ELEMENTOS PARA UM ESTUDO DA CONTRIBUIÇÃO DE PIERRE BOURDIEU À TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS Lília Junqueira* RESUMO: O texto a seguir constitui uma reflexão sobre a atualidade dos conceitos de espaço social, tempo social e capital cultural de Pierre Bourdieu com o objetivo de recuperar o seu poder explicativo e metodológico para a análise dos fenômenos culturais e sua relação com a exclusão social. As idéias presentes nestes conceitos de luta, diferença social e reprodução são extremamente importantes para a compreensão dos fenômenos sociais em questão. Classe Social Bourdieu reconhece e transforma o conceito de classe de Marx através de uma série de rupturas teóricas e epistemológicas. A primeira delas é a ruptura com a tendência a considerar as classes como substância, como se usava defini-la há 20 anos atrás, contando o número de membros e verificando os seus limites, entre outros recursos da tradicional pesquisa quantitativa. A partir desta ruptura, Bourdieu passa a considerar as classes como conjunto de relações sociais. A reificação do conceito que faz com que ele seja tomado como a própria realidade também é superada. A classe não é um grupo real, mas construído pelos estudiosos. A segunda ruptura é o abandono do economismo que reduz o espaço social ao campo econômico. Por último Bourdieu rompe com o objetivismo que leva a ignorar o espaço social como um campo de lutas simbólicas, cujo resultado é a afirmação da própria representação do mundo social e a definição da hierarquia dentro e entre os campos sociais.1 Segundo o autor, o trabalho do sociólogo não é construir classes como um trabalho topográfico, mas “desvendar” (dévoiler) as relações sociais que se dão em campos de luta de natureza objetiva e simbólica. A importância do conceito de classe é que ele evidencia a diferença social como demarcada a partir de uma estrutura objetiva e históricamente constituída. A relação insuspeitada das representações com a estrutura na constituição e reprodução da diferença, mesmo que esta relação exista somente em caráter indireto e parcial deve ser resgatada na idéia da sociedade constituída por classes. Espaço Social Inspirado pela epistemologia de Bachelard, o autor utiliza, então, o conceito de espaço social, a partir do princípio que a noção de espaço permite pensar a realidade enquanto conjunto de relações: “Os seres aparentes, diretamente visíveis, quer se trate de indivíduos quer de grupos, existem e subsistem na e pela diferença, isto é, enquanto ocupam posições relativas em que um espaço de relações que, ainda que invisível e sempre difícil de expressar empíricamente, é a realidade mais real (ens realissimum como dizia a escolástica) e o princípio real dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos.”2 A diferença é a produtora das identidades a partir das representações. O espaço social é constituído por campos de luta ininterrupta pela afirmação de identidades e legitimação das representações sociais. O espaço social é perpassado pela estrutura objetiva, por isso, toda representação tem um conteúdo de referência sócio-cultural , histórica e política. 1 BOURDIEU, Pierre – “Espace Social et Genèse des ‘Classes’ ” in: Actes de La Recherche en Sciences Sociales , número 52 – 53 , junho de 1984. 2 BOURDIEU, Pierre – Razões Práticas (Sobre a teoria da ação), Campinas, Papirus, 1996, pg.48.(grifos do autor) Bourdieu desconfia do argumento freqüentemente utilizado (por pesquisas e discursos acadêmicos comprometidos com uma perspectiva social a partir dos fenômenos da pósmodernidade) de que as relações construídas a nível local, proporcionadas pela nova tendência da organização social teriam um caráter mais democrático e um conteúdo maior de liberdade e cidadania. Em seus trabalhos ele aponta para a evidência de que um dos critérios objetivos da identidade local deve ser buscada ao nível das representações sociais, mais específicamente no trabalho simbólico feito pelas categorias dirigentes. Nesse sentido a defesa do “local” não necessariamente é a solução contra os excessos do poder central e da burocracia. O perigo está em assumir a “conformidade na distinção” 3, ou seja, na aceitação tácita da dominação sob o argumento de que o “local – global” oferece maior liberdade individual. Na verdade, este parece administrar melhor a liberdade individual através da ilusão de que participar das decisões no nível local significa também defini-las a nível global.4 Tempo social O tempo social, para Bourdieu, está contido na estrutura social enquanto acumulação de experiências, ou pode ser considerado como um elemento definidor de mobilização: “O que existe é um espaço de relações que é tão real quanto um espaço geográfico, no qual os deslocamentos são pagos em trabalho, em esforço, e sobretudo, em tempo (subir significa se elevar, escalar e obter as marcas ou os estigmas deste esforço). As distâncias são medidas também em tempo (de ascensão ou de reconversão, por exemplo). (...) a probabilidade de mobilização em movimentos organizados, dotados de um aparelho e de um porta-voz, etc. (exatamente o que permite falar em “classe”) será 3 BOURDIEU, Pierre – “La Représentation de la Position Sociale” in: Actes de La Recherche en Sciences Sociales, número 52-53, junho de 1984, pg.14. 4 Ver a respeito: “Pouvoir de Représentations et Constitution de l’Identité Locale”in: Actes de La Recherche en Sciences Sociales , número 52 – 53 , junho de 1984. inversamente proporcional ao distanciamento neste espaço”.5 Em outras palavras, há um preço a pagar pela organização, pela gestação de um consenso social da afirmação das identidades e da legitimação das representações sociais. Este preço é o tempo. As mudanças ocorridas na última década na organização social parecem nos dizer que, ao diminuir o tempo (encolhido pela mediação técnica dos meios de comunicação), o consenso social para a luta na forma como Bourdieu a coloca não aumentou, mas diminuiu. E as representações parecem se desligar cada vez mais da estrutura. Segundo Laclau (citado por Suart Hall) 6 a globalização (ou modernidade tardia ou pós-modernidade) mudou a relação entre identidades e estrutura. Na pós-modernidade as estruturas estão deslocadas ou substituídas por uma pluralidade de centros de poder. “As estruturas são constantemente atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes ‘posições de sujeito’ – identidades.”7 Na modernidade o indivíduo estava ligado à estrutura pela identidade por meio da socialização, utilizando todo o tempo e espaço necessários ao processo. Hoje o sujeito está se formando fragmentado, composto de várias identidades, e as diferenças e distinções que antes definiam identidade, ficam reduzidas a uma espécie de linguagem geral global, em termos das quais todas as diferenças tradicionais podem ser traduzidas num processo de homogeneização cultural. Ao contrário do que afirma Bourdieu, para Hall as identidades passam por uma 5 6 7 “Espace social et Genése des Classes” Op.cit. pg 2. HALL, Stuart – Identidades Culturais na Pós-Modernidade, R.J., DP&A Editora, 1997. Idem, pg.18 fragmentação geral. Até mesmo dentro de um só indivíduo há várias identidades. Não existe mais o compromisso da identidade com a estrutura. Ela surge muito menos ligada às antigas identidades “mães” como a de classe. A esta fragmentação das identidades Bourdieu continua respondendo com o conceito de habitus, ou o “sistema de disposições duráveis e transponíveis que exprime, sob a forma de preferências sistemáticas, as necessidades objetivas das quais ele é o produto” 8 O habitus é o processo responsável pela mediação entre relações objetivas e comportamentos individuais. É através dele que o indivíduo interioriza as condições objetivas e que se tornam possíveis e aceitas socialmente as práticas individuais. Segundo Bourdieu a organização social não deixou de ser estrutural. Os centros do poder continuam existindo através da concentração de capital e os monopólios financeiros. A estrutura social está passando por uma modificação que vai levar a uma centralização cada vez maior das decisões, portanto algo deste processo subsiste nas representações e no jogo das identificações. Não necessariamente isso acontece de forma consciente: “O melhor exemplo de disposição é, sem dúvida, o sentido do jogo: o jogador, tendo interiorizado profundamente as regularidades de um jogo, faz o que faz no momento em que é preciso fazê-lo, sem ter a necessidade de colocar explicitamente como finalidade o que deve fazer.”9 Subsiste na fragmentação identitária a presença do habitus, mesmo que não de forma consciente. O ponto de partida, a origem das identidades está guardada na memória, depositada no “lixo cognitivo-afetivo” mas não estão completamente apagadas. Elas voltam em determinadas situações dando aos sujeitos uma sensação mínima de unidade e referência social sem a qual eles não poderiam sobreviver socialmente nem psicológicamente. 8 9 ORTIZ, Renato – Pierre Bourdieu, S.P., Ática, 1983, pg. 82. BOURDIEU, Pierre, 1996, op.cit. Com as tranformações sociais a importância da categoria tempo cresce para a reflexão sobre as representações. Segundo Spink10 é necessário considerá-lo como parte fundamental do contexto; uma parte tão importante quanto a categoria espaço. A autora acrescenta à dimensão espacial de Bourdieu uma dimensão temporal em três tempos: “O tempo curto da interação que tem por foco a funcionalidade das representações; o tempo vivido que abarca o processo de socialização – o território do habitus (Bourdieu, 1983), das disposições adquiridas em função da pertença a determinados grupos sociais; e o tempo longo, domínio das memórias coletivas onde estão depositados os conteúdos culturais cumulativos de nossa sociedade, ou seja, o imaginário social.” 11 A perspectiva da autora amplia a visão de Bourdieu na medida em que o contexto de surgimento e permanência das representações aparece composto por dois eixos: o sóciohistórico “construções sociais que alimentam nossa subjetividade” e o discurso ou as “versões funcionais constituintes de nossas relações sociais”. 12 A contribuição de Bourdieu para o estudo das representações sociais através da reflexão sobre as noções de classe, espaço e tempo é significativa para a compreensão da mudança social da atualidade na medida em que, continua colocando ênfase no aspecto de luta presente na essência mesma da constituição das representações sociais. Esta luta continua existindo no campo das imagens ligadas a grupos e indivíduos que tentam se afirmar através dos media. A luta se manifesta na grande mídia numa guerra de estereótipos e no espaço público numa guerra de imagens dos grupos para serem vistos e 10 SPINK, Mary Jane – “Desvendando as Teorias Implícitas: uma Metodologia de Análise das Representações Sociais” in: GUARESCHI, P. e JOVCHELOVITCH, S. (orgs) – Textos em Representações Sociais, Petrópolis, Vozes, 1995. 11 Idem, pg.122. considerados como o desejam, em outras palavras, para a afirmação de suas identidades a começar pelo discurso. Em segundo lugar, a idéia de reprodução presente no mecanismo do habitus não de ve ser desconsiderada sob o argumento de que vivemos numa sociedade individualizada na qual as explicações de natureza psicológica para os fenômenos sociais seriam mais eficientes. O elemento cultural adquirido pela experiência e herança social está presente nas representações de maneira forte o bastante para merecer estudos cuidadosos, embora a tarefa se torne mais difícil quanto mais este elemento seja mesclado a determinantes de outra natureza. Como diria Bourdieu, maior é o trabalho de desvendamento atribuído ao sociólogo. Por último, a importância de mostrar a existência e aumento das diferenças sociais parece tão mais importante quanto mais a onda da globalização avança sobre o planeta, e com ela os princípios de conduta mediatizada pela tecnologia. O aumento da exclusão social é , comprovadamente, o mais nefasto de seus efeitos negativos. Capital Cultural O conceito de capital cultural é fundamental para a compreensão deste fenômeno. Ele surgiu como termo definidor das diferenças entre os estudantes nas pesquisas feitas por Bourdieu em instituições de ensino na França, na década de 70. A idéia da existência de um capital cultural ligado ao sucesso escolar como condição para o aproveitamento específico que as crianças e jovens de diferentes classes obtinham sobre o mercado escolar superava a idéia da atribuição dessas diferenças às aptidões naturais pessoais de cada aluno. Hoje, ele parece se aplicar perfeitamente às novas e constantes transformações da 12 Idem. sociedade de consumo que projetam seus embates de toda natureza sobre o campo cultural. As novas questões de ordem econômica, política, os assuntos do governo e das instituições oficiais parecem se resolver no campo simbólico através da mídia. A grande mídia tornou-se, na última década, o mais importante locus do espaço público existente. Todos os grandes “jogos” sociais se ganham ou se perdem na mídia. O espaço público tecnificado subsiste também no território das lutas menores, entre grupos, pessoas e indivíduos. A luta pelo sucesso escolar é um deles. Mesmo abandonando completamente a idéia da existência das classes, verifica-se subsistirem as diferenças sociais. Estas diferenças são maiores quanto maior for a distância entre os indivíduos entre si em termos de visão do mundo. Os estudantes das cidades do interior ou do meio rural têm visões de mundo cada vez mais diferentes daqueles que vivem em cidades grandes. As idéias a respeito da vida, da juventude, da passagem para a vida adulta, de valores morais e crenças aumentam conforme aumenta o abismo provocado pela globalização.13 O analfabetismo tecnológico é um de seus principais fatores. O conceito de capital cultural parece se aplicar bem a este fenômeno: “O capital cultural pode existir sob três formas: no estado incorporado, isto é sob a forma de disposições duráveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens culturais, obras de arte, livros, dicionários, instrumentos, máquinas, que são a marca ou a realização de teorias ou de críticas dessas teorias, de problemáticas, etc; e por fim no estado institucionalizado, forma de objetivação que é necessário colocar a parte porque, como acontece com o diploma escolar, ela é considerada capital cultural embora garanta propriedades perfeitamente originais.”14 13 JUNQUEIRA, Lília – O Poder do Telespectador, tese de doutorado produzida na Université Paris VII Denis-Diderot, Jussieu, Paris, 1995. 14 BOURDIEU, Pierre, “Les Trois États du Capital Culturel” in: Actes de La Recherche en Sciences sociales, número 30 – novembro de 1979, pg. 3. O capital objetivado, que inclui a tecnologia (computadores, softwares, CDRooms, vídeo-games, televisões por assinatura e a cabo, etc.) é transmissível na sua materialidade mas não pode ser utilizado sem a plena capacidade de utilização ou o domínio da linguagem necessária e dos modos de operação, em outras palavras, de capital incorporado. Para a compreensão do sucesso ou insucesso escolar situado na raiz dos processos de exclusão social, hoje são necessárias novas pesquisas que verifiquem não somente a predisposição inata ou psicológica dos estudantes , mas também a disponibilidade de capital cultural. Para isso, três itens são fundamentais para esta avaliação: 1) Verificar a existência de capital objetivado nas localidades distantes dos grandes centros urbanos: cidades do interior e área rural; 2) Verificar a existência do capital incorporado que permita aos proprietários da tecnologia uma utilização plena , inclusive como instrumento de luta simbólica pôr afirmação identitária; 3) A relação entre capital incorporado e objetivado e o capital institucionalizado. Em outras palavras, em que medida os primeiros levam ao segundo. Bibliografia BOURDIEU, Pierre - Economia das Trocas Simbólicas, S.P., Perspectiva, 1992. Razões Práticas - Sobre a teoria da ação, Campinas, Papirus, 1996. “Espace social et Genése des ‘Classes’” in: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 52-53, junho de 1984. “La Représentation de la Position Sociale” in: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 52-53, junho de 1984. “Pouvoir de Représentation et Constitution de l’Identité Locale” in: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 52-53, junho de 1984. “Les Trois États du Capital Culturel” in: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 30, novembro de 1979. HALL, Stuart – Identidades Culturais na Pós-modernidade, R.J., DP&A ed., 1997. JUNQUEIRA, Lília – O Poder do Telespectador, um estudo sobre a interpretação das mensagens televisuais feitas por jovens de duas camadas sociais brasileiras. Paris, junho de 1995. LACLAU, Ernest – New Refletions on the Revolution of our Time, Londres, Verso, 1990. MOSCOVICI, Serge - A Máquina de Fazer Deuses, R.J., Imago, 1990. ORTIZ, Renato – Pierre Bourdieu, S.P., Ática, 1994. SPINK, Mary Jane – “Desvendando as Teorias Implícitas: uma metodologia de análide das representações sociais”, in: Guareschi, P. e Jovchelovitch, S. (orgs) Textos em Representações Sociais, Petrópolis, Vozes, 1995. * Lília Junqueira é professora adjunto na Universidade Federal de Pernambuco no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Áreas de interesse: Sociologia Política, Sociologia da Comunicação e Metodologias Qualitativas nas Ciências Sociais.