Universidade Federal da Bahia
Faculdade de Educação
Doutorado Multiinstitucional e Multidisciplinar de Difusão
do Conhecimento
O papel da memória na relação entre língua e historia:
O que implica o confronto entre Biá e Zaqueu no filme os
Narradores de Javé
José Luis Michinel
Salvador
2010
1
O papel da memória na relação entre língua e historia:
O que implica o confronto entre Biá e Zaqueu no filme os
Narradores de Javé
José Luis Michinel
Vou tomar emprestadas as palavras do escritor venezuelano Ibsen
Martinez (2007) para partilhar com vocês “algumas considerações
referentes ao modo surpreendente com o qual a história [eu diria a
memória] desfaz seus novelos puxando do fio menos pensado”.
A) O evidente no filme:
Está colocado no filme “Narradores de Javé” como fatores que tem
a ver com modernidade ou progresso (a Ciência e a Tecnologia)
podem levar ao afogamento de uma cultura (a da população de
Javé).
Como é descrito num jornal
“Após saberem que a cidade onde vivem será inundada para a
construção de uma usina hidrelétrica, os moradores decidem
preparar um documento, cientificamente fundado, que conte todos
os fatos históricos do local, como tentativa desesperada de salvar a
cidade da destruição, pela via de transformar o local em patrimônio
histórico a ser preservado”
B) Dois efeitos de sentidos:
1) Da memória social à produção cultural
O dispositivo de análise no que me afiliarei para fazer uma leitura
de não evidencia dos Narradores fala da necessidade de um outro
discurso que implique um encontro entre distintas formas da
memória, entre outras: a lembrança ou reminiscência, a memória
social ou coletiva, a memória mitológica, a memória institucional, a
memória registrada, a memória histórica.
Uma localização que pode me permitir compreender o
deslocamento implicado (exigido?) em Narradores, de uma
memória social (do pessoal de Javé) a uma produção cultural (a
história de Javé), são os trabalhos de Jean Davallon “A imagem,
uma arte de memória”, Jean-Louis Durand “A memória Grega” e
Michel Pêcheux “Papel da memória”, decorrentes da Mesa
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Redonda organizada no encontro de “Linguagem e Sociedade”
realizada na Escola Normal Superior de Paris (1983) 1.
Em esse deslocamento duas constatações se impõem
imediatamente (Davallon, 1999):
1)“para que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber
registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da
insignificância [...] e que ele [o acontecimento ou o saber] conserve
uma força a fim de poder posteriormente fazer impressão”. Essa
primeira exigência está de fato colocada como evidencia em
Narradores. O povo de Javé está que “se correr o bicho pega e se
ficar o bicho come”.
2) que lembrar um acontecimento (ou um saber) não é forçosamente
mobilizar e fazer jogar uma memória social, é necessário que o
acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade e que ele seja
reconstruído a partir de dados e de noções comuns aos diferentes
membros da comunidade social. A memória coletiva se especifica
assim através de um fundo comum intersubjetivo e grupal entre eu e
os outros. Mas o que é vivo na consciência do grupo desaparecerá
com seus membros.
Tem-se assim uma situação paradoxal na memória coletiva sua
capacidade para conservar o passado e sua fragilidade em quanto a
que não vá além dos integrantes do grupo. É ali onde aparece a
necessidade da produção cultural. Em oposição a esse caráter da
memória coletiva a história resiste o tempo.
É ali onde aparece um primeiro confronto entre Biá e Zaqueu. Esta
distinção entre memória coletiva e história permite compreender que
registrar um acontecimento não é per se um fato de memória social.
Faz-se necessário introduzir um objeto cultural como operador da
memória social.
É esse operador que Zaqueu reclama de Biá. Zaqueu exige “casar” à
história e a memória coletiva, de entrecruzar a resistência ao tempo
de uma com a vivacidade com o poder de impressão da outra para
que Javé perdure no tempo.
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Pierre Achard et al. Papel da Memória. Campinas, SP: Pontes.
1999.
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Mas como funciona esse entrecruzamento?
O acontecimento (as narrações javélicas) será um ponto originário da
comunidade social, mas a essência do ato se encontrará para
sempre na própria estrutura do objeto que o representará (o objeto
cultural, o “livro” da salvação). O objeto cultural possibilitará o
controle da memória social e esse controle está estreitamente ligado
ao funcionamento formal e significante dele.
O que tem esse objeto cultural para preservar a memória?
Jean-Louis Durand (1999), questionando-se respeito à posição
particular na que os gregos se colocavam com relação à sua própria
memória e à gestão que eles podiam fazer dela, reconhece uma
estrutura literária precisa (neste caso o Mito), muito organizada em
uma forma codificada (neste caso a epopéia) e que se integra a uma
cultura historicamente localizada (a grega) e que é “falada” com a voz
do poeta épico (Homero), em contraste ao que acontece com um
vizinho qualquer, (por exemplo, um persa) que possua uma historia e
uma cultura diferente, se olhamos para categoria de percepção da
realidade, mas não o sistema de valores éticos (políticos e sociais).
Esse poeta não possui fala própria, ele fala porque a Musa (Calíope)2
fala através dele, por ele. Essa Musa é uma deidade e, portanto
externa a ele e aos produtores da memória coletiva.
Na cultura moderna o que é a Musa se não o “distanciamento” de
aqueles que narram ou daquilo que cria o acontecimento. Já Albert
Einstein o falava de duas maneiras: “O que sabe o peixe d’água onde
nada toda sua vida?.” e “Não podemos resolver problemas pensando
da mesma maneira que quando os criamos.”.
2 A da Bela Voz, foi uma das nove musas da mitologia grega. Filha de
Zeus e Mnemósine. Foi a musa da epopéia, da poesia épica, da
ciência em geral e da eloqüência e a mais velha e sábia das musas.
É representada sob a figura de uma donzela de ar majestoso,
coroada de louros e ornada de grinaldas, sentada em atitude de
meditação, com a cabeça apoiada numa das mãos e um livro na
outra, tendo, junto de si, mais três livros: a Ilíada, a Odisseia e a
Eneida. Em outras representações, traz como atributo um rolo de
pergaminho e uma pena. Mãe de Linos, com Apolo e de Orfeu, das
sereias e dos coribantes.
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Em Narradores quem se “distancia” é Zaqueu, o Biá não teve a
disposição do criador, ele não invocou a Musa. Ele sabia “escrever”,
mas não fez a história de Javé. É Zaqueu quem cria a historia oral
de Javé, é ele o Homero de Javé.
2) Dois sujeitos, dois sentidos: Zaqueu x Biá
Dois sujeitos (Antonio Biá e Zaqueu), duas FD (a que caracteriza ao
burocrata descomprometido que tem como forma de vida a
sacanagem em relação com os outros e a que simboliza o cidadão
comprometido com sua comunidade, que busca preservar a cultura
e a saúde de uma população), dois sentidos (a indiferença ante a
problemática de um povo e o comprometimento com seu futuro).
Zaqueu assume um discurso polêmico (Orlandi, 1993) incorporando
a divergência como forma de se constituir (Michinel, 2003). Ele traz
para dentro de seu discurso o discurso do outro com o qual busca
polemizar para se constituir e constituir seu discurso. Entretanto o
discurso de Biá é autoritário em relação ao apagamento do
interlocutor e seu discurso (“a fala é sua, mas a escrita é minha”).
Outras leituras possíveis de Narradores
Por outro lado, é também possível fazer outras leituras, achas
outros desvios, para ler a Narradores de Javé. Entre elas podemos
escrever de:
- A historia que não escreve Biá (Javé) a “escreve” Zaqueu.
- As possibilidades da escrita e da fala
- A oralidade como uma escrita
- A morte de um povo x o triunfo de uma cultura oral ante a escrita
- Oralidade x Escrita
- Cultura pelo oral x Ciência da/na escrita
- A heterogeneidade e a divergência
- Dinâmica ou funcionamento da oralidade x Dinâmica ou
funcionamento da escrita
- O tempo na oralidade (presente e passado se confundem) x O
tempo na escrita. Ver as personagens nas narrações.
- Necessidades na oralidade e na escrita: compromisso; referencia
teórica e método.
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- A preservação de comunidades africanas onde os aspectos legais
se dirimem oralmente ainda que o sistema capitalista, o direito, a lei
precisa e impõe a escrita.
BIBLIOGRAFIA
DAVALLON Jean. A imagem, uma arte de memória. In: ACHARD
Pierre et al. Papel da Memória. Campinas, SP: Pontes. 1999
DURAND Jean-Louis. A memória Grega. In: ACHARD Pierre et al.
Papel da Memória. Campinas, SP: Pontes. 1999.
MARTINEZ Ibsen. La Zona del Canal. Jornal TalCual. Pp. 24. 28de
maio. (2007).
MICHINEL José Luis, SILVA Henrique, ALMEIDA María José.
Explorando funcionamientos de la lectura. Polémicas en el
discurso de la física y sus implicaciones en la enseñanza.
Revista Mexicana de Física. v. 49, s. 3, pp. 40 – 43. 2003.
ORLANDI Eni. Análise de discurso. Princípios & Procedimentos.
Campinas: Pontes, 1999.
PECHÉUX Michel. Papel da memória. In: ACHARD Pierre et al.
Papel da Memória. Campinas, SP: Pontes. 1999
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