la homosexualidad dentro de la
competencia del médico. Más que discutibles, desde un punto de vista objetivo, son
afirmaciones como las de que la “ homosexualidad congénita en sentido estricto es
extraordinariamente rara (en cualquier caso los homosexuales por herencia tienen
que extinguirse pronto... ya que no se reproducen)”. O la afirmación de que, como es
posible acabar con la homosexualidad adquirida mediante un tratamiento médico, lo
que hay que hacer en la mayoria de los casos es exigir del afectado que se someta
a cuidados médicos. Se afirma también que por parte médica se han hecho ya
experimentos com hormonas sexuales, registrándose buenos resultados curativos”.
Continuamente encontramos análogas muestras de esta desorientación o mediaorientación” (Sexualidad y crímen, 3ª edição, Instituto Editorial Reus, Madrid, 1990,
p. 49/50).
Com extrema precisão, Jurandir Freire Costa informa que toda a época
produz crenças sobre a natureza do bem e do mal, do sujeito e do mundo que, aos
olhos dos contemporâneos, sempre aparecem como óbvias e indubitáveis.
Os séculos XIV, XV, XVI e XVII criaram a feitiçaria. E, porque a crença
na bruxaria existia, existiam bruxas. As bruxas eram um efeito da crença em
bruxaria, e sem esta crença não haveria mulheres que sentissem, agissem,
reconhecessem-se e fossem reconhecidas como bruxas.
Tampouco haveria moralistas, religiosos, médicos, etc, que se
debatessem em infindáveis querelas sobre as causas e as manifestações do
diabolismo ou sobre a competência dos que estavam autorizados a distinguir as
falsas das verdadeiras feiticeiras, mas com o advento do imaginário racionalista e
cientificista dos séculos XVIII e XIX pereceram as crenças na feitiçaria e, com elas,
as feiticeiras.
Outros tempos, outras crenças, outros sujeitos.
Acrescenta o renomado psicanalista que, nas crenças a respeito da
sexualidade, como as crenças da feitiçaria, também são apresentadas como
fundadas em fatos evidentes por si mesmos.
91
Assim, desde o século XIX passou-se a crer na existência de uma
divisão natural dos sujeitos em heterossexuais, bissexuais e homossexuais, crença
que se impõe
como um dado imediato da consciência, como algo intuitivo e,
portanto, universalmente válido para todos os sujeitos em qualquer circunstância
espaço-temporal.
No entanto, com um pouco de imaginação, pode-se conjeturar um
futuro em que essa classificação fosse flexibilizada e enriquecida, com outros tipos
sexuais, como os multissexuais, assexuais e alien-sexuais, estes últimos homens e
mulheres que se sentiriam atraídos por seres extraterrestres; neste universo remoto,
ideologicamente copiado da cultura moral, as novas gerações aprenderiam como é
que sente, sabendo que sente, uma atração multissexual ou alien-sexual, daí
surgindo livros, vídeos, programas, com informações sobre o assunto, encontros e
conferências seriam realizados para apurar as causas, as origens genéticas,
psicológicas ou históricas daquelas características sexuais, aparecendo movimentos
em defesa dos direitos civis dos alien-sexuais, outros os acusando de ter uma
tendência
sexual
antinatural,
posto
que,
se
todos
fossem
atraídos
por
extraterrestres, a reprodução da espécie terráquea estaria ameaçada...
Fora
desse
enfoque,
toda
a
discussão
sobre
a
chamada
homossexualidade corre o risco de tornar-se um exercício fútil para mentes
acadêmicas, e, na linha de Wittgenstein, Foucault ou Richard Rorty, pensa-se que
todos são seres de linguagem, pois nada, nem a subjetividade ou sexualidade,
escapa ao modo como se aprende a perceber, sentir, descrever, definir ou avaliar
moralmente o que se é.
Nossa subjetividade e nossa sexualidade são realidades lingüísticas,
não existindo uma coisa sexual objetiva que preexista à forma como se conhece
lingüisticamente, a palavra não é aquilo que se diz, falsa ou verdadeiramente, o que
a suposta coisa sexual é em si, mas aquilo que a palavra diz que ela é.
Acredita-se que se é heterossexual, bissexual ou homossexual porque
o vocabulário sexual coage a identificar desta maneira; vocabulário, no entanto,
que não surge do nada, nem representa, para a razão, a verdade sobre a
homossexualidade, ignorada pelo obscurantismo dos que vieram antes.
Uma vez criados, os dispositivos lingüísticos de crenças ou os hábitos
morais e intelectuais, tornam-se quase absolutos na demarcação do limite de
92
possibilidades das identificações sexuais de cada indivíduo, sem chance de se
escolher as preferências sexuais, assim como não se opta pela língua materna.
As inclinações sexuais, como disse Freud, são contingentes, arbitrárias
e casuais, o que não significa que sejam gratuitas, pois se está preso ao repertório
sexual da cultura, até que outras práticas lingüísticas produzam novos modos de
identificação moral dos indivíduos.
Entretanto, ninguém é senhor da morada sexual, pode tornar-se livre
para reescrever moralmente a versão imposta à
forma de amar e desejar
sexualmente, eis que ninguém pode escolher que tipo de desejo ou atração sexual
será a sua, mas qualquer um pode aprender a definir o que sente conforme seus
padrões éticos.
Assim, discutir-se homossexualidade, partindo da premissa que todos
são heterossexuais, bissexuais ou homossexuais, significa acumpliciar-se com um
jogo de linguagem que se mostrou violento, discriminador, preconceituoso e
intolerante, e que já levou a acreditar que certas pessoas humanas são moralmente
inferiores, só pelo fato de sentirem atração por outras do mesmo sexo biológico.
É possível
abandonar o vocabulário onde consta a
idéia de
homossexualidade, assim como já se recusa a discutir sobre bruxas e bruxarias com
o glossário da Inquisição.
E nessa cidade ideal da ética humanitária e democrática, as pessoas
serão livres para amar sexualmente de tantas formas quantas possam inventar, e
onde o único limite para a imaginação amorosa será o respeito pela integridade
física e moral do semelhante.
Heterossexuais, bissexuais e homossexuais serão, para Freire Costa,
figuras curiosas, nos museus de mentalidades antigas e na vida terão desaparecido,
como rostos de areia no limite do mar (A ética e o espelho da cultura, 3ª edição,
Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2000, p. 118/122).
Propõe o autor, então, o termo homoerotismo para aludir ao que hoje
se chama homossexualidade, procurando evitar que o homem moderno, preso aos
hábitos, desse tal sentido a quaisquer práticas eróticas entre indivíduos do mesmo
sexo biológico, já que trocando o vocabulário também se mudam as perguntas,
encontrando-se respostas que não podem ser achadas quando se utiliza a
terminologia hetero ou homossexual.
Como diz Rorty, trocando-se o vocabulário trocam-se os problemas e,
93
com isso, algumas realidades que pareciam absolutamente importantes passam a
não ter qualquer importância (Jurandir Freire Costa, ob.cit. p. 113/116).
Para Caio Fernando Abreu, a homossexualidade não existe, nunca
existiu, e sim a sexualidade, voltada para um objeto qualquer de desejo, que pode
ou não ter genitália igual, e isso é detalhe, mas não determina maior ou menor grau
de moral ou integridade (Pequenas epifanias, Editora Sulina, Porto Alegre, 1996, p.
49).
A questão dos direitos dos casais do mesmo sexo tem sido debatida no
mundo, e o argumento básico, em favor do tratamento igualitário, é no sentido de
que as uniões homoeróticas devem ter os mesmos direitos que outros casais, ao
demonstrar um compromisso público um para o outro, em desfrutar uma vida de
família, a qual pode ou não incluir crianças, o que exige isonomia legal.
Como noticia Andrew Bainham, a Convenção Européia é, até o
presente, um desapontamento para os casais do mesmo sexo e para os transexuais,
tendo o Tribunal Europeu adotado uma visão restritiva em relação ao direito ao
casamento, o qual limita aos heterossexuais, não aceitando que os homossexuais
possam ter uma vida familiar.
Todavia, alguns países, incluindo a Grã-Bretanha, foram mais longe do
que o preconizado pela Convenção e começaram a conceder direitos a casais do
mesmo sexo.
Assim, na Inglaterra, em 1999, ocorreu o caso de Martin FitzPatrick e
John Thompson, que viveram juntos até a morte prematura do último, então inquilino
de um imóvel, para indagar-se se o primeiro podia continuar o contrato de locação
ou tinha que devolver o bem.
Ou seja, se FitzPatrick podia ser considerado como esposo de Mr.
Thompson ou como um membro de sua família.
A Câmara de Lordes disse não para a primeira questão, mas afirmou a
segunda, que o parceiro remanescente poderia ser tido como integrante da família,
por que a relação homossexual comprometida tinha as características de amor,
afeto, apoio e companheirismo, normalmente presentes nas relações familiares.
No Canadá, o Supremo Tribunal foi mais longe e defendeu que a
expressão cônjuge, quando utilizada em determinadas partes da legislação, não
deveria restringir-se aos formalmente casados, mas estendida a casais do mesmo
sexo.
94
Desenvolvimentos mais radicais ocorreram em alguns países da
Europa Setentrional.
As nações nórdicas (Dinamarca, Suécia, Noruega e Islândia) têm a
concepção de parceria registrada,
comprometidos
registrem
seus
permitindo
relacionamentos,
que casais homossexuais
sendo
tratados
como
se
consorciados fossem, não sê-lhes aceitando adotar crianças, o que foi já superado
pelo parlamento holandês, com a possibilidade de que tais pessoas casem e
adotem, cânone que passou a viger em 1º de abril deste ano.
Assevera Bainham que os movimentos europeus estão lastreados na
noção de igualdade e neutralidade como entre diferentes tipos de relações
familiares, podendo tais reformas progressistas ser vistas como reflexo de uma visão
do compromisso com os direitos humanos.
No Canadá, a discriminação, com base na orientação sexual, viola a
garantia constitucional da igualdade.
Mas há também uma dimensão adicional para os debates que dizem
com o sexo e com os gêneros masculino e feminino, indagando-se o cabimento, no
mundo moderno, de agarrar-se à visão tradicional de que o casamento deve
envolver um homem e uma mulher ou que a parentalidade envolva necessariamente
duas pessoas, um pai e uma mãe .
Argumenta-se que o compromisso entre duas pessoas ou em relação à
criança, não depende do sexo ou gênero destas pessoas, o que aceito, implicaria
emergir o casamento ou a parentalidade, no futuro, como conceitos neutros quanto
ao gênero, ao invés de específicos (Direitos humanos, crianças e divórcio da
Inglaterra, UFP/IBDFAM, Editora Juruá, Curitiba, 2001, p. 12/15).
Acrescento que, na Hungria, a Corte Constitucional considerou que
existindo o instituto do common-law marriage, semelhante à união estável brasileira,
que reconhece aos casais heterossexuais os direitos econômicos do casamento, tal
regra estende-se aos homossexuais, revisando, para tanto, a Lei de Coabitação de
1996, excetuando-se, contudo, o direito à adoção.
No Canadá, os benefícios de saúde foram estendidos aos parceiros do
mesmo sexo, também admitindo que pudessem ser tratados como membros de uma
união estável; o governo oferece benefício médico, dentário e oftalmológico aos
parceiros dos empregados homossexuais.
95
Ali, uma província reconheceu, em 1997, a possibilidade de tutela e
adoção por homossexuais.
Nos Estados Unidos, embora o Congresso tenha aprovado a Lei de
Defesa do Casamento (Defense of marriage Act, 1997), pela qual os Estados não
precisam reconhecer o registro de casamentos homossexuais de outros Estados, lei
cuja constitucionalidade ainda se debate, o Estado de Havaí aceitou benefícios
recíprocos aos casais homossexuais do quadro de seus servidores públicos,
incluindo direito à pensão, saúde e indenização em caso de morte (1997), no que foi
secundado pelo Estado de Oregon (1998).
Embora o campo ainda não se tenha dilatado, os Estados Unidos
concedem asilo político a homossexuais, desde que comprovada a perseguição,
além de atribuir indenização por abuso sexual entre pessoas de mesmo sexo.
Algumas empresas, como a Disney, Microsoft, IBM e Kodak, por exemplo,
reconhecem a parceria doméstica entre pessoas do mesmo sexo, a fim de perceber
benefícios médicos e pensão.
A França foi a primeira nação católica a reconhecer legalmente a união
homossexual, ao aprovar um Pacto Civil de Solidariedade entre pessoas de mesmo
sexo, garantindo direito à imigração, à sucessão e declaração de renda conjunta,
excetuada a adoção (1998).
Em Israel, a lei de Igual Oportunidade de Emprego (1992), proíbe a
discriminação contra empregados baseada em sua orientação sexual, o que também
acontece no Exército, tendo já acontecido decisão judicial em favor de um
homossexual quanto aos benefícios previdenciários relativos ao seu parceiro
enfermo.
Em Mendoza, província argentina, foi atribuído ao parceiro os
benefícios da saúde; na Espanha, foi rejeitada a lei de parceria registrada, mas na
Catalúnia foi aprovada a parceria doméstica para homossexuais e heterossexuais,
com garantia de direitos trabalhistas e pensão; na Alemanha, Portugal e Finlândia
estuda-se
legislação
sobre
casamento
entre
pessoas
de
mesmo
sexo,
reconhecimento de uniões homoeróticas e parceria registrada (Napoleão Dagnese,
Cidadania no armário. Uma abordagem sócio-jurídica acerca da homossexualidade,
LTr Editora, São Paulo, 2000, p.71775).
Em magistério paradigmático, Maria Berenice Dias lembra que os
temas da ordem e da sexualidade são envoltos em uma aura de silêncio,
96
despertando sempre enorme curiosidade e profundas inquietações, tendo lenta
maturação por gravitarem na esfera comportamental, existindo tendência a conduzir
e controlar seu exercício, acabando por emitir-se um juízo moral voltado
exclusivamente à conduta sexual.
Por ser fato diferente dos estereótipos, o que não se encaixa nos
padrões, é tido como imoral ou amoral, sem buscar-se a identificação de suas
origens orgânicas, sociais ou comportamentais.
O conceito de normal X anormal decorre, para a ilustrada doutrinadora
e magistrada, de uma sacralização do conceito de família, que é historicamente
associada a casamento e filhos, supondo sempre uma relação heterossexual.
Entretanto, as uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e
não podem ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciário
solver os conflitos trazidos, sendo incabível que as convicções subjetivas impeçam
seu enfrentamento e vedem a atribuição de efeitos, relegando à margem
determinadas relações sociais, pois a mais cruel conseqüência do agir omissivo é a
perpetração de grandes injustiças.
Subtrair direitos de alguns e gerar o enriquecimento injustificado de
outros afronta o mais sagrado princípio constitucional, o da dignidade, e se a palavra
de ordem é a cidadania e a inclusão dos excluídos, uma sociedade que se deseja
aberta, justa, pluralista, solidária, fraterna e democrática não pode conviver com tal
discriminação (União homossexual, o preconceito, a justiça, Editora Livraria do
Advogado, Porto Alegre, 2000, p.17/21).
A partida para a confirmação dos direitos dos casais homoeróticos
está, precipuamente, no texto constitucional brasileiro, que aponta como valor
fundante do Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa
humana (CF, art.1º, III), a liberdade e a igualdade sem distinção de qualquer
natureza (CF, art. 5º), a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (CF, art.
5º,X), que, como assevera Luiz Edson Fachin, formam a base jurídica para a
construção do direito à orientação sexual como direito personalíssimo, atributo
inerente e inegável da pessoa e que, assim, como direito fundamental, é um
prolongamento de direitos da personalidade imprescindíveis para a construção de
uma sociedade que se quer livre, justa e solidária (Aspectos jurídicos da união de
pessoas do mesmo sexo, em A nova família: problemas e perspectivas, Editora
Renovar, Rio, 1997, p. 114).
97
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é prólogo de várias
cartas constitucionais modernas (Lei Fundamental da República Federal Alemã, art.
1º; Constituição de Portugal, art. 1º; Constituição da Espanha, art. 1º; Constituição
Russa, art. 21; Constituição do Brasil, art. 1º,III, etc.).
Alicerça-se na afirmação kantiana de que o homem existe como um fim
em si mesmo e não como mero meio (imperativo categórico), diversamente dos
seres desprovidos de razão que têm valor relativo e condicionado e se chamam
coisas; os seres humanos são pessoas, pois sua natureza já os designa com um
fim, com valor absoluto.
Reputa-se que o princípio da dignidade não é um conceito
constitucional, mas um dado apriorístico, preexistente à toda experiência, verdadeiro
fundamento da República brasileira, atraindo o conteúdo de todos os direitos
fundamentais.
Assim, não é só um princípio da ordem jurídica, mas também da ordem
econômica, política, cultural, com densificação constitucional.
É um valor supremo, e acompanha o homem até sua morte, por ser da
essência da natureza humana; a dignidade não admite discriminação alguma e não
estará assegurada se o indivíduo é humilhado, perseguido ou depreciado, sendo
norma que subjaz à concepção de pessoa como um ser ético-espiritual que aspira
determinar-se e desenvolver-se em liberdade.
Não basta a liberdade formalmente reconhecida, pois a dignidade da
pessoa humana, como fundamento do Estado democrático de Direito, reclama
condições mínimas de existência digna conforme os ditames da justiça social como
fim da ordem econômica (José Afonso Silva, A dignidade da pessoa humana como
valor supremo da democracia, Revista de Direito Administrativo, nº 212 / p. 91/93).
Assim, a idéia de dignidade humana não é algo puramente apriorístico,
mas que deve concretizar-se no plano histórico-cultural, e para que não se
desvaneça como mero apelo ético, impõe-se que seu conteúdo seja determinado no
contexto da situação concreta da conduta estatal e do comportamento de cada
pessoa.
Ingo Sarlet, em obra proeminente, menciona que nesse sentido
assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é
simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e da comunidade em geral, de
98
todos e de cada um, condição dúplice que também aponta para uma simultânea
dimensão defensiva e protecional da dignidade.
Como limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade é algo que
pertence necessariamente a cada um e que não pode ser perdida e alienada, pois
se não existisse, não haveria fronteira a ser respeitada; e como tarefa (prestação)
imposta ao Estado, a dignidade da pessoa reclama que este guie as suas ações
tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando à promoção
da dignidade, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e
fruição da dignidade, que é dependente da ordem comunitária, já que é de perquirir
até que ponto é possível o indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas
necessidades existenciais básicas ou se necessita para tanto do concurso do Estado
ou da comunidade.
Sinaliza o douto constitucionalista gaúcho que uma dimensão dúplice
da dignidade manifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia da
pessoa humana, vinculada à idéia de autodeterminação no que diz com as decisões
essenciais a respeito da própria existência, bem como da necessidade de sua
proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando
fragilizada ou até mesmo quando ausente a capacidade de autodeterminação (A
dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, Livraria do Advogado Editora,
Porto Alegre, 2001, p. 46/49).
A contribuição da Igreja na afirmação da dignidade da pessoa humana
como princípio elementar sobre os fundamentos do ordenamento constitucional
brasileiro, antes da Assembléia Constituinte, efetivou-se em declaração denominada
Por uma Nova Ordem Constitucional, onde os cristãos foram instados a acompanhar
e posicionar-se, quando se tentasse introduzir na nova carta elementos
incompatíveis com a dignidade e a liberdade da pessoa.
Ali constou que “todo o ser humano, qualquer que seja sua idade, sexo,
raça, cor, língua, condição de saúde, confissão religiosa, posição social, econômica,
política, cultural, é portador de uma dignidade inviolável e sujeito de direitos e
deveres que o dignificam, em sua relação com Deus, como filho, com os outros
como irmão e com a natureza como Senhor.
Por isso, todos os seres humanos são fundamentalmente iguais em
direitos e dignidade, livres para pensar e decidir de acordo com sua consciência;
para expressar-se, organizar-se em associações e buscar sua plena realização, mas
99
em profundo respeito à liberdade e à dignidade dos outros seres humanos, tendo
sempre em vista o bem comum. Mas não é suficiente o reconhecimento formal
dessa dignidade e igualdade fundamentais. É preciso que este reconhecimento seja
traduzido na promoção de condições concretas para realizar e reivindicar os direitos
fundamentais de todos os homens e de todas as mulheres, tais como: direito à vida
e a um padrão digno de existência, direito à saúde e ao lazer; direito à educação,
inclusive religiosa, e a escolher o tipo de educação desejada para os filhos; direito à
liberdade religiosa; direito ao trabalho e à remuneração suficiente para o sustento
pessoal e da própria família; direito de todos à propriedade, submetida à sua função
social, direito de ir e vir; direito de entrar no país e dele sair; direito à segurança, à
preservação da própria imagem e participação na vida política.” (Cleber Francisco
Alves, O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque da
Doutrina Social da Igreja, Editora Renovar, Rio, 2001, p. 157/159).
Dessa forma, a consagração do princípio da dignidade humana implica
em considerar-se o homem como centro do universo jurídico, reconhecimento que
abrange todos os seres e que não se dirige a determinados indivíduos, mas a cada
um individualmente considerado, de sorte que os efeitos irradiados pela ordem
jurídica não hão de manifestar-se, em princípio, de modo diverso ante duas pessoas.
Daí se segue de que a igualdade entre os homens representa
obrigação imposta aos poderes públicos, tanto na elaboração da regra de Direito
quanto em relação à sua aplicação, já que a consideração da pessoa humana é um
conceito dotado de universalidade, que não admite distinções (Edilson Pereira Nobre
Júnior, O direito brasileiro e o princípio da dignidade humana, Revista dos tribunais,
nº 777 / p. 475).
Em magistério original, Roger Raupp Rios estabelece as
estremas
entre o princípio da dignidade humana e a orientação sexual, assim compreendida
esta como a identidade atribuída a alguém em função da direção de seu desejo e/ou
condutas sexuais, seja para outra pessoa do mesmo sexo (homossexualidade), do
sexo oposto (heterossexualidade) ou de ambos os sexos (bissexualidade).
Ou, especificamente as discriminações em face da homossexualidade,
uma vez que a diferenciação é gerada em vista desta direção de desejo ou conduta
sexual.
100
A
sexualidade
consubstancia
uma
dimensão
fundamental
da
constituição da subjetividade, alicerce indispensável para a possibilidade de livre
desenvolvimento da personalidade.
O respeito aos traços constitutivos fundamentais da individualidade de
cada um, sem depender de orientação sexual, é ordenado juridicamente em virtude
do artigo 1º, inciso III, da Constituição de 1988, sendo o reconhecimento da
dignidade da pessoa humana o elemento central do Estado de Direito, que promete
aos indivíduos muito mais que abstenções de invasões ilegítimas de suas esferas
pessoais: a promoção positiva de suas liberdades.
A afirmação da dignidade humana, no direito brasileiro, repele
quaisquer providências, diretas ou indiretas, que esvaziem a força normativa dessa
noção fundamental, tanto pelo seu enfraquecimento na motivação das atividades
estatais, quanto por sua pura e simples desconsideração.
De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém
em função de sua orientação sexual é dispensar tratamento indigno ao ser humano,
não se podendo ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva
de sua identidade pessoal, como se tal aspecto não se relacionasse com a
dignidade humana.
Diante destes elementos, conclui-se que o respeito à orientação sexual
é aspecto fundamental para afirmação da dignidade humana, não sendo aceitável,
juridicamente, que preconceitos legitimem restrições de direitos, fortalecendo
estigmas sociais e espezinhando um dos fundamentos constitucionais do Estado
Democrático de Direito (Dignidade da pessoa humana, homossexualidade e família:
reflexões sobre as uniões de pessoas do mesmo sexo, trabalho inédito).
Ainda a atentar-se para o princípio da igualdade.
Celso Antonio Bandeira de Mello dita que o alcance do princípio da
igualdade não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas
que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia.
Ou seja, a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas o
instrumento regulador da vida social que necessita tratar eqüitativamente a todos,
sendo esse o conteúdo político ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e
juridicizado pelos textos constitucionais em geral.
Em suma, dúvida não padece que, ao se cumprir uma lei, todos os
abrangidos por ela hão de receber tratamento parificado, sendo certo, ainda, que ao
101
próprio ditame legal é interdito deferir disciplinas diversas para situações
equivalentes (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3ª edição, Malheiros
Editores, São Paulo, 1999, p. 9/10).
A concretização da igualdade em matéria de sexo, diz Roger Raupp
Rios, exponencializada pela proibição de discriminação, se examinada com cuidado,
alcança o âmbito da orientação sexual homossexual.
De fato, quando alguém atenta para a direção do envolvimento, por
mera atração, ou pela conduta sexual de outrem, valoriza a direção do desejo, isto é,
o sexo da pessoa com que o sujeito deseja se relacionar ou efetivamente se
relaciona, mas esta definição (da direção desejada, de qual seja a orientação sexual
do sujeito, isto é pessoa do mesmo sexo ou de sexo oposto) resulta tão só da
combinação dos sexos de duas pessoas.
Ora, se um for tratado de maneira diferente de uma terceira pessoa,
que tenha sua sexualidade direcionada para o sexo oposto, em razão do sexo da
pessoa escolhida, conclui-se que a escolha que o primeiro fez suporta um
tratamento discriminatório unicamente em função de seu sexo.
Fica claro, assim, que a discriminação fundada na orientação sexual do
sujeito esconde, na verdade, uma discriminação em virtude de seu próprio sexo.
O sexo da pessoa escolhida, se homem ou mulher, em relação ao sexo
do sujeito, vai continuar qualificando a orientação sexual como causa de tratamento
diferenciado ou não, em relação àquele.
Não se diga, outrossim, que inexiste discriminação sexual porque
prevalece tratamento igualitário para homens e mulheres diante de idêntica
orientação sexual, pois o argumento peca duplamente, ao buscar justificar uma
hipótese de discriminação (homossexualismo masculino) invocando outra hipótese
de discriminação (homossexualismo feminino).
O raciocínio desenvolvido acerca da relação entre o princípio da
igualdade e a orientação sexual, aduz ainda o culto magistrado, é uma espécie de
discriminação por motivo de sexo, isso significando que, em linha de princípio, são
vedados no ordenamento jurídico pátrio os tratamentos discriminatórios fundados na
orientação sexual.
Tem-se de investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério
discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é,
fundamento lógico para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico
102
tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente,
impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é
afinado, em concreto, com os valores prestigiados no sistema normativo
constitucional, se guarda harmonia com eles (Direitos fundamentais e orientação
sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade, Revista do Centro de Estudos
Judiciários Brasileiros, Conselho da Justiça Federal, 1998, v. 6, p. 29/30).
A idéia da igualdade interessa particularmente ao Direito, pois ela se
liga à idéia de Justiça, que é a regra das regras de uma sociedade e que dá o
sentido ético de respeito a todas as outras regras.
Na esteira da igualdade dos gêneros e com a evolução dos costumes,
principalmente a partir da década de 60, desmontam-se privilégios e a suposta
superioridade do masculino sobre o feminino, e a sexualidade legítima autorizada
pelo Estado começa a deixar de existir unicamente por meio do casamento, eis que,
com a evolução do conhecimento científico, torna-se possível a reprodução mesmo
sem ato sexual (Rodrigo da Cunha Pereira, A sexualidade vista pelos tribunais,
Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2000, p. 61/62).
Muito raras têm sido as decisões judiciais que acabam por extrair
conseqüências jurídicas das relações entre as pessoas do mesmo sexo, mostrandose ainda um tema permeado de preconceitos, mas a convivência homossexual em
nada se diferencia da união estável, não podendo ser vista como tal apenas pela
restrição contida na Carta Maior.
Entretanto, é imperioso que, através de uma interpretação analógica,
passe-se a aplicar o mesmo regramento legal, pois inquestionável que se trata de
um relacionamento que tem base no amor (Maria Berenice Dias, Efeitos patrimoniais
das relações de afeto, in Repensando o direito de família, IBDFam, Belo Horizonte,
1999, p. 57).
Para Guilherme Calmon Nogueira da Gama, sob o prisma jurídico, não
há efeitos distintos das uniões concubinárias e das uniões homossexuais, já que
ambas, fora do Direito de Família, somente podem ser cuidadas como sociedade de
fato, desde que evidentemente sejam preenchidos os requisitos para a configuração
de tais entidades, possibilitando o reconhecimento do direito de partícipe da relação
- que for prejudicado em decorrência da aquisição patrimonial em nome tão somente
do outro - ao partilhamento dos bens adquiridos durante a constância da sociedade
de fato, na medida da sua efetiva contribuição para a formação ou incremento
103
patrimonial (O companheirismo, uma espécie de família, Editora RT, São Paulo,
1998, p. 491).
Observa Euclides de Oliveira que, muito antes das leis de união
estável, o Supremo Tribunal Federal vinha mandando partilhar bens decorrentes de
sociedade de fato entre concubinos, desde que comprovado o esforço comum; o
mesmo raciocínio serve às uniões entre pessoas do mesmo sexo, uma vez que, por
mútua colaboração, formem uma sociedade de fato, que, desfeita, exige repartição
igualitária dos bens, sob pena de estar um dos parceiros se enriquecendo
injustamente à custa do outro (União homossexual gera direitos patrimoniais
limitados, in Nova realidade do direito de família, COAD, 1998, p. 39).
Buscando uma hermenêutica construtiva, baseada numa interpretação
atualizada e dialética, Luiz Edson Fachin afirma que a partilha da metade dos bens
havidos durante a comunhão de vida mediante colaboração mútua, é um exemplo
de via que pode ser trilhada, expondo perante o próprio sistema jurídico suas
lacunas, daí por que equívoca a base da formulação doutrinária e jurisprudencial
acerca da diversidade dos sexos como pressuposto do casamento.
O grande mestre paranaense lembra que a técnica engessada das
fórmulas acabadas não transforma o tema em algo perdido no ar quando ensinar é
percorrer a geografia do construir, exigindo o estudo, em seu mapa cartográfico do
saber, o construído e não a indução ao dado.
Não se deve, então, conviver com uma atitude de indiferença ou de
renúncia a uma posição avançada na inovação e mesmo na revisão e superação
dos conceitos, atribuindo, abertamente, para fomentar questionamentos e fazer
brotar inquietude que estimule o estudo e a pesquisa comprometidos com seu tempo
e seus dilemas (Elementos críticos de direito de família, Editora Renovar, Rio, 1999,
p. 2, passim ).
Como conclui Maria Berenice Dias, comprovada a existência de um
relacionamento em que haja vida em comum, coabitação e laços afetivos, está-se à
frente de uma entidade familiar, forma de convívio que goza da proteção
constitucional, nada justificando que se desqualifique o reconhecimento dela, pois o
só fato dos conviventes serem do mesmo sexo não permite que lhes sejam negados
os direitos assegurados aos heterossexuais (ob. cit. p. 88).
Além disso, como apregoam José Lamartine Corrêa de Oliveira e
Francisco José Ferreira Muniz, as uniões estáveis de natureza homossexual podem
104
ter relevância jurídica em outros planos e sob outras formas, não como modalidade
de casamento (Direito de Família. Direito Matrimonial, Sérgio Antônio Fabris Editor,
Porto Alegre, 1990, p. 215).
Embora ainda tímido em qualificar a relação como entidade familiar,
não me divorcio da possibilidade do uso analógico dos institutos jurídicos existentes
e dos princípios do Direito, para admitir efeitos patrimoniais na união homossexual,
tal como se faz no casamento ou na união estável, como uma comunidade familiar.
A família não suporta mais a estreita concepção de núcleo formado por
pais e filhos, já que os laços biológicos, a heterossexualidade, a existência de, pelo
menos, duas gerações, cederam lugar aos compromissos dos vínculos afetivos,
sendo um espaço privilegiado para que os opostos possam vir a se tornar
complementares.
Atualmente a família, além da sua função de reprodução biológica,
produz também sua própria reprodução social, através da função ideológica que
exerce ao vincular a introjeção, por seus membros, de valores, papéis, padrões de
comportamento que serão repetidos pelas sucessivas gerações, deixando a família
nuclear de se constituir em modelo prevalente.
A progressão do número de divórcios, filhos criados pelo pai ou pela
mãe, filhos criados em famílias reconstruídas por novos casamentos, aconchegam
os novos arranjos cada vez mais freqüentes na sociedade, não comportando mais a
simples reprodução dos antigos modelos para o exercício dos papéis de mães e
pais, experiência que vai além do fato biológico natural, mas adquire o estatuto de
uma
experiência
psicológica,
social,
que
pode
ou
não
acontecer,
independentemente a fecundação, gestação e do dar à luz e amamentar.
Ressignificar a família na função balizadora do périplo existencial é um
imperativo de nossos dias, revitalizá-la com o aporte de novas e mais satisfatórias
modalidades de relacionamento entre os seus membros é indispensável para se
aperfeiçoar a convivência humana, repensá-la é tarefa a ser por todos compartida
por sua transcendência com a condição humana (Cristina de Oliveira Zamberlan, Os
novos paradigmas da família contemporânea. Uma perspectiva interdisciplinar,
Editora Renovar, Rio, 2001, p.13/14 e 149/151).
Segundo Rosana Amara Girardi Fachin, a família contemporânea não
corresponde àquela formatada pelo Código Civil, constituída por pai e mãe, unidos
por um casamento regulado pelo Estado, a quem se conferia filhos legítimos, eis que
105
o grande número de famílias não matrimonializadas, oriundas de uniões estáveis, ao
lado de famílias monoparentais, denota a abertura de possibilidade às pessoas, para
além de um único modelo.
Hoje, a nova família busca construir uma história em comum, não mais
a união formal, eventualmente sequer se cogita do casal, o que existe é uma
comunhão afetiva, cuja ausência implica a falência do projeto de vida, já não se
identifica o pai como marido, eis que papéis e funções são diversas, e a procura de
um outro desenho jurídico familiar passa pela superação da herança colonial e do
tradicional modo de ver os sujeitos das relações familiares como entes abstratos
(Em busca da família do novo milênio. Uma reflexão crítica sobre as origens
históricas e as perspectivas do Direito de Família brasileiro contemporâneo, Editora
Renovar, Rio, 2001, p. 7, passim).
É ainda Guilherme Calmon Nogueira da Gama que flagra o
descompasso entre o avanço constitucional do direito de família e a existência de
algumas famílias sociológicas, que ainda se mantém à margem da família jurídica,
diante dos valores e princípios constitucionais que norteiam o ordenamento
brasileiro, tais como as uniões sexuais entre parentes, pai e filha, e as famílias de
fato resultantes da união de pessoas do mesmo sexo.
Embora aceitando que alguns valores e princípios tradicionais ainda
prevalecem em matéria de conjugalidade, o que obsta relações entre pessoas de
mesmo sexo, pois a sexualidade se vincula ainda à procriação, impedindo outros
modelos, reconhece o mestre carioca que a realidade fática de ditas uniões, tal
como ocorreu com a união livre, deve percorrer caminho também difícil e tortuoso,
mas vai atingir o status de família em tempos não muito distantes (Família nãofundada no casamento, RT nº 771, p. 62 e 68).
Como foi observado no início, afastada a possibilidade de emoldurar a
união homoerótica como forma de casamento, o que não acha respaldo na doutrina
e nos repertórios dos tribunais, toca examiná-la como uma forma de comunidade
familiar, aparentada com a união estável, esta também vedada pela prescrição
constitucional vigorante (CF, art. 226, par. 3º).
Não desconheço a tese que sustenta a inconstitucionalidade da regra
constitucional invocada, por violar os princípios da dignidade humana e da igualdade
ao discriminar o conceito de homossexualidade, mas que cede ante a afirmação do
Supremo Tribunal Federal de que a existência de hierarquia entre as normas
106
constitucionais originárias, dando azo de uma em relação a outras, é incompossível
com o sistema de Constituição rígida (ADIn nº 815/DF, rel. Min. Moreira Alves, DJU
10.05.96), além de afrontar o princípio da unidade constitucional.
Aparenta-me adequado, pois, filiar-me ao uso razoável da analogia e
uma interpretação extensiva dos direitos fundamentais, principalmente o direito de
igualdade.
Como explica Roger Raupp Rios, a equiparação das uniões
homossexuais à união estável, pela via analógica, implica a atribuição de um regime
normativo destinado originariamente à situação diversa, ou seja, comunidade
formada por um homem e uma mulher, mas onde a semelhança autorizadora seria a
ausência de laços formais e a presença substancial de uma comunidade de vida
afetiva e sexual duradoura e permanente entre os companheiros do mesmo sexo,
assim como ocorre entre sexos opostos.
O argumento avança no sentido da concretização da Constituição, pois
conferindo uma unidade diante da realidade histórica, fazendo concorrer os
princípios constitucionais, dentre os quais se destaca o isonômico e a decorrente
proibição por motivo de sexo e de orientação sexual.
Todavia, embora a analogia tenha o mérito de reconhecer o caráter
familiar das uniões homossexuais, segundo Rios, o reconhecimento destas uniões
ao direito de família prescinde da união estável como paradigma, pois se uma
emenda constitucional retirasse da carta a previsão da união estável, sem mais
nada, o procedimento não impediria que a legislação e a jurisprudência
continuassem a desenvolver e atualizá-lo, reconhecendo a pertinência tanto da
união estável quanto das uniões homossexuais; e, portanto, a qualificação jurídica
familiar às uniões homossexuais não depende da existência da união estável,
cuidando-se, pois, mais que uma analogia, de comunhão de características típicas
do conceito de família às duas situações (Dignidade da pessoa humana, cit. p.
31/34).
Aliás, a jurisprudência local já havia dito que “é possível o
processamento e o reconhecimento de união estável entre os homossexuais, ante
os princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer
discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida discriminação quanto à
união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se
estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo
107
preconceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade científica da
modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas
e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as
individualidades e as coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da
felicidade, direito fundamental de todos.” (TJRS, Oitava Câmara Cível, APC 598 362
655, rel. Des. José Siqueira Trindade, j. 01.03.2000).
Dir-se-á, talvez, que a utilização da analogia apenas socorre para
preencher alguma lacuna (LICC, art. 4º e CPC, art. 126), mas na verdade o
ordenamento jurídico, visto como um todo, encarrega determinados órgãos, no caso
os juízes, para atribuírem soluções aos casos concretos, mesmo naquelas situações
em que não existem regras legais específicas, eis que como assevera Aftalión,
Garcia y Vilanova, contra la opinión de algunos autores que ham sostenido que em
el ordenamiento jurídico existen lagunas - o sea, casos o situaciones no previstas que serían necesario llenar o colmar a medida que las circunstancias mostrasen la
conveniencia de hacerlo, debemos hacer notar que el ordenamiento juridico es
pleno: todos os casos em que puedan presentarse se encuentran previstos em él
(...) No hay lagunas, porque hay jueces (voto do Des. Breno Moreira Mussi, no AGI
599 075 496, julgado pela Oitava Câmara Cível do TJRS, em 17.06.99, quando
definiu que as demandas que envolvem relações de afeto são da competência das
Varas de Família).
Se o juiz não pode, sob a alegação de que a aplicação do texto da lei à
hipótese não se harmoniza com seu sentimento de justiça ou eqüidade, substituir-se
ao legislador para formular ele próprio a regra de direito aplicável (STF, RBDP
50/159), não é menos verdade que a hermenêutica não deve ser formal, mas antes
de tudo real, humana e socialmente útil; e se ele
não pode tomar liberdades
inadmissíveis com a lei, decidindo contra ela, alude o Ministro Sálvio de Figueiredo,
pode e deve, por outro lado, optar interpretação que mais atenda às aspirações da
Justiça e do bem comum (RSTJ 26/378), já que a proibição de decidir pela eqüidade
não há de ser entendida como vedando se busque alcançar a justiça no caso
concreto, com atenção ao disposto no artigo 5º da Lei de Introdução (RSTJ 83/168).”
A respeito da questão, reproduzo alguns pensamentos recentemente
divulgados na imprensa em artigo intitulado “Como uma onda no ar”:
“A homossexualidade desfila rumo à praça da
108
apoteose, tantos são os fatos e as incidências que o
fenômeno ganha nestes dias, nas novelas discutindo a
possibilidade de adoção de crianças, nas reportagens
pugnando pela aprovação da lei da parceria civil, na
literatura, no cinema.
O fenômeno não é nacional, como descobri nas
férias ao colocar em dia a leitura de meus apreciados
livros policiais, onde sempre havia uma detetive lésbica,
um artista homossexual, um personagem uranista.
No filme, a universitária abandona marido e filhos
por sua professora, que logo a desampara, atraída por
outra aluna, embora as cenas de tórridas tardes; num
vale a pena ver de novo, projeta-se o cultuado episódio
do aidético que luta contra a discriminação, enquanto se
comove com árias.
O termo homossexualidade foi cunhado em 1869
pelo médico húngaro Karoli Maria Kertbeny para
designar, segundo uma terminologia clínica, todas as
formas de amor carnal entre as pessoas do mesmo sexo,
impondo-se
nas
sociedades
ocidentais
à
palavra
heterossexualidade, que foi criada em 1888.
A história revela que os homossexuais foram
perseguidos durante séculos como verdadeiros párias,
sodomitas, homófilos ou pederastas, portadores de
anomalias
e
taras,
sendo
a
homossexualidade
considerada, sucessivamente, como inversão, perversão,
sintoma
derivado
de
circunstâncias
psicossociais,
desajuste comunitário, desvio adquirido do impulso
sexual, enquanto prestigiados cientistas atuais a atribuem
a um estado da natureza com fortes origens biológicas e
não culturais.
Segundo Freud, não é uma vantagem, mas nada
dela deve envergonhar, não é um vício ou aviltamento,
nem doença, mas uma variação da função libidinosa
109
provocada por uma interrupção do desenvolvimento
sexual, enquanto para o discurso psiquiátrico do século
passado a homossexualidade era tida como uma
anomalia psíquica, mental ou de natureza constitutiva,
sempre como uma expressão de um distúrbio da
identidade ou da personalidade.
Os tempos modernos apresentam alguns sinais
extravagantes e inéditos, e que foram precisamente
flagrados
historiadora
por
Elisabeth
e
psicanalista
Roudinesco,
apreciada
francesa:
entre
há
os
homossexuais um febril desejo de família, uma pungente
vontade de se normalizar.
Dê-se uma freada nas épocas e recorde-se o
passado.
Nas
sociedades
pretéritas
os
homossexuais
percorriam as estradas da abjeção, da desonra e da
infâmia, alimentando a longa história da raça maldita, de
que foram expressão Wilde, Proust, Rimbaud, Genet,
aceitando um destino de anormalidade, preferível a seus
olhos à monotonia do estabelecimento, combatendo
sempre todos os tipos de opressão, como a familiar,
colonial e sexual.
Durante muito, os homossexuais preferiram os
nichos de isolamento, as comunidades alternativas, os
guetos
da
obscuridade,
cumprindo
atitudes
que
intentavam o escândalo, o desprezo pelos costumes e
pelas regras da convivência, sendo a família contestada,
rejeitada e proclamada como funesta às madrugadas da
liberdade sexual, e amaldiçoada como instituição e
molde.
Agora, todavia, sem que antropólogos, psiquiatras,
filósofos, historiadores ou sociólogos cheguem a um
consenso convincente, registra-se o cenário inédito em
que as parcerias de gays e lésbicas batalham e
110
reivindicam o direito ao casamento, à adoção, à
fertilização assistida, ajoelhando e dizendo amém no altar
que exorcizavam.
Para a autora, enquanto contestadas, as minorias se
tornavam
reconhecíveis,
identificáveis,
marcadas,
estigmatizados, o que facilitava o seu controle e repúdio;
mas quando integrados no grupo social, ao se beneficiar
da
condição
de
família
semelhantes
aos
casais
heterossexuais, tornam-se menos visíveis e daí mais
perigosos aos olhos dos conservadores.
Enfim, saindo-se das clínicas e dos laboratórios, é
inquestionável que o homoerotismo é uma realidade que
não se pode fechar nos armários como antes, e que deve
ser mirada sem preconceitos ou farisaísmo, respeitando
quem cultua tal orientação sexual, todas pessoas
portadoras de dignidade e atenção, como já faz a maioria
dos tribunais pátrios.”
Mais adiante, o entendimento restou consolidado na AC 70005488812,
julgada em 25 de junho de 2003, de minha relatoria, e seguido pelo colendo Quarto
Grupo Cível nos Embargos Infringentes nº 70003967676, e que teve como redatora
a eminente Des.ª Maria Berenice Dias, que tornou a tese uma afirmação da Corte
Sulina, referida por vários tribunais brasileiros.
No caso concreto, os pressupostos da união estável se acham
desenhados e preenchidos seus requisitos. Habitam imóvel adquirido por TLC
Mattana, financiado pela Caixa Econômica Federal em 1991, e devidamente
registrado em nome do adquirente no álbum registral (fls. 37-39).
Numerosos documentos, como contas telefônicas, comunicação,
comunicação de clube social, cédula de identidade, pagamento de IPVA, atestam
que ali vive CW (fls. 41-45), como ainda comprovam o domicílio de TLCM (contas de
energia elétrica, bloquetos bancários, fls. 47-49). Possuem conta bancária conjunta
(fls. 50-51). Tais peças têm datas pretéritas, algumas de 1991, outras de 1998,
também 2001 e 2003, o que demonstra a linearidade da relação. Além de que
declaram viver como verdadeira entidade familiar.
111
Não vejo como, pois deixar de atender o pleito, que, repita-se, teve sua
matéria abonada e aconselhada por este Tribunal, consoante Provimento já
noticiado.
A ação declaratória objetiva a obtenção da certeza jurídica, envolvendo
a necessidade demonstrada de eliminar ou resolver a incerteza do direito ou relação
jurídica, ou seja “um acertamento da relação jurídica pelo juiz (RTJESP, 83/934).”
Há, pois, legítimo interesse no exercício deste remédio, sempre que se manifeste
um estado de incerteza sobre determinada relação.
Por outro lado, é pacífico que o companheiro tem legítimo interesse de
promover ação declaratória da existência da relação jurídica resultante da
convivência, ainda que não existam bens a partilhar (STJ, 4ª turma, REsp 328.297RJ, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, DJU 18.02.02).
Daí estar a pretensão dos embargantes albergada no colo da
legalidade e convivência.
Por tais razões, acolho os embargos, para declarar a existência de uma
união estável entre os autores.
DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS - De acordo com o em. Relator.
DES. RUI PORTANOVA Sou autor do voto vencido na câmara.
Assim, aqui, estou reproduzindo aquela fundamentação como razão de
decidir neste recurso de embargos infringentes.
DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES Estou desacolhendo a pretensão recursal.
Como é sabido, tendo em vista diversas decisões que lancei em
processos que tinham como fundamento a relação homossexual, não reconheço
possibilidade jurídica de se reconhecer ‘união estável’ entre homossexuais.
Observo que a homossexualidade não constitui fato social novo, mas
que vem recebendo aceitação social progressiva, reconhecendo-se que a dignidade
de uma pessoa não está atrelada à sua orientação sexual. Admite-se que cada
pessoa exercite a própria sexualidade, externando comportamento compatível com a
sua própria maneira de ser, respeitados obviamente os limites da privacidade de
cada um.
A orientação homossexual é uma definição individual vinculada a
apelos próprios, físicos ou emocionais, sendo imperioso que a sociedade respeite o
112
sentimento de cada um, a busca da própria realização pessoal, pois todos devem
encontrar espaço para a integração ao grupo social a que pertencem, sem
discriminações.
As relações entretidas por homossexuais, no entanto, não se
assemelham a um casamento nem a uma união estável, pois estas são formas pelas
quais se constitui um núcleo familiar e, por essa razão são merecedoras da especial
proteção do estado. Mas, ainda assim, merecem tutela jurídica, na medida em que o
par pode constituir uma sociedade de fato. No caso sub judice, porém, o pedido
não é de reconhecimento de sociedade de fato, mas de declaração de união estável,
que é entidade familiar.
Ora, a família é um fenômeno natural e que prescinde de toda e
qualquer convenção formal ou social, embora não se possa ignorar que foram as
exigências da própria natureza e da própria sociedade acatando os apelos naturais,
que se encarregou de delinear e formatar esse ente social que é a base da estrutura
de toda e qualquer sociedade organizada.
Toda e qualquer noção de família passa, necessariamente, pela idéia
de uma prole, e foi a partir dessa noção que se estruturou progressivamente esse
grupamento social, em todos os povos e em todas as épocas da história da
humanidade. Aliás, foi a busca da paternidade certa que fez com que se passasse a
ter o homem como o centro da família e passasse a ser abominado o
relacionamento poliândrico.
A sociedade foi evoluindo até chegar à monogamia, como ocorre no
mundo moderno e, particularmente, no mundo ocidental. Mas a estruturação da
família focalizou sempre a noção de homem, mulher e prole e acompanham o
próprio desenvolvimento social, cultural, e econômico de cada povo.
A idéia da família sempre esteve voltada para caracterização de um
ambiente ético por excelência, onde a função procriativa pudesse se exercitar e a
prole encontrar espaço para se desenvolver de forma natural e segura.
A consolidação da idéia de família foi construída e reconstruída muitas
vezes, em processos sociais lentos, sempre em função de se estabelecer e manter
uma vida social equilibrada e harmônica.
Portanto, a família é muito mais do que uma mera união de duas
pessoas, ou, por absurdo que possa parecer, de três pessoas que pudessem se
amar, porque não se está a falar em pacto ou de mera relação amorosa. Quando o
113
legislador constituinte deu à união estável a feição de entidade familiar, certamente
não procurou proteger o amor nem os amantes, mas a família, por ser ela a base da
sociedade.
E, como base da sociedade, não pode a família se apartar da estrutura
formal concebida pelo legislador constituinte, como sendo o ambiente natural e
próprio para a procriação e desenvolvimento da prole, admitida como tal no
ordenamento jurídico pátrio, como sendo decorrente do casamento ou da união
estável, ou na modalidade monoparental, de um homem ou uma mulher com a sua
prole, natural ou adotiva.
Utilizo, propositalmente, a expressão estrutura formal, pois a forma
concebida não partiu de uma idéia ou de uma convenção, mas da construção social
consolidada através dos séculos: a família diz com a estrutura afetiva construída por
um homem e uma mulher em função de uma prole, natural ou adotiva,
considerando-se também a estrutura de um homem ou uma mulher com a sua prole.
Assim, a união de dois homens ou de duas mulheres não constitui
núcleo familiar, como também não constituiu núcleo familiar uma mera união de um
homem e uma mulher, pelo só fato de existir afeto.
A própria união de um homem e uma mulher não casados deve ser
examinada restritivamente, porque ela é excepcional.
É que a lei diz que a família inicia com o casamento, e quando o
legislador constituinte disse que “para efeito de proteção do Estado, é
reconhecida a união estável (...)” e “entende-se, também, (...) a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, está excepcionando a regra
geral de que a família começa com o casamento. E não se pode, por princípio
elementar de hermenêutica, interpretar ampliativamente a exceção.
Não é o afeto o fato jurígeno, o fato jurígeno é a constituição de uma
família.
Afinal, é preciso convir que afeto também existe entre amigos, e não
raro amigos moram juntos, com ou sem relacionamento sexual entre eles, e nem por
isso vamos dizer que os amigos constituem uma família na acepção jurídica, nem
podem eles pedir alimentos uns para os outros, nem reclamarem herança, e há
amizades de 30, 40, 50 e até de 70 anos...
E, data venia, o fato de serem ou não homossexuais é irrelevante.
Diante disso, reafirmo a minha convicção de que união homossexual
114
não constitui entidade familiar, isto é, não é merecedora da especial proteção do
Estado, embora possa merecer a proteção do Estado, na medida em que se pode
reconhecer, por exemplo, uma sociedade de fato.
E entendo que constitui até uma heresia, data maxima venia, dizer
que tal forma de união possa ser considerada base da sociedade...
Caso o legislador constituinte admitisse a possibilidade de se
reconhecer como união estável também a união homossexual, certamente não teria
restringido expressamente a união estável enquanto entidade familiar àquela união
entre homem e mulher, nem recomendaria a sua conversão em casamento.
Se o possível casamento entre dois homens constitui casamento
inexistente pela ausência de um dos pressupostos materiais (condição de
existência), não se pode considerar como união estável a união entre dois homens
ou homossexuais. E friso que não está sequer na lei a situação de impedimento
matrimonial para o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo: é que a diversidade
de sexos constitui pressuposto matrimonial para o casamento.
Há, pois, flagrante impossibilidade jurídica para se reconhecer a união
entretida pelos litigantes como entidade familiar e não vejo como aplicar a analogia
quando as situações não guardam identidade, nem semelhança com o casamento
ou a união estável.
É que o processo interpretativo deve se desenvolver de forma a buscar
uma atuação efetiva da lei, visando o escopo de justiça e de utilidade social,
consistindo nisso a afirmação da ordem jurídica.
No caso, pode ser objetado, pois, que, sendo omissa a lei, deve o
julgador se socorrer da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito,
consoante determina o art. 4º da Lei de Introdução, sendo que “na aplicação da lei, o
juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”
(art. 5º, LICC).
No caso, não existe lei a regular os efeitos jurídicos do relacionamento
homossexual e tendo os autores pretendido ver reconhecida a sua relação
‘homoerótica’ guindada à condição de entidade familiar, cabível proceder um
acurado exame desse pleito.
Compete, então, ao julgador verificar a pertinência desse pleito,
valendo-se do instrumental referido na Lei de Introdução para suprir as lacunas, ou
seja, os elementos integradores da norma, que são a analogia, os costumes e os
115
princípios gerais de direito, os quais devem ser aplicados de forma cautelosa e
criteriosa.
Ora, a analogia visa estender uma norma destinada para um caso
específico à outra situação distinta, não contemplada direta ou indiretamente por ela,
constituindo um argumento lógico-decisional, que implica na transferência de valores
de uma estrutura para outra. Ou seja, implica ampliar a compreensão de uma
determinada estrutura, agregando-lhe novos elementos, a partir do sistema de
valores próprios do sistema jurídico – e não da visão subjetiva do aplicador a norma,
sob pena de implodir o próprio ordenamento.
Como diz ALÍPIO SILVEIRA, a analogia “é tão-somente um processo
revelador de normas implícitas”, pois, a rigor, ela está fundada na regra da igualdade
jurídica pela qual, para situações iguais ou assemelhadas se deve dar a mesma
proteção legal ou, como diz o antigo adágio romano, ubi eadem legis ratio, ibi
eadem dispositio. A analogia não é fonte do direito, mas mera atividade integradora
da norma.
No caso, não se cuida apenas de considerar duas espécies de
relações, uma heterossexual e a outra homossexual e buscar nelas as semelhanças
decorrentes do possível liame afetivo, para concluir pela proteção da Carta Magna.
Não há que se buscar a analogia da lei, mas também a do direito e é
preciso compreender bem o fenômeno social da família e as razões pelas quais a
Carta Magna disse que ela é merecedora da especial proteção, bem como as razões
pelas quais ela se estrutura a partir do casamento civil e a motivação pela qual o
legislador admitiu que a união estável constitui também entidade familiar.
É necessário recorrer ao método teleológico de interpretação, não se
podendo dispensar os critérios histórico e sociológico para a adequada
compreensão da norma. E não se pode admitir que uma união homossexual seja
tratada com a dignidade de uma instituição que é a própria base da sociedade, que
é a família, fonte geradora de princípios e da moral que deve nortear as relações
interpessoais...
Por essa razão, é de se ter presente a advertência de COVIELLO (in
“Manuale di diritto civile italiano’, 1910, pág. 85) quando diz que “a atividade do
intérprete que recorre à analogia, não é sem confins, tem dois limites impreteríveis:
de um lado, a natureza real da relação; mas deve, muita vez, renunciar a conceitos
que, embora lógicos e elegantemente arquitetados, não correspondem à realidade
116
prática; e, de outro lado, o direito positivo, porquanto não pode levar em conta,
exclusivamente, a natureza da relação, para criar uma regra jurídica, que não se
encaixe (‘Che non trovi il suo addentellato’) nas disposições ou nos princípios da lei.”
A analogia deve traduzir, pois, um critério de igualdade harmônica,
reclamando a rigorosa semelhança nas situações consideradas, tendo em mira o
critério de utilidade social. E essa semelhança inexiste nas relações consideradas
neste processo e aquelas previstas na lei.
Portanto, para a adequada aplicação do direito, não se pode recorrer
pura e simplesmente à analogia, pois, quando ocorre a omissão nas fontes formais
do direito, é imprescindível recorrer também aos costumes e aos princípios gerais do
direito, valendo lembrar, aliás, que a analogia não é fonte de direito.
No caso em exame, cuidando-se de relações homossexuais, cuida-se
de inexistência de fonte formal, ganhando relevância a incidência dos costumes e
dos princípios gerais do direito.
Ora, os costumes vigentes no país ainda abominam o relacionamento
homossexual, tratando, não raro, de forma preconceituosa, com escárnio, com
desrespeito, visto como uma doença ou, mesmo, como uma situação de
imoralidade.
Não deixa de causar perplexidade e constrangimento o fato de
pessoas do mesmo sexo exteriorizarem, em locais públicos, manifestações de
caráter erótico-afetivo, que são bem aceitos entre pares heterossexuais, como
abraços, beijos e troca de carícias. Ou, até mesmo, de andarem abraçados ou de
mãos dadas... E isso traduz o costume vigente no país. Ou seja, a união
homossexual não é aceita pela sociedade, embora se deva reconhecer, como disse
ao início do voto, que alguns segmentos da sociedade já admitem esse fato como
natural, ou que a homossexualidade já venha recebendo alguma aceitação.
Portanto, constitui uma afronta aos costumes admitir que a união
homossexual possa ser erigida à categoria de entidade familiar e ser contemplada
com os direitos postos na lei destinados a assegurar a ‘especial proteção do Estado’,
tal como ocorre com a união estável.
A referência feita usualmente pelos defensores do reconhecimento da
união homossexual como união estável é no sentido de que a sociedade está
mudando e o casamento já tem hoje outros propósitos, que é o de assegurar a
felicidade das pessoas. Isso, data venia, é meia verdade, pois a outra parte diz com
117
a sua função social, que continua a ser a mesma, enquanto geradora da família.
Ao recorrerem aos princípios gerais de direito, não raro, esses ilustres
intérpretes recorrem ao princípio da dignidade da pessoa humana, que é, em si, uma
variável axiológica, podendo ser preenchida com o conjunto de valores que melhor
aprouver ao intérprete.
Ainda assim, friso que o fato de não haver previsão de que
homossexuais possam casar não implica discriminação, nem afeta a dignidade
humana da pessoa que tenha aptidão homossexual, mas é o reconhecimento de
que tal relação não é apta, em si, para formar uma família, isto é, que possa
preencher a função social relevante que levou o legislador a conferir à família a
especial proteção.
Nada impede que as pessoas tenham suas relações erótico-afetivas
que melhor lhes aprouver, não se reclama monogamia, nada impede que se
relacionem dois homens ou duas mulheres, ou que as relações se estendam a mais
de duas pessoas, nada impede que cada pessoa disponha dos seus bens como
quiser, podendo fazer doações ou testamentos... Mas nem toda a relação amorosa
constitui família e, no caso de homossexuais, a lei não permite a adoção de filhos,
nem existe qualquer razão para que se estabeleça a priori um regime de bens para
reger tais relações. Se o que preside a união é o afeto, que o afeto seja, então, o
próprio balizador da relação.
O certo é que, no caso, entre os princípios gerais do direito a serem
enfocados está o de que (a) a família é merecedora da especial proteção do Estado,
(b) que ela resulta, basicamente, do casamento civil, (c) que este tem como
pressuposto material a diversidade de sexos, tanto que o casamento contraído entre
dois homens é inexistente, (d) que a união estável foi erigida à categoria de entidade
familiar por ser assemelhada ao casamento, e (e) que o legislador reconheceu como
tal apenas a união entre homem e mulher.
Como se infere, parece claro que os postulantes tiveram um
relacionamento homoerótico e até podem ter estabelecido uma sociedade de fato,
mas não constituíram um núcleo familiar, nem existe qualquer razão para que seja
declarada a existência dessa sociedade havida entre ambos, já que entre eles não
há litígio e a ação declaratória pressupõe a existência de uma relação jurídica.
No caso em exame, existe um fato, que até pode trazer seqüelas
jurídicas no âmbito patrimonial, mas que prescinde por ora da intervenção do
118
Estado, na medida em que inexiste conflito entre os postulantes. Ou seja, não há
interesse processual, valendo enfatizar que a ação declaratória não se presta para
declarar fato, mas relação jurídica. E, no caso, inexiste qualquer relação jurídica
entre o par. São homossexuais que convivem: isto é fato e não uma relação jurídica
tutelada pelo direito.
119
Entendo que, para resolver as pendências patrimoniais que possam
haver nas uniões homossexuais, apelidadas ora de uniões homoafetivas, ora de
homoeróticas, tem aplicação a idéia contida na Súmula nº 380 do Supremo Tribunal
Federal, quando estabelece que, “comprovada a existência de sociedade de fato
(...), é cabível a sua dissolução judicial, com partilha do patrimônio adquirido com o
esforço comum.”
Havendo a ruptura dessa sociedade de fato, deve ser admitida a
partilha dos bens e de forma proporcional ao esforço desenvolvido pelo par, já que,
não sendo assim, se estaria propiciando enriquecimento sem causa.
Nessa mesma linha de entendimento, aliás, vale destacar a lição
oportuna e erudita do eminente civilista pátrio SÍLVIO DE SALVO VENOSA (in
“Direito Civil - Direito de Família”, Ed. Atlas, 2.003, pág. 54) quando focaliza a
exigência de diversidade de sexo para o reconhecimento de uma união estável,
ensinando que “a união do homem e da mulher tem, entre outras finalidades, a
geração de prole, sua educação e assistência. Desse modo, afasta-se de plano
qualquer idéia que permita considerar a união de pessoas do mesmo sexo
como união estável nos termos da lei”.
De forma incisiva, afirma o preclaro jurista que “o relacionamento
homossexual, por mais estável e duradouro que seja, não recebera a proteção
constitucional e, conseqüentemente, não se amolda aos direitos de índole familiar
criados pelo legislador ordinário. Eventuais direitos que possam decorrer dessa
união diversa do casamento e da união estável nunca terão o cunho familiar,
situando-se no campo obrigacional, no âmbito de uma sociedade de fato”.
Essa linha de entendimento do PROFESSOR SÍLVIO DE SALVO
VENOSA vem ilustrada por interessante - e pertinente - aresto do Tribunal de Justiça
de São Paulo, do qual foi relator o eminente DESEMBARGADOR NEY ALMADA (op.
cit. pág. 50), in verbis:
“SOCIEDADE DE FATO. CONCUBINATO. LIGAÇÃO
HOMOSSEXUAL.
Alteridade
de
sexos,
que
é
pressuposto do concubinato, tratando-se de sucedâneo
do matrimônio constitutivo da família e não dele
decorrente. Hipótese que trata de uma sociedade
patrimonial de fato, destituída de vínculo com o instituto”.
120
Igual linha de entendimento tem, também, o ilustre PROFESSOR
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA (in “Companheirismo - uma espécie
de família”, ed. Revista dos Tribunais, 1998, pág. 491) quando afirma que enquanto
o Projeto da Deputada Marta Suplicy “não for convertido em lei, a união
homossexual continuará a não ser passível de registro oficial, não gerando efeitos
jurídicos no Direito de Família, devendo ser tratada como sociedade de fato, ou seja,
no campo do Direito das Obrigações”. E sua conclusão é perfeitamente ajustada
para o caso em tela, in verbis:
“(...) somente podem ser cuidadas como sociedades
de fato, desde que evidentemente sejam preenchidos
os requisitos para a configuração de tais entidades,
possibilitando
partícipe
da
o
reconhecimento
relação
-
que
for
do
direito
do
prejudicado
em
decorrência da aquisição patrimonial em nome tãosomente do outro - ao partilhamento dos bens adquiridos
durante a constância da sociedade de fato, na medida da
sua efetiva contribuição para a formação ou o
incremento patrimonial.” (grifo meu).
Finalmente, quero lembrar que o princípio constitucional de igualdade
entre as pessoas, vedando discriminações, e, por extensão, também as decorrentes
da orientação sexual, deve ser focalizado em consonância com os demais preceitos
constitucionais.
Não se pode ignorar os valores e as instituições que a própria Carta
Magna cuidou em preservar para que se possa ter uma sociedade mais equilibrada
e saudável.
A família é protegida pelo Estado por ser a própria base da sociedade,
cuidando o Estado para que nela se efetive o fenômeno natural da procriação, sendo
nela que as pessoas devem receber as primeiras e mais importantes noções de vida
social, e dela devem emanar também os preceitos morais que devem nortear a vida
das pessoas.
De qualquer sorte, destaco: inexiste qualquer relação jurídica entre o
121
par e que necessite ser declarada judicialmente. Ao contrário, cuida-se do pedido de
dois homossexuais que convivem e pretendem que essa relação fática seja
declarada judicialmente. Ora, isto é mero fato e não se cuida de nenhuma relação
jurídica tutelada pelo Direito.
Finalmente,
peço
vênia
para
também
subscrever
os
doutos
argumentos postos pelos eminentes DESEMBARGADORES STANGLER PEREIRA
e ALFREDO ENGLERT, e também aqueles contidos no douto parecer do Ministério
Público, de lavra dos cultos PROCURADORES DE JUSTIÇA ANTÔNIO CEZAR
LIMA DA FONSECA e MIGUEL BANDEIRA PEREIRA.
Por tais razões, rogando vênia pelas longas considerações, estou
desacolhendo os embargos infringentes, mantendo na íntegra o douto acórdão
hostilizado.
DES. JOSÉ S. TRINDADE - De acordo com o Relator.
DES. ANTONIO CARLOS STANGLER PEREIRA Estou acompanhando o voto do Desembargador Chaves, uma vez
considerando que o relacionamento homossexual não se traduz em união estável,
pois a Constituição Federal, somente estende a proteção do Estado quando da
união entre homem e mulher, conforme dispõe o parágrafo 3º do artigo 226, em seu
texto:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado.
(...)
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a
união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento.
(...)”
No mesmo sentido a legislação infraconstitucional, nos termos das leis
nº 8.971, de 29.12.1994 e nº 9.278, de 10.05.1996.
Esclarece Guilherme Calmon Nogueira da Gama:
“Da mesma forma, os relacionamentos entre pessoas do
mesmo
sexo
companheirismo,
que,
por
como
mais
visto,
não
duradouras,
configuram
estáveis,
122
contínuas que sejam, mas que podem perfeitamente
consistir em uma sociedade de fato e, portanto, gerar
efeitos patrimoniais”. (O companheirismo : uma espécie
de família. 2. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo : Editora
Revista dos Tribunais, 2001. p. 309).
Adiante, o mesmo autor:
“Finalmente: a Súmula 380, do Supremo Tribunal Federal,
ainda é perfeitamente aplicável em relação às outras
espécies de uniões informais, que não se encaixem na
noção do companheirismo, inclusive entre pessoas do
mesmo sexo, com a ressalva de que em relação a tais
uniões deve haver prova da contribuição efetiva na
formação ou aumento patrimonial, justamente diante da
sua natureza de sociedade de fato, não possuindo caráter
familiar.” (Ob. cit. p. 317).
É o voto, acompanhando a divergência.
DES.ª MARIA BERENICE DIAS Não tenho como me afastar do voto do eminente Des. José Carlos
Teixeira Giorgis, pois foi ele quem, com coragem e sensibilidade, pela vez primeira
assegurou direito às uniões que chamo de homoafetivas.
Aliás, foi a partir daquele julgamento, no ano de 2001, que o tema
sofreu significativo avanço no panorama nacional. Não só o Judiciário começou a
emprestar juridicidade a tais uniões. Também se tornou farta a literatura e o tema
ganhou as universidades e despertou o interesse dos estudantes de Direito. O
número de trabalhos de conclusão dos Cursos de Direito são a prova disso.
Por isso a minha alegria ao ver que a minha luta, que começou tão
isolada e foi tão ridicularizada, esta adquirindo força, está adquirindo voz.
Este julgamento é mais uma prova de que, felizmente, a Justiça não é
cega, que o juiz tem sensibilidade para ver a realidade e não julga segundo
preconceitos mas está voltado para um resultado que não afronte a ética.
Voto com o Relator.
123
SR. PRESIDENTE (DES. ANTONIO CARLOS STANGLER PEREIRA) - Embargos
Infringentes nº 70011120573, de Porto Alegre - “Por maioria, acolheram os
embargos infringentes.
Julgador(a) de 1º Grau: DR.ª MARIA INES LINCK.
EMBARGOS
INFRINGENTES.
AÇÃO
DE
RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL ENTRE
HOMOSSEXUAIS. PROCEDÊNCIA.
A
Constituição
Federal
traz
como
princípio
fundamental da República Federativa do Brasil a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária
(art. 3.º, I) e a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (art. 3.º, IV).
Como direito e garantia fundamental, dispõe a CF que
todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza (art. 5.º, caput). Consagrando
princípios
democráticos
de
direito,
ela
proíbe
qualquer espécie de discriminação, inclusive quanto a
sexo, sendo incabível, pois, discriminação quanto à
união homossexual. Configurada verdadeira união
estável entre a autora e a falecida, por vinte anos,
deve ser mantida a sentença de procedência da ação,
na esteira do voto vencido. Precedentes.
Embargos infringentes acolhidos, por maioria.
EMBARGOS INFRINGENTES
QUARTO GRUPO CÍVEL
124
Nº 70030880603
COMARCA DE NOVO HAMBURGO
S.G.
EMBARGANTE
..
R.Q.B.O.
EMBARGADO
.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Magistrados integrantes do Quarto Grupo Cível do
Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, acolher os embargos infringentes, nos
termos dos votos a seguir transcritos, vencido o Dr. José Conrado de Souza Júnior.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes
Senhores Desembargadores RUI PORTANOVA (PRESIDENTE E REVISOR),
RICARDO RAUPP RUSCHEL, ANDRÉ LUIZ PLANELLA VILLARINHO E DR.
JOSÉ CONRADO DE SOUZA JÚNIOR.
Porto Alegre, 14 de agosto de 2009.
DES. JOSÉ S. TRINDADE,
Relator.
RELATÓRIO
DES. JOSÉ S. TRINDADE (RELATOR) Ação. Trata-se de ação de reconhecimento de união estável –
embargos infringentes.
Partes. Embargante: S.G..
Embargada: R.Q.B. E OUTROS.
Acórdão recorrido. O acórdão de fls. 212/235, em julgamento da 7ª
Câmara Cível, do qual este Relator não participou, por maioria, deu parcial
provimento à APC n° 70026584698, vencido o Des. And ré Luiz Planella Villarinho,
para afastar o reconhecimento da união estável e a aplicação de qualquer regime de
bens, admitindo, contudo, a existência de uma sociedade de fato e a partilha dos
bens para os quais fique comprovada a efetiva contribuição da apelada.
Objeto. Embargos Infringentes com pedido de procedência da
125
demanda, e conseqüente reconhecimento da união estável mantida entre a
embargante e a de cujus, entre 1º de junho de 1984 e 24 de setembro de 2004,
sendo conferido à embargante todos os efeitos jurídicos decorrentes do respectivo
reconhecimento.
Razões recursais. Alega a embargante que viveu em união estável
com a falecida C.L.Q.B., entre 1º de junho de 1984 e 27 de setembro de 2004, data
em que a companheira faleceu, tendo adquirido, na constância da união, um único
de imóvel, de propriedade da de cujus, e do qual a embargante mantém a posse,
pois servia de residência para ambas. Aduz que demonstrou, nos autos, que a
falecida era proprietária de uma empresa cuja razão social é C.L. de Quadros
Bittencourt – ME, da qual foi procuradora, demonstrando ter assumido as dívidas da
referida empresa junto ao Banrisul. Salienta que os depoimentos prestados em juízo
deixaram claro que a relação afetiva vivida pela autora e a de cujus era pública e
duradoura, tendo a parte ré relatado ao Juízo a quo que as conviventes residiram
durante algum tempo com a mãe da falecida, sendo que após esse período,
passaram a residir em imóvel alugado por ambas, até que em 1989 adquiriram um
terreno e sobre este construíram uma casa que serviu, tanto de residência para as
companheiras, quanto como sede da empresa registrada em nome da falecida.
Relata que trouxe, aos autos, cópia da apólice de seguro de vida contratado junto ao
Banco Santander na qual consta a embargante, então autora, como beneficiária de
100% do valor da indenização. Enfatiza que, diante da comprovação da existência
de união estável reclamada na inicial, devem ser reconhecidos os direitos que lhe
são
garantidos
constitucionalmente.
Requer
o
acolhimento
dos
embargos
infringentes, a fim de que seja reconhecida a união estável mantida entre a
embargante e a de cujus, entre 1º de junho de 1984 e 24 de setembro de 2004, bem
como lhe seja conferido todos os efeitos jurídicos decorrentes do respectivo
reconhecimento (fls. 239/262).
Contra-razões. Ao contra-arrazoar, os embargados pugnaram pela
manutenção do acórdão recorrido (fls. 271/273).
Ministério Público. Às fls. 277/279, o Procurador de Justiça opinou
pelo provimento do recurso.
Registro que foi observado o disposto nos arts. 549, 551 e 552, todos
do CPC, tendo em vista a adoção do sistema informatizado.
É o relatório, que foi submetido à douta revisão.
126
VOTOS
DES. JOSÉ S. TRINDADE (RELATOR) O recurso preenche todos os requisitos de admissibilidade.
No mérito, devem ser acolhidos os embargos infringentes, na esteira
do voto vencido, do eminente relator do apelo, o DES. ANDRÉ LUIZ PLANELLA
VILLARINHO, o qual confirmava a sentença singular que reconheceu a união
estável homoafetiva entre duas mulheres.
A tese vencedora no apelo objeto do presente recurso, expendida pelo
eminente revisor DR. JOSÉ CONRADO DE SOUZA JÚNIOR e referendada pelo
nobre vogal, DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES, é pela
impossibilidade do pedido da autora/embargante de ver reconhecida união estável
entre ela e a falecida C.L.Q.B., porque tal pretensão não está ao abrigo do § 3.º do
art. 226 da Constituição Federal e do art. 1.723 do CC/02, sendo contrário aos
dispositivos legais o reconhecimento da união estável entre homossexuais.
Admitiram a existência de uma sociedade de fato entre elas e a partilha dos bens
para os quais fique comprovada a efetiva contribuição da embargante.
Já tive oportunidade de me manifestar sobre a matéria em discussão,
que é polêmica, noutros julgamentos e primeiramente na Apelação Cível n.º 598 626
655 – pioneira, diga-se -, da qual fui relator, assim ementado o acórdão:
“HOMOSSEXUAIS. UNIÃO ESTÁVEL. POSSIBILIDADE
JURÍDICA
DO
PEDIDO.
PROCESSAMENTO
E
O
É
POSSÍVEL
O
RECONHECIMENTO
DE
UNIÃO ESTÁVEL ENTRE HOMOSSEXUAIS, ANTE
PRINÍCIPIOS
FUNDAMENTAIS
INSCULPIDOS
NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL QUE VEDAM QUALQUER
DISCRIMINAÇÃO, INCLUSIVE QUANTO AO SEXO,
SENDO DESCABIDA DISCRIMINAÇÃO QUANTO A
UNIÃO HOMOSSEXUAL. E É JUSTAMENTE AGORA,
QUANDO UMA ONDA RENOVADORA SE ESTENDE
PELO MUNDO, COM REFLEXOS ACENTUADOS EM
NOSSO PAÍS, DESTRUINDO PRECEITOS ARCAICOS,
MODIFICANDO
SERENIDADE
TRATO
DAS
CONCEITOS
CIETÍFICA
DA
RELAÇÕES
E
IMPONDO
A
MODERNIDADE
NO
HUMANAS,
QUE
AS
127
POSIÇÕES
DEVEM
SER
MARCADAS
E
AMADURECIDAS, PARA QUE OS AVANÇOS NÃO
SOFRAM
RETROCESSO
INDIVIDUALIDADES
E
E
PARA
QUE
COLETIVIDADES,
AS
POSSAM
ANDAR SEGURAS NA TÃO ALMEJADA BUSCA DA
FELICIDADE, DIREITO FUNDAMENTAL DE TODOS.
SENTENÇA
DESCONSTITÍIDA
INSTRUÍDO
O
FEITO.
PARA
QUE
APELACAO
SEJA
PROVIDA.”
(APELAÇÃO CÍVEL Nº 598362655, OITAVA CÂMARA
CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR:
JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE, JULGADO EM
01/03/2000).
Conforme lá referi, aqui também se trata de decidir a possibilidade ou
não do reconhecimento de uma união estável entre homossexuais, e, em caso
positivo, confirmar que ela efetivamente existiu entre a recorrente e a falecida.
Ao analisar o que consta do processo e principalmente o conteúdo da
petição inicial, verifica-se que o pedido tem base em forte e clara relação de afeto
entre duas pessoas do mesmo sexo, que conviveram por vinte anos ininterruptos,
publicamente, sem outra união paralela, com mútua assistência, manutenção e
fortalecimento de patrimônio, visando certamente, criar um núcleo familiar.
Importante ressaltar que os réus, colaterais da falecida, não apresentaram
contestação, vindo a se manifestar somente em sede de memorais (fls. 159/161) e
através da apelação.
Configurado
esse
quadro,
não
obstante
respeitáveis
os
posicionamentos em sentido contrário vertidos pela douta maioria no acórdão
embargado, entendo perfeitamente cabível o reconhecimento de uma união estável
entre homossexuais.
É
certo
que
a
Constituição
Federal,
consagrando
princípios
democráticos de direito, proíbe qualquer espécie de discriminação, principalmente
quanto a sexo, sendo incabível, pois, discriminação quanto à união homossexual.
Com efeito, a Carta Magna traz como princípio fundamental da
República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária
128
(art. 3.º, I) e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3.º, IV).
Como direito e garantia fundamental, dispõe a Constituição Federal
que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5.º,
caput).
Conforme ensinamento mais básico do Direito Constitucional, tais
regras, por retratarem princípios, direitos e garantias fundamentais, se sobrepõem a
quaisquer outras, inclusive àquela esculpida no art. 226, § 3.º, da própria
Constituição, invocada pelo revisor do apelo, que prevê o reconhecimento da união
estável entre o homem e a mulher.
Observe-se que antes mesmo da regulamentação e reconhecimento
constitucional da união estável entre o homem e a mulher, sua existência já era
reconhecida e declarada nos Pretórios, na relação concubinária.
Não é preciso esperar aprovação de nenhuma lei no Congresso
Nacional, para reconhecer-se a possibilidade de declaração de uma união estável
entre pessoas do mesmo sexo, porque, além dos dispositivos constitucionais
elencados, nossa legislação permite que o juiz decida o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (art. 4.º da LICC).
Entender que a união estável só é possível entre um homem e uma
mulher, é discriminar as pessoas que se relacionam afetivamente com outras do
mesmo sexo, o que contraria os precitados dispositivos legais.
O direito tem caminhado com segurança ao retratar o descabimento de
preconceitos e discriminações. Para ressaltar essa situação, vale transcrever
precedente do Superior Tribunal de Justiça, que serve de paradigma, onde se
constata que até diante de mera produção de prova testemunhal o preconceito e a
discriminação se faziam sentir, mas evoluíram por forte e prontamente repelidos:
“RECURSO ESPECIAL /PROCESSO PENAL /TESTEMUNHA
/HOMOSSEXUAL/
A história
das
provas
orais
evidencia
evolução, no sentido de superar preconceitos com algumas
pessoas. Durante muito tempo recusou-se credibilidade ao
escravo, estrangeiro, preso, prostituta. Projeção, sem dúvida,
de distinção social. Os romanos distinguiam patrícios e
plebeus. A economia rural, entre o senhor de engenho e o
129
cortador de cana, o proprietário da fazenda de café e quem se
encarregasse da colheita. Os direitos humanos buscam afastar
distinção. O Poder Judiciário precisa ficar atento para não
transformar essas distinções em coisa julgada. O requisito
moderno para uma pessoa ser testemunha é não evidenciar
interesse
no
desfecho
do
processo.
Isenção,
pois.
O
homossexual, nessa linha, não pode receber restrições... E
mais: sua palavra merece o mesmo crédito do heterossexual.
Assim se concretiza o princípio da igualdade, registrado na
Constituição da Repúblicas e no Pacto de San José da Costa
Rica”. (Recurso Especial n.º 154 857/DF, rel. Ministro Luiz Vicente
Cernicchiaro, 6.ª Turma, Julgado em 26/05/1998.
Sobre a discriminação e preconceitos que possam ser lançados sobre
qualquer pessoa em relação a sua opção sexual, há muito tempo este Tribunal vem
rechaçando, servindo como paradigma, também, a passagem do voto proferido
quando do julgamento da Apelação Cível 593 110 547, na Terceira Câmara Cível
deste Tribunal, relator o Desembargador LUIZ GONZAGA PILA HOFMEISTER, que
transcrevo, ante o brilhantismo: “É preciso, inicialmente, dizer que homem e mulher
pertencem a raça humana. Ninguém é superior. Sexo é uma contingência. Discriminar um
homem é tão abominável como odiar um negro, um judeu, um palestino, um alemão ou um
homossexual. As opções de cada pessoa, principalmente no campo sexual, hão de ser
respeitadas, desde que não façam mal a terceiros. O direito à identidade pessoal é um dos
direitos fundamentais da pessoa humana. A identidade pessoal é a maneira de ser, como a
pessoa se realiza em sociedade, com seus atributos e defeitos, com suas características e
aspirações, com sua bagagem cultural e ideológica, é o direito que tem todo o sujeito de
ser ele mesmo. A identidade sexual, considerada como um dos aspectos mais importantes
e complexos compreendidos dentro da identidade pessoal, forma-se em estreita conexão
com uma pluralidade de direitos, como são aqueles atinentes ao livre desenvolvimento da
personalidade etc. Para dizer assim, ao final: se bem que não é ampla nem rica a doutrina
jurídica sobre o particular, é possível comprovar que a temática não tem sido alienada para
o direito vivo, quer dizer para a jurisprudência comparada. Com efeito, em direito vivo tem
sido buscado e correspondido e atendido pelos juizes na falta de disposições legais e
expressa. No Brasil, aí está o art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil a permitir a
130
equidade e a busca da justiça. Por esses motivos é de ser deferido o pedido de retificação
do Registro Civil para alteração de nome e de sexo”.
A matéria em julgamento, repito, é controvertida e polêmica. Nutro
respeito pelo pensamento divergente. Creio firmemente, porém, que os avanços
devem continuar. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende
pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos arcaicos,
modificando conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no trato
das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para
que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e as
coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito
fundamental de todos.
Nesse sentido, inclusive, vale transcrever precedentes deste Tribunal,
cujas ementas transcrevo:
“APELAÇÃO
CÍVEL.
RECONHECIMENTO
UNIÃO
DE
HOMOSSEXUAL.
UNIÃO
ESTÁVEL.
SEPARAÇÃO DE FATO DO CONVIVENTE CASADO.
PARTILHA
DE
BENS.
ALIMENTOS.
União
homossexual: lacuna do Direito. O ordenamento
jurídico brasileiro não disciplina expressamente a
respeito da relação afetiva estável entre pessoas do
mesmo sexo. Da mesma forma, a lei brasileira não
proíbe a relação entre duas pessoas do mesmo sexo.
Logo, está-se diante de lacuna do direito. Na
colmatação da lacuna , cumpre recorrer à analogia,
aos costumes e aos princípios gerais de direito, em
cumprimento ao art. 126 do CPC e art. 4º da Lei de
Introdução ao Código Civil Na busca da melhor
analogia, o instituto jurídico, não é a sociedade de
fato. A melhor analogia, no caso, é a com a união
estável. O par homossexual não se une por razões
econômicas. Tanto nos companheiros heterossexuais
como no par homossexual se encontra, como dado
131
fundamental da união, uma relação que se funda no
amor, sendo ambas relações de índole emotiva,
sentimental e afetiva. Na aplicação dos princípios
gerais do direito a uniões homossexuais se vê
protegida, pelo primado da dignidade da pessoa
humana e do direito de cada um exercer com
plenitude aquilo que é próprio de sua condição.
Somente dessa forma se cumprirá à risca, o comando
constitucional da não discriminação por sexo. A
análise dos costumes não pode discrepar do projeto
de uma sociedade que se pretende democrática,
pluralista e que repudia a intolerância e o preconceito.
Pouco importa se a relação é hétero ou homossexual.
Importa que a troca ou o compartilhamento de afeto,
de sentimento, de carinho e de ternura entre duas
pessoas humanas são valores sociais positivos e
merecem proteção jurídica. Reconhecimento de que a
união de pessoas do mesmo sexo, geram as mesmas
conseqüências previstas na união estável. Negar esse
direito
às
pessoas
por
causa
da
condição
e
orientação homossexual é limitar em dignidade a
pessoa que são. A união homossexual no caso
concreto.
Uma
vez
presentes
os
pressupostos
constitutivos da união estável (art. 1.723 do CC) e
demonstrada a separação de fato do convivente
casado, de rigor o reconhecimento da união estável
homossexual, em face dos princípios constitucionais
vigentes, centrados na valorização do ser humano.
Via de conseqüência, as repercussões jurídicas,
verificadas na união homossexual, tal como a partilha
dos bens, em face do princípio da isonomia, são as
mesmas que decorrem da união heterossexual.
DERAM
PARCIAL
(SEGREDO
DE
PROVIMENTO
JUSTIÇA)
AO
(Apelação
APELO.”
Cível
Nº
132
70021637145, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 13/12/2007).
“APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO
POR
DUAS
PESSOAS
POSSIBILIDADE.
DE
MESMO
Reconhecida
SEXO.
como
entidade
familiar, merecedora da proteção estatal, a união
formada
por
pessoas
do
mesmo
sexo,
com
características de duração, publicidade, continuidade
e
intenção
inafastável
de
é
componentes
constituir
a
família,
possibilidade
possam
decorrência
de
adotar.
que
Os
seus
estudos
especializados não apontam qualquer inconveniente
em
que
crianças
sejam
adotadas
por
casais
homossexuais, mais importando a qualidade do
vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que
serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É
hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes
hipócritas desprovidas de base científica, adotandose
uma
postura
de
firme
defesa
da
absoluta
prioridade que constitucionalmente é assegurada aos
direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da
Constituição
Federal).
Caso
em
que
o
laudo
especializado comprova o saudável vínculo existente
entre
as
crianças
e
as
adotantes.
NEGARAM
PROVIMENTO. UNÂNIME.” (SEGREDO DE JUSTIÇA)
(Apelação Cível Nº 70013801592, Sétima Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil
Santos, Julgado em 05/04/2006).
Também este 4.º Grupo Cível, deste Tribunal, por maioria, já decidiu no
mesmo sentido ora esposado, conforme se vê das ementas que transcrevo:
“AÇÃO DECLARATÓRIA. RECONHECIMENTO. UNIÃO
ESTÁVEL.
CASAL
HOMOSSEXUAL.
133
PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. CABIMENTO. A
ação declaratória é o instrumento jurídico adequado
para reconhecimento da existência de união estável
entre parceria homoerótica, desde que afirmados e
provados os pressupostos próprios daquela entidade
familiar. A sociedade moderna, mercê da evolução
dos costumes e apanágio das decisões judiciais,
sintoniza com a intenção dos casais homoafetivos em
abandonar os nichos da segregação e repúdio, em
busca da normalização de seu estado e igualdade às
parelhas matrimoniadas. EMBARGOS INFRINGENTES
ACOLHIDOS,
POR
MAIORIA.”
(SEGREDO
DE
JUSTIÇA) (Embargos Infringentes Nº 70011120573,
Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em
10/06/2005).
“UNIAO
ESTÁVEL
HOMOAFETIVA.
DIREITO
SUCESSÓRIO. ANALOGIA. INCONTROVERTIDA A
CONVIVÊNCIA DURADOURA, PÚBLICA E CONTINUA
ENTRE PARCEIROS DO MESMO SEXO, IMPOSITIVO
QUE SEJA RECONHECIDA A EXISTÊNCIA DE UMA
UNIÃO
ESTÁVEL,
ASSEGURANDO
AO
COMPANHEIRO SOBREVIVENTE A TOTALIDADE DO
ACERVO HEREDITÁRIO, AFASTADA A DECLARAÇÃO
DE VACÂNCIA DA HERANÇA. A OMISSÃO DO
CONSTITUINTE
E
DO
LEGISLADOR
EM
RECONHECER EFEITOS JURÍDICOS AS UNIÕES
HOMOAFETIVAS IMPÕE QUE A JUSTIÇA COLMATE A
LACUNA LEGAL FAZENDO USO DA ANALOGIA. O
ELO AFETIVO QUE IDENTIFICA AS ENTIDADES
FAMILIARES IMPÕE SEJA FEITA ANALOGIA COM A
UNIÃO ESTÁVEL, QUE SE ENCONTRA DEVIDAMENTE
REGULAMENTADA.
EMBARGOS
INFRINGENTES
134
ACOLHIDOS,
POR
MAIORIA.”
(EMBARGOS
INFRINGENTES Nº 70003967676, QUARTO GRUPO DE
CÂMARAS CÍVEIS, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS,
RELATOR
VENCIDO:
VASCONCELLOS
SÉRGIO
CHAVES,
FERNANDO
REDATORA
PARA
DE
O
ACÓRDÃO DESA. MARIA BERENICE DIAS, JULGADO
EM 09/05/2003).
Interessante o enfrentamento da matéria pelo colendo Superior
Tribunal de Justiça, no seguinte precedente cuja ementa transcrevo:
“PROCESSO
CIVIL.
AÇÃO
DECLARATÓRIA
DE
UNIÃO HOMOAFETIVA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE
FÍSICA DO JUIZ. OFENSA NÃO CARACTERIZADA AO
ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO
PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724
DO
CÓDIGO
CIVIL.
ALEGAÇÃO
DE
LACUNA
LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA
ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO.
1. Não há ofensa ao princípio da identidade física do
juiz, se a magistrada que presidiu a colheita
antecipada das provas estava em gozo de férias,
quando da prolação da sentença, máxime porque
diferentes os pedidos contidos nas ações principal e
cautelar.
2. O entendimento assente nesta Corte, quanto a
possibilidade jurídica do pedido, corresponde a
inexistência de vedação explícita no ordenamento
jurídico para o ajuizamento da demanda proposta.
3. A despeito da controvérsia em relação à matéria de
fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde
se pretende a declaração de união homoafetiva, não
existe vedação legal para o prosseguimento do feito.
4. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a
possibilidade de união estável entre homem e mulher,
135
dês que preencham as condições impostas pela lei,
quais
sejam,
convivência
pública,
duradoura
e
contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois
homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso
desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a
impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo
ficasse definitivamente excluída da abrangência legal.
Contudo, assim não procedeu.
5. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro
grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a
matéria,
conquanto
derive
de
situação
fática
conhecida de todos, ainda não foi expressamente
regulada.
6. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar
jurisdição sob o argumento de ausência de previsão
legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante
o uso da analogia, a fim de alcançar casos não
expressamente contemplados, mas cuja essência
coincida com outros tratados pelo legislador.
5. Recurso especial conhecido e provido.” (REsp
820475 / RJ, Relator para o acórdão Ministro LUIS
FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe 06/10/2008)
Ou seja, até mesmo o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no
sentido de que o legislador não proíbe a união entre duas pessoas do mesmo sexo,
e na lacuna legislativa, o julgador pode utilizar a analogia.
Assim, possível o reconhecimento de uma união estável entre
homossexuais, deve ser mantida a sentença de procedência da ação confirmada
pelo voto minoritário, a qual se baseou na prova contida nos autos, que de forma
cristalina demonstrou que entre a autora e a falecida existiu por vinte anos forte
relação de afeto com sentimentos e envolvimento emocionais, numa convivência
more uxoria pública e notória, com comunhão de vida e mútua assistência.
Por tais razões, o voto é pelo acolhimento dos embargos infringentes,
na esteira do voto vencido.
136
DES. RUI PORTANOVA (PRESIDENTE E REVISOR) - De acordo com o Relator.
DR. JOSÉ CONRADO DE SOUZA JÚNIOR - Desacolho os embargos, nos termos
do voto que proferi na Câmara.
DES. ANDRÉ LUIZ PLANELLA VILLARINHO - Acompanho o eminente Relator,
pelos fundamentos de seu j. voto, assim como pelas razões da decisão que proferi
na Câmara. Acolho os embargos.
DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL - Acompanho o eminente Relator.
DES. RUI PORTANOVA - Presidente - Embargos Infringentes nº 70030880603,
Comarca de Novo Hamburgo: "POR MAIORIA, ACOLHERAM OS EMBARGOS,
VENCIDO O DR. JOSÉ CONRADO DE SOUZA JÚNIOR."
Julgador(a) de 1º Grau: Dra. PATRICIA DORNELES ANTONELLI ARNOLD.
APELAÇÃO
CÍVEL.
UNIÃO
HOMOAFETIVA.
RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE.
É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva
mantida entre duas mulheres de forma pública e
ininterrupta pelo período de 16 anos. A homossexualidade
é um fato social que se perpetua através dos séculos, não
mais podendo o Judiciário se olvidar de emprestar a tutela
jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem
feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a
entidade familiar e não apenas a diversidade de sexos. É o
afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma
que a marginalização das relações homoafetivas constitui
afronta aos direitos humanos por ser forma de privação do
direito à vida, violando os princípios da dignidade da
pessoa humana e da igualdade.
Negado provimento ao apelo.
APELAÇÃO CÍVEL
Nº 70012836755
S.D.O.F. P.N.S.F.
..
N.S.F.O.
.
L.L.C.N.
..
SÉTIMA CÂMARA CÍVEL
COMARCA DE PORTO ALEGRE
APELANTE
APELANTES
APELADA
137
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, negar provimento ao apelo.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária (Presidente), os
eminentes Senhores DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS E DES. RICARDO
RAUPP RUSCHEL.
Porto Alegre, 21 de dezembro de 2005.
DESA. MARIA BERENICE DIAS,
Presidente e Relatora.
RELATÓRIO
DESA. MARIA BERENICE DIAS (PRESIDENTE E RELATORA)
Trata-se de recurso de apelação interposto pela sucessão de D. O. F.,
representada por N. S. F. e OUTROS contra a sentença que, nos autos da “ação de
reconhecimento de união estável” cumulada com petição de herança que lhe move
L. L. C. N., julgou procedente a demanda para declarar a união estável mantida
entre L. L. C. N. e D. O. F., no período compreendido entre meados de 1980 e 28-81996, reconhecendo a autora como herdeira de D. e, conseqüentemente, declarou a
nulidade da partilha realizada. Condenou, ainda, os demandados ao pagamento das
custas processuais e honorários ao patrono da autora, fixados estes em R$
1.000,00, suspendendo, porém, a exigibilidade de tais encargos, porquanto lhes
concedia o benefício da gratuidade judiciária (fls. 329-34).
Inconformada, a sucessão de D. O. F. postula a reforma da sentença,
face à ausência de provas da existência da união estável. Refere que o fato de a
apelante e D. terem adquirido um imóvel em conjunto não é suficiente para
comprovar a suposta relação, além do que, na emenda à inicial, a apelada confessa
não ter recebido a quantia referente ao seguro de vida deixado pela extinta.
Igualmente, a prova produzida às fls. 25-58, 62-5, 67, 71-4 e 141-50 não se presta a
corroborar a tese da apelada. Assevera ser inverídica a assertiva da recorrida, no
sentido de que os familiares da de cujus aceitavam a união homoafetiva mantida
entre as duas, bem como “sabiam o que se passava”. Aduz que a apelada, no ano
138
de 1990, deixou o apartamento em comum para residir em um imóvel alugado e,
quando retornou, não foi para reatar a relação, mas para ficar na posse do bem na
hipótese de eventual falecimento de D., haja vista o periclitante estado de saúde que
esta se encontrava, em razão do alcoolismo. Alega infração ao art. 226, §3º, da
Constituição Federal. Requer o provimento do apelo (fls. 336-40).
A apelada oferece contra-razões (fls. 343-50).
O Ministério Público manifestou-se pelo conhecimento e desprovimento
do recurso (fls. 351-6).
Subiram os autos a esta Corte, tendo a Procuradoria de Justiça
opinado pelo conhecimento e desprovimento da inconformidade (fls. 359-69).
Foi observado o disposto no art. 551, §2º, do CPC.
É o relatório.
VOTOS
DESA. MARIA BERENICE DIAS (PRESIDENTE E RELATORA)
A inconformidade não prospera.
Extrai-se dos autos, de forma inequívoca, a existência da união
homoafetiva mantida entre a apelada L. L. C. N. e D. O. F. pelo período de
dezesseis anos, cujo termo final deu-se com o falecimento desta, sucedido em 28-81996.
Os apelantes não contestam a coabitação mantida entre a apelada e a
extinta e nem a relação afetiva havida em si, mas, tão-somente, a ausência de
quanto à configuração de uma relação nos moldes de uma entidade familiar.
Salientam, outrossim, que a recorrida somente teria retornado à residência comum,
após um período de separação em 1990, com o objetivo de ficar na posse do imóvel
casal.
As inúmeras fotos, cartões e outros documentos acostados aos autos
dão conta do forte relacionamento havido (fls. 26-8, 30-41, 46-8, 51-8, 61-5, 66-71).
As fotografias demonstram diversos momentos da vida das consortes: viagens,
aniversários, festas em casa, momentos com amigos, momentos em família,
inclusive, com a presença da apelante N., etc.
Além de a apelada ser dependente de D. no centro de servidores do
IPE e na farmácia Droganossa (fls. 42-4), ainda mantinham conta conjunta em lojas
(fl. 45).
139
Outrossim, adquiriram, em condomínio, o imóvel localizado na Rua
Jaguari, na razão de 18,51% para a apelada e 81,49% para a falecida. Contudo, no
decorrer da relação, optaram por redefinir as frações ideais no percentual de 50%
para cada uma (fls. 193-4), fato que denota comunhão de vida, de interesses e de
embaralhamento patrimonial.
A prova oral também vem ao encontro da tese exposta na exordial,
porquanto as testemunhas confirmam que L. e D. viviam como marido e mulher (fls.
310-21).
Não bastassem esses elementos, com o passar dos anos, o casal
resolveu adotar o menino D. F. C., cujo nome, inclusive, foi escolhido em
homenagem à falecida, cujo apelido era D., e que também foi eleita a madrinha do
infante. A criança foi registrada em nome da apelada, constando como testemunhas
a de cujus e a apelante N.
Ainda que tal adoção tenha sido procedida de forma irregular (à
brasileira), tal circunstância denota o desiderato do par de formar uma família, haja
vista o fato de não poderem gerar filhos entre si.
Nesse passo, cabe registrar que a falecida tratava D. como filho.
Instituiu o afilhado como seu beneficiário no pecúlio GBOEX (fl. 60), desejava
transferir a sua parte no imóvel adquirido em conjunto com a recorrida para o infante
(fl. 59), mandava cartões para a apelada em conjunto com o menino (fls. 66-70) e
arcava com as despesas inerentes ao sustento deste (fls. 195-6 e 202-5). A simples
leitura do cartão da fl. 71, escrito para o afilhado, não deixa dúvidas de que o tinha
como filho.
Igualmente, não prospera a alegação de que a apelada teria retornado
à residência comum, após uma separação, somente por interesses econômicos.
Nesse sentido, precisas as ponderações da julgadora a quo (fls. 3323):
Diante disso, fica evidente que o fato da autora ter em
algumas ocasiões saído da residência comum, por brigas e
para proteger o filho das conseqüências disso, não
descaracteriza a união estável, até porque em nenhum
momento ela fez mudança, e sempre voltava para casa, aliás,
isso também admitido pela demandada N. ao responder uma
pergunta a respeito da separação: “depois ela voltou de novo”
e nunca mais saiu até a morte da D. (fl. 316).
140
Além de ser comum entre os casais algumas brigas e rompimentos, na
espécie, não se pode olvidar que a falecida estava doente (cirrose) e era alcoolista
e, segundo a apelada, por vezes se tornava agressiva, fato que justificava o
afastamento dela e do menino do lar comum.
Igualmente, não há falar em infração ao art. 226, §3º, da Constituição
Federal.
A hjomossexualidade remonta às mais antigas civilizações, conforme
muito bem observado pelo Des. José Carlos Teixeira Giorgis, em precisa análise
histórica sobre o assunto, que peço vênia para transcrever:
É irrefutável que a homossexualidade sempre existiu, podendo
ser encontrada nos povos primitivos, selvagens e nas
civilizações mais antigas, como a romana, egípcia e assíria,
tanto que chegou a relacionar-se com a religião e a carreira
militar, sendo a pederastia uma virtude castrense entre os
dórios, citas e os normandos.
Sua maior feição foi entre os gregos, que lhe atribuíam
predicados como a intelectualidade, a estética corporal e a
ética comportamental, sendo considerada mais nobre que a
relação heterossexual, e prática recomendável por sua
utilidade.
Com o cristianismo, a homossexualidade passou a ser tida
como uma anomalia psicológica, um vício baixo, repugnante, já
condenado em passagens bíblicas (...com o homem não te
deitarás, como se fosse mulher: é abominação, Levítico, 18:22)
e na destruição de Sodoma e Gomorra.
Alguns teólogos modernos associam a concepção bíblica de
homossexualidade aos conceitos judaicos que procuravam
preservar o grupo étnico e, nesta linha, toda a prática sexual
entre os hebreus só se poderia admitir com a finalidade de
procriação, condenado-se qualquer ato sexual que
desperdiçasse o sêmen; já entre as mulheres, por não haver
perda seminal, a homossexualidade era reputada como mera
lascívia.
Estava, todavia, freqüente na vida dos cananeus, dos gregos,
dos gentios, mas repelida, até hoje, entre os povos islâmicos,
que tem a homossexualidade como um delito contrário aos
costumes religiosos.
A idade Média registra o florescimento da homossexualidade
em mosteiros e acampamentos militares, sabendo-se que na
Renascença, artistas como Miguel Ângelo e Francis Bacon
cultivavam a homossexualidade (APC 70001388982, 7ª CC,
Rel.: José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em 14/3/01).
Inconteste que o relacionamento homoafetivo é um fato social que se
perpetua através dos séculos, não pode mais o Judiciário se olvidar de prestar a
tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A
141
união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não a diversidade de sexo.
E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a
marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma
de privação do direito à vida, em atitude manifestamente preconceituosa e
discriminatória. Deixemos de lado as aparências e vejamos a essência.
Sobre o tema, manifestei-me no livro Homoafetividade – O que diz a
Justiça:
A correção de rumos foi feita pela Constituição Federal, ao
outorgar proteção não mais ao casamento, mas à família.
Como bem diz Zeno Veloso, num único dispositivo o
constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito.
Restou o afeto inserido no âmbito de proteção do sistema
jurídico. Limitou-se o constituinte a citar expressamente as
hipóteses mais freqüentes – as uniões estáveis entre um
homem e uma mulher e a comunidade de qualquer dos pais
com seus filhos – sem, no entanto, excluir do conceito de
entidade familiar outras estruturas que têm como ponto de
identificação o enlaçamento afetivo. O caput do art. 226 é,
conseqüentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo
admissível excluir qualquer entidade que preencha os
requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade.
Assim, não há como deixar de reconhecer que a comunidade
dos filhos que sobreviveram aos pais ou a convivência dos
avós com os netos não constituem famílias monoparentais. Da
mesma forma não é possível negar a condição família às
uniões de pessoas do mesmo sexo. Conforme bem refere
Roger Raupp Rios, ventilar-se a possibilidade de
desrespeito ou prejuízo a um ser humano, em função da
orientação sexual, significa dispensar tratamento indigno a
um ser humano (in Homoafetividade – o que diz a Justiça.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, pp. 13/14).
A Constituição Federal proclama o direito à vida, à liberdade, à
igualdade e à intimidade (art. 5º, caput) e prevê como objetivo fundamental, a
promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV). Dispõe, ainda, que “a lei
punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”
(art. 5º, XLI). Portanto, sua intenção é a promoção do bem dos cidadãos, que são
livres para ser, rechaçando qualquer forma de exclusão social ou tratamento
desigual.
Outrossim, a Carta Maior é a norma hipotética fundamental validante
do ordenamento jurídico, da qual a dignidade da pessoa humana é princípio basilar
vinculado umbilicalmente aos direitos fundamentais. Portanto, tal princípio é norma
142
fundante, orientadora e condicional, tanto para a própria existência, como para a
aplicação do direito, envolvendo o universo jurídico como um todo. Esta norma atua
como qualidade inerente, logo indissociável, de todo e qualquer ser humano,
relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de
cada indivíduo.
Nesse passo, os ensinamentos do jurista Ingo Wolfgang Sarlet:
“{...} Na feliz formulação de Jorge Miranda, o fato de os seres
humanos (todos) serem dotados de razão e consciência
representa justamente o denominador comum a todos os
homens, expressando em que consiste a sua igualdade.
Também o Tribunal Constitucional da Espanha, inspirado
igualmente na Declaração universal, manifestou-se no sentido
de que “a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à
pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação
consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a
pretensão ao respeito por parte dos demais.
Nesta mesma linha situa-se a doutrina de Günter Dürig,
considerado um dos principais comentadores da Lei
Fundamental da Alemanha da segunda metade do século XX.
Segundo este renomado autor, a dignidade da pessoa humana
consiste no fato de que “cada ser humano é humano por força
de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o
capacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se
consciente de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem
como de formatar a sua existência e o meio que o circunda” (in
Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na
Constituição Federal de 1988, Livraria do Advogado editora,
2001, p. 43/44).
Por conseguinte, a Constituição da República, calcada no princípio da
dignidade da pessoa humana e da igualdade, se encarrega de salvaguardar os
interesses das uniões homoafetivas. Qualquer entendimento em sentido contrário é
que seria inconstitucional. E quanto à tutela específica dessas relações, aplica-se
analogicamente a legislação infraconstitucional atinente às uniões estáveis.
Nesse sentido, há precedentes de vanguarda desta Corte:
RELAÇÃO HOMOERÓTICA. UNIÃO ESTÁVEL. APLICAÇÃO DOS
PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE HUMANA E DA
IGUALDADE. ANALOGIA. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO. VISÃO
ABRANGENTE DAS ENTIDADES FAMILIARES. REGRAS DE INCLUSÃO.
PARTILHA DE BENS. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. INTELIGÊNCIA
DOS ARTIGOS 1.723, 1.725 E 1.658 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002.
PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. Constitui união estável a relação
fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua,
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família,
observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados
os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos
princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das
143
entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de inclusão.
Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo
o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas (TJRS, Apelação
Cível nº 70005488812, Sétima Câmara Cível, Relator: José Carlos Teixeira
Giorgis, julgado em 25/06/2003).
UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA.
Incontrovertida a convivência duradoura, pública e contínua entre parceiros
do mesmo sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união
estável, assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo
hereditário, afastada a declaração de vacância da herança. A omissão do
constituinte e do legislador em reconhecer efeitos jurídicos às uniões
homoafetivas impõe que a Justiça colmate a lacuna legal fazendo uso da
analogia. O elo afetivo que identifica as entidades familiares impõe seja feita
analogia com a união estável, que se encontra devidamente regulamentada.
Embargos infringentes acolhidos por maioria (TJRS, Embargos Infringentes
nº 70003967676, 4º Grupo Cível, Relator: Desª Maria Berenice Dias, julgado
em 9 de maio de 2003).
Diante de todos esses elementos, a existência da relação afetiva
exsurge dos autos, revelando-se impositiva a manutenção da sentença que a
reconheceu.
Nesses termos, correta se mostra a sentença de lavra da Dra. Jucelana
Lurdes Pereira dos Santos que conferiu efeitos jurídicos à relação havida,
reconhecendo direitos sucessórios à apelada.
Por tais fundamentos, é de ser negado provimento ao apelo.
DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (REVISOR) - De acordo.
DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL - De acordo.
DESA. MARIA BERENICE DIAS - Presidente - Apelação Cível nº 70012836755,
Comarca de Porto Alegre: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME."
Julgador(a) de 1º Grau: JUCELANA LURDES PEREIRA DOS SANTOS
APELAÇÃO
CÍVEL.
UNIÃO
HOMOAFETIVA.
RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE.
É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva
mantida entre dois homens de forma pública e ininterrupta
pelo período de nove anos. A homossexualidade é um fato
social que se perpetuou através dos séculos, não podendo
o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a
144
uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de
família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade
familiar e não apenas a diversidade de gêneros. E, antes
disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do
viver, de forma que a marginalização das relações
mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de
privação do direito à vida, bem como viola os princípios da
dignidade da pessoa humana e da igualdade.
AUSÊNCIA DE REGRAMENTO ESPECÍFICO. UTILIZAÇÃO
DE ANALOGIA E DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO.
A ausência de lei específica sobre o tema não implica
ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir
as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em
consonância com os preceitos constitucionais (art. 4º da
LICC).
Negado provimento ao apelo, vencido o Des. Sérgio
Fernando de Vasconcellos Chaves.
APELAÇÃO CÍVEL
SÉTIMA CÂMARA CÍVEL
Nº 70009550070
COMARCA DE PORTO ALEGRE
I.M.A.
..
J.A.F.A.
..
A.D.O.
..
E.G.F.M.A.
..
APELANTE
APELANTE
APELADO
INTERESSADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, negar provimento ao apelo, vencido o
Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes
Senhores DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS E DES. SÉRGIO FERNANDO
SILVA DE VASCONCELLOS CHAVES.
Porto Alegre, 17 de novembro de 2004.
DESA. MARIA BERENICE DIAS,
Relatora-Presidente.
145
RELATÓRIO
DESA. MARIA BERENICE DIAS (RELATORA-PRESIDENTE)
A. D. O. ajuíza ação declaratória de união estável contra I. M. A. e J. A.
A., alegando ter vivido maritalmente com G. F. M. A. no período compreendido entre
dezembro de 1989 até 19 de dezembro de 1998, data do óbito do companheiro.
Refere ser portador do vírus HIV, da mesma forma que o era o falecido. Assevera
que o relacionamento homossexual havido era público e notório, com o
conhecimento, inclusive, dos pais do parceiro, que realizaram cessão de direitos
hereditários em benefício do requerente, em manifesto reconhecimento do
relacionamento havido. Requer a procedência do pedido e a concessão do benefício
da gratuidade judiciária (fls. 2/9).
Em contestação, os requeridos asseveram que a relação havida entre
o filho e o autor era única e exclusivamente de amizade, e viviam juntos na mesma
casa com o objetivo de ratearem as despesas. Informam que o falecido era visto em
várias festas com mulheres, bem como teve relacionamento duradouro com uma
namorada, sendo a alegação de que era homossexual pura difamação e inverdade.
Alegam terem sido enganados e induzidos pelo autor, que se beneficiou do fato de
estarem eles abalados com a morte do filho para obter sua assinatura na cessão de
direitos hereditários. Pensavam que se tratava de documento para dar início à
abertura do inventário, pois sequer têm noção do que significa uma escritura pública
de cessão de direitos hereditários. Se a vontade de G. F. fosse beneficiar o
requerente, certamente o teria feito em vida, pois já se encontrava doente há meses
e sabia de sua situação. O autor, além de ter se apropriado de todo o patrimônio do
de cujus, pretende obter a pensão que a ré recebe do filho, sendo essa a única
renda da família, pois o demandado se encontra desempregado. Requerem a
improcedência do pedido, bem como seja considerada nula a escritura pública de
cessão de direitos hereditários. Postulam, ainda, o benefício da gratuidade judiciária
(fls. 97/100).
Sobrevieram réplica e tréplica (fls. 107/111 e 170/172).
Em audiência foi colhida a prova oral, realizados debates orais e
encerrada a instrução (fls. 248/262).
146
Sentenciando, o magistrado julgou procedente a ação, reconhecendo a
sociedade havida entre os companheiros A. e G. F., no período de dezembro de
1989 até 19 de dezembro de 1998. Vencidos os réus, condenou-os ao pagamento
das custas processuais e honorários advocatícios, fixados em R$ 520,00,
declarando suspensa a exigibilidade de tais encargos (fls. 263/267).
Os demandados interpuseram embargos declaratórios, os quais foram
julgados improcedentes (fls. 269/270 e 271).
Inconformados, apelam os demandados, alegando, preliminarmente, a
ocorrência de julgamento extra petita, uma vez que a ação ajuizada pelo autor foi de
reconhecimento de união estável, e a sentença reconheceu apenas a sociedade de
fato havida entre A. e G. F., os quais se tratam de institutos jurídicos diversos.
Argumenta que a união estável entre homossexuais somente poderá ser discutida
depois de alterada a Constituição da República, pois a legislação pátria prevê o
casamento e união estável somente entre um homem e uma mulher e não entre
pessoas de mesmo sexo. Asseveram ter o apelado já tomado posse de todos os
bens do de cujus, mediante escritura pública de cessão de direitos hereditários,
tornando sem objetivo a presente ação. Salienta que a apelante é completamente
analfabeta, e o apelante é semi-analfabeto, sendo pessoas idosas, extremamente
humildes e de fácil indução. Requerem o provimento do apelo (fls. 273/279).
O apelado apresentou contra-razões (fls. 285/289).
O Ministério Público opinou manifestou-se pela remessa dos autos à
Superior Instância (fls. 291/292).
Subiram os autos a esta Corte, tendo a Procuradoria de Justiça
opinado pelo conhecimento e desprovimento do apelo (fls. 255/259).
Foi observado o disposto no art. 551, §2º, do Código de Processo Civil.
É o relatório.
VOTOS
DESA. MARIA BERENICE DIAS (RELATORA-PRESIDENTE)
Inicialmente, é de ser enfrentada a preliminar de julgamento extra petita
levantada pelos apelantes, sob a alegação de ter o decisum reconhecido a
existência de uma sociedade de fato, quando o pedido postulado pelo autor foi de
reconhecimento de união estável.
147
De todo descabida a prefacial argüida.
In casu, a ação foi denominada de “declaratória de união estável” e a
fundamentação apresentada no transcorrer do processo foi toda nesse sentido. O
julgador, ao sentenciar, declarou a existência da “sociedade” havida entre os
companheiros
e,
posteriormente,
em
sede
de
aclaratórios,
reconheceu
expressamente a existência de uma “relação homoafetiva” nos seguintes termos: O
que se reconheceu, é bem de lembrar, foi uma relação homoafetiva. Ao mesmo
tempo em que afastou a incidência, ao caso em tela, do art. 226, §3º, da
Constituição Federal, em nenhum momento, referiu-se a relação como uma
“sociedade de fato”.
A dificuldade reside na incerteza que o tema ainda gera, somada à
inexistência de um consenso doutrinário e jurisprudencial a respeito da terminologia
utilizável para a relação amorosa mantida entre duas pessoas do mesmo sexo.
Paralelamente a esse contexto, cumpre ressaltar que o presente feito não tem
objetivos patrimoniais, mas tão-só previdenciários, de forma que não há patrimônio
comum a ser dividido. Logo, o reconhecimento da relação havida como mera
sociedade de fato pelo julgador a quo seria de todo inócua, pois essa é declarada
quando há a efetiva e comprovada colaboração de um dos consortes na aquisição
de patrimônio que se encontra registrado apenas no nome do outro, a fim de evitar a
ocorrência de enriquecimento ilícito.
Certamente não é esse o caso dos autos, pois houve a procedência
total do pedido pelo juízo a quo, com o manifesto reconhecimento da relação havida,
exposto nos seguintes termos: Viveram unidos, de forma ininterrupta de 1989 até
dezembro de 1998. Viveram uma sociedade, uma relação afetiva, que merece a
proteção da lei e o reconhecimento do judiciário.
Além disso, precisa a argumentação da Procuradoria de Justiça no
sentido de que O nomen iuris dado ao objeto do pedido não tem relevância, sendo
possível que o pedido seja acolhido com nome jurídico diverso (fl. 256).
Necessário, ainda, observar, que não são raras as vezes em que o
judiciário, afastando pedido de dissolução de união estável, declara a existência de
sociedade de fato, conferindo direito a uma das partes sobre determinado bem.
Assim, ainda que a sentença houvesse reconhecido eventual sociedade de fato – o
que não é o caso dos autos – não configuraria decisão extra petita.
Nesses termos, o desacolhimento da preliminar se impõe.
148
No mérito, melhor sorte não assiste aos apelantes.
A argumentação dos recorrentes, de que inexiste lei especial a tutelar
os relacionamentos homoafetivos, não encontra respaldo no ordenamento jurídico. A
ausência de regramento específico não quer dizer ausência de direito, pois existem
mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os
preceitos constitucionais (art. 4º da LICC).
O homossexualismo remonta às mais antigas civilizações, conforme
muito bem observado pelo Des. José Carlos Teixeira Giorgis, em precisa análise
histórica sobre o assunto, que peço vênia para transcrever:
É irrefutável que a homossexualidade sempre existiu, podendo
ser encontrada nos povos primitivos, selvagens e nas
civilizações mais antigas, como a romana, egípcia e assíria,
tanto que chegou a relacionar-se com a religião e a carreira
militar, sendo a pederastia uma virtude castrense entre os
dórios, citas e os normandos.
Sua maior feição foi entre os gregos, que lhe atribuíam
predicados como a intelectualidade, a estética corporal e a
ética comportamental, sendo considerada mais nobre que a
relação heterossexual, e prática recomendável por sua
utilidade.
Com o cristianismo, a homossexualidade passou a ser tida
como uma anomalia psicológica, um vício baixo, repugnante, já
condenado em passagens bíblicas (...com o homem não te
deitarás, como se fosse mulher: é abominação, Levítico, 18:22)
e na destruição de Sodoma e Gomorra.
Alguns teólogos modernos associam a concepção bíblica de
homossexualidade aos conceitos judaicos que procuravam
preservar o grupo étnico e, nesta linha, toda a prática sexual
entre os hebreus só se poderia admitir com a finalidade de
procriação, condenado-se qualquer ato sexual que
desperdiçasse o sêmen; já entre as mulheres, por não haver
perda seminal, a homossexualidade era reputada como mera
lascívia.
Estava, todavia, freqüente na vida dos cananeus, dos gregos,
dos gentios, mas repelida, até hoje, entre os povos islâmicos,
que tem a homossexualidade como um delito contrário aos
costumes religiosos.
A idade Média registra o florescimento da homossexualidade
em mosteiros e acampamentos militares, sabendo-se que na
Renascença, artistas como Miguel Ângelo e Francis Bacon
cultivavam a homossexualidade (APC 70001388982, 7ª CC,
Rel.: José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em 14/3/01).
Inconteste que o relacionamento homoafetivo é um fato social que se
perpetuou através dos séculos, não podendo o judiciário se olvidar de prestar a
149
tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A
união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não a diversidade de
gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de
forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo
constitui forma de privação do direito à vida, em atitude manifestamente
preconceituosa e discriminatória. Deixemos de lado as aparências e vejamos a
essência.
Sobre o tema, manifestei-me no livro Homoafetividade – O que diz a
Justiça:
A correção de rumos foi feita pela Constituição Federal, ao
outorgar proteção não mais ao casamento, mas à família.
Como bem diz Zeno Veloso, num único dispositivo o
constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito.
Restou o afeto inserido no âmbito de proteção do sistema
jurídico. Limitou-se o constituinte a citar expressamente as
hipóteses mais freqüentes – as uniões estáveis entre um
homem e uma mulher e a comunidade de qualquer dos pais
com seus filhos – sem, no entanto, excluir do conceito de
entidade familiar outras estruturas que têm como ponto de
identificação o enlaçamento afetivo. O caput do art. 226 é,
conseqüentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo
admissível excluir qualquer entidade que preencha os
requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade.
Assim, não há como deixar de reconhecer que a comunidade
dos filhos que sobreviveram aos pais ou a convivência dos
avós com os netos não constituem famílias monoparentais. Da
mesma forma não é possível negar a condição família às
uniões de pessoas do mesmo sexo. Conforme bem refere
Roger Raupp Rios, ventilar-se a possibilidade de
desrespeito ou prejuízo a um ser humano, em função da
orientação sexual, significa dispensar tratamento indigno a
um ser humano (in Homoafetividade – o que diz a Justiça.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, pp. 13/14).
A Constituição Federal proclama o direito à vida, à liberdade, à
igualdade e à intimidade (art. 5º, caput) e prevê como objetivo fundamental, a
promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV). Dispõe, ainda, que “a lei
punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”
(art. 5º, XLI). Portanto, sua intenção é a promoção do bem dos cidadãos, que são
livres para ser, rechaçando qualquer forma de exclusão social ou tratamento
desigual.
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Outrossim, a Carta Maior é a norma hipotética fundamental validante
do ordenamento jurídico, da qual a dignidade da pessoa humana é princípio basilar
vinculado umbilicalmente aos direitos fundamentais. Portanto, tal princípio é norma
fundante, orientadora e condicional, tanto para a própria existência, como para a
aplicação do direito, envolvendo o universo jurídico como um todo. Esta norma atua
como qualidade inerente, logo indissociável, de todo e qualquer ser humano,
relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de
cada indivíduo.
Nesse passo, os ensinamentos do jurista Ingo Wolfgang Sarlet:
“{...} Na feliz formulação de Jorge Miranda, o fato de os seres
humanos (todos) serem dotados de razão e consciência
representa justamente o denominador comum a todos os
homens, expressando em que consiste a sua igualdade.
Também o Tribunal Constitucional da Espanha, inspirado
igualmente na Declaração universal, manifestou-se no sentido
de que “a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à
pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação
consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a
pretensão ao respeito por parte dos demais.
Nesta mesma linha situa-se a doutrina de Günter Dürig,
considerado um dos principais comentadores da Lei
Fundamental da Alemanha da segunda metade do século XX.
Segundo este renomado autor, a dignidade da pessoa humana
consiste no fato de que “cada ser humano é humano por força
de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o
capacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se
consciente de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem
como de formatar a sua existência e o meio que o circunda” (in
Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na
Constituição Federal de 1988, Livraria do Advogado editora,
2001, p. 43/44).
Por conseguinte, a Constituição da República, calcada no princípio da
dignidade da pessoa humana e da igualdade, se encarrega de salvaguardar os
interesses das uniões homoafetivas. Qualquer entendimento em sentido contrário é
que seria inconstitucional. E quanto à tutela específica dessas relações, aplica-se
analogicamente a legislação infraconstitucional atinente às uniões estáveis.
Nesse sentido, há precedentes de vanguarda desta Corte:
RELAÇÃO HOMOERÓTICA. UNIÃO ESTÁVEL. APLICAÇÃO DOS
PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE HUMANA E DA
IGUALDADE. ANALOGIA. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO. VISÃO
ABRANGENTE DAS ENTIDADES FAMILIARES. REGRAS DE INCLUSÃO.
PARTILHA DE BENS. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. INTELIGÊNCIA
DOS ARTIGOS 1.723, 1.725 E 1.658 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002.
PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. Constitui união estável a relação
151
fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua,
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família,
observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados
os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos
princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das
entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de inclusão.
Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo
o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas (TJRS, Apelação
Cível nº 70005488812, Sétima Câmara Cível, Relator: José Carlos Teixeira
Giorgis, julgado em 25/06/2003).
UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA.
Incontrovertida a convivência duradoura, pública e contínua entre parceiros
do mesmo sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união
estável, assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo
hereditário, afastada a declaração de vacância da herança. A omissão do
constituinte e do legislador em reconhecer efeitos jurídicos às uniões
homoafetivas impõe que a Justiça colmate a lacuna legal fazendo uso da
analogia. O elo afetivo que identifica as entidades familiares impõe seja feita
analogia com a união estável, que se encontra devidamente regulamentada.
Embargos infringentes acolhidos por maioria (TJRS, Embargos Infringentes
nº 70003967676, 4º Grupo Cível, Relator: Desª Maria Berenice Dias, julgado
em 9 de maio de 2003).
Conforme já mencionado, e que pode ser verificado no depoimento
pessoal das partes, a ação não tem pretensões patrimoniais, mas tão-somente
previdenciárias, sendo descabida a alegação dos recorrentes de que a ação não
teria qualquer objetivo. Como os apelantes cederam os direitos hereditários relativos
aos bens deixados pelo filho ao apelado não há patrimônio a ser dividido (fls. 60/86).
Da análise dos autos, resta inequívoca a existência da união
homoafetiva mantida entre G.F. e A. pelo período de nove anos, cujo termo final
deu-se com o falecimento daquele. A coabitação nunca foi contestada pelos
recorrentes, mas somente o fato sustentado pelo apelado de que viviam como
amantes. Observe-se que, em razões de apelação, sequer foi repetida a tese de que
a relação existente entre A. e G.F. era somente de amizade e não de amor.
As inúmeras fotos, cartões e outros documentos acostados aos autos
dão conta do forte relacionamento havido (fls. 19/59 e 128/161). As fotografias
demonstram diversos momentos da vida dos consortes: viagens, aniversários, festas
em casa, momentos com amigos, a formatura de G. F., etc., bem como os cartões
denotam a profundidade do amor existente entre eles. Das seis testemunhas
arroladas pelo recorrido, todas afirmam veementemente que G. F. e A. viviam como
um casal, e cinco confirmam que os apelantes tinham conhecimento da relação,
sendo que em nenhum momento foi referida eventual solução de continuidade no
relacionamento. Ao contrário, da leitura dos depoimentos é possível constatar a
manutenção deste (fls. 255/261).
152
Nessa linha, cumpre transcrever trechos dos depoimentos de M. I. R. e
S. A. V., respectivamente (fls. 255/256 e 257):
“Pelo que pode precisar, o A. e G. F. moraram juntos de 1989
até a morte de G. F.. Nunca houve separação do casal. {...} A
depoente diz que freqüentava a casa dos pais de G. Pode
garantir que os pais do falecido sabiam da relação havida pelo
filho, com o A. {...} A depoente diz que o A. e o G. F. dormiram
juntos. Eles tinham quarto de casal. Diz que essa situação era
aberta. Todos sabiam do que se passa com os companheiros”.
“A depoente diz que o A. e o G. eram companheiros. A
depoente diz que eles não eram amigos. Eles viviam num
quarto de casal. Eles tinham cama de casal. Eles tinham
relação afetiva um com o outro. {...} A depoente, como
decoradora, sempre acompanhava o casal, quando iam fazer
alguma mudança. A depoente diz que nunca houve separação
do G. e do F. a depoente diz que eles eram um casal com
certeza.{...} A depoente diz que aniversários e outras festas,
compareciam lá no apartamento, os pais do G. A depoente
garante que os pais do G. sabiam dessa relação do A. e do G.,
filho dos réus. A depoente diz que acompanhou o A. e o G., lá
em Canoas, na casa dos pais, dos réus”.
Os apelantes arrolaram uma única testemunha, Z. F. M. P., tia do
falecido, que negou a relação, afirmando a condição de amigos do apelado e do
falecido. Essa declaração, além de convergir somente com o depoimento pessoal da
recorrente, esmorece diante de todas as provas produzidas.
Importante referir, ainda, que o apelado vendeu o patrimônio do casal,
e, com o produto da venda, adquiriu um apartamento menor para si e uma casa para
o sobrinho de G. F., pois este, em vida, tinha manifestado o desejo de ajudar o filho
de seu falecido irmão (fls. 250/250 e 255/256).
Diante de todos esses elementos, a existência da relação afetiva
exsurge dos autos, revelando-se impositiva a manutenção da sentença que a
reconheceu.
Por fim, de todo irrelevante a assertiva dos recorrentes, no sentido de
que são pessoas humildes e de fácil indução, ao referirem-se à mencionada cessão
de direitos hereditários, pois o pedido de nulidade foi corretamente afastado pelo
juízo a quo, haja vista a ausência de oferecimento de reconvenção.
Por tais fundamentos, é de ser negado provimento ao apelo.
153
LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – REVISOR O tratamento analógico das uniões homossexuais como
entidades familiares segue a evolução jurisprudencial iniciada em meados do séc.
XIX no Direito francês, que culminou no reconhecimento da sociedade de fato nas
formações familiares entre homem e mulher não vinculadas pelo casamento. À
época, por igual, não havia, no ordenamento jurídico positivo brasileiro, e nem no
francês, nenhum dispositivo legal que permitisse afirmar que união fática entre
homem e mulher constituía família, daí por que o recurso à analogia, indo a
jurisprudência inspirar-se em um instituto tipicamente obrigacional como a sociedade
de fato.
Houve resistências inicialmente? Claro que sim, como as há
agora em relação às uniões entre pessoas do mesmo sexo. O fenômeno, a meu ver,
é rigorosamente o mesmo. Vejam : não estou afirmando que tais relacionamentos
constituem exatamente uma união estável. O que estou dizendo é que, se é para
tratar por analogia, muito mais se assemelha a uma união estável do que a uma
sociedade de fato. Por quê? Porque a affectio que leva estas duas pessoas a
viverem juntas, a partilharem os momentos bons e maus da vida é muito mais a
affectio conjugalis do que a affectio societatis. Eles não estão ali para obter
resultados econômicos da relação, mas, sim, para trocarem afeto, e esta troca de
afeto é que forma uma entidade familiar. Pode-se dizer que não é união estável, mas
é uma entidade familiar, com a devida vênia de opiniões respeitabilíssimas em
contrário.
Estamos hoje, como muito bem ensina Luiz Edson Fachin,
na perspectiva daquilo que ele chama de família eudemonista, ou seja, a família que
se justifica exclusivamente pela busca da felicidade, da realização pessoal dos seus
indivíduos. E essa realização pessoal pode dar-se dentro da heterossexualidade ou
da homossexualidade, é uma questão de opção, ou de determinismo, controvérsia
esta sobre a qual a Ciência ainda não chegou a uma conclusão definitiva, mas, de
qualquer forma, é uma decisão, e, como tal, deve ser respeitada.
Parece inegável que o que leva estas pessoas a conviverem
é o amor. Prefiro dizer amor mesmo, não mero afeto, porque o afeto, conforme as
teorias psicanalíticas afirmam, pode ser o ódio também. Todo sentimento é um
afeto, de forma que me parece mais adequado dizer que são relações de amor,
cercadas, ainda, por preconceitos. Como tal, são aptas a servir de base a entidades
154
familiares equiparáveis, para todos os efeitos, à união estável entre homem e
mulher.
Em contrário a esse entendimento costuma-se esgrimir
sobretudo com o argumento de que as entidades familiares estão especificadas na
Constituição Federal, e que dentre elas não se alinha a união entre pessoas de
mesmo sexo. Respondendo a tal argumento, colaciono aqui preciosa lição de
MARIA CELINA BODIN DE MORAES (“A união entre pessoas do mesmo sexo: uma
análise sob a perspectiva civil-constitucional” - in RTDC vol. 1 p. 89/112), onde
aquela em. jurista assim se manifesta :
“O argumento jurídico mais consistente, contrário à natureza
familiar da união civil entre pessoas do mesmo sexo, provém
da interpretação do Texto Constitucional. Nele encontram-se
previstas expressamente três formas de configurações
familiares: aquela fundada no casamento, a união estável entre
um homem e uma mulher com ânimo de constituir família (art.
226, §3º), além da comunidade formada por qualquer dos pais
e seus descendentes (art. 226, §4º). Alguns autores, em
respeito à literalidade da dicção constitucional e com
argumentação que guarda certa coerência lógica, entendem
que ‘qualquer outro tipo de entidade familiar que se queira
criar, terá que ser feito via emenda constitucional e não por
projeto de lei’”.
“O raciocínio jurídico implícito a este posicionamento pode ser
inserido entre aqueles que compõem a chamada teoria da
‘norma geral exclusiva’ segundo a qual, resumidamente, uma
norma, ao regular um comportamento, ao mesmo tempo exclui
daquela regulamentação todos os demais comportamentos129.
Como se salientou em doutrina, a teoria da nomra geral
exclusiva tem o seu ponto fraco no fato de que, nos
ordenamentos jurídicos , há uma outra norma geral
(denominada inclusiva), cuja característica é regular os casos
não previstos na norma, desde que semelhantes a ele, de
maneira idêntica130. De modo que, frente a uma lacuna, cabe
ao intérprete decidir se deve aplicar a norma geral exclusiva,
usando o argumento a contrario sensu, ou se deve aplicar a
norma geral inclusiva, através do argumento a simili ou
analógico”.
“Sem abandonar os métodos clássicos de interpretação,
verificou-se que outras dimensões, de ordem social,
econômica, política, cultural etc., mereceriam ser consideradas
, muito especialmente para interpretação dos textos das longas
Constituições democráticas que se forjaram a partir da
segunda metade deste século. Sustenta a melhor doutrina,
129
E.Zietelman, Lüken im Recht, (1903) e D. Donati, Il problema delle ordinamento giuridico (1910)
apud N. Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, (1950), Brasília-São Paulo, Ed. UNB-Polis, 1989, p.
132 e ss.
130
N. Bobbio, Teoria do Ordenamento, cit. p.135.
155
modernamente, com efeito, a necessidade de se utilizar
métodos de interpretação que levem em conta trata-se de
dispositivo constante da Lei Maior e, portanto, métodos
específicos de interpretação constitucional devem vir à baila”.
“Daí ser imprescindível enfatizar, no momento interpretativo, a
especificidade da normativa constitucional – composta de
regras e princípios –, e considerar que os preceitos
constitucionais
são,
essencialmente,
muito
mais
indeterminados e elásticos do que as demais normas e,
portanto, ‘não predeterminam, de modo completo, em nenhum
caso, o ato de aplicação, mas este se produz ao amparo de um
sistema normativo que abrange diversas possibilidades’131.
Assim é que as normas constitucionais estabelecem, através
de formulações concisas, ‘apenas os princípios e os valores
fundamentais do estatuto das pessoas na comunidade, que
hão de ser concretizados no momento de sua aplicação’ ” 132.
“Por outro lado, é preciso não esquecer que segundo a
perspectiva metodológica de aplicação direta da Constituição
às relações intersubjetivas, no que se convencionou denominar
de ‘direito civil-constitucional’, a normativa constitucional,
mediante aplicação direta dos princípios e valores antes
referidos, determina o iter interpretativo das normas de direito
privado – bem como a colmatação de suas lacunas –, tendo
em vista o princípio de solidariedade que transformou,
completamente, o direito privado vigente anteriormente, de
cunho marcadamente individualístico. No Estado democrático e
social de Direito, as relações jurídicas privadas ‘perderam o
caráter estritamente privatista e inserem-se no contexto mais
abrangente de relações a serem dirimidas, tendo-se em vista,
em última instância, no ordenamento constitucional”.
“Seguindo-se estes raciocínios hermenêuticos, o da
especificidade da interpretação normativa civil à luz da
Constituição, cumpre verificar se por que a norma
constitucional não previu outras formas de entidades familiares,
estariam elas automaticamente excluídas do ordenamento
jurídico, sendo imprescindível, neste caso, a via emendacional
para garantir proteção jurídica às uniões civis entre pessoas do
mesmo sexo, ou se, ao contrário, tendo-se em vista a similitude
das situações, estariam essas uniões abrangidas pela
expressão constitucional ‘entidade familiar’”.
“Ressalte-se que a Constituição Federal de 1988, além dos
dispositivos enunciados em tema de família, consagrou, no art.
1º, III, entre os seus princípios fundamentais, a dignidade da
pessoa humana, ‘impedindo assim que se pudesse admitir a
superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de
seus integrantes, mesmo em se tratando de instituições com
status constitucional, como é o caso da empresa, da
propriedade e da família’133. Assim sendo, embora tenha
ampliado seu prestígio constitucional, a família, como qualquer
131
E. Alonso Garcia, La Interpretacion de la Constituición, Madrid, Centro de Estudios
Constitucionales, 1984, p. 16.
132
J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Funadamentais na Costituição Portuguesa de 1976, Coimbra,
Almedina, 1987, p. 120.
133
G.Tepedino, Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1999, p.350.
156
outra comunidade de pessoas, ‘deixa de ter valor intrínseco,
como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples
fato de existir, passando a ser valorada de maneira
instrumental, tutelada na media em que se constitua em um
núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos
filhos e de promoção da dignidade de seus integrantes’134. É o
fenômeno da ‘funcionalização’ das comunidades intermediárias
– em especial da família – com relação aos membros que as
compõem135”.
“A proteção jurídica que era dispensada com exclusividade à
‘forma’ familiar (pense-se no ato formal do casamento) foi
substituída, em consequência, pela tutela jurídica atualmente
atribuída ao ‘conteúdo’ ou à substância: o que se deseja
ressaltar é que a relação estará protegida não em decorrência
de possuir esta ou aquela estrutura, mesmo se e quando
prevista constitucionalemnte, mas em virtude da função que
desempenha – isto é, como espaço de troca de afetos,
assistência moral e material, auxílio mútuo, companheirismo ou
convivência entre pessoas humanas, quer sejam do mesmo
sexo, quer sejam de sexos diferentes”.
“Se a família, através de adequada interpretação dos
dispositivos constitucionais, passa a ser entendida
principalmente como ‘instrumento’, não há como se recusar
tutela a outras formas de vínculos afetivos que, embora não
previstos expressamente pelo legislador constituinte, se
encontram identificados com a mesma ratio, como os mesmo
fundamentos e com a mesma função. Mais do que isto: a
admissibilidade de outras formas de de entidades ‘familiares’
torna-se obrigatória quando se considera seja a proibição de
qualquer outra forma de discriminação entre as pessoas,
especialmente aquela decorrente de sua orientação sexual – a
qual se configura como direito personalíssimo –, seja a razão
maior de que o legislador constituinte se mostrou
profundamente compromissado com a com a dignidade da
pessoa humana (art. 1º, II, CF), tutelando-a onde quer que sua
personalidade melhor se desenvolva. De fato, a Constituição
brasileira, assim como a italiana, inspirou-se no princípio
solidarista, sobre o qual funda a estrutura da República,
significando dizer que a dignidade da pessoa é preexistente e a
antecedente a qualquer outra forma de organização social”.
“O argumento de que à entidade familiar denominada ‘união
estável’ o legislador constitucional impôs o requisito da
diversidade de sexo parece insuficiente para fazer concluir que
onde vínculo semelhante se estabeleça, entre pessoas do
mesmo sexo serão capazes, a exemplo do que ocorre entre
heterossexuais, de gerar uma entidade familiar, devendo ser
tutelados de modo semelhante, garantindo-se-lhes direitos
semelhantes
e,
portanto,
também,
os
deveres
correspondentes. A prescindir da veste formal, a ser dada pelo
legislador ordinário, a jurisprudência – que, em geral, espelha a
sensibilidade e as convenções da sociedade civil –, vem
respondendo afirmativamente”.
134
135
Idem.
P. Perlingieri, Il diritto civille nella legalitá constituzionale, camerino-Napoli, ESI, 1984, p. 558.
157
“A partir do reconhecimento da existência de pessoas
definitivamente homossexuais, ou homossexuais inatas, e do
fato de que tal orientação ou tendência não configura doença
de qualquer espécie – a ser, portanto, curada e destinada a
desaparecer –, mas uma manifestação particular do ser
humano, e considerado, ainda, o valor jurídico do princípio
fundamental da dignidade da pessoa, ao qual está
definitivamente vinculado todo o ordenamento jurídico, e da
conseqüente vedação à discriminação em virtude da orientação
sexual, parece que as relações entre pessoas do mesmo sexo
devem merecer status semelhante às demais comunidade de
afeto, podendo gerar vínculo de natureza familiar”.
“Para tanto, dá-se como certo o fato de que a concepção
sociojurídica de família mudou. E mudou seja do ponto de vista
dos seus objetivos, não mais exclusivamente de procriação,
como outrora, seja do ponto de vista da proteção que lhe é
atribuída. Atualmente, como se procurou demonstrar, a tutela
jurídica não é mais concedida à instituição em si mesma, como
portadora de um interesse superior ou supra-individual, mas à
família como um grupo social, como o ambiente no qual seus
membros possam, individualmente, melhor se desenvolver (CF,
art. 226, §8º)”.
Quanto à configuração fática da relação alegada, nos moldes de uma
entidade familiar, a prova documental e testemunhal é farta. São bilhetes e
fotografias, nas mais diversas épocas e circunstâncias, que evidenciam uma vida em
comum, com as características de notoriedade, duração, continuidade e objetivo de
constituir uma relação tipicamente familiar, que, ao que parece, não sofria
discriminação por parte dos pais do agora falecido, aqui apelantes, tanto assim que
cederam ao apelado os direitos hereditários sobre o patrimônio deixado pelo filho.
Por tais razões, estou acompanhando a em. relatora e também
negando provimento ao apelo.
DES. SÉRGIO FERNANDO SILVA DE VASCONCELLOS CHAVES-
158
Estou acolhendo a pretensão recursal.
Observo, primeiramente, que, a rigor, o pedido formulado é até
juridicamente impossível, já que há clara vedação legal para o reconhecimento da
pleiteada união estável. Embora a sentença não tenha dito claramente que
reconhecia ‘união estável’, vê-se que julgou procedente o pedido, mesmo que tenha
dito que reconhecia e dissolvia a sociedade de fato.
Como é sabido, tendo em vista diversas decisões que lancei
em processos que tinham como fundamento a relação homossexual, não reconheço
possibilidade jurídica no pedido de alimentos ou de união estável entre
homossexuais.
Observo que a homossexualidade não constitui fato social
novo, mas que vem recebendo aceitação social progressiva, reconhecendo-se que a
dignidade de uma pessoa não está atrelada à sua orientação sexual. Admite-se que
cada pessoa exercite a própria sexualidade, externando comportamento compatível
com a sua própria maneira de ser, respeitados obviamente os limites da privacidade
de cada um.
A orientação homossexual é uma definição individual
vinculada a apelos próprios, físicos ou emocionais, sendo imperioso que a
sociedade respeite o sentimento de cada um, a busca da própria realização pessoal,
pois todos devem encontrar espaço para a integração ao grupo social a que
pertencem, sem discriminações.
As relações entretidas por homossexuais, no entanto, não se
assemelham a um casamento nem a uma união estável, pois estas são formas pelas
quais se constitui um núcleo familiar e, por essa razão são merecedoras da especial
proteção do estado. Mas, ainda assim, merecem tutela jurídica, na medida em que o
par pode constituir uma sociedade de fato. Aliás, o pedido formulado na exordial é,
precisamente, de reconhecimento de sociedade de fato.
159
A família é um fenômeno natural e que prescinde de toda e
qualquer convenção formal ou social, embora não se possa ignorar que foram as
exigências da própria natureza e da própria sociedade acatando os apelos naturais,
que se encarregou de delinear e formatar esse ente social que é a base da estrutura
de toda e qualquer sociedade organizada.
Toda e qualquer noção de família passa, necessariamente,
pela idéia de uma prole, e foi a partir dessa noção que se estruturou
progressivamente esse grupamento social, em todos os povos e em todas as
épocas da história da humanidade. Aliás, foi a busca da paternidade certa que fez
com que se passasse a ter o homem como o centro da família e passasse a ser
abominado o relacionamento poliândrico.
A sociedade foi evoluindo até chegar à monogamia, como
ocorre no mundo moderno e, particularmente, no mundo ocidental. Mas a
estruturação da família focalizou sempre a noção de homem, mulher e prole e
acompanham o próprio desenvolvimento social, cultural, e econômico de cada povo.
A idéia da família sempre esteve voltada para caracterização
de um ambiente ético por excelência, onde a função procriativa pudesse se exercitar
e a prole encontrar espaço para se desenvolver de forma natural e segura. A
consolidação da idéia de família foi construída e reconstruída muitas vezes, em
processos sociais lentos, sempre em função de se estabelecer e manter uma vida
social equilibrada e harmônica.
Portanto, a família é muito mais do que uma mera união de
duas pessoas, ou, por absurdo que possa parecer, de três pessoas que pudessem
se amar, porque não se está a falar em pacto ou de mera relação amorosa. Quando
o legislador constituinte deu à união estável a feição de entidade familiar, certamente
não procurou proteger o amor nem os amantes, mas a família, por ser ela a base da
sociedade.
E, como base da sociedade, não pode a família se apartar da
estrutura formal concebida pelo legislador constituinte, como sendo o ambiente
160
natural e próprio para a procriação e desenvolvimento da prole, admitida como tal no
ordenamento jurídico pátrio, como sendo decorrente do casamento ou da união
estável, ou na modalidade monoparental, de um homem ou uma mulher com a sua
prole, natural ou adotiva.
Utilizo, propositalmente, a expressão estrutura formal, pois a
forma concebida não partiu de uma idéia ou de uma convenção, mas da construção
social consolidada através dos séculos: a família diz com a estrutura afetiva
construída por um homem e uma mulher em função de uma prole, natural ou
adotiva, considerando-se também a estrutura de um homem ou uma mulher com a
sua prole.
Assim, a união de dois homens ou de duas mulheres não
constitui núcleo familiar, como também não constituiu núcleo familiar uma mera
união de um homem e uma mulher, pelo só fato de existir afeto.
A própria união de um homem e uma mulher não casados
deve ser examinada restritivamente, porque ela é excepcional.
É que a lei diz que a família inicia com o casamento, e
quando o legislador constituinte disse que “para efeito de proteção do Estado, é
reconhecida a união estável (...)” e “entende-se, também, (...) a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, está excepcionando a regra
geral de que a família começa com o casamento. E não se pode, por princípio
elementar de hermenêutica, interpretar ampliativamente a exceção.
Não é o afeto o fato jurígeno, o fato jurígeno é a constituição
de uma família. Afinal, afeto também existe entre amigos, e não raro amigos moram
juntos, com ou sem relacionamento sexual entre eles, e nem por isso vamos dizer
que os amigos constituem uma família na acepção jurídica, nem podem eles pedir
161
alimentos uns para os outros, nem reclamarem herança, e há amizades de 30, 40,
50 e até de 70 anos...
E, data venia, o fato de serem ou não homossexuais é
irrelevante.
Diante disso, reafirmo a minha convicção de que união
homossexual não constitui entidade familiar, isto é, não é merecedora da especial
proteção do Estado. E constitui heresia dizer que tal forma de união pode ser
considerada base da sociedade...
E se o legislador admitisse a possibilidade de se reconhecer
como união estável a união homossexual, certamente não teria restringido
expressamente a entidade familiar à união entre homem e mulher, nem
recomendaria a sua conversão em casamento.
Se o possível casamento entre dois homens constitui
casamento inexistente pela ausência de um dos pressupostos materiais (condição
de existência), não se pode considerar como união estável a união entre dois
homens ou duas mulheres homossexuais. Há, portanto, flagrante impossibilidade
jurídica para se reconhecer a união entretida pelos litigantes como entidade familiar.
Poderia se reconhecer, isto sim, uma sociedade de fato, mas o pedido não foi este,
razão pela qual deixo de focalizar tal questão e entendo que a sentença não poderia
tê-la reconhecido.
ISTO POSTO, dou provimento ao recurso.
DESA MARIA BERENICE DIAS - Presidente - Apelação Cível nº 70009550070,
Comarca de Porto Alegre: "NEGARAM PROVIMENTO AO APELO, POR MAIORIA,
VENCIDO O EM. DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES."
Julgador(a) de 1º Grau: NELSON JOSE GONZAGA
162
APELAÇÃO
CÍVEL.
RESPONSABILIDADE
CIVIL.
DISCRIMINAÇÃO À CASAL HOMOSSEXUAL EM BAILE
PROMOVIDO POR CLUBE SOCIAL. DANOS MORAIS.
OCORRÊNCIA. QUANTUM INDENIZATÓRIO. MAJORAÇÃO.
1. RESPONSABILIDADE CIVIL. A Constituição Federal, em
seu artigo 3º, inciso IV, institui o combate à discriminação,
seja de qual espécie for, como um dos objetivos precípuos
da República Federativa do Brasil. Em vista disso, não
podem eventuais peculiaridades regionais servir de
excludente da responsabilidade dos demandados, em face
da ocorrência de discriminação, que, no caso em tela, se
dera com fundamento na opção sexual da demandante.
2. Hipótese em que a autora, conjuntamente com sua
companheira, fora advertida por membro da diretoria de
clube social, em plena festa promovida pelo mesmo, a que
cessassem as carícias que vinham trocando. Conduta que
não
era
costumeiramente
exigida
de
casais
heterossexuais, o que indica a efetiva prática de
discriminação.
2. QUANTUM INDENIZATÓRIO. A indenização por dano
moral deve representar para a vítima uma satisfação capaz
de amenizar de alguma forma o sofrimento impingido. A
eficácia da contrapartida pecuniária está na aptidão para
proporcionar tal satisfação em justa medida, de modo que
não signifique um enriquecimento sem causa para a vítima
e produza impacto bastante no causador do mal a fim de
dissuadi-lo de novo atentado. Ponderação que recomenda
a majoração do montante indenizatório fixado no Juízo a
quo.
NEGARAM PROVIMENTO AO APELO DOS RÉUS E DERAM
PROVIMENTO AO APELO DA AUTORA. UNÂNIME.
APELAÇÃO CÍVEL
SEXTA CÂMARA CÍVEL - REGIME
DE EXCEÇÃO
COMARCA DE SANTIAGO
Nº 70017041955
CLUBE SETE DE SETEMBRO
APELANTE/APELADO
PAULO CESAR AMARAL MONTEIRO
APELANTE/APELADO
JULIANA JURACI MARQUES MAIER
APELANTE/APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sexta Câmara Cível Regime de Exceção do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar
provimento ao apelo dos réus e dar provimento ao apelo da autora.
163
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes
Senhores DES. OTÁVIO AUGUSTO DE FREITAS BARCELLOS (PRESIDENTE E
REVISOR) E DES. ANGELO MARANINCHI GIANNAKOS.
Porto Alegre, 17 de setembro de 2008.
DES. ODONE SANGUINÉ,
Relator.
RELATÓRIO
DES. ODONE SANGUINÉ (RELATOR)
1. Cuida-se de apelações cíveis interpostas por CLUBE SETE DE
SETEMBRO E PAULO CÉSAR AMARAL MONTEIRO, réus, e JULIANA JURACI
MARQUES MAIER, autora, contra sentença das fls. 90/96, que julgou procedente a
demanda, condenando os demandados ao pagamento solidário de indenização por
dano moral no valor de R$ 1.500,00, corrigidos monetariamente pelo IGP-M a contar
da publicação da decisão e acrescido de juros de mora de 1% ao mês, desde a
citação. Outrossim, restaram os réus condenados ao pagamento das custas
processuais e honorários advocatícios à FADEP, no valor de 10% sobre o montante
condenatório.
2. Em razões recursais (fls. 98/102), os demandados afirmam que a
autora e sua companheira sempre chamava a atenção dos associados devido a
atitudes não compatíveis com o estatuto do clube, tais como carinhos libidinosos e
beijos na boca. Destacam que o apelante PAULO fora por várias vezes questionado
a respeito da necessidade de tomar providências em relação à autora e a sua
namorada, tendo esse tão-somente convidado a demandante à uma sala reservada,
onde lhe teria pedido que se comportasse. Ponderam que as relações de afetividade
não podem ser exageradas, seja o caso homossexual ou não, ainda mais em uma
sociedade conservadora, como a do Município de Santiago. Salientam que não
houvera nenhum constrangimento à autora, tanto que um amigo do casal só ficara
sabendo do ocorrido após comentários dessa. Refere que não se verificam nos
autos os requisitos informadores da Responsabilidade Civil. Assim, pede seja dado
provimento ao apelo, de forma a julgar improcedente a demanda.
164
3. Já em suas razões de apelo (fls. 105/110), a parte recorrente aduz
que o quantum fora arbitrado em valor reduzido. Refere que nada há nos autos a
demonstrar a suposta incapacidade financeira da agremiação demandada para arcar
com a quantia de R$ 5.000,00 pleiteada na inicial. Discorre acerca do caráter
punitivo-pedagógico da indenização, ainda mais num caso como o versado nos
autos, que trata de preconceito para com um casal homossexual. Destaca que fora
vítima de constrangimento público. Assim, pede seja dado provimento ao recurso, de
forma a julgar procedente a demanda.
4. Em contra-razões (fls. 111/116), a demandante pugna pelo
desprovimento do recurso dos réus.
5. Já em sua resposta ao apelo da parte autora (fls. 119/122), os réus
repisam a tese exposta em sua apelação, pedindo pela improcedência da demanda.
6. Subiram os autos, que, redistribuídos em Regime de Exceção,
vieram conclusos.
É o relatório.
VOTOS
DES. ODONE SANGUINÉ (RELATOR)
Eminentes colegas:
7. Segundo relatado na inicial (fls. 02/11), a autora, JULIANA JURACI
MARQUES MAIER, participava de uma festa na noite de 07/07/2003, no clube
demandado, com sua companheira, MICHELE AMARAL MACHADO, quando, por
volta da uma da manhã fora chamada por um segurança para se dirigir à uma sala
reservada da diretoria da agremiação.
Lá chegando, foi recebida pelo co-demandado PAULO CÉSAR
AMARAL MONTEIRO, um dos diretores do clube, que, apresentado-se como
165
policial, disse que se ela e sua companheira “continuassem a dançar agarradas, não
permaneceriam mais no clube”, sendo aquilo que estava ocorrendo uma “pouca
vergonha” (fl. 03).
Retornando ao baile, a demandante e sua companheira, abaladas,
então saíram da festa. Posteriormente, vieram a dar queixa na polícia, ao passo que
o demandado PAULO CÉSAR, em resposta, teria “escalado” uma pessoa para que
seguisse os passos da autora e sua companheira dentro do Clube.
Assim, em vista do tratamento discriminatório dispensado, que lhe
causara constrangimento em face dos demais associados, ingressou com a
presente demanda, pleiteando o pagamento de indenização por dano moral no valor
máximo de R$ 5.000,00 (fl. 10).
8. Dada a devida tramitação à demanda, adveio então sentença (fls.
90/96), que, acolhendo a tese exposta na inicial, condenou os demandados ao
pagamento solidário de R$ 1.500,00, dada a reduzida capacidade das partes
figurantes no pólo passivo da demanda.
9. Inconformadas, ambas as partes apelaram: a ré, pedindo a
improcedência da demanda, ante a inexistência do constrangimento alegado ou de
qualquer prática discriminatória; a autora, a majoração do quantum indenizatório ao
patamar declinado na exordial.
Examine-se.
I. Mérito
a) Responsabilidade Civil
10. Pois bem, primeiramente, destaco que é fato incontroverso que a
autora e sua companheira, durante uma festa realizada na data de 07/07/2003 nas
dependências do clube réu, foram requisitadas a se dirigirem a uma sala da direção,
166
onde lhe fora pedido que cessassem as carícias que supostamente estavam
trocando.
O que se discute, entretanto, são os motivos que levaram à intervenção
dos seguranças do clube referido demandado: (a) se por conta de eventual excesso
na demonstração de afeto, o que seria conduta inaceitável em relação às normas
internas, segundo interpretação do artigo 13, itens 01 e 02, do Estatuto do Clube (fl.
30)136,
independentemente da opção sexual adotada; (b) ou se por conta de
discriminação por parte do referido réu e da instituição o qual estava representando.
11. No caso, entretanto, ao que tudo indica a prova dos autos, a
intervenção efetivamente se dera em razão de preconceito, o que não pode ser
tolerado, visto que a própria Constituição Federal de 1988 instituiu, em seu artigo 3º,
inciso IV, o combate à discriminação, seja de que espécie for, como um dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Com efeito, ao que se infere da prova testemunhal coligida, e que foi
bem analisada pelo magistrado a quo, não há indício mínimo a demonstrar o
eventual abuso por parte da demandante e de sua companheira.
12. Primeiramente, deve ser observado que há inclusive dúvida sobre o
que seria exatamente tal “excesso”: se estavam somente dançando juntas, como
indica a testemunha ALZIRO GARCIA RAMALHO (fl. 82), ou se abrançando, como
apontou JOÃO ROSEMAR DE OLIVEIRA (fl. 72), ou, ainda, trocando um “beijo de
cinema”, conforme JOSÉ DOMINGOS PINTO (fl. 73v).
Ou seja, na pior das hipóteses, a conduta supostamente indevida da
demandante, ao que indicou a referida testemunha JOSÉ DOMINGOS PINTO, um
dos que teria solicitado a presença da autora à sala da diretoria (fl. 73v), teria sido a
de “trocar um beijo de cinema” com sua companheira, sendo este, especificamente,
136
Art. 13º. São deveres dos sócios:
1) Zelar por todos os meios, pelo bom nome da sociedade, cumprindo fielmente o Estatuto e os
regimentos internos existentes, procurando sempre junto à Diretoria colaborar em todas as
circunstâncias que lhes forem outorgadas
2) Nortear sua conduta dentro das mais rígidas prescrições de ética, educação e respeito social.
167
um “beijo demorado”, “envolvendo língua”, que em tese não seria comumente visto
entre casais heterossexuais freqüentadores do clube.
Ora, um “beijo demorado”, e “de língua”, ainda que trocado por um
casal homossexual, não pode ser tido por uma conduta inaceitável, ainda mais no
local em que se deu, qual seja, no salão de bailes, em uma festa, com diversos
outros casais. Aliás, veja-se inclusive que, contrariando observação feita por JOSÉ
DOMINGOS PINTO, a testemunha ANTÔNIO VALTER COSSETIN ROLIM
asseverou que deixara de freqüentar o clube não só pelos beijos da autora com sua
companheira, mas também por causa de casais heterossexuais que se excediam no
ato (fl. 71v), que também se dariam em pleno salão de bailes.
13. Ou seja, ao que tudo indica, a conduta exigida da autora e de sua
companheira não era necessariamente aquela demandada dos demais casais
heterossexuais que freqüentavam o clube, que, por óbvio, às vezes também se
excediam nas carícias. Entretanto, esses não eram alertados para que cessassem
as suas carícias, ao contrário do que fora exigido da demandante.
Desta forma, como bem observado pelo magistrado a quo, é evidente
que a demandante e sua companheira foram abordadas e conduzidas até a
apontada sala reservada – onde mantiveram conversa cujo teor não foi devidamente
esclarecido, considerando as versões contraditórias existentes e, em especial, o fato
de que no local estavam presentes apenas as partes ora litigantes – apenas porque
formavam dupla homossexual, o que, aliás, vem corroborado pelos depoimentos
prestados em Juízo pelos associados do clube, os quais reivindicavam “providência”.
Esta atitude, pois, de abordar e advertir o casal revela inequivocamente preconceito
decorrente de opção sexual, o que é expressamente vedado pela Constituição
Federal (fl. 93).
Com efeito, mesmo em uma cidade pequena e, nas palavras da
demandada, “conservadora”, como Santiago (fl. 101), deve se buscar diuturnamente
a cessação de preconceitos de qualquer espécie. Ora, eventuais peculiaridades do
local em que habita a demandante não poderiam servir de excludente da
responsabilidade dos demandados, ainda mais disciplinando a Constituição Federal,
168
de forma específica, em seu artigo 3º, inciso IV, que o combate à discriminação
constitui um dos objetivos precípuos da República Federativa do Brasil.
14.
Portanto,
ante
todo
o
exposto,
tenho
por
inegável
a
responsabilidade dos demandados pelo ocorrido, dada a conduta preconceituosa
assumida pelo réu PAULO CÉSAR AMARAL MONTEIRO, então um dos diretores da
agremiação, e, por via de conseqüência, do próprio CLUBE SETE DE SETEMBRO.
Aliás, nesse sentido, assim já se manifestou esta corte: APELAÇÃO
CÍVEL.
RESPONSABILIDADE
CIVIL.
DANOS
MORAIS
E
MATERIAIS.
DISCRIMINAÇÃO HOMOSSEXUAL. INDENIZAÇÃO. Presente o dever do requerido
em indenizar os autores, vítimas de preconceito e ofensas verbais entre vizinhos,
tendo por escopo a opção sexual dos ofendidos. Danos materiais e morais
comprovados. Quantum indenitário minorado, em atenção às peculiaridades do caso
e aos parâmetros praticados pelo Colegiado. Ônus sucumbenciais redistribuídos.
APELAÇÕES PARCIALMENTE PROVIDAS. (Apelação Cível Nº 70014074132,
Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Maria Nedel Scalzilli,
Julgado em 25/05/2007).
Assim sendo, tenho que deva ser reconhecida a responsabilidade dos
demandados pelos fatos articulados na inicial.
Dito isso, passo à análise do quantum indenizatório.
b) Quantum indenizatório
15. A parte autora, em seu apelo, pede seja majorado o quantum
indenizatório para R$ 5.000,00, nos termos como pedido na inicial, em razão do
caráter punitivo-pedagógico da medida.
16. A indenização por dano moral deve representar para a vítima uma
satisfação capaz de amenizar de alguma forma o sofrimento impingido. A eficácia da
contrapartida pecuniária está na aptidão para proporcionar tal satisfação em justa
169
medida, de modo que não signifique um enriquecimento sem causa para a vítima e
produza impacto bastante no causador do mal a fim de dissuadi-lo de novo atentado.
Nesta linha, entendo que a condição econômica das partes, a
repercussão do fato, a conduta do agente - análise de culpa ou dolo - devem ser
perquiridos para a justa dosimetria do valor indenizatório.
No caso, a autora é agente de saúde, litiga sob o amparo da
assistência judiciária gratuita (fl. 17), e foi submetida à situação discriminatória
constrangedora. Os réus, por sua vez, praticaram ato ilícito extremamente
reprovável, e, ainda que não demonstrem grande capacidade financeira, não
aparentam, por outro lado, não possuírem condições de arcar com uma indenização
como aquela pleiteada na inicial.
17. Assim sendo, sopesadas as condições sócio-econômicas dos
litigantes e a gravidade do fato, tenho que o quantum de R$ 1.500,00 fixado em
sentença deve ser majorado para o patamar de R$ 4.000,00 (quatro mil reais),
quantia essa mais próxima do originalmente pleiteado na inicial, montante que
considero suficiente para atenuar as conseqüências do dano causado à reputação
da parte ofendida, não significando um enriquecimento sem causa para a parte
demandante, punindo a responsável e dissuadindo-a da prática de novo atentado,
montante esse acompanhado dos consectários legais, nos termos a seguir,
18. Quanto à correção monetária constitui mera atualização da moeda,
devendo incidir a partir da fixação do quantum devido, é dizer, a partir do
julgamento. Nesse sentido: REsp 316332 / RJ; Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior;
Quarta Turma; DJ 18.11.2002 p. 220.
19. No que se refere aos juros moratórios, entendo cabível o início da
contagem a partir do julgamento no qual foi arbitrado o valor da condenação.
Considerando que o Magistrado se vale de critérios de eqüidade no arbitramento da
reparação, a data do evento danoso e o tempo decorrido até o julgamento são
utilizados como parâmetros objetivos na fixação da condenação, de modo que o
valor correspondente aos juros integra o montante da indenização.
170
Destaco que tal posicionamento não afronta o verbete da Súmula nº 54
do STJ. Ao revés, harmoniza-se com o entendimento do E. Superior Tribunal de
Justiça. A ultima ratio do enunciado sumular é destacar que a reparação civil por
dano moral deve possuir tratamento diferenciado na sua quantificação em relação
ao dano material, dado o objetivo pedagógico, punitivo e reparatório da condenação.
No tocante ao arbitramento do dano moral, o termo inicial da contagem
deve ser a data do julgamento. Dessa forma, além de se ter o quantum indenizatório
justo e atualizado, evita-se que a morosidade processual ou a demora do ofendido
em ingressar com a correspondente ação indenizatória gere prejuízos à parte
demandada, sobretudo, em razão do caráter pecuniário da condenação (STJ: REsp
618940 / MA; Rel. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro; Terceira Turma; julgado em
24/05/2005; DJ 08.08.2005 p. 302.).
20. Portanto, vai provido o apelo da autora, para majorar a verba
indenizatória para R$ 4.000,00, a ser corrigida monetariamente pelo IGP-M e
acrescida de juros de mora de 12% ao ano, a contar deste acórdão.
II. Dispositivo
21. Ante o exposto, voto por: (a) negar provimento ao apelo dos réus;
(b) dar provimento ao apelo da autora, para, majorando o quantum indenizatório,
condenar os réus a arcar, solidariamente, com a quantia de R$ 4.000,00, a ser
atualizada monetariamente pelo IGP-M e acrescida de juros de mora de 12% ao
ano, a contar da data deste acórdão.
DES. OTÁVIO AUGUSTO DE FREITAS BARCELLOS (PRESIDENTE E REVISOR)
- De acordo.
DES. ANGELO MARANINCHI GIANNAKOS - De acordo.
171
DES. OTÁVIO AUGUSTO DE FREITAS BARCELLOS - Presidente - Apelação Cível
nº 70017041955, Comarca de Santiago: "NEGARAM PROVIMENTO AO APELO
DOS RÉUS E DERAM PROVIMENTO AO APELO DA AUTORA. UNÂNIME."
Julgador(a) de 1º Grau: RAFAEL SILVEIRA PEIXOTO
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TCC -Jacobi_bx - Biblioteca La Salle