A Liderança como Relação Social: Uma Abordagem a Partir das Categorias Sociológicas Weberianas Autoria: Antonio dos Santos Silva, Antonio Carvalho Neto Resumo Neste ensaio, discutem-se possibilidades de aplicação da sociologia weberiana para estudar liderança. Extraíram-se de Weber três conjuntos de fatores. O primeiro é constituído pelos atores da ação social e os determinantes da racionalidade individual. O segundo discrimina o meio no qual a relação social ocorre, enfatizando o grau de maturidade institucional da organização: carismático, tradicional ou burocrático. O terceiro elenca um grupo de condicionantes ambientais que atuam como limitadores da ação individual. Propõe-se esta abordagem por se acreditar que um distanciamento das abordagens dos estudos da Nova Liderança pode contribuir na elucidação da confusão teórica que cerca o construto liderança. 1 1- INTRODUÇÃO Neste ensaio pretende-se discutir as possibilidades de se utilizar a sociologia compreensiva, tal como a entendia Max Weber, para o estudo do fenômeno liderança. O que significa uma revisão de conceitos sociológicos weberianos e posteriormente a defesa da aplicação deles para explicitação do construto liderança. Constitui, assim, a defesa de uma perspectiva baseada nos estudos weberianos para se abordar um fenômeno que apesar do grande número de artigos publicados e da existência de várias teorias já consolidadas a seu respeito, permanece polarizando mais dissenso do que consenso. Algumas questões podem ser formuladas sobre a propriedade de mais um ensaio sobre o tema: há algum conhecimento a ser perseguido que ainda justifique pesquisas e discussões sobre liderança? Entende-se que sim. A liderança como relação social e de poder assimétrico entre líderes e liderados, ainda se apresenta pouco estudada. Ou, colocado sob outro prisma, que contribuições uma abordagem weberiana poderia oferecer ao entendimento do tema liderança no início do século XXI, uma vez que se trata de uma teoria centenária a ser aplicada num tema “da atualidade”? Argumenta-se que, embora os conceitos e princípios weberianos tenham sido contemplados em vários estudos organizacionais e comportamentais para explicação de fenômenos sociais, a sua perspectiva teórica sobre autoridade ainda possui enorme potencial de aplicabilidade em temas atuais, notadamente para o construto liderança. Ademais, parece incrível que no início dos anos 2000 ainda não se consiga estabelecer um conceito ou mesmo uma definição clara para o fenômeno liderança ao associá-lo aos estudos organizacionais (SANT’ANNA et al, 2009; FERREIRA; SANT’ANNA; SARSUR, 2010). Já há algum tempo autores como Burns (1978), advertiam para falta de consenso sobre o conceito, chegando a listar 130 definições diferentes para o termo liderança. Bennis e Nanus (1988) falam de 350 definições. Em contraste à produção teórica, no dia a dia as pessoas tendem a se utilizar do termo liderança com indisfarçável segurança ao se referirem sobre várias situações do cotidiano em que indivíduos ou organizações se diferenciam dos pares ao infligir aos demais algum tipo de distinção de ideias e ou ideais (BENNIS; NANUS, 1988). Estariam as teorias construídas sobre liderança tão distanciadas da prática social, a ponto de não conseguir discuti-la com propriedade? (YULK et al., 1990; BECKER; HUSELID, 2006). Ao que parece esses estudos precisam ser oxigenados com outras visões. Para tanto, assume-se como pressuposto básico deste ensaio que o aparente esgotamento do tema liderança identificado pelos pesquisadores atualmente (SANT’ANNA; CAMPOS; VAZ, 2010; FERREIRA; SANT’ANNA; SARSUR, 2010), tem sua origem na pouca capacidade explicativa que os estudos estão apresentando para o fenômeno por dois motivos: estarem excessivamente direcionados para análises de viés psicológico de eventos intraorganizacionais e por não estarem lastreadas em teorias mais abrangentes, como ocorrido até o final da década de 1970. Isso porque, após esse momento histórico, que marca para as teorias organizacionais o pós-modernismo, houve uma fragmentação em várias linhas teóricas, com abordagens bem diferentes sobre a realidade organizacional (NELSON, 2010). Essa fragmentação é sentida nos estudos sobre liderança pela profusão de adjetivos adicionados ao termo, que tiveram como efeito a corrosão ainda maior do significado nuclear do termo. Donde se depreende a necessidade de uma retomada desses estudos sob a ótica de teorias mais abrangentes. A proposta recai sobre a sociologia da ação, abordagem compreensiva para estudo de fenômenos sociais, desenvolvida e aplicada por Max Weber, porque segundo essa teoria, o interesse do pesquisador tem como foco a relação social e não somente as percepções psicológicas dos atores sociais. Trata-se do estudo da relação social abrangendo suas possíveis causas e efeitos numa perspectiva que transcende os limites da organização. Pretende-se, pois, reforçar, em acordo com Sant’Anna et al (2010), que o estudo do fenômeno liderança deve 2 englobar aspectos para além do âmbito organizacional, considerando também as perspectivas do indivíduo e da sociedade, como forma de compreendê-lo em suas várias facetas e interseções. Não se afirma que os princípios weberianos não tenham sido utilizados em pesquisas anteriores sobre o tema liderança. É notória a influência desse autor em vários campos de pesquisa científica, aqui especificamente relacionado à liderança carismática. Cabe questionar, todavia, se pesquisas em administração não estariam contemplando apenas parcialmente o legado de conhecimentos dos autores clássicos, o que implicaria em distorção dos achados e a não assimilação de riquezas das revelações que essas pesquisas poderiam fornecer. Uma análise a priori, através da literatura sobre epistemologia e metodologia do trabalho científico, indicaria que as limitações sentidas em pesquisas podem ser consequência da aplicação indevida dos métodos de pesquisa disponíveis (WEBER, 2006), como: escolha de visões ontológicas conflitantes com o objeto pesquisado (VAN de VEN; POOLE, 2005); construção de desenhos de pesquisas e análise deficientes em relação ao objeto em estudo (NUMAGAMI, 1998), e; consequências indesejáveis de conflitos entre fatos e valores do pesquisador no curso da avaliação de resultados da pesquisa (WEBER, 2004; 2006). O que, em tese, justifica revisitar teorias mais robustas quando a confusão conceitual em determinado fenômeno se estabelece. Acredita-se que uma análise mais criteriosa dos aspectos supracitados indicaria a aplicação parcial, ou visões particulares sobre teorias, mescladas com as análises comportamentalistas aplicadas aos estudos sobre liderança, cuja revisitação pode esclarecer pontos obscuros no entendimento do fenômeno. Da mesma forma, se acredita que o uso corrente das teorias, inclusive a weberiana, em abordagens parciais têm levado a algumas distorções de entendimento e aplicação dos princípios sociológicos e do método defendidos por esses autores, distorcendo por fim, análises e conclusões de pesquisas. Talvez por isso, o quadro atual que apresentam os pesquisadores sobre liderança tem exibido certo ceticismo quanto aos próprios resultados para explicação do fenômeno. Após terem coletado dados e os analisado segundo referenciais teóricos sofisticados, quase sempre estabelecendo uma evolução histórica para o fenômeno, parece que os resultados não os satisfazem plenamente. É como se algo faltasse (SANT´ANNA et al, 2009) Dados os conflitos apresentados, pode-se defender que o construto liderança carece de um retorno ao campo ancorado por teorias e técnicas de pesquisa que se sustentem pela epistemologia e pelo método, caracterizando unicidade na teoria e na técnica, e consequentemente, um modo de se elaborar raciocínios bem delimitados sobre fatos, para que se possa definir o quanto possível suas dimensões. Nas próximas seções serão apresentados os fundamentos da sociologia compreensiva weberiana e em seguida a defesa do uso desta abordagem no estudo da liderança. 2- FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1 Sociologia da ação: fundamentos epistemológicos e metodológicos A sociologia da ação nasceu na Alemanha com os estudos de Simmel e Max Weber, tendo como marco a obra Os problemas da filosofia da história, de 1892, do primeiro autor, e Economia e sociedade (ES) e Ensaio sobre a teoria da ciência, ambas de 1922, do segundo. Essas obras podem ser consideradas como manifestos fundadores da sociologia da ação, sendo que ES tornou-se a obra referência para estudos sociológicos com essa perspectiva. Sociologia é uma palavra com múltiplos significados. No sentido empregado nesse trabalho e também na obra Weber (2004, p. 3), sociologia é uma ciência que procura “compreender interpretativamente a ação social” de forma a poder “explicá-la causalmente 3 em seu curso e em seus efeitos”. Em estudos de fenômenos sociais, ou fenômenos da ciência da cultura, como prefere Weber (2006), o autor opõe-se aos princípios positivistas (que prescrevem a construção de leis invariáveis, cada vez mais gerais para o objeto em estudo), o que se observa, inclusive, em sua definição de sociologia, ao dizer da necessidade de se compreender o fenômeno de forma interpretativa, buscando-lhe as causas e examinando-lhe os efeitos. Assim, a análise sociológica, no sentido weberiano, torna-se uma análise de um fenômeno particular, em profundidade, constituindo-se numa possível explicação ao fenômeno, explorando a riqueza das conexões que o constituem, porém com generalização limitada, porque considera os fenômenos sociais como dinâmicos, frutos da luta (cultural) entre os atores sociais (BOUDON, 1995). Importante dizer que Weber (2004, p. 3) erige sua análise sociológica sobre o reconhecimento de categorias que considera fundamentos das ciências sociais, os seus pilares. Donde deriva um elemento importante da definição weberiana de sociologia: a ação social. A ação é entendida como um comportamento humano, que pode ser um “fazer” externo ou interno (de omitir ou permitir) que os agentes relacionem com um sentido subjetivo. Ação social, portanto, é uma ação cujo sentido visado pelo agente refere-se ao comportamento de outros, sendo este a orientação de seu curso. Não se trata, todavia, de um sentido objetivamente correto ou verdadeiro, no sentido da ética ou da moral, o que, se observado no caso específico deste trabalho, redundaria em não se considerar como lideranças aquelas pessoas cujos efeitos das ações ferissem tais princípios, muito embora pudessem constituir relações sociais típicas segundo o ponto de vista de uma ação social com sentido. A História é pródiga de exemplos de pessoas que exerceram liderança com posturas amorais e antiéticas, como Hitler e Napoleão. Ainda assim, não se pode negar que eles exemplifiquem tipos de líderes (WHIMSTER, 2009). Por outro lado, há também nos estudos da Nova Liderança, que serão abordados mais à frente, um tipo de ação com sentido, porém advindo de um comportamento puramente reativo, mesmo admitindo-se limites muito fluidos entre essas classes de ações. Essa distinção ajudaria na compreensão, por exemplo, da liderança Laissez Faire, dentro da abordagem da Nova Liderança, na qual o líder permite a ação proativa dos liderados, mas, que ainda assim, exemplifica uma ação com sentido (CARVALHO NETO et al, 2012). A sociologia da ação estabelece-se sobre dois princípios fundamentais. O primeiro consiste no fato de que todo fenômeno social é sempre resultado de ações, de atitudes e convicções, em resumo, de comportamentos individuais. O segundo é um complemento do primeiro e afirma que o pesquisador que pretende explicar um fenômeno social deve procurar o “sentido” dos comportamentos individuais que estão em sua origem. Explicar a existência ou ocorrência de um fenômeno é, portanto, reconstituir a rede de ações que o originou, dando conta das razões dessas ações. Segundo os adeptos da sociologia da ação, todos os fenômenos sociais, inclusive as mudanças verificadas nos costumes explicam-se da mesma maneira. Todavia, se os princípios são relativamente simples, a sua operacionalização em pesquisa não o é. Pode até ser muito difícil na prática, porque as causas individuais que originam os fenômenos são, frequentemente, numerosas e o grau de influência dessas causas difícil de estabelecer. Também, porque pode ser extremamente difícil especificar as razões que levaram certo ator a determinado ato, ou mesmo ter acesso a ele para entrevistá-lo. Devido às suas características e princípios, a essa forma de abordagem de fenômenos sociais deu-se o nome de individualismo metodológico (BOUDON, 2006; ELIAS, 2006). Os princípios da sociologia da ação refletem na prática os princípios da sociologia clássica alemã, apresentados por Boudon (2006, p. 32), nesses termos: 1. O princípio que consiste em tentar explicar os fenômenos macroscópicos 4 reduzindo-os às causas microscópicas (no plano do indivíduo); O princípio segundo o qual estas causas devem ser assimiladas com grande frequência às razões (implícitas ou explícitas) dos atores; 3. O princípio da simplificação que exige que os atores sejam agrupados por tipos - Weber dirá por tipos ideais 2. Para Weber (2004, p. 15) a ação social pode ser determinada de modo racional referente a fins “por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como condições ou meios para alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente”. Pode ainda ser determinada de modo racional referente a valores “pela crença consciente no valor - ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação - absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente do resultado”. Já por relação social Weber (2004, p. 16) a entende como o “comportamento reciprocamente referido quanto ao seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referência”. Para esse ensaio, considerar liderança como ação social significa admiti-la como uma ação dotada de “determinado” sentido subjetivo por parte do agente (o líder) em relação ao comportamento do outro (o liderado). Propõe-se também estendê-la à categoria de relação social, por entender que a influência entre líderes e liderados se dá numa via de mão dupla. Do ponto de vista sociológico, um desenho de pesquisa sob essa perspectiva deve, portanto, buscar as evidências de sentido na relação líder versus liderado, investigando-lhe suas causas e seus efeitos. Cabe, então, uma breve discussão sobre interpretação e evidências, segundo a visão weberiana. 2.2 Questões distintivas da metodologia weberiana Para Weber (1999; 1995), em clara oposição à crença positivista, jamais será tarefa de uma ciência empírica produzir normas e ideais obrigatórios, visando deles extrair receitas para a prática. O alvo do conhecimento seria ir além de um estudo puramente formal das normas legais ou convencionais - da convivência social. Na sua visão, a ciência social é uma ciência da realidade. Procura-se, através dela, compreender a realidade da vida que nos rodeia, e na qual nos encontramos situados, naquilo que tem de específico. Por um lado, as conexões e a significação cultural de suas manifestações na configuração em que se apresenta e, por outro lado, as causas pelas quais se desenvolveu historicamente de um e não de outro modo. Tratase do esforço de tentar-se descrever de modo exaustivo essas singularidades em todos os seus componentes individuais, e, muito mais ainda, tentar captá-la naquilo que tem de causalmente determinado. Para o conhecimento da realidade, o interesse recai sobre a constelação em que esses fatores hipotéticos que individualizam o fenômeno se agrupam. Isto porque, para Weber os fenômenos sociais não exibem nenhum caráter objetivamente intrínseco a eles, não se pode recorrer a outro meio senão buscar-lhes as causas mediante a atribuição (imputação) dessa condição a outros fenômenos (ou a um conjunto deles), para em seguida pesquisar se a relação suposta se confirma. O conhecimento das leis da causalidade, portanto, não poderá constituir um fim, mas antes o meio do estudo. Ele facilita e possibilita a imputação causal dos elementos dos fenômenos, tornados importantes para a cultura por sua individualidade. Para um fenômeno cultural nunca se trata de conexões regulares no sentido estrito das ciências da natureza, mas de conexões causais adequadas. Para as ciências exatas da natureza, as leis são tanto mais importantes e valiosas quanto mais geral é sua validade. Para o conhecimento das condições concretas dos fenômenos históricos (culturais) as leis mais gerais são frequentemente as menos valiosas, por serem mais vazias de conteúdo. Pois quanto mais vasto é o campo abrangido pela validade de um conceito cultural genérico tanto mais nos 5 afasta da riqueza da realidade, posto que, para poder abranger o que existe de comum no maior número possível de fenômenos, forçosamente deverá ser o mais abstrato e pobre de conteúdo. Para Weber no campo das ciências da cultura, o conhecimento do geral nunca tem valor por si próprio (WEBER, 1999; 2006; GIDDENS, 2003; 2010). Um exemplo clássico da aplicação da metodologia weberiana encontra-se em A ética protestante e o espírito do capitalismo, desse mesmo autor (WEBER, 1981). O livro apresenta uma possível explicação para as raízes do capitalismo através da prática religiosa das comunidades protestantes europeias. Os objetivos eram conhecer o conteúdo das ideias primordiais e o modo como a moralidade prática se prendia à ideia de ‘um’ outro mundo, e rastrear estímulos psicológicos criados pela fé religiosa e pela prática de um viver religioso que impulsionou a acumulação de capital que viabilizou de muitas formas as práticas capitalistas modernas. Weber identificou que a vida ascética protestante intramundana agiu com toda veemência contra o gozo descontraído das posses, estrangulando o consumo, especialmente o consumo de luxo. A causa desta conduta foi atribuída ao controle psicológico interno, um autorregulador, que justificava para os protestantes uma vida de frugalidades cujo objetivo era não perder a predestinação ao paraíso, um dogma baseado no pecado original. Fato foi que principalmente pelo calvinismo e pelas práticas metodistas, enormes fortunas se acumularam, sendo mais tarde revertidas para os múltiplos investimentos que propiciaram o capitalismo moderno. A descrição detalhada de comportamentos e as explicações das origens teológicas dos diversos fatores intervenientes na conduta protestante pós-reforma luterana mostra o caminho metodológico de Weber na descrição e explicação desse componente importante da história ocidental, através de tipos ideais. No que se refere à investigação, o conceito de tipo ideal propõe-se a formar um juízo de atribuição. Por tipo ideal entende-se que seja um quadro de pensamento, não da realidade histórica, e muito menos da realidade autêntica, que não serve de esquema no qual se pudesse incluir a realidade à maneira exemplar. Tem antes o significado de um conceito limite puramente ideal, em relação ao qual se mede a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns de seus elementos importantes, com o qual esta é comparada. Não é uma hipótese, mas pretende apontar o caminho para a formação de pressupostos (WEBER, 1999; 2006). No seu estudo sobre o capitalismo e a ética protestante, Weber (1981) elabora dois tipos ideais que referenciam sua análise sobre o capitalismo. A partir do texto de Benjamin Franklin sobre o homem político e panfletário do século XVIII, constrói o tipo ideal do “espírito do capitalismo”, baseado na prosperidade econômica, no sentido de se fazer negócios, em princípios de comportamentos. Para Weber o “espírito do capitalismo” se traduz em quatro ideias simples: i- cada indivíduo tem o dever de fazer crescer o seu capital, e obter lucro, ganhar sempre mais; o capital constitui um objetivo em si mesmo, e não um meio com vista a outros fins; ii- este dever se cumpre no exercício da profissão, com ardor, sendo o trabalho um fim em si mesmo; iii- a perseguição do lucro pela profissão decorre de uma atuação racional e rigorosa, pelo controle das despesas e pelo investimento; iv- não é preciso retirar da riqueza outra satisfação do que a de ter cumprido seu dever; usufruir dela e do poder ou apresentá-la ostensivamente não são comportamentos recomendáveis. Em resumo, o “bom” capitalista leva uma vida ascética, consagrada ao labor, cujo único uso aceitável da sua fortuna é o de reinvestir. Para chegar ao tipo ideal relativo à ética protestante, Weber desenvolve vários estudos sobre religiões e filosofias asiáticas e das raízes religiosas de onde saiu o cristianismo. Esses estudos permitiram captar a especificidade e progressivo surgimento da racionalidade ocidental e compreender o papel da religião nesse processo. Weber identificou nas religiões ocidentais o rompimento com a magia enquanto explicação dos fenômenos naturais e meio de salvação, o que chamou de “desencantamento do mundo”. Estuda o conjunto de normas éticas 6 desde as adotadas pelos Judeus até as aplicadas à teologia escolástica da idade média, com seus reflexos em todos os campos do conhecimento, inclusive a arquitetura e a música, e da conduta humana, na vida social e na reclusão dos monastérios. Já na idade média, identifica no reformador Martinho Lutero o adversário resoluto da complacência com os traços mágicos, com os quais se “comprava” a salvação por meio de orações e sacrifícios, e da vida monástica, que Lutero considerava uma negação egoísta das responsabilidades terrenas. Para Lutero, o trabalho devia ser considerado uma vocação, a maneira mais segura de agradar a Deus, adquirindo uma forte significação religiosa. Dando curso às obras da reforma religiosa, numa linha diversa daquela de Lutero, Calvino estabelece como dogma principal a predestinação para a salvação, esta concedida pela graça divina aos escolhidos para herdar o paraíso. O que consistiu num dos pilares de uma ética favorável ao aparecimento do capitalismo, pela sua capacidade de fazer com que as pessoas crentes se dedicassem muito ao trabalho. Como esse decreto divino que separava os salvos dos condenados não trazia qualquer sinal exterior, a incerteza era angustiante, por não assegurar ao crente qualquer garantia de ser contado entre os eleitos. Não cabia ao indivíduo modificar a decisão divina, mas viver uma vida de trabalho e poupança do excedente de sua produção, com uma forte convicção pessoal de estar absorvido por Deus. Assim, Weber concebe o tipo ideal da ética protestante com os elementos que disciplinavam a vida ascética intramundana dos protestantes das vertentes calvinista e luterana. Weber identifica que o ethos compartilhado prescrevia que apenas o trabalho com dedicação extrema e corretamente efetuado seria agradável a Deus, sendo o seu reflexo desejado e imediato uma vida austera e o sucesso profissional. Para Weber, cada indivíduo se encontrava irremediavelmente sozinho perante Deus e seu destino, era obrigado a trabalhar sem descanso, sem nunca poder usufruir dos frutos de seu perseverante trabalho. Essa visão de mundo significava o fim entre o antagonismo entre vida espiritual e econômica. O individualismo prosperou sem limites, porque “conforme a vontade divina”. Destas características da vida protestante, Weber extraiu os principais traços do tipo ideal da ética protestante: i- trabalho produtivo sem descanso; ii- ascetismo puritano, e; iii- individualismo. O passo seguinte foi definir as afinidades eletivas entre os dois tipos ideais, o capitalismo e a ética protestante. Weber esclarece que o calvinismo legitimou a busca infinita pelo lucro, não somente tolerando, mas também considerando-a desejável e agradável a Deus, em desacordo com a crença católica. Desse modo, os protestantes poderiam perseguir a riqueza com determinação e em paz com suas consciências. O protestantismo proporcionou, assim, a união das esferas religiosa e econômica, em que o trabalho profissional sem descanso constitui a forma suprema de ascetismo e a confirmação da eleição do crente. A combinação desses traços teria produzido os efeitos econômicos refletidos na poupança reinvestida na formação do capitalismo nascente. A proposta deste ensaio é defender a utilização deste método weberiano, que tem como base a sociologia da ação. Certamente, Weber, que é um dos gigantes da sociologia e o fundador da sociologia das organizações, tem muito a contribuir nos estudos de fenômenos tão complexos e tão carentes de uma discussão mais rigorosa quanto o é o tema da liderança. Nas próximas seções apontaremos um caminho que se consideramos viável para a construção de estudos baseados nas categorias weberianas. Apresenta-se antes a discussão da abordagem da Nova Liderança, por acreditar que ela faz uma ligação com os construtos weberianos, ainda que de forma imprecisa. 2.3 A abordagem da Nova Liderança e o uso do conceito weberiano de carisma: impropriedades do mainstream norte-americano Uma análise da publicação norte-americana sobre liderança das últimas décadas revela 7 que os estudos de cunho behaviorista têm dominado. Também, que publicou uma gama de trabalhos com conteúdos cada vez mais subjetivos que os estudiosos do tema convencionaram chamar de Nova Liderança. Os enfoques centraram-se, principalmente, em tipos de comportamentos dos líderes e em estilos de liderança, ressaltando características de pessoas influentes e mesmo o que no passado eram relacionadas como virtudes, descrevendo e afirmando seus efeitos sobre pessoas e grupos (WALTER; BRUCK, 2009). Por exemplo, Nielsen, Marrone e Slay (2010) associam o tema humildade ao exercício da liderança, apresentando-o como um elemento moderador da ação de líderes. Segundo eles, a ação de um líder na ausência desse elemento da personalidade apresentaria tendências de autoritarismo e autorreferência narcisista, o que provocaria uma sequencia de desmandos em relação aos liderados. Pode-se dizer que a subjetividade foi redescoberta pelas correntes teóricas da Nova Liderança nas várias características comportamentais que tornam um líder eficiente (NIELSEN; MARRONE; SLAY, 2010). A Nova Liderança considerou elementos das teorias precedentes (teoria dos traços, comportamental, situacional, por exemplo) e acrescentou a eles uma análise referenciada em princípios advindos de diversas áreas do conhecimento (CARVALHO NETO et al, 2012). A antropologia contribuiu com a visão que originou a vertente da liderança cultural. A liderança visionária baseou-se em traços de personalidade. Fatores contextuais influenciaram a liderança carismática tanto direta quanto indiretamente. Os estudos exploram as características de contexto que podem moldar as características do líder, exigências e restrições para atuação dos líderes, estabelecendo as condições de contorno para a viabilidade da liderança carismática e influenciando diretamente a probabilidade de que líderes se envolvam em tal comportamento (WALTER; BRUCK, 2009). Particularmente, cada corrente de estudos tem oferecido contribuições importantes para a compreensão do fenômeno liderança. A liderança cultural ressaltou a importância dos elementos da cultura na formação de estilos de liderança e relações com subordinados. Nesse contexto, os trabalhos de Schein (1985) foram fundamentais para se discutir como os elementos culturais podem condicionar comportamentos distintos, em culturas diferentes, sem que isso interfira na eficiência relativa dos modos de liderar e na efetividade gerencial. No Brasil, Carvalho Neto (2010), inspirando-se nos estudos antropológicos de Roberto D’Matta e Buarque de Holanda, ressalta elementos da formação do povo brasileiro na constituição de um modo próprio de exercer liderança, explicando porque modelos transplantados da cultura americana não vingaram em nosso solo. Já a liderança Laissez Faire, inspirada nos princípios pós-modernos, incentivava desenvolvimento do espírito de liderança dos subordinados, com o intuito de torná-los independentes e construtores de seus próprios talentos e motivações. Essa corrente, entendida pelos autores como uma antiliderança surgiu como alternativa ao paradigma transacionaltransformacional (CARVALHO NETO et al, 2012). De todo o modo, o que se buscava eram atitudes favoráveis de trabalho, valores, sentimentos positivos, além da identificação de princípios de inteligência emocional, que pudessem de alguma forma ser associadas à previsibilidade da ação gerencial. Das teorias mais recentes interessa, em especial, o que os autores têm entendido como liderança carismática, porque ela parece conter o elo entre todas as teorias da Nova Liderança: o carisma. Weber não estudou liderança, todavia o conceito de carisma foi evidentemente herdado do acervo de conceitos utilizados por ele. Mas, em termos de abrangência, essa abordagem toma o conceito weberiano de carisma tal como era entendido por esse autor? Artigos sobre Liderança descrevem os líderes carismáticos como aqueles que discriminam os objetivos, pintando figuras de linguagem, e que possuem uma habilidade excepcional para ganhar a devoção e o apoio de seguidores. São destemidos e apresentam suas ideias a qualquer um que pode ser capaz de ajudá-los, e carregam a fama de possuir excelente poder 8 de persuasão e negociação. Inspiram seus seguidores a se identificar com eles e a imitá-los, pois eles desenvolvem sentimentos intensos sobre eles, e cercam-se de considerável confiança em seus atos. Os líderes carismáticos atraem intensos sentimentos afetivos (de amor ou ódio) de seus subordinados. (GIBSON; HANNON; BLACKWELL, 1998). Sobre as novas correntes teóricas sobre liderança, Walter e Bruck (2009) advertem que as diversas vertentes de estudos têm apresentado resultados muito próximos, demonstrando mesmo sobreposição significativa para os resultados atribuídos às lideranças carismática, transformacional e visionária, geralmente convergindo em muitos pontos comuns. Eles acreditam que as várias correntes de estudos poderiam ser reunidas em uma única abordagem: a liderança da personalidade carismática. Seria isso indício de uma fragmentação teórica desnecessária? Se isso ocorre para o construto liderança, muitos resultados vistos pela ótica de teorias particulares permaneceriam inconclusivos, exatamente porque os fatores que contemplam isoladamente são insuficientes para explicar o fenômeno liderança. Os autores supracitados chegam a afirmar que, embora os estudiosos tenham aprendido muito sobre os impactos da liderança carismática, as origens desse comportamento têm sido negligenciadas, o que depõe em favor de uma abordagem mais integradora que considere outros elementos, além do comportamento do líder. Uma tentativa integração teórica no campo da Nova Liderança é atribuída a Burns (1978, 2003) através do paradigma transacional-transformacional. Na teoria transacional os estudos têm apresentado a relação entre o líder e seguidor como uma troca de recompensas materiais para o desempenho com base no pressuposto de que as pessoas são unicamente motivadas por punições e recompensas. Já os líderes transformacionais seriam capazes de motivar os subordinados para realizar mais do que seria de esperar de si mesmos. Bass (1985), um dos mais importantes críticos de Burns, percebia a liderança transformacional como uma alternativa à liderança transacional, enquanto Burns as entendia como complementares. Para Burns o líder eficaz deveria apresentar as características dos dois estilos de liderança. Este autor agrupou as duas propostas teóricas no paradigma transacional-transformacional, o que polarizou as discussões sobre liderança nas três últimas décadas. A discussão envolvendo as lideranças transacional e transformacional também ganhou contornos na questão moral na polêmica entre Burns e Bass. Principalmente, porque Bass (1985) argumentou que os líderes transformacionais podem promover a concorrência entre seus subordinados, jogar grupos de subordinados uns contra os outros, e agitar a rivalidade e ansiedade e desconfiança. Já eram conhecidos os efeitos da liderança negativa. O que também foi objeto dos estudos de Walter e Bruck (2009). Ao associarem a liderança carismática a dois tipos de comportamentos dos líderes, eles distinguem liderança carismática socializada da personalizada. A primeira reflete um comportamento igualitário do líder, que serve a interesses coletivos e fortalece os seguidores. É vista como uma liderança com comportamentos positivos, apresentando resultados moralmente benéficos. A segunda, a liderança carismática personalizada, por outro lado, baseia-se na dominação pessoal e no comportamento autoritário, serve ao do interesse pessoal do líder e é exploradora dos outros. Para eles, este segundo tipo de comportamento reflete o lado negro da liderança carismática, e tem sido associada a comportamentos distintamente nocivos, com consequências moralmente condenáveis e resultados negativos. Embora argumentem pela integração de concepções teóricas sobre liderança Walter e Bruck (2009) reconhecem que uma abordagem fragmentada tem dominado a orientação da literatura de liderança carismática, com a maioria dos estudos enfocando tipos únicos de influenciar sem considerar fatores e inter-relações possíveis. Essa é proposta desse ensaio, não somente para liderança carismática, mas para o fenômeno liderança em si, como será apresentado na próxima seção. 9 Na próxima seção será apresentada a defesa da abordagem sociológica weberiana para o estudo da liderança e também uma metodologia para abordagem do fenômeno. 2.4 A abordagem da Sociologia da Ação weberiana aplicada ao estudo do fenômeno da liderança A administração tem se servido de diversas áreas do conhecimento para abordar seus objetos, e frequentemente, segundo as características exibidas pelo fenômeno de interesse, prepondera em determinados períodos a contribuição de uma área específica de conhecimento. Parece residir aí a explicação para o grande número de trabalhos sobre liderança de fundo comportamental behaviorista a partir da década de 1980 até o presente. Em alguns casos, torna-se importante fazer a distinção de quais contribuições determinada abordagem teórica pode oferecer ao conhecimento do objeto. Refletindo sobre os estudos de liderança desse período que teve em Burns uma figura central, o fenômeno liderança foi intensivamente descrito através de percepções e comportamentos individuais dos líderes (na maioria das vezes pessoas influentes da sociedade), ou dos efeitos, também psicológicos, nos liderados (WALTER; BRUCK, 2009; DUMAS; SANKOWSKY, 1998). Todavia, pode-se afirmar que essa análise cumpre apenas parte da proposta de compreensão de um fenômeno social segundo a perspectiva da sociologia da ação weberiana. Embora o trabalho de Weber tenha despertado o interesse na ideia de carisma aplicado à liderança, foi apenas nos anos 1970 e início dos 1980 que as forças da concorrência global despertaram a consciência empresarial para a necessidade de uma discussão mais séria desse elemento associado à liderança. Como já se discutiu, as disciplinas de comportamento organizacional e psicologia organizacional desempenharam um papel fundamental neste processo de transformação ao elucidar elementos de gestão e liderança. (GIBSON; HANNON; BLACKWELL, 1998). Mas a análise fenomenológica weberiana tem como foco a relação social de caráter objetivo (BOUDON, 1995). Por exemplo, ao se examinar estudos como o de Walter e Bruck (2009), que fazem uma revisão dos estudos sobre comportamento de liderança carismática e propõem um modelo, observa-se que eles examinam apenas os conteúdos psicológicos associados à liderança carismática, e mesmo quando consideram elementos contextuais, tendem a relacioná-los a condicionantes ou moderadores dos comportamentos dos líderes. De acordo com a sociologia da ação o sentido subjetivo da ação dos indivíduos (do líder e do liderado) pode ser explicitado por elementos de sua história de vida, agregando elementos de estado íntimo e coletivo (contextuais e culturais), que lhes resulta numa ética comportamental, semelhante em determinação àquela identificada por Weber (1981) em Ética protestante e o espírito do capitalismo, já referida nesse trabalho. Para reflexões que consideram efeitos coletivos da estrutura organizacional, no caso de identificação de tipos para relações sociais, à semelhança da liderança cultural, prevalecem estruturações baseadas em costumes, em estatutos, em leis e na ordem (de natureza cultural). No outro extremo das reflexões, os valores e crenças individuais tornam-se as referências para racionalidades das ações (como os exaustivamente descritos pelos partidários da liderança transformacional) ao tomarem-se os lideres como elementos de mudança a partir de critérios de uma visão própria da realidade (um tipo de racionalidade cognitiva específica para mudanças) (COVRIG, 2000; SOSIK, 2000; SELTZER; BASS, 1990). Weber não estudou especificamente liderança, mas processos de dominação (autoridade). Para exemplificar, entende-se, que a liderança pode ser estudada segundo princípios weberianos, englobando e transcendendo a análise do paradigma transformacional-transacional. E que, para dilatar o conhecimento sobre o fenômeno liderança, será necessário se desvencilhar das amarras de uma análise puramente psicológica, na direção de uma teoria que integra outros princípios teóricos, donde se propõe um estudo 10 sociológico da relação social entre líder e liderado (GIDDENS, 2003; 2010). A partir dos escritos de Weber (2004), em ES, extraíram-se três conjuntos de elementos e fatores da relação social que, ao serem inter-relacionados, podem gerar as categorias para se analisar um fenômeno social, especificamente neste caso, liderança como relação de poder. O primeiro conjunto é constituído pelos atores da ação social e os determinantes da racionalidade que dão sentido à ação individual; são eles: os atores, o sentido da ação, os valores individuais, as crenças e a visão de mundo. O segundo conjunto de elementos discriminam o meio no qual a ação social acorre, dando ênfase ao grau de maturidade institucional em que esse meio se encontra; esse pode ser: carismático, tradicional ou burocrático. Salienta-se que essa análise pode ser feita para organizações ou grupos de indivíduos. Esse é um dos conjuntos moderadores da ação individual. O terceiro conjunto de elementos elenca um grupo de condicionantes ambientais que atuam como limitadores da ação individual porque são frutos de estruturações anteriores, refletindo práticas socialmente aceitas, padrões de conduta, papéis, etc.; são eles: a ordem, que se expressa em dispositivos legais (externos à organização ou ao grupo, advindo do direito), e em dispositivos normativos (internos aos grupos e organizações) advindos de convenções e costumes. Entende-se que os dispositivos de legitimação estejam em boa parte adstritos à racionalidade dos atores, mas no caso da tradição e da burocracia podem erigir-se dispositivos socialmente compartilhados. Carece, todavia, um esclarecimento maior sobre legitimidade e ordem. Dos conceitos utilizados por Weber (2004, pp.19-21), talvez “ordem” seja um dos mais importantes na presente discussão. Ordens são “máximas” indicáveis para orientação da ação. Para Weber, toda relação social pode ser orientada pelo lado dos participantes, pela representação da existência de uma ordem legítima, e à probabilidade que isso ocorra dá-se o nome de vigência. Pois bem, a legitimidade de uma ordem pode ser garantida: a) “unicamente pela atitude interna”, de modo afetivo ou racional referente a valores, ou de modo religioso; b) “também (ou somente)” por interesse, por expectativas de determinadas consequências. Além disso, uma ordem pode ser denominada convenção ou direito. De antemão, pode-se dizer que há estreita relação entre os tipos de legitimação descritos por Weber e as duas principais escolas da Nova Liderança. A teoria transformacional poderia, sem prejuízo, ser explicada pela legitimidade da atitude interna, donde derivam todos os comportamentos irracionais ou racionais dos líderes referenciados por valores, e pela ação carismática do líder. A efetividade da liderança transformacional não poderia ser interpretada de outra forma, nem se entende o porquê de a tentarem explicar apenas por dispositivos psicológicos, quando um acervo de conceitos muito mais pertinente já se encontrava disponível. Também a teoria transacional pode ser relacionada à segunda forma de legitimação. As questões de interesses e expectativas são exploradas na teoria transacional, contudo falta entender-lhes a racionalidade, o que só é possível através da análise sociológica, ao se estudar o sentido subjetivo das ações tanto de líderes quanto dos liderados, que se materializa na relação social e na distribuição de poder (BURNS, 1978; WEBER, 2004; WALTER E BRUCK, 2009). A figura 1, a seguir, esquematiza uma abordagem de pesquisa do fenômeno liderança como relação social, enfatizando seus elementos e fatores condicionantes. Trata-se um modelo de abordagem teórica de um objeto. Mesmo porque um estudo qualitativo deve apresentar ressalvas entre uso de modelos teóricos de abordagem da realidade para uso de modelos de realidade (ou, modelagem da realidade). Em modelos de abordagem da realidade se inserem as diversas técnicas de estudo qualitativo, inclusive o weberiano, mas o uso deles nesse trabalho não visa ou pressupõe a modelagem da realidade (WEBER, 2006). É antes um esquema de relação de elementos para análise compreensiva. O único objetivo é sustentar teoricamente as categorias de análise da pesquisa proposta, uma vez que a modelagem da 11 abordagem resume, em grau de importância, os elementos sobre os quais a coleta de informações se dará. Figura 1: Elementos e fatores intervenientes para estudo do fenômeno liderança como relação social Fonte: Elaborado pelos autores do ensaio a partir de Weber (2004) A partir dos pressupostos da sociologia da ação, acredita-se que o fenômeno liderança poderá ser mais bem compreendido através da investigação de categorias decorrentes dos elementos constituintes que comporiam o quadro de influências e de manifestação da relação social. São elementos que, nas suas áreas de interferência, originam as condições predominantemente culturais (no sentido weberiano), históricas e estruturais, para a ocorrência do fenômeno. Predominantemente, porque se admite a influencia dos demais eixos na formação do sentido da ação do ator social. Um indivíduo não age deslocado do meio social, da estrutura ou alheio de sua história. Todos os elementos que compõem os círculos de interferência são conceitos já explicitados e utilizados por Weber (2004) na sociologia da ação em ES, donde se retiraram os seus significados. Note-se que as convergências dos círculos de interferências têm papel de grande importância por explicitar as relações de cada elemento. As convergências originam os três eixos nos quais podem ser realizadas as análises do fenômeno liderança. Entende-se que no decorrer das análises de cada eixo as premissas das teorias da Nova Liderança devem aparecer, sendo corroboradas, refutadas ou complementadas. Por exemplo, se estivermos falando de um líder com determinados valores e crenças, círculo acima, sua ação pode ser influenciada por elementos do círculo à esquerda que representa a fase organizacional e também da direita, que representa os fatores condicionantes. Se a organização estiver na fase burocrática, por certo essa influência se fará sentir na atuação do líder, diferentemente se estiver na fase carismática. Da mesma forma, quanto mais institucionalizados forem os procedimentos internos na organização, círculo à direita, maiores restrições se observará à ação individual. A interação desses fatores geram categorias da sociologia compreensiva weberiana, cujos exemplos são apresentados por Weber (1999) no livro Metodologia das ciências sociais, segundo volume, capítulo VIII. 12 Por outro lado, em concordância com os princípios do individualismo metodológico, a ação do indivíduo pode constituir o ambiente em que atua. Sendo assim, um líder que se imponha sobre as instituições poderá, inclusive, gerar mudanças estruturais e escrever um novo capítulo da história organizacional, conforme se observa nas descrições do paradigma transacional-transformacional. O que se propõe é dar um passo além e estudar a relação social entre líderes e liderados, compreendendo-lhe o sentido sob a ótica sociológica. O modelo teórico de abordagem do fenômeno liderança precisa ainda ser testado empiricamente e receber críticas para ser validado, mas seu potencial parece promissor. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste ensaio reconhece-se que a corrente de estudos denominada Nova Liderança deve ser o contraponto da abordagem aqui proposta. Reconhece-se também que as técnicas de pesquisa que ressaltam a abordagem psicológica ainda se demonstram viáveis em muitos casos de estudos organizacionais sobre liderança, definindo perfis, intenções e percepções. Contudo, afirma-se que a abordagem sociológica também pode oferecer contribuições importantes ao debate. Ao se estudarem as ações dos atores envolvidos naquilo que apresentam de concreto (de realizado), os princípios sociológicos podem abrir novas vertentes de entendimento que não se poderiam alcançar apenas pela análise psicológica, ou pela sucessão e causalidade entre fatos, da análise histórica. Isto porque as relações sociais tornamse as referências para explicação do fenômeno, podendo essas ser discutidas em termos de valores, sentido e fins, e segundo a racionalidade que as veiculou. É uma análise de causas e efeitos de um fenômeno, tendo como referencia as ações perpetradas por seus atores, relacionando-as aos fatores condicionantes da ação social. Quando se busca compreender o fenômeno liderança como relação social, certamente o que seria um bom suporte teórico é aquele concebido especificamente para estabelecer conceitualmente essas relações para fenômenos sociais - a sociologia da ação na perspectiva weberiana. Defende-se, portanto, que a integração de ideias sobre o construto liderança poderá ocorrer tendo como referência teorias mais abrangentes com epistemologia e metodologia bem delimitadas, para que esse emaranhado de pontos de vista que povoa o campo possa ser corroborado e ou refutado. Porque não se trata de se escolher apenas a porção da teoria que interessa ao pesquisador na tentativa de validar visões particulares sobre o objeto de estudo, como se tem feito indiscriminadamente. Por exemplo, Downton (1973) argumentou que Weber estava errado ao afirmar que autoridade carismática constitui um dos três tipos principais de liderança (juntamente com o tradicional e a autoridade racional-legal). Ele observou que o domínio carismático é apenas um dos três principais subtipos ou bases de liderança pessoal. O erro de Downton foi acreditar que Weber estaria estudando liderança enquanto ele estudava formas de dominação. Da mesma forma que o mainstream norte-americano usa categorias como carisma, como conceito isolado, dissociado dos demais fatores que lhe dão sustentação. Como discutir carisma sem referir-se a ordem, ou examinar-lhe os dispositivos de legitimação? Ou, como estudar liderança sem discutir as construções sociais relacionadas como tradição, burocracia, estatutos, costumes, leis, ordem compartilhada, ou, ainda, os significados culturais da relação líder versus liderado e as racionalidades predominantes dos atores sociais em questão? Propõe-se que se deve considerar a construção teórica em sua abrangência, como concebida pelos autores, ou, pelo menos, não ocultar da análise os elementos relacionados à teoria que possam mudar o curso da compreensão do fenômeno. Assim procedendo, não se afirma que os teóricos da nova liderança não sejam capazes de gerar teorias para se compreender o fenômeno, mas que, assim como os autores da sociologia clássica (Marx, 13 Weber, Durkheim, Simmel, entre outros) dialogaram com os pais da filosofia grega e com os primeiros autores da modernidade, Kant, Descartes e Pascal, por exemplo, um diálogo mais estreito entre os pós-modernos e os clássicos se faz necessário. Acredita-se que o avanço na compreensão do referido fenômeno, como tantos outros que nos desafiam, não virá com o rompimento ou com a afirmação parcial de conceitos e definições dos autores modernos, mas com um debate respeitoso com, sobre e através de suas teorias, rompendo com a ideia absurda de que essas teorias estão ultrapassadas. Passaram-se quase três mil anos e o pensamento grego continua influenciando os rumos da civilização ocidental. Será um século tempo suficiente para desconsiderar as contribuições teóricas desses gigantes da sociologia ocidental? A partir dos apontamentos construídos neste ensaio, entende-se que o fenômeno liderança como relação social é passível de ser delimitado conceitualmente. O que resta é determinar que tipo de relações sociais podem consideradas como expressão de liderança. Não se entende que obediência irrestrita de um ator em relação ao outro é sinal de ocorrência do fenômeno, quando essa relação não atende aos princípios propostos por Weber para o conceito de dominação (WHIMSTER, 2009), que discrimina que o ator objeto da ação social deve legitimar o ato de obediência. Portanto, muito do que se tem aceitado por atos de liderança corresponde muito mais ao uso da força (coerção) e da aplicação de regulamentos para imposição da vontade de um ator sobre o outro (comando). A rigor, entende-se que liderança é um processo mais tênue e subjetivo, como tem sido exposto por pesquisadores da nova liderança, mas que carrega em si as marcas da interação social que não pode ser captada apenas pela análise psicológica. A discussão de Weber sobre estatutos é bem clara, quando afirma que a coesão de grupos acontece em “média”, e que o estabelecimento de regras para conduta de agrupamentos é delegado àqueles que detêm o poder de comando. Portanto, nem toda ação social com sentido subjetivo pode ser classificada como ato de liderança. Mais ainda, a expressão exterior que discrimina um ato de liderança tanto pode vir em tom de ordem, como de pedido, de súplica, de encorajamento, ou até mesmo de prostração. Um comandante muito amado, no leito de morte, sem articular uma única palavra, pela sua entrega à causa, pode ser mais eloquente que centenas de generais discursando, se não houverem se constituído os dispositivos adequados de legitimação. O estudo da relação social parece ser o meio adequado de se reconstituir esses mecanismos. Revendo as abordagens teóricas anteriores sobre liderança, o centro da discussão quase sempre recaiu sobre a figura central do líder, a situação ou a contingência. Muito pouco se discutiu da relação ou do papel dos liderados ou fatores externos da relação como evidências do fenômeno. O que muda nessa abordagem é a expressão de um distanciamento momentâneo das teorias organizacionais mais usuais, para discutir o tema liderança no plano de fenômeno cultural envolvendo organizações e sociedade, sem desconsiderar os fatores que condicionam a ação individual, como era prática dos principais autores clássicos. Se a opção for buscar ancorar-se em grandes autores da sociologia, não se pode esperar consenso, nem na prática nem em seus achados, uma vez que são concepções teóricas distintas e até conflitantes em alguns aspectos, tanto em termos metodológicos como epistemológicos. Trata-se de se explorar múltiplas visões de um único objeto. Mas, se por um lado enfrenta-se o risco dos conflitos mencionados, por outro se abre um leque enorme de perspectivas de revisitação a um fenômeno tão intrigante para os pesquisadores sociais e organizacionais da atualidade. As apropriações mais importantes são o enorme legado de metodologia de análise social desses autores e suas concepções de mundo e de ciência, sancionadas há muito pelos estudiosos. Por fim, um distanciamento das abordagens utilizadas nos estudos da nova liderança pode revelar que a causa da confusão teórica que cerca o construto liderança (principalmente para teorias transformacional e transacional) pode ser explicada pela adoção parcial de teorias 14 sociais, como a de Weber, por exemplo, porque o foco não estava em conhecer profundamente a manifestação do fenômeno, mas gerar recursos controláveis para aumentar a eficiência organizacional, desconsiderando em muitos casos os elementos culturais que condicionam a ação dos líderes e liderados. Buscava-se a todo custo solucionar problemas que fustigavam a gerência. Uma revelação, ainda, pode brotar de um estudo com essas características: não é que não se saiba o que é liderança, fala-se dela o tempo todo, mas o que tem se buscado é a compreensão de uma liderança particular. Aquela que possa ser controlada segundo alguns princípios gerenciais, que, em muitos casos tem o liderado apenas como um dado da variável produtiva e a relação social como objetiva e direcionada. Para esse caso, não interessaria uma visão ampla do fenômeno, mas apenas aquela porção que tornasse a relação líder versus liderado no interior das empresas mais “administrável”. Neste caso, ao se estender os horizontes para estudos que utilizem como diretrizes as teorias de Weber, poderia se resgatar a compreensão do fenômeno liderança na sua integralidade, na sua essência, inclusive lançando luzes para alguns pontos que permanecem obscuros no interior das organizações e para sociedade, como é o caso do papel dos liderados. O que, em última análise, significaria considerar matizes importantes do fenômeno liderança como tendo suas origens a se estenderem para além dos muros organizacionais, referenciada pela visão de mundo dos atores e mediada pelos fatores condicionantes da relação, que são frutos vivos das construções sociais dos envolvidos. REFERÊNCIAS BASS, B.; AVOLIO, B. Transformational leadership: A response to critiques. In: M. M. Chemers e R. Ayman (Eds.), Leadership theory and research: perspectives and directions (pp. 49-76). San Diego: Academic Press, 1993. BECKER, Brian E.; HUSELID, Mark A. Strategic Human Resources Management: Where Do We Go From Here? Journal of Management, 2006; 32; 898-925. BENNIS, W.; NANUS, B. Líderes: estratégias para assumir a verdadeira liderança. São Paulo: Harbra, 1988. BERGAMINI, C. W. Liderança administração do sentido. São Paulo: Atlas, 1994. BLAKE, R.; MOUTON, J. S. O grid gerencial. 3. ed. São Paulo: Pioneira, 1978. BOUDON, Raymond. Tratado de sociologia. 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