A realeza de Javé – um exemplo de diálogo inter-religioso Reflexões a partir do Salmo 97 Júlio Paulo Tavares Zabatiero Introdução O tema do diálogo inter-religioso1 é de crucial relevância para o nosso tempo. O ambíguo processo de globalização do capitalismo e da cultura consumista ocidental, recolocou no plano da esfera pública e da atividade política a prática religiosa e suas ambigüidades. Em especial, o ressurgimento dos fundamentalismos, em suas formas mais virulentas, traz para o centro das discussões sobre a convivência internacional a questão religiosa. Após 11 de setembro e a resposta militar norte-americana, muçulmanos e cristãos, igualmente, devem dar conta da violência praticada por alguns de seus adeptos. Além do tema candente da paz mundial, também o não menos incendiário tema da natureza humana, colocado no cenário mundial pela pesquisa genética, demanda um olhar religioso inteligente. Em vários países a legislação sobre a pesquisa com células-tronco se debate com questões éticas e religiosas de fundo. No Brasil, que possui uma das legislações mais avançadas sobre o tema, a discussão sobre o início da vida propriamente humana do feto incide diretamente sobre a legislação e sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias – uma expressão do descontentamento de setores religiosos com a permissão para a pesquisa com células-tronco embrionárias “descartadas”. Em outras palavras, a questão religiosa na atualidade não se desvincula das questões éticas fundamentais que afetam a vida humana no planeta terra neste início do século XXI. De fato, a própria sobrevivência do planeta – e não só a da espécie humana – está em jogo em nossos dias. E não é possível que crentes e instituições religiosas, das mais variadas, não se pronunciem sobre o tema, nem deixem de agir em defesa da vida de todo o planeta. Dialogar com outras religiões, então, para as igrejas cristãs não é mais uma opção secundária, mas uma prioridade indiscutível em sua agenda missionária, se é que desejamos ser fiéis a Deus e sua vontade salvífica para o mundo por ele criado. Prioridade, 1 Dentre a volumosa literatura teológica sobre o tema, pode-se consultar, por exemplo: DUPUIS, Jacques. O cristianismo e as religiões: do desencontro ao encontro. São Paulo: Loyola, 2004; HICK, John. Teologia cristã e pluralismo religioso. São Paulo: Attar Editorial, 2005; PEDREIRA, Eduardo Rosa. Do confronto ao encontro. Uma análise do cristianismo em suas posições ante os desafios do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas,1999; SILVA, Dionísio O. da. O Comércio do Sagrado. Londrina: Descoberta, 2004. 1 em especial, para a agenda missionárias das denominações e movimentos evangélicos, que normalmente privilegiaram a questão salvífica, ao invés da propriamente teológica, nas discussões sobre diálogo inter-religioso.2 Como tratar deste tema em uma abordagem bíblica? Primeiramente, é preciso reconhecer que a atual problemática do diálogo inter-religioso não está presente nas Escrituras como um tema desenvolvido. Não podemos, portanto, procurar textos bíblicos que tematizem diretamente a questão, pois tais não existem. Nossa alternativa é distinta. Precisamos, a partir da questão do diálogo inter-religioso, perguntar à Escritura por respostas que incidam sobre os vários ângulos da questão e nos forneçam princípios conceituais e valorativos que nos ajudem a construir a nossa teologia do diálogo com outras religiões. Como exemplo concreto desse questionamento ao texto bíblico, leio o Salmo 97 que tematiza o justo governo de Javé. Javé governa com justiça – Salmo 97 1. A época e a estrutura do Salmo 97 Não é fácil datar vários salmos do Antigo Testamento, especialmente aqueles que possuem um pequeno número de referentes históricos. Como a maioria dos textos poéticos, são repletos de metáforas e símbolos, que poderiam ser usados em diferentes épocas da história do povo de Deus. É necessário, então, atentar para a linguagem usada e buscar as suas relações intertextuais e interdiscursivas para datarmos o texto. O Salmo 97 é um desses salmos difíceis de datar, pela ausência de referentes históricos específicos. Todavia, ele utiliza temática e vocabulário que relembram textos bíblicos do período exílico de Judá e textos da religião babilônica. Por isso, como hipótese de trabalho, situo o salmo por volta de 550-500 a.C. É uma época terrível para os judeus: Jerusalém e o Templo de Javé haviam sido destruídos. O rei, a sua corte e o sacerdócio de Jerusalém haviam sido deportados para a Babilônia, e quase metade da população de Judá havia sido morta durante a invasão pelos babilônios. A população camponesa, que restou da guerra, estava desorganizada, vivia em condições precárias, e sofria o pesado impacto das perdas financeiras, políticas, teológicas 2 “A discussão teológica sobre religiões não-cristãs foi sobrecarregada e ocupada com esta preocupação soteriológica, infelizmente, por várias décadas. A preocupação soteriológica é muito importante, talvez a mais importante, mas certamente não é a única relevante. Devemos fazer muito mais do que perguntar quem e como ser salvo, devemos edificar um sólido fundamento teológico para uma verdadeira teologia pública das religiões, que nos dá diretrizes práticas para interação,cooperação e diálogo com outras religiões, nos âmbitos local, nacional e internacional.” HOSEK, Pavel. “Towards a public theology of religious pluralism”. In: European Journal of Theology. 14.1, 2005. http://www.sekty.cz/www/stranky/studie/16.pdf. Acesso em 2.04.2007. 2 e, especialmente, a perda de parentes e amigos. A fé e a esperança do povo estavam abaladas diante de tamanha destruição, diante do fim da independência de Judá e do governo da dinastia de Davi 3. É certo que vários profetas haviam anunciado o juízo de Javé sobre o reino de Judá, mas mesmo assim não era fácil aceitar que essa terrível situação era conseqüência da infidelidade a Javé, conseqüência da infidelidade do seu rei e do sacerdócio que deveriam servir a Javé e ensinar a sua verdade ao povo4. Outra resposta circulava entre os sobreviventes e os exilados de Judá: naquele tempo se acreditava que quando um país conquistava outro, os seus deuses derrotavam os deuses do país vencido. Marduque – o principal deus do panteão babilônico - teria, então, derrotado Javé e, assim como o Império babilônico subjugou Judá, Marduque teria subordinado Javé ao seu séquito de deuses inferiores. Muitos judeus ficaram, por isso, em dúvida quanto ao poder e a força de Javé. Era necessário, então, reafirmar que Javé é o deus dos deuses e o senhor dos senhores (Dt 10,17). Era necessário, também, reacender a esperança na justiça das ações de Javé, e reconhecer que os que seguem a Javé precisam ter uma vida fiel à vontade de seu Deus, e que seu deus é capaz de restaurar a liberdade do seu povo. O Salmo 97 é um dos salmos que foram escritos para atender a esses propósitos: reafirmar a fé em Javé e animar a esperança do resto do povo de Judá5. Ao declarar que Javé reina, o povo reconhece que a situação em que se encontra não é fruto da derrota de Javé pelos deuses babilônios, mas conseqüência da sua própria infidelidade ao Senhor de toda a terra. Em meio às incertezas do sofrimento, o Salmo 97 convida o pequeno povo de Deus a se alegrar, a louvar e a se regozijar diante de Javé, o rei de toda a terra. A estrutura do Salmo é simples. No verso 1 temos o convite a todos os povos para se alegrarem diante do reinado de Javé; convite que é retomado no v. 12 que se dirige aos justos, ao próprio povo de Javé, convidando-os para o louvor ao seu Deus. Os versos 1 e 12 formam, assim, uma espécie de moldura para o grande quadro da teofania de Javé (v. 2-6) e seus efeitos sobre os inimigos de Deus (v. 7) e sobre o próprio povo de Deus (v. 8-11). 3 4 5 Especialmente em Jerusalém, onde a corte e o sacerdócio desenvolveram uma teologia que afirmava a perenidade da dinastia davídica e do Templo. Para descrições da teologia de Jerusalém, pode-se consultar, por exemplo: ALBERTZ, R. Historia de la religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento. Vol. 1, Madrid: Trotta, 1999, cap. 3; e GUNNEWEG, A. Teologia Bíblica do Antigo Testamento. São Paulo: Teológica/Loyola, 2005, cap. 6. Nas últimas décadas da existência do reino de Judá, especialmente Sofonias e Jeremias denunciaram os crimes e pecados da corte e sacerdócio, sendo que Jeremias em particular atacou fortemente a teologia da inviolabilidade do Templo e da perenidade da dinastia davídica. Ele faz parte de um pequeno conjunto de salmos que têm como tema principal o reinado de Javé: os salmos 47, 93, 96 a 99. Eles têm em comum a reafirmação da esperança e da fé do povo de Deus no poder de Javé. Para uma introdução e comentário aos salmos do reinado de Javé, ver, por exemplo: WEISER, Artur. Os Salmos. São Paulo: Paulus, 1994; ANDERSON, Ana F. (org.) Os Salmos do Rei: a fé e a política. Petrópolis, Vozes, Estudos Bíblicos n. 23, 1989. 3 Para nós, hoje, o Salmo 97 pode ser lido a partir da questão da relação entre diversas religiões, enfocando o tema de como manter a fé em Javé somente, no âmbito do pluralismo religioso e da ameaça de destruição da vida no planeta. 2. A mensagem do Salmo 97 2.1. Javé reina! 1a. Javé reina: 1b. exulte a terra, 1c. regozijem-se as muitas ilhas. O primeiro verso do Salmo é um convite à alegria universal, baseado na afirmação de que Javé reina. Esta é uma afirmação de fé e esperança, pois quem estava cantando este salmo não conseguia ver, na prática, o poder soberano de Javé. Na própria abertura do salmo, o exclusivismo da teologia antiga de Jerusalém é negado. Javé não é deus somente de Israel, mas de toda a terra. Também nós não vemos sinais marcantes da realeza de Javé em nossos dias. Como afirmar, então, que nosso Deus reina? Somente pela fé e pelo reconhecimento de que a situação em que vivemos é fruto da própria ação real de Javé. Por que Deus reina, nenhuma época da história humana pode ser lida como o fim da história. Nenhuma situação histórica é definitiva. É sempre provisória, uma transição para um renovado tempo de justiça e solidariedade – mas um tempo a ser construído pelos seres humanos em resposta à realeza de Deus. Na primeira afirmação teológica do salmo – Javé reina –, vemos um exemplo de reconhecimento de valores e conceitos de outras religiões 6. Israel foi um dos últimos povos a se organizar no antigo Oriente Médio, por isso, sua cultura e sua religião são tributárias de culturas e religiões mais antigas. O tema da realeza de Javé é um desses tributos. Em praticamente todas as religiões do antigo Oriente se afirmava que um deus reina. Nas religiões da terra palestinense, por exemplo, El e Baal eram cridos como deuses reis. El, o mais antigo, acabou sendo substituído e incorporado por Baal e, mais tarde, os judeus o substituíram pela fé em Javé – que destrona tanto El como Baal para os israelitas. Mesmo afirmando a exclusividade da relação de Israel com Javé, os israelitas antigos se apropriaram de crenças dos seus vizinhos7. A grande diferença, na apropriação da realeza 6 7 Para descrições desse reconhecimento, pode-se consultar, por exemplo: SCHMIDT, Werner. H. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004; SMITH, Mark S. The origins of biblical monotheism: Israel's polytheistic background and the Ugaritic texts. Oxford: Oxford, Oxford University Press, 2001; SMITH, Mark S. O memorial de Deus: História, memória e a experiência do divino no Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 2006. "Se reconhecermos o Espírito de Deus como a única fonte da verdade, não lutaremos contra a verdade onde quer que ela apareça; caso contrário, estaremos ofendendo o Espírito de Deus. Porque não se pode falar mal 4 divina por Israel, está na forma como Javé reina. Javé é um deus que reina para libertar, não para conquistar, por isso merece ser adorado com alegria, pois Ele é fonte de alegria e vida. A memória das origens humildes e subversivas do povo de Israel alimentou a sua fé e forjou a sua teologia. Seguir a Javé não é um trabalho estafante, adorá-Lo é festejar alegremente o seu reinado. A alegria e o regozijo são termos que ocorrem muitas vezes nos salmos, porque são as marcas do culto a Javé, o rei da vida. Diante dos agudos problemas de nosso tempo, somente a alegria não alienada da fé em um Deus soberanamente amoroso e justo pode nos dar motivação para agir decididamente em cumprimento à nossa vocação missionária. 2.2. A majestade justa e gloriosa de Javé 2a. Nuvens escuras estão ao seu redor8; 2b. a justiça e o direito são o fundamento do seu trono! 3a. O fogo avança à frente dele, 3b. consumindo seus inimigos ao derredor. 4c. Seus relâmpagos iluminam o mundo; 4d. a terra os vê e treme. 5e. As montanhas derretem-se como cera na presença de Javé, na presença do Senhor de toda a terra. 6f. Os céus proclamam a sua justiça 6g. e todos os povos vêem a sua glória. O trono é uma figura para a realeza - reis sentam-se em tronos e os deuses também se assentavam em tronos. O trono de Javé está rodeado de nuvens escuras que o tornam invisível. Sabe-se que ele está lá, mas não se pode vê-lo, uma tempestade impede a visão, o céu encoberto faz o dia parecer noite sem estrelas e sem luar. Ser invisível é uma característica de Deus no Antigo Testamento. Deus é tão grandioso, tão santo e majestoso que o ser humano não pode vê-lo e permanecer vivo (Êx 33,18-23). Mesmo quando se manifesta e revela, Deus permanece oculto (Is 45,15). Para ver Deus é preciso crer! O trono de Javé tem a justiça e o direito como o seu fundamento9. Ou seja: Deus reina com justiça e direito. Este par de palavras é muito usado em todo o Antigo Testamento. Descreve a obrigação de juízes, nos tribunais, que devem julgar honestamente, sem aceitar 8 9 dos dons do Espírito sem lançar desprezo e opróbrio sobre ele." (CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 105. III/37) Repare no arranjo desta parte do Salmo: o verso 2 é uma espécie de introdução, fala de Deus assentado em seu trono. Os versos 3-6 formam uma unidade cujo tema é o movimento de Deus (a teofania). Deus sai do seu trono escuro e invisível e se manifesta visivelmente para toda a terra, com um poder irresistível. Sobre justiça e direito no Antigo Testamento, pode-se consultar, por exemplo: KNIERIM, Rolf. A interpretação do Antigo Testamento. São Bernardo do Campo: EDITEO, 1990; EPSZTEIN, Léon. A justiça social no antigo Oriente Médio e o povo da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1990; SICRE, José L. A justiça social nos profetas. São Paulo: Paulinas, 1990. 5 suborno, sem aceitar falsos testemunhos (Êx 22,6-9; Dt 16,18-20; Am 5,10-13.24). Descreve a obrigação dos reis: proteger o inocente, defender os pobres, libertar os oprimidos (Sl 72; Is 11,1-5). Acima de tudo, porém, descreve a ação de Javé (veja, também, Sl 85,11-12; Is 32,17-18). Esse tema não é exclusivo de Israel – assim como Israel se apropriou do tema da realeza, também se apropriou do tema da justiça e do direito, presente nas teologias das cortes vétero-orientais. Também os reis de outros povos do Antigo Oriente e seus deuses eram descritos como agentes da justiça e do direito. A adoção dos temas da justiça e direito para qualificar a realeza de Javé, oferece mais um exemplo de diálogo inter-religioso – ou em outras palavras, do reconhecimento da existência de verdade em outras tradições religiosas, mesmo nas de inimigos de uma nação!10. Estes dois exemplos nos mostram que é preciso juntar discernimento à alegria. É fácil adorar a Deus no culto, mas essa adoração precisa ser inteligente, do contrário o diálogo se transforma em sincretismo, a apropriação discursiva se transforma em perda de identidade. Dentre os profetas do Antigo Testamento, encontramos no livro de Oséias as mais fortes invectivas contra o culto sincrético – ao qual ele chamava de idolatria: adorar a Javé como se ele fosse Baal (especialmente o capítulo 4). A ação soberana de Javé deve se tornar o critério de julgamento das ações de seu povo, especialmente no campo da adoração e da ética. O que significava afirmar que Javé reina com justiça e direito? Significava afirmar que Ele liberta os pobres e oprimidos que clamam sob o peso da injustiça (Êx 3,6-10). Significava afirmar que Ele estabelece uma aliança com seu povo para lhe dar vida e vida digna e abundante (Dt 10,12ss). Significa que Javé defende as vítimas da injustiça e cria uma ordem social e cósmica justa, sem desigualdades, sem sofrimento para os inocentes (Is 65,15-25). Por isso se pode cantar alegremente que Javé reina: Ele, de fato e de verdade, faz o que os governantes humanos apenas podem prometer. Porque ele ouve o clamor de quem sofre, ele: exerce justiça e direito, liberta o pobre, salva a pessoa aflita, inclui as pessoas excluídas, cria uma sociedade justa e íntegra. Justiça e glória de Javé são reveladas na sua teofania. A glória de Javé é a libertação do pobre e o êxodo do escravo (Is 40,3-5). A glória de Javé é a salvação do pecador (Jo 17,2-4). Todos os povos verão o braço poderoso de Javé libertando aqueles que clamam sob o jugo da injustiça e manifestando, assim, o verdadeiro direito e a justiça do reino eterno (cf. Is 52,10). Os judeus celebram a esperança de que seu deus não fora derrotado pelos deuses babilônios. Cantar a manifestação da glória de Javé lhes proporcionava força para 10 “... os germes de verdade e de bondade disseminados nas outras tradições religiosas podem ser a expressão do Espírito de Cristo, sempre operando na história e no coração dos homens.” (GEFFRÉ, Claude. "Para uma nova teologia das religiões". In: GIBELINI, Rosino (ed.) Perspectivas teológicas para o século XXI. Aparecida: Editora Santuário, 2005, p. 332) 6 enfrentar a realidade cotidiana, com uma nova percepção de seu Deus. “Passagens como as de Salmos e Isaías 40-55 tornam evidente que o termo glória não é sempre usado no sentido externo, literalmente ou figurativamente físico. Ele passou a ter um significado ético e isso porque, como a santidade com que o termo está associado em Isaías 6, está conectado com Javé que é mais e mais exclusivamente visto como um ser ético” 11. No diálogo inter-religioso, premissa fundamental para os cristãos é ouvir o clamor das pessoas que gemem, buscando salvação e plenitude. Ouvir o clamor é a atitude ética fundamental de Javé. Não se pode dialogar a partir da premissa da superioridade religiosa, mas a partir da escuta atenta do clamor12. Podemos entender as religiões, por mais estranhas que nos pareçam, como expressões do angustiado clamor humano por salvação. E, se assim as entendemos, podemos aprender com nosso Deus a ouvir o clamor e a agir com justiça e direito, manifestando em nossa prática a glória libertadora de nosso Senhor. 2.3. A vergonha dos idólatras 7a. Envergonham-se todos os adoradores de estátuas e os que se gloriam em ídolos. 7b. Diante de Javé se prostram todos os deuses! Como pensar em diálogo inter-religioso diante de uma afirmação aparentemente tão oposta ao diálogo? O Salmo afirma que somente Javé é deus (usando linguagem de Is 43,813; 44,6-20), e que diante dele todos os deuses se prostram. Aqui também temos um exemplo da apropriação israelita de crenças de outras religiões vétero-orientais: o deus supremo era servido subordinadamente pelos demais deuses e deusas, que diante dele se prostravam. O próprio da fé israelita é a afirmação anterior – com exceção de Javé, todos os deuses são apenas ídolos 13. Essa linguagem parece tão anti-dialogal para nós hoje! Entretanto, duas qualificações precisam ser levadas em conta para entendermos bem esta afirmação polêmica: (1) precisamos entender o salmo em seu contexto histórico: os judeus estão cantando a Javé sob o domínio do império babilônico, o qual afirmava que Javé havia sido 11 12 13 BETTERIDGE, Walter R. “Glory”. In: ORR, James (ed.) International Standard Bible Encyclopedia. Edição de 1915. http://www.bible-history.com/isbe/G/GLORY/. Acesso em 02.08.2007. Sobre o clamor na Bíblia, ver, por exemplo: GERSTENBERGER, Erhard S. O clamor dos salmistas: Onde está Deus? Petrópolis: Vozes, Concilium n. 242, 1992, p. 16-29; SILVA, Valmor da. Clamor e escuta: o grito a Deus em situações extremas. São Bernardo do Campo, Instituto Metodista de Ensino Superior, 1996 (tese doutoral). Sobre a idolatria na Bíblia, ver, e.g.: KRAYBILL, João N. Culto e comércio imperiais no Apocalipse de João. São Paulo: Paulinas, 2004; CARAVIAS, José L. O Deus da vida e os ídolos da morte. São Paulo: Paulinas, 1992; SANTA ANA, Júlio de. Idolatria e sacrifício. Estudos da Religião. São Bernardo do Campo: UMESP, n. 9, 1994, p. 115-126; BRUEGGEMANN, Walther. Israel's praise: doxology against idolatry and ideology. Philadelphia: Fortress, 1989; e RICHARD, Pablo (org.) A luta dos deuses: os ídolos da opressão e a busca do Deus libertador. São Paulo: Paulinas, 1982. 7 derrotado pelos seus deuses. Diante disso, afirmar que só Javé é deus era crucial para a fé, pois equivale a dizer que somente o deus que age com justiça e direito é realmente Deus. Quem se apresenta como Deus, mas não pratica a justiça e o direito, não passa de um ídolo sem poder e sem vida. Em linguagem política, não passa de fraude ideológica. (2) O reconhecimento da idolatria é fundamental para que não entremos no diálogo inter-religioso de forma ingênua. A religião não é, por si só, algo bom. Pessoas e instituições é que fazem as religiões, e a história humana tem mostrado que muitas religiões são praticadas de forma inadequada, promovendo injustiça e violência. Faz parte do diálogo inter-religioso a permanente auto-crítica das pessoas religiosas: nossa prática da fé dá testemunho de Deus ou de ídolos? Desta forma, afirmar que somente Javé é Deus não é idêntico a afirmar que somente a religião cristã é verdadeira. É afirmar que também a fé cristã pode transformar seu Deus em um ídolo, ao não ser fiel ao modo de agir do seu criador e salvador! No islamismo, por exemplo, também se afirma que Alá é justo e misericordioso. Isto deveria servir como critério para confrontar os fundamentalistas que pregam a violência como forma de seguimento a Alá. Todo seguidor de Alá que pratica a violência, que não age com justiça e direito, faz de Alá um mero ídolo – assim como qualquer cristão ou cristã que deixa de praticar a vontade do pai de Jesus Cristo mancha o nome divino perante o mundo. O diálogo inter-religioso se torna impossível, não porque as religiões fazem afirmações exaltadas sobre a singularidade de seu deus; mas porque não seguem fielmente as suas próprias crenças nessa singularidade – que é includente e não excludente. 2.4. A esperança e o compromisso do povo fiel 8a. Sião ouve e se regozija, 8b. as filhas de Judá se regozijam, por causa de tuas justas sentenças, ó Javé. 9c. Porque, tu, Javé, és o Altíssimo sobre toda a terra, 9d. elevado sobremaneira, acima de todos os deuses. 10a. Javé ama os que odeiam o mal! 10b. Protege a vida dos seus fiéis 10c. e os livra das mãos dos que praticam a maldade. 11d. A luz germina para o justo; 11e. a alegria, para os retos de coração. 12a. Regozijai-vos, ó justos, em Javé; 12b. celebrai o seu santo nome. O hino leva, então, seus celebrantes a desviarem o olhar dos outros povos e dos idólatras, e olharem para si mesmos. Sião, a montanha de Deus, o local do Templo em ruínas, ouve o cântico alegre e se regozija junto com a alegria do povo esperançoso. As filhas de Judá – as cidades do interior – também ouvem e se regozijam. O país todo se alegra junto com o resto do povo. A fé e a esperança têm uma face bem concreta: Javé irá 8 restaurar a terra destruída, o país derrotado. Judá nascerá de novo. A alegria não desconsidera a história. É “por causa de tuas justas sentenças, ó Javé” que a nação e o povo se regozijam. Ao olhar para a destruição, o povo enxerga a sentença justa de Deus. O passado é uma lição prática sobre a justiça e o direito de Javé. O passado próximo é o da destruição, do juízo. O passado remoto é o do êxodo, da libertação e da posse da terra. As justas sentenças de Javé são diferentes em diferentes momentos históricos, mas sempre são justas, expressões da fidelidade de Javé à sua própria palavra e ação. A alegria também tem outro motivo: a esperança14. Javé é visto como o Altíssimo, acima de todos os deuses, o mais forte, o mais sublime, o mais poderoso de todos os deuses. Isto é esperança! A realidade parecia desmentir esta confissão esperançosa de fé. Mas a esperança não se abate quando está colocada no deus verdadeiro e justo. Esperança que não é ilusão, mas certeza de que o Senhor é fiel, e continuará a realizar a sua soberana vontade. O Altíssimo é o soberano invisível que age na história humana para libertar, para fazer vigorar a justiça e o direito em todas as nações. Os versos 8-9 declaram a esperança alegre do povo de Javé. Os versos 10-12 afirmam o seu compromisso solene. Quem segue a Javé é protegido por Ele, é abençoado por Ele, encontra nele a fonte de toda felicidade. Quem segue a Javé, porém, odeia o mal, é fiel, justo e reto de coração. Odiar o mal é a outra face do amar o bem. Esta dupla exortação faz parte das tradições da sabedoria e dos profetas de Judá (Am 5,14-15a; Is 5,20; Sl 34,15; Pv 3,7; Pv 11,19; Mq 6,8). Fazer o bem é fazer a vontade de Javé, é praticar justiça, é socorrer o necessitado, é ser fiel nos relacionamentos, é ser generoso, é construir a paz, a harmonia e a justiça social. Pessoas justas e de coração reto são, portanto, as pessoas que amam o bem e vivem em fidelidade a Javé e seu projeto de liberdade e justiça para todos. A proteção e a bênção de Deus não são presentes automáticos para qualquer um que vá ao templo em busca de prosperidade. São dádivas de Javé para quem caminha com Ele em bondade, fidelidade, retidão e justiça. Não pode ser considerado culto legítimo 15 a Deus aquele que é apenas a busca egocêntrica de bênção e prosperidade. Não pode ser considerado culto legítimo a Deus aquele que visa apenas a expansão da instituição religiosa. O culto verdadeiro a Javé começa na vida justa e se concretiza na ação 14 15 Sobre a esperança no Antigo Testamento, veja, por exemplo: GOLDINGAY, John. Old Testament Theology. Israel's Gospel. Downers Grove: InterVarsity Press, 2003, caps. 10-11, p.696-858; PREUSS, Horst D. Old Testament Theology. Edinburgh: T&T Clark, 1996, vol. II, p. 253-283; FOHRER, Georg. Estruturas Teológicas Fundamentais do Antigo Testamento. Santo André: Academia Cristã, 2006, p. 422-440. Sobre a adoração e justiça na Bíblia, ver, por exemplo: KRAUS, Hans-Joachim. Teologia de los Salmos. Salamanca: Sígueme, 1985; AMORESE, Rubem M. Celebração do Evangelho: compreendendo culto e liturgia. Viçosa: Ultimato, 1997; ALLMEN, Jean-Jacques von. O culto cristão: teologia e prática. São Paulo: ASTE, 2006; MARTIN, Ralph L. Adoração na Igreja Primitiva. São Paulo: Edições Vida Nova, 1982. 9 missionária da comunidade que pratica a vontade justa de Javé 16. O diálogo inter-religioso é uma das expressões dessa justiça, pois através dele buscamos a paz, a harmonia entre os povos, e a justiça internacional. Não se trata de buscar uma única religião para toda a humanidade, mas, sim, de um projeto de vida comum a todos os seres humanos – projeto que valorize a vida de todas as pessoas e de toda a criação. Conclusão Somente a prática do direito e da justiça pela igreja que adora o Deus soberano, pode dar legitimidade à sua participação nos debates públicos e no diálogo inter-religioso. Os problemas de nosso tempo não podem ser resolvidos apenas com grupos, movimentos e instituições de conversa e de êxtase religioso. Demandam grupos, movimentos e instituições religiosas que exemplifiquem em sua conduta cotidiana os valores que apresentam no debate público e no diálogo inter-religioso. Nas sociedades plurais e informatizadas de hoje em dia, a palavra não acompanhada de comportamento ético coerente tem pouco valor. Se queremos praticar o diálogo inter-religioso adequadamente, nossa primeira tarefa será a de viver de modo digno da justiça de nosso Deus. Permitam-me concluir esta palavra com uma citação: “ao olhar da espera confusa de nossos contemporâneos, é importante explicitar melhor todas as harmonias da salvação cristã, não somente como reconciliação com Deus, mas como cura do mal-estar da condição humana e como sabedoria de vida, isto é, como reconciliação consigo mesmo e com toda a criação”.17 16 17 Outra forma de expressar esta tese é: “a vida ética é, acima de tudo, uma vida de celebração”. GRENZ, Stanley. A busca da moral. Fundamentos da ética cristã. São Paulo: Vida, 2006, p. 349. GEFFRÉ, Claude. "Para uma nova teologia das religiões". In: GIBELINI, Rosino (ed.) Perspectivas teológicas para o século XXI. Aparecida: Editora Santuário, 2005, p. 336. 10