Manutenção da Medicação Antihipertensora Após 1 Ano de Tratamento
José Augusto Simões (Assistente graduado de Clínica Geral, Centro de Saúde de Góis)
Endereço para correspondência: Dr. José Augusto Rodrigues Simões, Centro de Saúde de
Góis, 3330-301 GOIS, [email protected].
Foi publicado na Revista “Geriatria”, 15 (146), pp. 9-18, 2002.
RESUMO
Este artigo descreve a análise retrospectiva do comportamento de manutenção da medicação
por parte de doentes submetidos a uma terapêutica antihipertensora em regime ambulatório.
Utilizando uma análise de regressão logística, o autor identificou a classe da medicação
antihipertensora, a frequência da administração, a idade do doente e o sexo como covariáveis independentes, clinicamente importantes, que são preditivas de persistência
(definida como a manutenção da terapêutica com o fármaco antihipertensor anteriormente
prescrito) aos 12 meses. Após um período de acompanhamento (follow-up) de 12 meses, a
percentagem de doentes que mantinha a terapêutica inicial com inibidores da enzima de
conversão da angiotensina era superior à percentagem dos que mantinham o tratamento com
antagonistas do cálcio, bloqueadores beta ou diuréticos tiazídicos (58,6% vs. 50,9%, 42,9% e
39,2%, respectivamente). Estes dados estão de acordo com outros estudos já efectuados,
faltando saber se estas diferenças se encontram associadas a melhores resultados a nível da
saúde.
2
Palavras-chave
Adesão ao tratamento, Fármacos antihipertensores
INTRODUÇÃO
As intervenções dietéticas e no estilo de vida, as terapêuticas medicamentosas com fármacos
antihipertensoresl em monoterapia ou politerapia podem reduzir a pressão arterial em ≥80%
dos doentes hipertensos.2 O controlo persistente e a longo prazo da pressão arterial elevada
traduz-se por reduções significativas da morbilidade e mortalidade atribuíveis à
hipertensão.3,4 Todavia, conforme referido na Third National Health and Nutrition
Examination Survey (NHANES III)5, quase três quartos dos adultos com hipertensão não
atingiram valores tensionais <140/90 mmHg, indicando que os benefícios reais do tratamento
são inferiores ao previsto. Esta discrepância reflecte-se não só na persistência da morbilidade
e mortalidade associadas à hipertensão6 mas também no aumento consequente dos custos
com os cuidados de saúde.7
A não adesão ao tratamento é uma explicação provável para a discrepância existente entre a
eficácia do tratamento medicamentoso estabelecido nos ensaios clínicos e os resultados
mencionados no relatório da NHANES III.5 A adesão ao tratamento é influenciada por
muitos factores, incluindo a tolerabilidade do medicamento, a complexidade do regime
medicamentoso, o custo e a comodidade da terapêutica, as características do sistema clínico e
do médico e a natureza assintomática da hipertensão.8
Os estudos realizados anteriormente para avaliação dos factores determinantes no abandono
da terapêutica medicamentosa têm sido comprometidos pela dimensão da amostra, pela
duração do follow-up e pela ausência de generalização a uma população mais vasta tratada na
pratica clínica na comunidade. A maioria destes estudos foi realizada como parte integrante
de protocolos universitários9 e incluía uma coorte de beneficiários dos sistemas Medicaid e
3
Medicare10 ou de membros das forças armadas americanas, tanto no activo como
reformados.11
Além disso, muitos estudos foram realizados antes da introdução das classes mais recentes de
fármacos antihipertensores. A tolerabilidade das classes de fármacos mais recentes é superior
à das mais antigas, como os diuréticos e os bloqueadores beta.12 Nestas circunstâncias, é
necessário realizar estudos baseados na comunidade que analisem os factores que poderão
determinar a probabilidade de manter a terapêutica antihipertensora inicial.
Os registos dos Médicos de Família no Centro de Saúde são um recurso valioso para a análise
das questões relacionadas com a prática clínica na comunidade. A análise dos seus registos,
desde que actualizados, constitui um meio prático e eficaz de estudar, retrospectivamente, o
comportamento de um grande número de doentes na prática clínica na comunidade,
relativamente à manutenção do receituário.
Este estudo tinha por objectivo avaliar a influência da classe farmacológica, em monoterapia,
frequência de administração, idade e sexo relativamente à probabilidade de manter o
tratamento antihipertensor prescrito durante 12 meses.
MATERIAL E MÉTODOS
Fonte dos Dados
A base de dados Emerius, da Sub-Região de Saúde de Coimbra recolhe informação sobre os
motivos de consulta de clínica geral e as principais morbilidades de cada utente, e abrange
dados desde 1997 até à presente data. Esta engloba os registos de todos os utentes inscritos
em ficheiro de Médico de Família, de todos os Centros de Saúde da Sub-Região. Os dados,
identificados por número de processo, são acessíveis a nível de cada Centro de Saúde e, no
global, a nível da Sub-Região. Uma vez que a base de dados Emerius contém informações
sobre os motivos de consulta dos doentes, foi possível, no Centro de Saúde de Góis,
4
identificar as consultas com o motivo “Hipertensão Arterial” ocorridas no período
compreendido entre 1 de Abril e 30 de Junho de 1999, assim como as ocorridas com o motivo
“Renovação de Receituário” no período compreendido entre 1 de Abril e 30 de Junho de
2000.
Desenho do Estudo
Tratou-se de um estudo retrospectivo, que incluiu apenas os registos de doentes que estavam
a ser submetidos a uma terapêutica antihipertensora em monoterapia.
Foi elaborada uma lista de utentes do Centro de Saúde de Góis, identificados pelo seu
número de processo, e classificados, pelo menos em uma consulta entre 01-04-1999 e 30-061999, com o código de “Hipertensão Arterial”.
A partir dessa lista, foram consultados os respectivos processos clínicos e recolhida a
seguinte informação: sexo, idade, classe farmacológica da terapêutica antihipertensora
prescrita, ou em curso, aquando da consulta ocorrida no 2º trimestre de 1999. As classes
farmacológicas de antihipertensores seleccionados foram: diuréticos, bloqueadores beta,
antagonistas do cálcio, inibidores da enzima de conversão da angiotensina (ECA) e outros.
Foram excluídos os indivíduos em que no processo clínico não constava a medicação
efectuada, no período referido, e os que estavam medicados para angina de peito,
insuficiência cardíaca e arritmias cardíacas. Esta política de exclusão foi baseada no
pressuposto de que o tratamento de outra doença cardíaca para além da hipertensão arterial,
poderia condicionar uma diferente adesão à terapêutica. Além disso, foram também excluídos
os indivíduos que, no período referido, tinham duas ou mais classes de fármacos
antihipertensores ou uma associação terapêutica, incluindo duas classes diferentes de
medicação antihipertensora (ou seja, associações de não diuréticos/diuréticos). Embora estes
critérios de inclusão e exclusão limitem o número de utentes a estudar e a aplicabilidade dos
5
resultados a outras populações, foram seleccionados para (1) restringir o estudo aos
indivíduos com o diagnóstico de hipertensão arterial e (2) reduzir o número de variáveis
perturbadoras, nomeadamente, as associações de múltiplos fármacos e a administração de
múltiplos fármacos (mais do que um medicamento antihipertensor de mais do que uma
classe).
Por fim, nos processos dos doentes seleccionados, verificou-se se ocorreu alguma consulta
entre 01-04-2000 e 30-06-2000, e qual a medicação nela referida. Para os utentes sem
consulta no período indicado foi consultada a base de dados Emerius para saber se no período
em análise tinha ocorrido alguma consulta com o motivo “Renovação de Receituário”.
Toda a consulta de dados decorreu nos meses de Agosto e Setembro de 2000.
Vaiáveis dos Resultados
As variáveis dos resultados do estudo incluíam o número de doentes de cada classe
farmacológica que mantiveram o tratamento, com o fármaco antihipertensor anteriormente
prescrito, durante 12 meses, o número de doentes que mudaram para, ou associaram, outra
classe de fármacos antihipertensores e o número dos que abandonaram o tratamento.
Considerou-se que “mantinham a terapêutica inicial” aqueles doentes em cujo processo
estava registada uma consulta no período referido e havia referência ao mesmo fármaco, ou
se não havia referência explícita ela constava em consulta anterior, ou se havia registo de
renovação de terapêutica na base de dados Emerius. Considerou-se “transferência para outra
classe farmacológica” aqueles doentes em cujo processo estava registada uma terapêutica
diferente da inicial. Considerou-se abandono de terapêutica, aqueles processos de doentes em
que não constava nenhuma consulta no 2º trimestre de 2000, nem havia registo de renovação
da terapêutica no período em causa na base de dados Emerius, assim como aqueles em que
explicitamente estava registado no processo clínico o abandono da terapêutica.
6
Análise Estatística
Procedeu-se à comparação das diferenças observadas na continuação da terapêutica inicial
entre a classe de fármacos antihipertensores que apresentava a mais elevada taxa de
manutenção e a imediatamente a seguir, utilizando testes de qui-quadrado, bimodais, não
ajustados e um nível a de 0,05.
O odds ratio (OR) de manutenção da terapêutica com o fármaco inicial foi seguidamente
calculado por regressão logística incondicional13 utilizando software SPSS. Os potenciais
factores preditivos da persistência testados no modelo de regressão logística incluíam a idade
(≥75, 50 a 74 e <50 anos), sexo, classe de fármacos antihipertensores (inibidores da ECA,
antagonistas do cálcio, bloqueadores beta e diuréticos tiazídicos) e frequência de
administração (uma ou mais de uma vez por dia). As variáveis binárias foram calculadas
utilizando, em todos os testes, uma classificação de 0/1. Os intervalos de confiança (IC) para
os OR estimados e os testes de significância relativamente às diferenças do valor nulo foram
calculados utilizando erros-padrão estimados.14,15 Foram realizados testes para determinação
de possíveis interacções entre as variáveis.16
RESULTADOS
No Quadro 1 são apresentadas as características da população em estudo (N = 216). A média
etária desta população era de 66 anos, a maioria dos doentes tinha entre os 50 e os 74 anos de
idade e 55,6% eram do sexo feminino. Os inibidores da ECA eram a classe de fármacos de
prescrição mais frequente (26,9%), seguindo-se os diuréticos tiazídicos (25,9%), antagonistas
do cálcio (24,5%), bloqueadores beta (22,7%) e outros (2,3%).
7
Quadro I. Características demográficas e terapêutica antihipertensora inicial da população em
estudo (N = 216)
Idade
Média (limites)
66 (40 – 86)
72 (33,3%)
≥ 75 anos (%)
50 – 74 anos (%)
121 (56%)
< 50 anos (%)
23 (10,7%)
Sexo (%)
Masculino
Feminino
96 (44,4%)
120 (55,6%)
Classe farmacológica (%)
Inibidores da ECA
Antagonistas do cálcio
Bloqueadores beta
Diuréticos tiazídicos
Outros
58 (26,9%)
53 (24,5%)
44 (22,7%)
56 (25,9%)
5 (2,3%)
Frequência de administração (%)
Uma vez por dia
> Uma vez por dia
ECA = enzima de conversão da angiotensina
134 (62%)
82 (38%)
Aos 12 meses de follow-up, a percentagem de indivíduos que mantinha a sua terapêutica
anterior com inibidores da ECA era mais elevada do que a percentagem que continuava com
antagonistas do cálcio, bloqueadores beta ou diuréticos tiazídicos (58,6% vs. 51%, 43,2% e
39,3% respectivamente) (Quadro II).
Quadro II. Manutenção da terapêutica com a classe de fármaco antihipertensor anteriormente
prescrito, aos 12 meses (N = 211)
Classe de Fármaco
Manutenção com o Transferência para, ou
Abandono do
Antihipertensor (nº)
Fármaco anterior
associação de, outra
Tratamento
(%)
classe farmacológica
(%)
(%)
Inibidores da ECA (58)
34 (58,6%)
6 (10,4%)
18 (31%)
Antagonistas do cálcio (53)
27 (51%)
5 (9,4%)
21 (39,6%)
Bloquadores beta (44)
19 (43,2%)
6 (13,6%)
19 (43,2%)
Diuréticos tiazídicos (56)
22 (39,3%)
5 (8,9%)
29 (51,8%)
ECA = enzima de conversão da angiotensina
8
Sob o ponto de vista descritivo, a escolha anterior da terapêutica antihipertensora não pareceu
estar relacionada com a transferência para uma nova, ou associando outra, classe terapêutica,
dado que todas as classes apresentavam uma taxa de transferência compreendida entre os
8,9% e os 13,6%. Contudo, a escolha anterior do fármaco pareceu influenciar o abandono da
terapêutica: 31% com os inibidores da ECA em comparação com os antagonistas do cálcio
(39,6%), bloqueadores beta (43,2%) e diuréticos tiazídicos (51,8%) (Quadro II).
Figura 1. Factores relacionados com a persistência (continuação do tratamento com o
fármaco antihipertensor prescrito, aos 12 meses). OR=odds ratio; IC=intervalo de confiança;
ECA=enzima de conversão da angiotensina; CA=antagonista do cálcio; BB=bloquador beta.
*
p<0,05; †p=0,0001; ‡p=0,001.
No modelo de regressão logística da manutenção com o tratamento inicial (Figura 1),
verificou-se ser maior a probabilidade de os doentes tratados com inibidores da ECA
9
manterem a sua terapêutica antihipertensora anterior do que os tratados com antagonistas do
cálcio (OR = 0,8 1; IC 95% = 0,68-0,97; p = 0,02), bloqueadores beta (OR = 0,62; IC 95% =
0,51- 0,74; p = 0,0001) e diuréticos tiazídicos (OR = 0,56; IC 95% = 0,47-0,68; p = 0,0001).
O grupo etário ≥75 anos esteve associado a uma maior persistência do que o grupo etário
entre os 50 e os 74 anos de idade (OR = 0,79; IC 95% = 0,74-0,84; p = 0,001) e a idade <50
anos (OR = 0,32; IC 95% = 0,29-0,35; p = 0,0001). A administração do medicamento mais
do que uma vez por dia esteve associada a uma menor persistência do que a administração
uma vez por dia (OR = 1,40; IC 95 % = 1,29-1,52; p = 0,0001). Foi comprovada uma relação
estatisticamente significativa entre o sexo feminino e maior persistência do tratamento
anterior (OR = 1,08; IC 95% = 1,02-1,15; p = 0,006).
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Embora a metodologia do estudo e a análise dos registos dos processos de vários ficheiros de
um Centro de Saúde diferiram das utilizadas noutros estudos baseados na população, é
sempre útil comparar as conclusões. Num estudo realizado em doentes idosos (média etária
de 76,5 ± 8,1 anos) dos programas Medicaid e Medicare de New Jersey, Monane e col.10
concluíram que apenas 20% dos doentes tomaram ≥80% da sua medicação conforme
prescrito. A maior taxa de adesão ao tratamento esteve associada à utilização de fármacos
mais recentes, como os inibidores da ECA e antagonistas do cálcio, comparativamente com
os diuréticos tiazídicos. Jones e col.12 referiram uma taxa de adesão igualmente fraca numa
análise da base de dados do programa de cuidados primários United Kingdom MediPlus.
Estes investigadores observaram que a taxa de continuação registada com as terapêuticas
antihipertensoras receitadas recentemente variava entre 40% e 50% no final do período de 6
meses do estudo em relação a quatro importantes classes de fármacos (ou seja, diuréticos
tiazídicos, bloqueadores beta, antagonistas do cálcio e inibidores da ECA). Embora cada
10
classe apresentasse um padrão de continuação ligeiramente diferente, a probabilidade da
continuação era semelhante em todas.
As observações sobre o cumprimento das instruções médicas pelos participantes de ensaios
clínicos realizados em larga escala diferem, de forma marcada, das do presente trabalho e de
outros estudos baseados na população. A título de exemplo, no Hypertension Detection and
Follow-up Programme17 do National Heart, Lung and Blood Institute, que envolveu cerca de
11.000 participantes no Reino Unido, e no estudo piloto Systolic Hypertension in the Elderly
Programm18 (N = 551), a adesão ao tratamento avaliada com base na contagem de
comprimidos variou entre 80% e 85% em relação aos medicamentos estudados. Os dados
relativos aos participantes no Treatment of Mild Hypertensíon Study19 (N = 902) revelam que,
num follow-up com a duração de 48 meses, 83%, 78%, 68% e 68% dos doentes continuaram
o tratamento inicial com um antagonista do cálcio, bloqueador beta, diurético tiazídico e
inibidor da ECA, respectivamente. Contudo, os achados de ensaios controlados, com
distribuição aleatória, não reflectem, no essencial, o comportamento real do doente na prática
clínica, na comunidade, em que o tratamento da hipertensão continua a caracterizar-se por
elevadas taxas de abandono do tratamento. A diferença considerável na percentagem dos
doentes que continuam o tratamento é explicado pelo enviesamento na selecção e pelo
reforço comportamental; os estudos em larga escala utilizaram voluntários saudáveis
mantidos sob rigorosa vigilância em condições de investigação. Como tal, não seria
previsível que o seu comportamento fosse preditivo do comportamento dos doentes em
situações “reais” na comunidade. É importante sublinhar, que o presente estudo procurava
examinar os padrões de manutenção do receituário num ambiente o mais próximo possível do
“mundo real” de interacção médico-doente.
Neste estudo, a análise dos registos de receituário nos processos clínicos dos ficheiros de
Médicos de Família demonstrou que a percentagem de doentes que manteve o tratamento
11
com a classe do fármaco antihipertensor anterior foi significativamente mais elevada com os
inibidores da ECA, do que com os antagonistas do cálcio, a classe imediatamente a seguir
mais elevada em termos de manutenção. Estes resultados podem ter sido influenciados pela
história anterior da doença na selecção por parte do médico (por exemplo, o médico escolheu
o medicamento que esperava que o doente continuasse a tomar). A percentagem de doentes
que mudou para uma nova classe de fármacos antihipertensores foi aproximadamente igual
em todas as classes farmacológicas. A análise de regressão logística indicou que a escolha da
classe farmacológica, a frequência da administração do medicamento, a idade e o sexo se
relacionavam, significativamente, com a continuação da terapêutica antihipertensora
anteriormente prescrita.
As razões para o abandono do tratamento com a classe farmacológica anterior não são
identificáveis na maioria dos registos consultados, não sendo, portanto, evidente, se não
estaremos face a deficiência de registos. O facto de o doente não ter tido uma consulta no
período de follow-up, 2º trimestre de 2000, nem estar registada a renovação de receituário,
não significa necessariamente que o doente abandonou a terapêutica. Poder-se-á, no entanto,
pressupor que é altamente provável que tal tenha acontecido na maioria das situações. A
experiência dos doentes com o tratamento é um factor determinante na sua vontade de
prosseguirem um tratamento. É um facto sobejamente conhecido que os fármacos
antihipertensores exercem diferentes efeitos sobre a qualidade de vida.20 Para muitos doentes,
o uso de medicamentos antihipertensores que comprometem a sua qualidade de vida é mais
perturbador do que a hipertensão assintomática. Este facto poderá dar origem ao abandono da
terapêutica. Consequentemente, a tolerabilidade da terapêutica das classes de fármacos
antihipertensores poderá ser um factor determinante nos achados deste estudo. Contudo, à
semelhança do verificado em todos os estudos epidemiológicos de observação, esta hipótese
requer ser confirmada noutros contextos investigacionais.
12
O uso proporcional das quatro classes de fármacos em estudo foi compatível com as
tendências mais recentes referidas por Manolio e col.21
Constitui um desafio avaliar até que ponto os doentes mantém uma terapêutica que lhes foi
prescrita, em particular na prática clínica na comunidade. Os registos dos ficheiros dos
Médicos de Família podem facultar informações sobre o momento e o padrão de utilização
dos medicamentos no ambulatório.
O desenho e a abordagem utilizados neste estudo tiraram partido de algumas vantagens. Por
exemplo, dispunha-se de um vasto conjunto de dados para análise, consubstanciado nas bases
da dados do Emerius, que regista todos os motivos de consulta no Centro de Saúde, incluindo
a renovação do receituário. Tal permitiu não ficar unicamente dependente dos registos nos
processo clínicos. No entanto, não é possível determinar se as renovações do receituário se
referiam aos fármacos antihipertensores ou outros. Uma vez que a análise dependeu dos
registos nos processos clínicos e dos registos informáticos das renovações do receituário e
não de inquéritos, não é passível de sofrer qualquer enviesamento por omissões. Além disso,
visto que os doentes desconheciam que o seu comportamento de renovação do receituário
seria analisado, não havia qualquer motivação para alterarem o seu comportamento de adesão
ao tratamento, como seria de esperar em caso contrário.
A fiabilidade das conclusões extraídas desta análise teria sido maior se não tivessem existido
vários factores. Em primeiro lugar, visto que muitos registos nos processos clínicos se
encontram incompletos, é necessário que os Médicos de Família interiorizem as vantagens de
um correcto registo clínico. Em segundo lugar, porque as características pessoais e a prática
clínica dos médicos, maior ou menor acessibilidade a renovação de receituário, poderão ter
influenciado o comportamento dos doentes em relação à renovação do receituário,
confundindo, consequentemente, as observações. Em terceiro lugar, porque os achados não
revelam directamente que os indivíduos tenham, na realidade, tomado os medicamentos. Em
13
quarto lugar, os critérios de exclusão limitam a aplicabilidade dos resultados a importantes
populações de doentes. Finalmente, visto não se terem analisado quaisquer dados sobre os
valores tensionais no início ou no final do estudo, desconhece-se se foi atingida a
normalização da pressão arterial. É razoável, no entanto, pressupor que os médicos não
manteriam os doentes sob tratamento durante um período de tempo prolongado se não
existissem indicações de tolerabilidade e eficácia.
As prioridades da investigação futura dos factores determinantes da manutenção do
tratamento na prática clínica na comunidade incluem o desenvolvimento de estratégias
analíticas que tomem em consideração os factores susceptíveis de invalidar as observações
efectuadas em estudos fármaco-epidemiológicos deste tipo. Será também necessário realizar
estudos de intervenção para identificar e definir estratégias que permitam melhorar a
utilização dos medicamentos.
Esta análise dos registos de renovação do receituário revelou que a escolha de um inibidor da
ECA esteve associada a maior percentagem de indivíduos que, decorridos 12 meses,
mantinha a terapêutica antihipertensora anteriormente prescrita em comparação com outras
classes de fármacos antihipertensores (antagonistas do cálcio, bloqueadores beta e diuréticos
tiazídicos). Assim como a toma única do fármaco, a idade ≥ 75 anos e o sexo feminino,
estiveram associados a uma maior probabilidade de manterem a sua terapêutica
antihipertensora decorridos 12 meses.
É necessária a realização de estudos adicionais para explicar, quais as razões de os doentes
manterem o mesmo tratamento; se estes achados são explicáveis pela tolerabilidade dos
fármacos, pela subjectividade na selecção ou por outros factores; se estas diferenças se
manterão nos próximos anos e se as mesmas se encontram associadas a melhores resultados
em termos da saúde.
14
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