TECNOLOGIA/PESQUISA Influência de Microrganismos Contaminantes sobre o Processo Fermentativo * M. A. Camolez e *M. J. R. Mutton RESUMO Esta pesquisa foi desenvolvida durante a safra 2001/2002, com o objetivo de avaliar os microrganismos contaminantes e seus reflexos sobre o processo fermentativo em destilaria de álcool. Realizaram-se análises físico-químicas (pH, acidez total, glicerol, teor alcoólico e de fermento) e quantificação dos microrganismos da água de diluição, mosto, pé-de-cuba e vinho. Os resultados evidenciaram que a contaminação por leveduras e bactérias ocorreu através do mosto e da água de diluição nos três meios de cultura empregados. Os contaminantes presentes no mosto e na água de diluição foram responsáveis pelas elevadas concentrações de ácidos orgânicos e glicerol, principalmente no primeiro período de safra, afetando diretamente a eficiência fermentativa que apresentou para o primeiro período uma queda de 2,36% (v/v) e 1,24% (v/v) em relação ao segundo e terceiro período avaliados, respectivamente, devido ao desvio de açúcares para a formação destes metabólitos. Palavras Chave: fermentação alcoólica, leveduras, matéria-prima e subprodutos. SUMMARY This reseach was conducted during the season 2001/2002 to evaluate the effect of contaminants on alcohol production and their impacts on the fermentation process in a distillery. We performed physical-chemical analyses (pH, acidity, glycerol, alcohol and yeast content) and quantified dilution water, must, inoculum (pé-de-cuba) and wine microorganisms. Our results show that yeast and bacterial contamination came from the must and dilution water In all of the three culture media. The contamination from both the must and dilution water were responsible for the high levels of organic acids and glycerol, especially on the first harvest time, directly affecting the fermentation efficiency, which decreased 2.36 * 6 FCAV/UNESP- CampusdeJaboticabal - Jaboticabal - SP. and 1.24% (v/v) in relation to the second and third times, respectively. This decrease is due to the use of sugars to produce glycerol and organic acids. INTRODUÇÃO Os processos fermentativos instalados em destilarias e usinas brasileiras apresentam dificuldade em manter a assepsia do substrato a ser fermentado, favorecendo o desenvolvimento de microrganismos contaminantes, bactérias e como leveduras selvagens. Este fato tem despertado a atenção dos técnicos e pesquisadores para uma melhor avaliação da qualidade da matéria prima e das condições operacionais, objetivando a adequação de medidas para minimizar os problemas e conseqüentemente o custo de produção do álcool. Para Oliva-Neto; Yokoya (1997) os maiores prejuízos causados pela contaminação bacteriana são a degradação da sacarose e a formação de ácidos orgânicos que ocasionam perda de açúcar e intoxicação das leveduras. O gênero Lactobacillus é a maior preocupação das unidades produtoras de álcool (Narendranath et al. 1997). Muitas espécies que apresentam cápsula polissacarídica e secretam gomas extracelulares que protegem as células dos efeitos letais do calor e conferem a capacidade de crescerem em temperatura relativamente alta (Gallo; Canhos, 1991). Bevan; Bond 1971 identificaram Bacillus megaterium em amostras de caldo após o clarificador, que apresenta temperaturas próximas a 100 °C. Cabrini; Gallo (1999) definiram levedura contaminante como qualquer levedura presente no processo fermentativo que não seja aquela selecionada para a condução da produção de álcool, que atuam prejudicando o processo fermentativo, causando problemas operacionais e aumentando o tempo de fermentação. Contudo, algumas contaminantes podem apresentar bom desempenho fermentativo, podendo ser selecionadas para atuarem como as leveduras do processo numa safra posterior. Para realização desta pesquisa tomou-se como base o histórico das fermentações das últimas cinco safras, onde se observou uma variação no perfil fermentativo, trazendo problemas de ordem operacional, além de prejuízos financeiros. As características microbiológicas do mosto e da água-dediluição de fermento foram correlacionadas com as características físico-químicas do processo fermentativo. MATERIAL E MÉTODOS Para o início da fermentação foi utilizada levedura comercial de panificação (fermento biológico) do gênero Saccharomyces cerevisiae (Mauri Brasil-Pederneiras, São Paulo, Brasil). Utilizou-se as seguintes definições: mosto (líquido apto a ser fermentado), vinho levedurado (mosto depois de concluída a fermentação alcoólica, composto por leveduras vivas e mortas, álcoois e componentes secundários), pé-de-cuba (suspensão de células de leveduras obtidas após a centrifugação do vinho) e água de diluição (água utilizada para diluir a suspensão de células de leveduras obtida por centrifugação). As amostras foram coletadas em três períodos definidos como início, meio e final da safra 2001/2002. Cada período corresponde a quatro coletas, com intervalo entre elas de aproximadamente sete dias e foram denominados da seguinte forma para facilitar a discussão dos resultados: primeiro (22/06/01, 29/06/01, 06/07/01 e 15/07/01), segundo (10/ 08/01, 17/08/01, 27/08/01 e 04/09/01) e terceiro (02/10/01, 10/10/01, 16/10/01 e 24/10/01). Utilizaram-se para estas avaliações amostras de água de diluição do fermento, mosto, pé-de-cuba e vinho levedurado do processo fermentativo da Pitangueiras Açúcar e Álcool Ltda O isolamento dos microrganismos foi realizado através de plaqueamento imediato e em série das amostras, em duplicatas, nas diluições de 10-1 a 10-3 para água de diluição; 10-2, 10-4 e 10-6 para mosto e 10-6 a 10-8 para pé-decuba e vinho levedurado. STAB - maio-junho - 2005 - Vol. 23 nº 5 TECNOLOGIA/PESQUISA Para o crescimento de microrganismos totais utilizou-se o meio PCA (Plate Count Ágar Difco-Becton Dickinson and Company, Sparks, USA). Para a quantificação de bactérias láticas empregou-se o meio MRS (Man, Rogosa e Sharpe) recomendado por Man et al. (1960). A incubação das placas foi realizada em estufa microbiológica com temperatura de 32°C por um período de 48 a 72 horas. A quantificação de leveduras foi realizada através do meio WLN (Wallerstein Laboratories Nutrient Agar) proposto por Green; Gray (1950) e modificado por Oliveira; Pagnocca (1988). A incubação das placas foi realizada a temperatura de 30°C por um período de 72 a 96 horas. O pH foi determinado em potenciômetro digital, nas amostras de vinho bruto sem diluição. O teor de glicerol foi determinado conforme metodologia proposta por MacGowan et al. (1983), a acidez total conforme Villela et al. (1973). Para a determinação de ARRT (açúcares redutores residuais totais) e ART (açúcares redutores totais) em g/100 g de vinho utilizou-se metodologia de Lane & Eynon (1934). O teor de fermento foi obtido através de centrifugação do vinho bruto a 700 g por 5 minutos. O teor alcoólico foi determinado por cromatografia gasosa (Monick, 1986). Para o índice de viabilidade e brotamento de leveduras utilizou-se o método proposto por Lee et al. (1981). A análise estatística foi realizada empregando-se a correlação de Pearson pelo software S.A.S. (Statistical Analysis System). Tabela 1 Coletas 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 Contagem microbiológica nas amostras de doze coletas expressas em UFC/mL de amostra (Safra 01/02) Amostras Microrganismos Totais Bactérias Leveduras Totais Água de diluição Mosto Água de diluição Mosto Água de diluição Mosto Água de diluição Mosto Água de diluição Mosto Água de diluição Mosto Água de diluição Mosto Água de diluição Mosto Água de diluição Mosto Água de diluição Mosto Água de diluição Mosto Água de diluição Mosto 5.3x104 8.0x106 3.0x104 1.0x104 2.0x105 1.0x106 3.9x104 3.1x107 4.0x104 3.0x105 2.3x103 2.0x104 3.9x103 7.0x105 1.3x104 4.5x106 1.1x105 3.0x106 6.0x103 4.0x106 6.6x103 1.1x106 1.9x104 4.0x104 2.0x102 1.4x105 1.2x102 1.3x104 2.0x102 1.8x106 2.1x102 3.4x107 7.0x101 2.0x105 7.0x101 3.9x104 8.3x101 9.0x105 3.0x101 4.8x106 1.9x104 1.2x106 1.1x102 5.7x106 1.2x102 3.0x106 1.3x103 6.4x104 <10x102 2.2x103 1.0x101 5.0x102 3.0x102 1.5x103 1.2x102 2.0x103 <1x101 1.0x102 <1x101 <1x102 <1x101 1.0x102 <1x101 3.0x101 1.8x102 1.4x102 <1x102 3.4x103 <1x101 5.7x103 <1x101 4.3x103 RESULTADOS E DISCUSSÃO A presença de contaminantes na fermentação resulta em sérios prejuízos para as leveduras refletindo-se de modo direto sobre a produtividade e o rendimento do processo fermentativo. Analisando-se a Tabela 1 pode-se concluir que a maior carga microbiana presente foi bacteriana, fato que traz grande preocupação para o sistema de controle, de acordo com Stroppa et al. (1998), que consideram os produtos do metabolismo dessas bactérias prejudiciais para o processo. As contaminações observadas neste estudo podem ter sido resultantes da descontinuidade do processo motivado por paradas do processo de moagem, que ocorreram no início da safra, acarretando desequilíbrios no processamento da matéria-prima, provocando sua deterioração. Resultados semelhantes foram obtidos por Yusof et al. (2000) que obtiveram diferenças significativas de pH e acidez comprovando a deterioração do substrato em testes realizados com variaSTAB - maio-junho - 2005 - Vol. 23 nº 5 Figura 1 - Avaliação microbiológica das amostras de vinho e análise de teor alcoólico e de fermento obtidas em doze coletas (Safra 01/02). ção do tempo e da temperatura de armazenamento. Observando-se a Tabela 1 é possível inferir que o maior número de contaminantes introduzidos no processo fermentativo foi carreado pelo mosto, submetido ao tratamento térmico (Yokoya, 1991; Gallo; Canhos, 1991). Embora este seja um procedimento de rotina que objetiva reduzir a carga microbiana, problemas tais como falhas operacionais no tratamento térmico, recontaminação do mosto através dos trocadores de calor ou adição de melaço comprometido microbiologicamente, podem ter contribuído para essa ocorrência. É importante ressaltar que a água de diluição de fermento também pode ser uma fonte de contaminação, conforme resultados observados para os três meios de cultura (Tabela 1) que estão de acordo com resultados obtidos por Amorim et al. (2002). Deve-se des7 TECNOLOGIA/PESQUISA Considerando-se os resultados discutidos anteriormente e o comportamento apresentado pelo teor alcoólico e de fermento no vinho, glicerol e eficiência fermentativa verificou-se que a contaminação microbiana e a formação de metabólitos observadas no primeiro período de safra foram diretamente responsáveis pela queda no rendimento fermentativo (Figura 3) de 2,36% (v/v) e 1,24% (v/v) em relação ao segundo e terceiro período avaliados, respectivamente. Deve-se considerar ainda que, a avaliação e conhecimento da qualidade da água utilizada na unidade industrial é extremamente importante, uma vez que, ela interfere diretamente sobre a carga microbiana obtida no ambiente das dornas, aumentando a acidez e reduzindo o teor alcoólico do vinho. Figura 2 - Determinação de metabólitos nas amostras de vinho obtidas em doze coletas (Safra 01/02) . CONCLUSÕES - mosto e a água de diluição de fermento apresentaram cargas microbianas elevadas, principalmente de bactérias láticas. - as altas concentrações de ácidos totais e glicerol observadas no primeiro período de safra foram ocasionadas pelos níveis elevados de contaminantes presentes no mosto e na água de diluição do fermento, prejudicando o rendimento fermentativo. AGRADECIMENTOS À Pitangueiras Açúcar e Álcool Ltda pela colaboração e oportunidade de realização deste trabalho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Figura 3 - Avaliação da eficiência fermentativa obtida nos três períodos de safra, representada por doze coletas (Safra 01/02). tacar que quando se compara a contaminação da água-de-diluição com o mosto, este apresenta níveis mais elevados, fato que merece especial atenção do ponto de vista do controle, uma vez que, neste está concentrado todo açúcar disponível para a transformação em álcool. Na Figura 1 pode-se observar queda no teor alcoólico e de fermento e aumento no número de bactérias/mL no terceiro período de safra. O teor alcoólico e a número de bactérias láticas no vinho correlacionaram-se negativamente (r= -0,6646, p<0,018). Relatos de Narendranath et al. (1997) e Thomas et al. (2001) evidenciaram queda na produção de álcool em ambientes com altas taxas de contaminação bacteriana. Como resultado das contaminações e/ou desvios no metabolismo das leveduras observou-se maior formação de glicerol e de 8 ácidos totais, principalmente no primeiro período de safra. Da análise da Figura 2 pode-se verificar que as concentrações médias foram de 383,15 mg de glicerol/L de vinho e 1,61 g de ácidos totais/L de vinho. Comportamento semelhante foi obtido por Cherubin (2003) avaliando os efeitos da contaminação bacteriana na fermentação alcoólica. Avaliando a produção de glicerol em 19 linhagens de S. cereviseae na produção de vinho, Remize et al. (2000) obtiveram concentrações na faixa de 6400 a 8900 mg de glicerol/L de vinho. Esta variação foi atribuída às linhagens testadas e não aos fatores ambientais. Comportamento semelhante pode ser observado neste estudo, embora não se tenha realizado a identificação das leveduras, foi constatada a presença de leveduras contaminantes (Tabela 1). AMORIM, H.V.; GALLO C.R.; OLIVEIRA A.J. Tratamento de Água: Cloração. In: A ciência na prática. Encontros Fermentec. 23, 2002, Piracicaba, Palestras Piracicaba: Fermentec. 2002. CD Room. BEVAN, D.; BOND, J. Microorganisms in field and mill a preliminary survey. In: Proccedings of the Queensland Society for sugarcane Technology, p.137-143, 1971. CABRINI, K.T.; GALLO C.R. Identificação de leveduras contaminantes no processo de fermentação alcoólica na Usina Santa Elisa. STAB, Açúcar, Álcool e Subprodutos, v.17, n. 6, p. 48-50, 1999. CHERUBIN, R.A. Efeitos da viabilidade da levedura e da contaminação bacteriana na fermentação alcoólica.124 f. Piracicaba, 2003. Tese de doutorado, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Universidade de São Paulo. STAB - maio-junho - 2005 - Vol. 23 nº 5 TECNOLOGIA/PESQUISA GALLO, C.R.; CANHOS, V.P. Efeito do tratamento ácido no fermento sobre a microbiota bacteriana da fermentação alcoólica. STAB, Açúcar, Álcool e Subprodutos, v. 29, n. 6, p. 35-37, 1991. LANE, J.H. ; EYNON, L. Determination of reducing sugars by Fehling solution with mwthylene blue indicator. London: Normam Rodger, 8p,1934. LEE, S.S.,ROBINSON F.M. ; WANG, H.Y. Rapid determination of yeast viability. Biotechnology and Bioengineering Symp, v. 11, p. 641, 1981. MACGOWAN, M.W., ARTISS, J.D., STRANDBERGH, D.R. ; ZAK, B. A peroxidase-coupled method for the colorimetric determination of serum triglycerides. Clinical Chemistry, v. 29, p. 538-542, 1983. MAN, J.C.; ROGOSA, M.; SHARPE, M.E. A medium for the cultivation of Lactobacillus. Journal Applied Bacteriology, v. 23, p. 130-135, 1960. MONICK, J.A. Alcohol their chemistry, properties and manufacture. New York: Reinhold Book, p. 576, 1986. NARENDRANATH, N.V.; HYNES, S.H.; STAB - maio-junho - 2005 - Vol. 23 nº 5 THOMAS K.C. ; INGLEDEW W.M. Effects of lactobacilli on yeast-catalyzed ethanol fermentations. Applied and Environmental Microbiology, v. 63, p. 4158-4163, 1997. OLIVA-NETO, P. ; YOKOYA, F. Effects of nutritional factors on growth of Lactobacillus fermentum mixed with Saccharomyces cereviseae in alcoholic fermentation. Revista de Microbiologia, v. 28, p. 25-31, 1997. OLIVEIRA, M.C.F.; PAGNOCCA, F.C. Aplicabilidade de meios seletivos empregados nas indústrias de cervejarias à detecção de leveduras selvagens em unidades sucroalcooleiras. In VII SINAFERM em São Lourenço,1988, Minas Gerais. Brasil. p.78-81. REMIZE,F.SABLAYROLLESJ.M.;DEQUIN S. Re-assessment of the influence of yeast strain and environmental factors on glycerol production in wine. Journal Applied Microbiology, v. 88, p. 371378, 2000. SAS INSTITUTE. SAS/STA users guide, Version 6. Cary NC, 1999. ISBN 1555445543. STROPPA, C.T.; SERRA, G.; ANDRIETTA, M.G.S.; STECKELBERG C.; ANDRIETTA S.R. Consumo de açúcar por bactérias contaminantes da fermentação alcoólica associado ao uso de antibióticos. STAB, Açúcar, Álcool e Subprodutos, v.16, n. 3, p. 3538, 1998. THOMAS, K.C.; HYNES S.H.; INGLEDEW W.M. Effect of lactobacilli on yeast growth, viability and batch and semicontinuous alcoholic fermentation of corn mash. Journal of Applied Microbiology, v. 90, n. 5, p. 819-828, 2001. VILLELA, G.G.; BACILA, M.; TASHALDI, H. Técnicas e Experimentos de bioquímica. 552 p. Ed. Guanabara Koogan: Rio de Janeiro, 1973. YOKOYA, F. Problemas com contaminantes na fermentação alcoólica. STAB, Açúcar, Álcool e Subprodutos, v. 29, n. 6, p. 38-39, 1991. YUSOF, S.; SHIAN L.S.; OSMAN A. Changes in quality of sugar-cane juice upon delayed extraction and storage. Food Chemistry, v. 68, n. 4, p. 395-401, 2000. 9