1 ÉTICA AMBIENTAL: PRINCIPAIS PERSPECTIVAS TEÓRICAS E A RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA1 Fagner Guilherme Rolla2 RESUMO: O presente artigo tem por escopo abordar a questão da Ética Ambiental através das principais perspectivas teóricas, a saber, antropocentrismo, ecocentrismo e ecologismo personalista. Busca descobrir em cada cosmovisão qual o valor atribuído à natureza e como o ser humano se percebe na relação com a natureza. A busca pela fundamentação do valor instrumental atribuído pelo antropocentrismo à natureza e do valor intrínseco atribuído a ela pelo ecocentrismo também é alvo da investigação da presente pesquisa, onde se conclui que o antropocentrismo considera o ser humano como superior aos outros seres porque ele tem capacidade de pensar, articular símbolos com seus significados e conseqüentemente gerar cultura. Da mesma forma, é um objetivo a apreciação das questões que diferenciam antropocentrismo em sentido estrito e ecologismo personalista (outra espécie de antropocentrismo), onde este enxerga o ser humano enquanto pessoa e aquele vê o homem enquanto indivíduo. Os conceitos de pessoa e indivíduo são brevemente confrontados e assim compreende-se que a diferença entre as duas correntes teóricas decorre da constatação de que enquanto para o antropocentrismo o ser humano está separado da natureza, para o personalismo o ser humano é integrante da natureza, tem lugar e função própria dentro dela. Palavras-chave: direito ambiental. ética ambiental. antropocentrismo. fisiocentrismo. biocentrismo. ecologismo personalista. personalismo. ecocentrismo. INTRODUÇÃO O ser humano é definitivamente o animal que mais transforma o seu ambiente. Esta capacidade humana de interferir no ambiente, de alterá-lo, nós chamamos de antropogenia.3 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovado em grau máximo pela banca examinadora composta pelo orientador Prof. Elton Somensi de Oliveira, Prof. Clarice Beatriz da C. Sohngen, e Prof. Wambert Gomes di Lorenzo, em 02 de julho de 2010. 2 Acadêmico do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da PUCRS. Contato: [email protected] 3 Antropogenia: “[...] capacidade humana para alterar ambientes e substâncias [...].” WALDMAN, Maurício. Meio ambiente & antropologia. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006, p. 36. 2 Ao gerar cultura o homem encontra uma nova forma de relacionamento com a natureza. O Homo sapiens é uma espécie única capaz de uso de uma linguagem articulada (Homo loquens), capaz de fabricar instrumentos e artefatos (Homo faber), capaz de criar e fazer uso de símbolos (Homo symbolicus) e capaz de fazer uso de sua criatividade, de seu imaginário (Homo ludens). Por óbvio não se esquece de seu equipamento biológico, todavia quando se trata de uma espécie como a nossa, com características totalmente diversas das demais, não se pode reduzir a relação com o ambiente como mera relação entre organismos biológicos. 4 Ao usar sua capacidade de usar símbolos e o imaginário, as sociedades humanas vão construindo códigos culturais e formas específicas de representações da realidade, imprimindo “ao meio que habitam, com base na sua percepção de mundo, toda sorte de transformações. Tais representações [...] são decisivas para a modelagem do espaço habitado e a ordenação do tempo social”.5 O meio natural é percebido então através do conjunto de símbolos que integram essas representações em cada sociedade. Toda sociedade cria uma forma de se relacionar com a natureza, dá significado ao meio natural conforme seus valores. “Toda sociedade possui uma teoria da natureza que lhe é própria, que se expressa em suas configurações intelectuais, senão igualmente em complexos de símbolos, de instrumentos e de práticas”.6 As formas de se relacionar com o meio ambiente podem variar entre as diferentes culturas. Não existe uma “ecologia humana” única. Pelo contrário, podemos notar “uma multitude de distintas ecologias, cada uma das quais, incluindo a que pertence à ciência ocidental, foi gerada por uma experiência distinta de mundo, cada uma das quais encarnando por si mesma seu próprio e único modo de compreendê-lo”.7 Sem a pretensão de listar as mais variadas formas de ver a natureza ou mesmo de esgotar o tema, o presente trabalho propõe-se a investigar a relação entre o ser humano e a natureza através das principais perspectivas teóricas que fundamentam a ética ambiental. 1 ANTROPOCENTRISMO “Penso, logo existo”8 Na perspectiva antropocêntrica o homem é o centro das preocupações ambientais. Os entes gravitam ao redor do ser humano, ganhando importância para o Direito Ambiental conforme se tornam mais úteis e necessários à vida humana. Anthropos, termo grego, significa 4 WALDMAN, Maurício. Meio ambiente & antropologia. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006, p. 37-38. Ibidem, p. 39. 6 BALANDIER, Georges. Modernidad y poder: el desvio antropológico. p. 194 apud WALDMAN, Maurício. Meio ambiente & antropologia. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006, p. 40. 7 MILTON, Kay. Ecologias: antropologia, cultura y entorno apud WALDMAN, Maurício. Meio ambiente & antropologia. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006, p. 41. 8 DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de: Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 38. 5 3 homem, no sentido de ser humano, homem como espécie. Centrum, centricum, do latim, significa o centro, o cêntrico, o centrado.9 De acordo com esta visão, um bem que não seja vivo, material ou imaterial, assim como uma vida que não seja humana, poderá ser tutelado pelo direito ambiental na medida em que for relevante para a garantia da sadia qualidade de vida do ser humano, visto ser este o único animal racional e por isto, destinatário das normas jurídicas. Cabe ao homem a preservação das espécies, incluindo a espécie humana.10 Faz-se importante notar que o ser humano é considerado o centro devido à sua capacidade de pensar, capacidade esta que o torna, dentro do panorama antropocêntrico, superior aos outros seres. Nesse sentido Fiorillo assevera: “Não há, por assim dizer, como não se ver que o direito ambiental possui uma necessária visão antropocêntrica. Necessária pelo motivo de que, como único animal racional que é, só o homem tem possibilidades de preservar todas as espécies, incluindo a sua.”11 É da capacidade de raciocínio que deriva a capacidade humana de refletir, tomar consciência e, em razão de seu poder de abstração, dar significado aos símbolos, reconhecer “o outro” (como um fim em si mesmo), criar, aprender e transmitir hábitos, comportamentos e conhecimentos, reconhecer-se como indivíduo, diferenciando-se dos outros seres e de tudo o que está no seu entorno, inclusive afirmar-se como diferente da natureza, possibilitando o surgimento da cultura. À medida que o ser humano se desenvolve intelectualmente, reconhece-se como indivíduo e integrante da sociedade, atribui assim aos significantes, significado. Neste processo de individuação, a reflexão faz com que o ser humano dê ao significante natureza, significado. Baseado nesse processo ele formula conceitos de natureza, para que possa elaborar um sistema de relacionamento entre ambos. A humanidade sempre buscou auxílio no conceito de natureza para solucionar os problemas humanos e para que esse conceito seja formulado, é necessário que o ser humano tenha atingido um grau de desenvolvimento intelectual, um grau de reflexão e especulação intelectual que viabilize a compreensão de que a humanidade participa e compõe o meio “natural” de maneira diferenciada dos outros seres animados.12 A noção de natureza é fundamental para que, mais recentemente (século XX), seja introduzido o conceito de meio ambiente e com ele seus respectivos desdobramentos jurídicos. Esse conceito de natureza se transforma conforme a cultura. No pensamento helênico, o conceito filosófico de natureza era adaptado em razão da evolução das relações mantidas entre o homem 9 MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de direito ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, out./dez. 2004, p. 10. 10 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 16. 11 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha; NERY, Rosa Maria Andrade. Direito processual ambiental brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p.132-133 apud SILVA, Olmiro Ferreira da. Direito ambiental e ecologia: aspectos filosóficos contemporâneos. 1. ed. Barueri: Manole, 2003, p. 27. 12 ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 5. 4 grego e a natureza. Conforme essas relações se modificavam, modificava-se também o conceito de natureza. 13 Inicialmente, para os gregos, a natureza como conjunto de flora, fauna e os outros elementos do mundo físico, não foi alvo de cuidados especiais, porquanto imperava a idéia da infinitude de recursos naturais em função da pouco presente degradação ambiental. Porém, foi na Grécia Antiga que se pensou sobre os fenômenos naturais e seus desdobramentos em relação ao ser humano. Posteriormente, esse pensamento influenciaria o mundo ocidental. Nas antigas obras poéticas gregas, a natureza desempenhava um papel de fundamental importância. Homero coloca o ser humano como incapaz de lidar com a imensa força do destino. O mundo mítico mostra um ser humano sem condição de prever acontecimentos e sem aptidão para controlá-los, buscando explicações em um passado remoto, podendo-se dizer até mesmo hipotético, que colaborava para conservar situações que desde sempre estavam estabelecidas. A natureza era um fato demasiado extraordinário, incompreensível, cabendo à humanidade aceitar os desígnios do destino. Até esse ponto, não há condições para uma construção racional14 pois “um dos principais elementos que definem a racionalidade é a capacidade de previsão e controle”15. Foi necessária uma atitude filosófica diante da natureza para que houvesse a possibilidade de formular regras gerais. A busca pela universalidade, busca por aquilo que há em comum em diferentes pessoas e diferentes sociedades, busca pela essência da vida, exigiu uma postura filosófica que questiona a realidade a partir da intensa observação dos fenômenos físicos. No momento que esses fenômenos físicos puderam ser generalizados tornou-se possível a formulação de regras gerais que permitiam a previsão de acontecimentos, previsão esta ausente no momento anterior à indagação filosófica. Portanto, podemos afirmar que para a cultura grega desenvolver o conceito de natureza, foi necessária a generalização (dos fenômenos físicos) e a universalização (do ser humano e da natureza, tomando consciência das suas respectivas necessidades, particularidades e exigências). Para que a noção de natureza tornasse-se viável era imprescindível que o ser humano tomasse consciência de seu papel especial na natureza, e essa tomada de consciência só é possível através da filosofia. Assim o ser humano descobre que, conquanto integre o meio “natural”, integra-o diferenciadamente dos outros seres. Reconhece-se como diferente.16 Quanto a essa diferença, Bessa escreve que: “O Homem é o único dos seres vivos dotado de capacidade para alterar conscientemente o ‘status quo’ do mundo natural.”17 [grifo nosso] Continua Bessa acerca do mesmo assunto, citando célebre afirmação de Hegel: “O que o homem possui de mais nobre do que o animal, possui-o, graças ao pensamento: tudo 13 Ibidem, p. 3. ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 6 et seq. 15 Ibidem, p. 8. 16 Ibidem, p. 7 et seq. 17 Ibidem, p. 9. 14 5 quanto é humano, de qualquer forma que se manifeste, é-o na medida em que o pensamento age ou agiu”.18 [grifo nosso] O ser humano, criando um conceito de natureza como elemento integrante do mundo da Cultura, já não é mais refém do destino, tranforma o mundo natural conforme suas necessidades. Através da filosofia ele “descobre” a natureza, reconhece-se como diferente, reconhece o outro como diferente e descobre a natureza ao pensar a sua sociedade. O conceito de natureza só é possível quando o ser humano consegue diferenciar-se dela. A Filosofia era então baseada na experiência concreta, em fenômenos sensíveis e verificáveis na realidade. Com a criação do conceito de natureza, viabilizou-se a construção de modelos sociais de acordo com a natureza observada. A natureza que fala a filosofia grega não é mais um conjunto de leis, elementos físico-químicos, flora e fauna. “A natureza era para os gregos a análise das leis que universalmente podiam ser extraídas da observação do mundo natural e a sua aplicação ao mundo político, à pólis.”19 Essa posição possibilita a construção do conceito de um direito natural, que adquiriu, anteriormente, significação social e cultural na tragédia Antígona, de Sófocles, onde a introdução de termos como equilíbrio e justo termo dão à humanidade uma nova dimensão, onde o ser humano começa a esboçar sua posição de senhor do mundo natural. Ele começa a ser o elemento central. Supera-se as explicações míticas, buscando, na razão, as origens primeiras das coisas.20 Sófocles mostra a luta de Antígona como uma luta pela liberdade e dignidade do ser humano, buscando fundamentos na natureza. Na obra citada, o autor expressa essa idéia quando o Coro afirma: “De tantas maravilhas, mais maravilhoso de todas é o homem.”21 Com Platão e Aristóteles, o privilegiamento do ser humano e da idéia de superioridade em relação à natureza ganha maior consistência. Os termos como sofista e retórica, a arte da argumentação tão cultivada pelos sofistas, passam a ser termos pejorativos.22 Para Aristóteles (384-322 a.C.), que seria retomado e relido posteriormente por Tomás de Aquino (1225-1274), “o homem está no vértice de uma pirâmide natural, em que os minerais (na base) servem aos vegetais, os vegetais servem aos animais que, por sua vez, e em conjunto com os demais seres, servem ao homem”.23 Posteriormente, a separação entre ser humano e natureza ganhará maior dimensão com a tradição judaico-cristã.24 A assimilação aristotélico-platônica pelo cristianismo cristalizará 18 Ibidem, p. 9. ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 26. 20 Ibidem, p. 17 et seq. 21 SÓFOCLES. Antígona. Tradução de: Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 28. 22 GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1990, p. 31. 23 MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de direito ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, out./dez. 2004, p. 11. 24 Sobre a influência da tradição judaico-cristã: “O versículo 28 do capítulo 1º do Livro de Gênesis: ‘Crescei e multiplicai-vos e enchei a Terra, e subjugai, e dominai (...)’, sendo interpretado fora do contexto do gênero literário em que foi vasada a Bíblia, com o passar dos séculos foi-se tornando um axioma do relacionamento HomemNatureza, reforçado por uma cosmovisão religiosa ou religioso-política.” MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila 19 6 a separação entre espírito e matéria. A perfeição de Deus fará oposição ao imperfeito mundo material. Com o cristianismo, os deuses não habitam este mundo como acontecia na concepção dos filósofos pré-socráticos. Foi durante a Idade Média que se iniciou a dissecação de cadáveres, decorrente da concepção de que após o falecimento, o corpo pode ser visto como objeto de estudo, pois aquilo que o anima (do grego ânima, alma), já não está mais presente no corpo sem vida. Aquilo que dá vida ao corpo foi para outro lugar (céu, inferno, purgatório), podendo então o corpo virar objeto.25 Os avanços científicos e tecnológicos ganham proporções até então inimagináveis, especialmente a partir da revolução científica (associada aos nomes de Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton), séculos XVI e XVII. A visão de mundo medieval, aristotélicocristã, sofreu imensa e radical mudança. O universo que até então era visto como orgânico, vivo e espiritual, deu lugar a uma visão de um mundo equiparado a uma máquina. Máquina esta, que se tornaria a metáfora da era moderna.26 O elemento primordial da razão renascentista era a glorificação do ser humano e estando ele no ápice da cadeia da vida, deveria dominar o conhecimento sobre a natureza da forma mais ampla possível. É pelo domínio do conhecimento que será possível a preservação do gênero humano. Era natural para esse pensamento que ele voltasse os frutos do conhecimento para si mesmo. A ciência começa a se tornar uma nova religião, prometendo um mundo novo a todos os seres humanos. Visto que os recursos naturais eram entendidos como infinitos, não havia motivo para uma visão crítica desta atitude. A oposição homem-natureza, espírito-matéria, sujeito-objeto se tornará mais plena em Descartes e se constituirá no centro do pensamento moderno e contemporâneo. Através do método científico Descartes afirma que seria possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida. O objetivo do conhecimento era dominar incondicionalmente a natureza que agora é fonte de recursos para a satisfação humana, um objeto, diante daquele que seria o verdadeiro sujeito, a alma (mente, pensamento), a res cogitans. Fica evidente a relação de subordinação entre res cogitans e natureza. O corpo é parte da natureza, e dentro deste contexto, o ser humano se distancia da natureza, percebendo o corpo como res extensa.27 Há assim uma característica dualista.28 O caráter pragmático e antropocêntrico que marcará a modernidade ficará manifesto quando Descartes afirma que Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de direito ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, out./dez. 2004, p. 11. 25 GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1990, p. 32. 26 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996, p. 34. 27 BALLESTEROS, Jesús. Ecologismo Personalista. Madri: Tecno, 1995, p. 14. 28 “[...] significa ainda algo mais do que a independência recíproca entre corpo e espírito: significa a separação entre sujeito e objeto”. SILVA, Franklin Leopoldo e. Descartes: A metafísica da modernidade. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1993, p. 6. Além do dualismo, o idealismo e a subjetivismo também são características do pensamento cartesiano. É a partir do sujeito, entendido como pensamento, que Descartes diz que é possível constituir o verdadeiro conhecimento. Temos primeiramente representações que posteriormente serão atestadas pela realidade. 7 Ao invés dessa filosofia especulativa ensinada nas escolas, pode-se encontrar uma filosofia prática, mediante a qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos os diversos ofícios de nossos artesãos, poderíamos empregá-las do mesmo modo em todos os usos a que são adequadas e assim nos tornarmos como que senhores e possessores da natureza. Isso é de se desejar não somente para a invenção de uma infinidade de artifícios que nos fariam usufruir, sem trabalho algum, os frutos da terra e de todas as comodidades que nela se encontram, mas também, principalmente, para a conservação da saúde, que é, por certo, o bem primordial e o fundamento de todos os outros bens desta vida.29 [grifo nosso] Ao contrário da filosofia especulativa, o conhecimento cartesiano tem característica pragmático-utilitarista, útil às aspirações e anseios do ser humano que assimila a natureza como um instrumento, um meio para atingir uma finalidade. O ser humano como centro do mundo é o sujeito em oposição ao objeto, usufruindo o método científico para desvendar os mistérios da natureza e à imagem e semelhança de Deus, poderia realizar qualquer feito. Tornar-se-ia o todo poderoso. Encontra-se aqui influência do pensamento medieval, visto que existe certo desprezo pela matéria, baseado na separação entre alma humana e o mundo material.30 Descortinava-se um novo mundo, o Ocidente racionalista31 e mecanicista,32 onde o artifício é considerado por muitos, superior ao mundo natural. Com o desenvolvimento do mercantilismo e a ascensão da burguesia, notadamente o movimento que proclama triunfo do ser humano sobre a natureza ganha força, sobretudo depois das revoluções industrial e francesa. Para Locke o direito de propriedade faz parte da natureza humana. Exalta o homo faber enquanto produtor de mercadorias que através do trabalho agrega valor à matéria bruta, à natureza. O ser humano é capaz de criar riqueza mediante a acumulação de bens que adiante poderão ser trocados conforme a vontade de cada um, afirmando o uso privado das coisas. O 29 DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de: Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 69. 30 GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do meio ambiente. 2. ed., São Paulo: Contexto, 1990, p. 33. 31 Sobre a racionalidade do Ocidente “Ao estudarmos qualquer problema da história universal, o produto da moderna civilização européia estará sujeito à indagação sobre a que combinações de circunstancias se pode atribuir o fato de na civilização ocidental, e só nela, terem aparecido fenômenos culturais que, como queremos crer, apresentam uma linha de desenvolvimento de significado e valor universais. Apenas no Ocidente existe uma ciência em um estágio de desenvolvimento que reconhecemos, hoje, como válido. [...] É verdade que Maquiavel teve predecessores na Índia; mas todo o pensamento político da Índia carecia de um método sistematizado como o de Aristóteles e, de fato, de conceitos racionais”. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 23-24. 32 Sobre o mecanicismo: “[...] enxergava a natureza como uma inerte máquina ou como um reservatório de recursos destinados ao bem-estar do ser humano, defendendo uma atitude instrumentalizadora e utilitarista para lidar com ele [...]”. NETO, Aristides Arthur Soffiati. Ecossistemas aquáticos: antropocentrismo, biocentrismo e ecocentrismo. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 10, n. 37, jan./mar. 2005, p. 209. 8 intercâmbio de mercadorias é uma forma de diferenciação entre o homem e os animais. O trabalho é a fonte de riqueza do indivíduo e neste sentido, Locke antecipa Adam Smith e Marx.33 Adam Smith lança as bases econômicas para uma sociedade engajada em um processo de desenvolvimento contínuo através da competição entre os indivíduos. Eles agiriam em interesse próprio tornando o progresso inevitável através do investimento, do aumento da produtividade e do acúmulo de riqueza material. A riqueza material traria a melhora da sociedade e o bem da sociedade seria alcançado através da busca do bem individual.34 Se o ser humano estava no centro do universo, a produção de bens estava no centro da economia que em constante crescimento atenderia às necessidades humanas.35 Com Adam Smith, a teoria de formação do valor, que até então concebia a natureza como fonte de valor e a agricultura como meio de produção, passou-se a negar a prioridade do trabalho agrícola e também da natureza exterior. Desse modo, a natureza deixou de ser o elemento central da Teoria Econômica, pois passou a ser vista como um obstáculo ao desenvolvimento econômico.36 O pensamento tecnocrático também se manifesta em Saint-Simon que entende a sociedade industrial como o caminho para o domínio da natureza. Assim a sociedade atingiria um ponto que implicaria o fim da luta do homem contra o homem.37 Portanto eventual problema ecológico de caráter ético será resolvido pelo sistema econômico, da mesma forma que a técnica e a ciência superarão todas as questões que se apresentam ou se apresentarão. A ciência como expressão da razão, daquilo que torna o ser humano diferente dos outros seres, recebe toda a confiança da sociedade que projeta para o futuro a solução de qualquer dificuldade ambiental encontrada na realidade. 1.1 AÇÃO MORAL FACE À NATUREZA NA TEORIA ANTROPOCÊNTRICA Para o antropocentrismo somente o ser humano será sujeito moral. Nesta concepção, unicamente ele é capaz de realizar atos morais e ser sujeito de direitos. A ação moral com relação à natureza considera o interesse do próprio ser humano visto que por ter características próprias, razão e o poder de liberdade de vontade, exclusivas à espécie humana, sua vontade não pode ser comparada a uma suposta vontade da natureza, já que somente ele tem a capacidade de reconhecer valores morais nos comportamentos alheios e adequar a própria conduta a um determinado tipo de racionalidade. Em verdade não há que se falar em “vontade da natureza” no 33 SOFFIATI, Arthur. A natureza no pensamento liberal clássico. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 5, n. 20, out./dez. 2000, p. 166-167. 34 PONTING, Clive. Uma história verde no mundo. Tradução de: Ana Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 257. 35 “[...] desde o início, os economistas concentraram a maior parte de seus estudos na organização da produção – em como interagiam os vários fatores responsáveis por ele (terra, trabalho e capital).” Ibidem, p. 257. 36 OLIVEIRA, Ana Maria Soarez de. Relação homem/natureza no modo de produção capitalista. Scripta Nova: revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona, v. 6, n 119 (18), ago. 2002. Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-18.htm>. Acessado em 13 maio. 2010. 37 BALLESTEROS, Jesús. Ecologismo Personalista. Madri: Tecno, 1995, p. 18. 9 que tange ao antropocentrismo, porquanto a natureza não é provida de razão, de pensamento, não é livre, não delibera. À natureza é atribuído um valor instrumental à proporção que o ser humano é livre para impor sua vontade que encontrará limites nas liberdades de outras pessoas.38 A legitimidade humana para atos morais, também se expressa em outros fenômenos culturais além do reconhecimento de valores morais, “tais como a linguagem, a liberdade de decisão, o conhecimento científico, o desenvolvimento e o uso da técnica, a reciprocidade de deveres e obrigações”.39 1.2 CRÍTICAS DO ANTROPOCENTRISMO 1.2.1 Crítica do Antropocentrismo ao Ecocentrismo O antropocentrismo é uma característica encontrada nas diferentes sociedades humanas não sendo assim característica exclusiva da cultura ocidental. A suposta prepotência do homem ocidental não se sustenta já que dificilmente alguma sociedade se constituiu acreditando ser inferior às demais. A forma de perceber o ser humano como centro pode variar entre diferentes sociedades40 contudo em relação à natureza “[...] não se conhece organização social que tenha atribuído ao Homem um papel subalterno”.41 Essa característica antropocêntrica muitas vezes se manifesta através de um padrão etnocêntrico. O conceito de natureza e meio ambiente são necessariamente antropocêntricos, já que “sem a existência do Ser Humano não seria possível a existência de nenhum dos dois conceitos, pois não existiria a racionalidade capaz de elaborá-los”.42 Os argumentos ecocêntricos atacam a forma ocidental de pensar por considerar esta como contrária ao meio ambiente e declaram algumas vezes um “holocausto ambiental” que seria evitado com uma série de medidas, entre elas, a redução do consumo. Esse pensamento biocêntrico pode ser considerado na verdade antropocêntrico porque corresponde ao pensamento de quem já superou as necessidades materiais básicas e impõe sacrifícios a quem vive em países em vias de desenvolvimento. É uma visão do mundo natural feita por quem não habita o mundo natural.43 A redução de consumo proposta pela concepção ecocêntrica significa que o indivíduo precisa privar-se de sua liberdade. Ao antropocentrismo essa privação não precisa ser radical de 38 KÄSSMAYER, Karin. Apontamentos sobre a ética ambiental como fundamento do direito ambiental. EOS: Revista jurídica da Faculdade de Direito/Faculdade Dom Bosco, Curitiba, v. 1, n. 4, jul./dez. 2008, p. 142. Disponível em <http://www.dombosco.com.br/faculdade/revista_direito/1edicao-2009/eos-4-2009.pdf>. Acesso em: 13 maio 2010. 39 Ibidem, p. 142. 40 ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 132. 41 Ibidem, p. 2. 42 Ibidem, p. 170. 43 Ibidem, p. 121-122. 10 tal maneira que afete o desenvolvimento econômico. O mercado pode se adaptar às novas necessidades. 1.2.2 Crítica do Antropocentrismo ao Personalismo Para o pensamento anterior a Descartes, mais precisamente o pensamento aristotélicotomista (influência determinante do personalismo), o conhecimento segue a trajetória que vai das coisas para o intelecto. A representação que aspire à realidade precisa ser primeiramente uma representação sensível. Em Descartes, ao contrário, parte-se primeiramente da idéia onde o conhecimento deve ser investigado ampla e internamente no que diz respeito à mente, para, posteriormente, sair da representação para as coisas. Como a experiência sensível é questionável o corpo não é confiável como fonte de percepção da realidade.44 Para o antropocentrismo é a liberdade do indivíduo, é autonomia de vontade do ser humano que o faz ser verdadeiramente humano, exercer a sua humanidade. A liberdade individual está acima das relações sociais que podem simbolizar uma barreira para a vontade do indivíduo. O que fundamenta uma obrigação moral antropocêntrica é a razão enquanto o que fundamenta uma obrigação moral para o personalismo é a pessoa (eu mesmo e o outro), o que significa na visão antropocêntrica um retrocesso no processo de evolução da humanidade. 2 ECOCENTRISMO “Nós não estamos no entorno, ‘nós somos o entorno’.”45 O ecocentrismo, também denominado fisiocentrismo (concede valor intrínseco aos indivíduos naturais, na maior parte também coletividades naturais como biótipos, ecossistemas, paisagens46) e biocentrismo (onde o enfoque está apenas nos seres com vida, sejam individuais e coletivos47), considera que a natureza tem valor intrínseco: a proteção à natureza acontece em função dela mesma e não somente em razão do homem. Tendo a natureza valor em si a sua proteção muitas vezes se realizará contra o próprio homem.48 Os ecocentristas buscam justificar a 44 SILVA, Franklin Leopoldo e. Descartes: A metafísica da modernidade. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1993, p. 10. MOLINARO, Carlos Alberto. Racionalidade ecológica e estado socioambiental e democrático de direito. Dissertação (Mestrado em direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre, 2006, p. 52. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=284>. Acesso em: 22 maio 2010. 46 KÄSSMAYER, Karin. Apontamentos sobre a ética ambiental como fundamento do direito ambiental. EOS: Revista jurídica da Faculdade de Direito/Faculdade Dom Bosco, Curitiba, v. 1, n. 4, jul./dez. 2008, p. 136. Disponível em <http://www.dombosco.com.br/faculdade/revista_direito/1edicao-2009/eos-4-2009.pdf>. Acesso em: 13 maio 2010. 47 Ibidem, 136. 48 AMARAL, Diogo de Freitas do. Direito ao meio ambiente. Apresentação, Lisboa, Editora INA, 1994 apud MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de direito ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, out./dez. 2004, p. 20. 45 11 proteção à natureza afirmando que “dado à naturalidade um valor em si, a natureza é passível de valoração própria, independente de interesses econômicos, estéticos ou científicos.”49 Toda sociedade humana constitui um conjunto de símbolos que dão sentido à própria sociedade. A ordem social da modernidade, emergida na Europa a partir do século XVII, tem como símbolos as diversas racionalidades advindas de um modelo industrial que compõe a sociedade de consumo e de risco. A lógica do progresso, individualismo, a noção antropocêntrica de mundo e a noção instrumental da natureza são elementos do que chamamos de modernidade. Esse modelo é imediatista e tem a racionalidade econômica orientada para a acumulação de capital.50 O ritmo da sociedade moderna é de constantes mudanças. Contemporaneamente a realidade nos permite avaliar que “as interações do homem moderno com seu meio, munido pelo manancial da ciência e da técnica, foram de tal forma incríveis que acabaram gerando um potencial destrutivo de risco em larga escala em relação ao meio ambiente material”.51 A crise da sociedade contemporânea52 é uma crise de seus magmas de significações. O conjunto de símbolos que representam a sociedade contemporânea está sendo abalado em seus fundamentos. A questão ambiental é um dos componentes que integram esta crise. As idéias de crescimento econômico, desenvolvimento, ciência, técnica e dominação da natureza estão abaladas. A relação sociedade-natureza se insere neste contexto de crise visto que se acreditava que desenvolvimento acarretava sair da natureza, dominá-la.53 A deflagração da crise ambiental expõe a necessidade de uma nova forma de relação entre o ser humano e natureza, uma nova postura ética diante do meio ambiente. A consideração do valor intrínseco do mundo do mundo natural e dos excessos do antropocentrismo é fundamental, um pressuposto, para se pensar a Ética da Vida que, em 49 KÄSSMAYER, Karin. Apontamentos sobre a ética ambiental como fundamento do direito ambiental. EOS: Revista jurídica da Faculdade de Direito/Faculdade Dom Bosco, Curitiba, v. 1, n. 4, jul./dez. 2008, p. 140. Disponível em <http://www.dombosco.com.br/faculdade/revista_direito/1edicao-2009/eos-4-2009.pdf>. Acesso em: 13 maio 2010. 50 MARQUES, Angélica Bauer. Estado de direito ambiental: tendências : aspectos constitucionais e diagnósticos. org. FERREIRA, Helini Silvini; MORATO, José Rubens. A cidadania ambiental e a construção do estado de direito do meio ambiente. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p 175. 51 Ibidem, p. 175-176-177. 52 A excessiva competição, aceleração dos processos humanos e a desigualdade social são fatores que colaboram para o surgimento da depressão, sintoma da crise social da sociedade contemporânea. Neste sentido: “A depressão tem diversas causas, algumas delas biológicas, mas parte dessas causas vem de pressões ambientais e, obviamente, as pessoas pobres sofrem mais estresse em seu dia-a-dia do que as pessoas ricas, e não é surpreendente que elas tenham mais depressão." OMS: Depressão será doença mais comum do mundo em 2030. Estadão, São Paulo, 2 set. 2009. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,oms-depressao-sera-doenca-mais-comum-do-mundo-em2030,428526,0.htm>. Acesso em: 14 maio. 2010. No mesmo sentido: “A impressão que se tem, desde a revolução industrial, é que o tempo em sua dimensão cronológica vem se acelerando de uma forma exasperante. Quanto mais tentamos aproveitar o tempo, quanto mais dispomos das horas e dos dias segundo a convicção de que ‘tempo é dinheiro’, mais sofremos do sentimento de desperdiçar a vida.” ZANIN, Luiz. Depressão e capitalismo: entrevista com Maria Rita Kehl. Estadão, São Paulo, 22 abr. 2009. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/luizzanin/depressao-e-capitalismo-entrevista-com-m/>. Acesso em: 14 maio. 2010. 53 MARQUES, Angélica Bauer. Estado de direito ambiental: tendências : aspectos constitucionais e diagnósticos. org. FERREIRA, Helini Silvini; MORATO, José Rubens. A cidadania ambiental e a construção do estado de direito do meio ambiente. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p 176-177. 12 última análise, se apresenta como condicionadora da Ética do Meio Ambiente, um dos seus mais expressivos aspectos.54 Nesta ética do meio ambiente as demais formas de vida apresentam um valor intrínseco e um significado próprio já que a natureza precede o homem. São expressões da criação, da vida, da natureza ou de Deus, conforme a crença de cada um. Ademais, “nem tudo o que existe foi criado para a utilidade imediata do homem; há outros fins, outras razões criadoras que escapam à nossa sensibilidade a aos nossos cálculos”.55 O conceito de natureza já foi completamente diferente ao conceito formulado e atribuído às épocas moderna e contemporânea.56 Para os pensadores pré-socráticos a natureza (physis) está imbuída do elemento anímico, há espiritualidade na natureza, ela não se contrapõe ao psíquico como ocorre em nossos dias. O psíquico também pertence à physis. Os deuses não estão em um lugar distante, separado. Eles habitam a physis como forças misteriosas, se apresentam em tudo que está ao redor do ser humano, conferem inteligência à natureza que já não pode mais ser dividida em animada ou inanimada porque tudo tem alma. Esse princípio inteligente é reconhecido através de manifestações que chamamos de espírito, inteligência, pensamento, logos, etc. Physis também é gênese, é o princípio e o processo de surgimento e desenvolvimento das coisas. Em outro aspecto physis é a totalidade de tudo o que é. Pensar a physis é pensar o ser e a partir disso compreender a totalidade do real:57 “do cosmos, dos deuses e das coisas particulares, do homem e da verdade, do movimento e da mudança, do animado e do inanimado, do comportamento humano e da sabedoria, da política e da justiça”.58 A natureza (Fisis), para os gregos, era compreendida como um grande organismo formado por um corpo material distendido no espaço, penetrado pelo movimento no tempo, homogêneo, vivo e dotado de uma alma imanente (Logos), que era o princípio do movimento de diversas substâncias, cada qual dotada de sua natureza qualitativa própria e de seu próprio modo de atuar.59 Posteriormente é que a separação entre homem e natureza se consolidaria conforme a visão antropocêntrica. O conhecimento seria extremamente fragmentado e as conseqüências dessa forma de relação é que gerariam a necessidade de repensar o paradigma mecanicista.60 No século XIX, fruto de interações interdisciplinares principalmente entre biologia, biofísica e química surge a ecologia. Traz consigo referenciais que proporcionam uma nova compreensão do ser humano, contrastando com a visão antropocêntrica (unidimensional), o 54 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2 ed., São Paulo: revista dos tribunais, 2001, p. 81. 55 Ibidem, p. 81. 56 GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do meio ambiente. 2. ed., São Paulo: Contexto, 1990, p. 29. 57 Ibidem, 29-30. 58 Ibidem, 31. 59 ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 17. 60 GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do meio ambiente. 2. ed., São Paulo: Contexto, 1990, p. 100-102. 13 homem não está mais hierarquicamente acima dos demais seres ou em uma posição apartada deles. Faz agora parte de uma série de relações de interdependência entre os mais variados tipos de entes ambientais.61 O ser humano agora participa da teia da vida (web of life).62 Em um contexto de interdisciplinaridade as ciências se influenciam e realizam um diálogo entre os conhecimentos, superando a anterior forma fragmentada de saberes. É neste sentido que a ciência do Direito também sofre influência de outros campos do conhecimento, incluindo a ecologia e de seus conceitos correlatos. Em 1874, “ecologia” aparece na obra Anthropogénie de Haeckel, onde podemos entender que ela, “pelo menos em parte, constitui-se no quadro científico e ideológico da economia da natureza, dos equilíbrios naturais e da adaptação dos seres vivos às suas ‘condições de existência’.”63 O conjunto de grupos de indivíduos de qualquer tipo de organismo que ocupam a mesma área é denominado pela ecologia como comunidade. A comunidade e o ambiente nãovivo se articulam, funcionam juntos como um sistema ecológico ou ecossistema.64 O conceito de ecossistema privilegia o todo colaborando assim para a superação da concepção atomísticoindividualista. O ecossistema65 é constituído pelo biótopo, que é o meio geofísico, e pela biocenose,66 que são as interações entre todos os seres vivos que ocupam o espaço chamado biótopo. Constituem assim uma unidade complexa com caráter organizador, ou simplesmente, um sistema.67 Os ecossistemas são sistemas abertos, sempre havendo entrada e saída de energia. São espaços de qualquer dimensão onde se processam as interações entre os seres vivos e os outros componentes do meio, “mediante transporte e troca de matéria, energia e informação, tudo isto submetido a um processo de auto-regulação de modo a garantir a estabilidade ou equilíbrio daquele sistema”.68 Nessas interações é que se verifica a cadeia trófica, “seqüência concatenada 61 SILVA, Olmiro Ferreira da. Direito ambiental e ecologia: aspectos filosóficos contemporâneos. 1. ed. Barueri: Manole, 2003, p. 75-76. 62 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996. 63 ACOT, Pascal. História da Ecologia. Tradução de: Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 28. 64 ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 149 65 “Toda e qualquer unidade que englobe todos os organismos que funcionem em conjunto em uma determinada área geográfica, em interação com o meio físico, de maneira que um fluxo de energia seja capaz de gerar estruturas bióticas definidas e ciclagem de materiais, entre as partes vivas e as não-vivas, é um ecossistema.” ODUM, Eugene P. Fundamentos de Ecologia. Tradução de: Antônio Manuel de Azevedo Gomes. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 2 apud ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 151. 66 “[...] um grupamento de seres vivos que correspondem, por sua composição, quantidade de espécies e de indivíduos, a determinadas condições médias encontradas no meio, grupamento de seres ligados em função de dependência recíproca e que se mantêm, reproduzindo-se em certo lugar, permanentemente.” ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 151. 67 GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do meio ambiente. 2. ed., São Paulo: Contexto, 1990, p. 63. 68 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2 ed., São Paulo: revista dos tribunais, 2001, p. 81. 14 de seres que alimentam uns aos outros ou são por eles nutridos”.69 Referente às interações ecossistêmicas é relevante explicitar que “cada ecossistema é um todo que se organiza a partir das interações dos seres que o constituem. Assim, o todo, o ecossistema, só existe pelas interações entre as partes e são essas complexas interações que o constituem”.70 Em meio a todas essas trocas e interações em busca de equilíbrio e estabilidade há ainda a interferência humana. Além dos fatores abióticos (ar, água, minerais e energia) e bióticos (plantas, vegetais em geral, os animais e os microorganismos) que compõem um ecossistema71 natural, pode ainda haver o fator cultural, ou seja, o sistema ambiental pode sofrer a influência da ação humana. Assim, no ecossistema cultural as alterações ocorrem pela combinação da ação da natureza com a intervenção humana, seja ela consciente ou inconsciente.72 O ser humano é integrante das íntimas relações que existem em todo o mundo natural. A ecologia despertou nele a compreensão na qual o homem é apenas mais um ente entre tantos outros, ele é mais um elo do repertório ecológico. Há uma inter-relação de mútua dependência entre os entes da natureza.73 A cadeia trófica, bem como a mútua dependência dos entes ambientais, apontam para as inter-relações na forma de interdependência ou interconvivialidade, assim entende-se que há paridade entre os entes do repertório ambiental que caso seja desconsiderada causará prejuízo ao inter-relacional ambiental.74 Em suma, interconvivialidade é um inter-relacional que sofreu interferência humana organizada na busca da sobrevivência possível e ideal.75 Nesse contexto notamos que o direito vai ao encontro de outras ciências para auxiliar e ser auxiliado no intuito de superar conceitos que não colaboram para a solução de questões atuais. É imperioso constatar nesse sentido o quão amplo e complexo é o conceito de meio ambiente76. Envolve “todos os tipos de relações estabelecidas entre os homens individualmente considerados e, na relação entre os mesmos e o espaço onde vivem”.77 “É um todo que engloba 69 Ibidem, p. 82. GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do meio ambiente. 2. ed., São Paulo: Contexto, 1990, p. 64. 71 Há um conceito normativo de ecossistema: “’Ecossistemas’ significa um complexo dinâmico de comunidades vegetais, animais e de microorganismos e o seu meio inorgânico que interagem como uma unidade funcional.” BRASIL, Decreto Legislativo nº 2, de 03 de fevereiro de 1994, artigo 2º. Disponível em: <http://www.anbio.org.br/legis/decretoleg2.htm>. Acesso em: 17 maio. 2010. 72 ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 152. 73 SILVA, Olmiro Ferreira da. Direito ambiental e ecologia: aspectos filosóficos contemporâneos. 1. ed. Barueri: Manole, 2003, p. 78. 74 Ibidem, p. 80. 75 Ibidem, p. 81. 76 “O conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico.” SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 20. 77 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 27. 70 15 elementos naturais, artificiais, culturais e do trabalho”.78 Pode-se dizer que existem vários “meio ambientes” que interagem, são interdependentes. É na dimensão da transdisciplinaridade e interdisciplinaridade que o direito se socorre de outras áreas do conhecimento para compreender o que é meio ambiente, de que forma ele funciona e como o ser humano deve relacionar-se com seus elementos constituintes.79 Tendo instrumentos conceituais que permitam reorganizar os conhecimentos podemos compor um quadro com os diversos saberes das mais diversas ciências, percorrendo permanentemente um trajeto que vai das partes ao todo e do todo às partes a fim de descobrir um conhecimento global.80 O direito se insere nessa dinâmica uma vez que “se o direito se nutre de outros saberes e precisa interagir com outras ciências, deve forçosamente metabolizar conquistas e aceitar as transformações que se impõem na cadeia de evolução do mundo. [...] Não pode avançar tortuosamente.”81 Inseridos nesse diálogo entre conhecimentos a cisão do pensamento que interroga deve ser refutada. A cisão implica dualismo, fracionando o objeto a ser apreendido pelo sujeito que na verdade comporta o dualismo. O dualismo está na verdade na cisão interior do sujeito. As divisões entre mente e corpo, sujeito e objeto, natureza e cultura, já não fazem sentido quando na realidade estes se relacionam, são interdependentes. 82 Entende-se que pelo ponto de vista do sujeito, objeto é quem emite a informação. O sujeito é aquele que recebe as informações sendo então sujeito do conhecimento. Inconcebível torna-se a idéia de puro sujeito visto que se este apenas recebesse informações não teria nem a si mesmo como objeto de seu conhecimento. Admitindo-se como sujeito cognoscente afirmaria que apenas receberia informações, nunca emitiria, não seria objeto. Tão inconcebível quanto o puro sujeito é a idéia de puro objeto, que seria um eterno irradiador de informações e nunca receptor delas.83 Na realidade sujeito e objeto se exigem complementar e reciprocamente, emitem e recebem informação, se unem e essa unificação deve ser buscada “na constituição de cada um deles (nas suas relações interiores), vale dizer, nas constituições recíprocas dos entes que são, cada um, por si mesmos, inseparavelmente sujeitos e objetos”.84 78 DEEBEIS, Toufic Daher. Elementos de direito ambiental econômico. São Paulo: Max Liminad, 1997, p. 20 apud MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 27. 79 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 18-19. 80 MORIN, Edgar (org.). A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 491. 81 MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de direito ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, out./dez. 2004. p. 31-32. 82 MOLINARO, Carlos Alberto. Racionalidade ecológica e estado socioambiental e democrático de direito. Dissertação (Mestrado em direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre, 2006, p. 33-34. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=284>. Acesso em: 22 maio 2010. 83 Ibidem, p 57. 84 Ibidem, p 58. 16 “Ambiente [...] é relação. Ambiente – no sentido de meio ambiente – pode ser definido como um lugar de encontro.”85 Encontrar86 é descobrir, achar, disputar. É neste lugar de encontro (de descoberta, de disputa, de tomada de consciência) que o sujeito/objeto (agora em união) encontra o outro, com ele se relaciona, interage e interdepende. Encontra o outro no ambiente e encontra no outro o ambiente.87 Ecologia é relação, inter-ação e dialogação de todas as coisas existentes (viventes ou não) entre si e com tudo o que existe, real ou potencial. A ecologia não tem a ver apenas com a natureza (ecologia natural), mas principalmente com a sociedade e a cultura (ecologia humana, social, etc.). Numa visão ecológica, tudo o que existe coexiste. Tudo o que coexiste preexiste. E tudo o que coexiste e preexiste subsiste através de uma teia infinita de relações omnicompreensivas. Nada existe fora da relação. Tudo se relaciona com tudo em todos os pontos.88 Encontrar o outro é também encontrar o ambiente e nessa relação de complementaridade e reciprocidade, o outro é todo organismo de toda espécie, orgânico ou inorgânico com quem o ser humano está vinculado ao relacionar-se com o ambiente. Essa visão ecocêntrica concebe o mundo natural em sua holodimensão, em sua complexa totalidade, como um ser vivo. Une todas as espécies em um sistema único atribuindo à natureza um valor em si mesma.89 São relações de complementaridade que unem todas as espécies num único sistema de sustentabilidade do mundo, onde a responsabilidade de todos e de cada um está na satisfação de necessidades atuais sem fraudar as perspectivas das gerações futuras, pois é nelas que reside a compreensão da nossa geração, e é desde elas que nos atormenta a angustia da incompletude em preservá-las.90 2.1 AÇÃO MORAL FACE À NATUREZA NA TEORIA ECOCÊNTRICA Esta cosmovisão “concede um valor próprio à natureza (natureza como fim em si mesma) e busca ultrapassar as fronteiras da visão antropocêntrica, fazendo emergir uma nova ética, a ética da natureza.”91 85 Ibidem, p 55. MICHAELIS. Moderno dicionário da língua portuguesa. Versão digital, São Paulo: Editora Melhoramentos. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=encontrar>. Acessado em: 23 maio 2010. 87 MOLINARO, Carlos Alberto. Racionalidade ecológica e estado socioambiental e democrático de direito. Dissertação (Mestrado em direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre, 2006, p. 55. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=284>. Acesso em: 22 maio 2010. 88 BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização espiritualidade: a emergência de um novo paradigma. 3. ed., São Paulo, Editora Ática,1999 apud DURÀN, José Duran y. Comissão Nacional dos Diáconos. Alteridade na sociedade contemporânea desde o ponto de vista teológico. Disponível em: < http://www.cnd.org.br/art/duran/alteridade.asp#nota2 >. Acesso em: 22 maio 2010. 89 Ibidem, p. 64-65. 90 Ibidem, p. 65. 91 KÄSSMAYER, Karin. Apontamentos sobre a ética ambiental como fundamento do direito ambiental. EOS: Revista jurídica da Faculdade de Direito/Faculdade Dom Bosco, Curitiba, v. 1, n. 4, jul./dez. 2008, p. 140. 86 17 A ética da natureza confere ao ser humano responsabilidades em relação ao meio ambiente e dentro de uma concepção dialética da relação homem-natureza, a questão da oposição entre a necessidade de restabelecer equilíbrios naturais e salvaguardar interesses humanos mostra-se resolvida porquanto equilíbrios naturais são interesses humanos. O ser humano está ligado à natureza em um equilíbrio simbiótico.92 O homem “não se situa no exterior da natureza, mas é dela um componente essencial. O logos reencontra a oikos num enlace, numa dialética fundamental que liga o homem à natureza de maneira indissociável”.93 À natureza é atribuída relevância moral capaz de justificar uma ação moral em seu benefício. Já que o equilíbrio natural é um interesse humano, a ação ética considera os elementos que constituem o ambiente com todas as suas inter-relações e ainda os “interesses humanos atuais e futuros, que reclamam proteção erga omnes”.94 Baseado nessa forma de relação o ambiente pode ser considerado sujeito e objeto do direito, afirmação esta que pode ser recebida com certa estranheza, contudo podemos lembrar que no direito encontramos “muitos sujeitos que não são humanos, as pessoas jurídicas, as universalidades de direito, os órgãos formais destituídos de personalidade jurídica, e outros”.95 Enquanto sujeito de direito o ambiente “é uma universalidade de bens naturais e culturais que são [...] adjetivações da relação natureza/cultura”;96 como objeto, “está representado por um conjunto de recursos naturais, renováveis e não renováveis, e pelo agir humano sustentado pela relação natural/cultural”.97 A preservação do ambiente mostra-se relevante e a produção normativa pode garantir condições para a continuidade e renovação de sistemas naturais promovendo um ambiente equilibrado e sustentável para as atuais e futuras gerações.98 Enquanto bem jurídico a ser tutelado, o ambiente recebe da visão ecocêntrica uma dignidade autônoma. O direito fixaria os limites da ação humana vedando arbitrariedades que possam impedir que a relação ecológica/ambiental seja interrompida. Uma tutela qualificada desta forma promove “a proteção jurídica da natureza por seu próprio valor, onde subjace [...] o Disponível em: <http://www.dombosco.com.br/faculdade/revista_direito/1edicao-2009/eos-4-2009.pdf>. Acesso em: 13 maio 2010. 92 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa : Instituto Piaget, 1995, p. 310311. 93 NAIM-GESBERT, Eric. Les dimensions scientifiques du droit de l'environnement: contribuition à l'etude des rapports de la science et du droit. Bruxelas: Bruylant; VUBpress, 1999, p. 29 apud MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antrpocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de direito ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, out./dez. 2004. p. 30. 94 MOLINARO, Carlos Alberto. Racionalidade ecológica e estado socioambiental e democrático de direito. Dissertação (Mestrado em direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre, 2006, p. 98. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=284>. Acesso em: 22 maio 2010. 95 Ibidem, p. 98. 96 Ibidem, p. 98. 97 Ibidem, p. 98. 98 Ibidem, p. 98. 18 respeito à vida em toda a sua manifestação [biótica-abiótica], e também, [...] a vida da natureza em si”.99 2.2 CRÍTICAS DO ECOCENTRISMO 2.2.1 Crítica do Ecocentrismo ao Antropocentrismo O ecocentrismo responsabiliza a visão antropocêntrica por dar ao homem o papel de dominador da natureza que dela pode usufruir sem limites uma vez que ele foi colocado em um pedestal e “[...] nenhuma cultura colocou o ser humano em pedestal tão elevado quanto a ocidental”.100 “Enquanto o humanismo supervalorizou a posição do ‘homem’ no universo, o mecanicismo coisificou e instrumentalizou a natureza não-humana.”101 Vivemos uma crise de paradigma. É na ausência de limites que o indivíduo se hipertrofia e consequentemente a crise ambiental se alicerça. Já não conseguimos discernir o que nos distingue do animal, do que tem vida, da natureza. Também não conseguimos discernir o que nos une a eles, vivendo também uma crise de vínculo.102 O modelo mecanicista nos impõe uma visão fragmentada da realidade, do conhecimento, seja do conhecimento dos outros ou de nós mesmos. A crise da civilização é também uma crise existencial, do indivíduo. A visão instrumentalizadora da natureza condiciona o comportamento humano de tal forma que à relação ser humano/ser humano é conferida a mesma dinâmica que é dada à relação ser humano/natureza, ou seja, a relação ser humano/ser humano tornar-se uma relação sujeito/objeto. O ser humano passa a ser coisa, é reificado. O homem não reconhece o outro e não se reconhece no outro. É um indivíduo em busca de “coisas” que lhe proporcionam satisfação. 103 Daí derivam também as formas de dominação exercidas por uma cultura sobre a outra, sobretudo da civilização ocidental antropocêntrica, como o domínio do europeu branco sobre os outros povos, o domínio do homem sobre as mulheres, preponderância das classes mais abastadas sobre as menos favorecidas, entre outros exemplos. Exposta dessa forma a crise ambiental supera a questão da crise ecológica, é uma crise de valores, é uma crise de uma sociedade e sua cosmovisão. A questão ambiental também engloba preocupações sociais visto que bilhões de pessoas da comunidade global têm necessidade de desenvolvimento socioeconômico para ter acesso ao ambiente sadio que viabilize o desenvolvimento humano e uma vida digna. Como é ilusório pensar que toda a humanidade poderá viver conforme os padrões do primeiro mundo, a humanidade, levada pelo 99 Ibidem, p. 101. NETO, Aristides Arthur Soffiati. Ecossistemas aquáticos: antropocentrismo, biocentrismo e ecocentrismo. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 10, n. 37, jan./mar. 2005, p. 204. 101 Ibidem, p 205. 102 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa : Instituto Piaget, 1995, p. 9. 103 MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de direito ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, out./dez. 2004. p. 35-36. 100 19 desenvolvimento da ética do meio ambiente, deverá adotar mudanças no estilo de vida e de civilização.104 Para aqueles que pensam a questão ecológica [...] tal ética somente poderá surgir a partir da superação da visão de mundo que tentou reduzir todos os seres à condição de objetos cujo valor reside no lucro que podem produzir. Essa ética [...] implica uma mudança radical em nossa maneira de compreender a nossa identidade enquanto humanos e o nosso lugar no Cosmos, o nosso lugar entre os outros seres.105 As propostas do liberalismo, do conservadorismo e do socialismo por uma perspectiva ecocêntrica são variantes de um mesmo projeto político iluminista, que por sua vez era uma versão sofisticada do mecanicismo, expressam “um naturalismo mecanicista, reducionista, dualista e utilitarista que tratava os ecossistemas como entidades inanimadas postas a serviço das antropossociedades”.106 Mesmo considerando outros elementos da crise do paradigma atual, a questão ambiental é que “colocou em xeque os pensamentos e as ações humanas, do foro íntimo até os grandes sistemas em vias de globalização”.107 Podemos dizer então que a maior contradição do antropocentrismo ocidental é a longa guerra travada contra a natureza não-humana. “Da guerra de todos contra todos, presumida por Hobbes, passou-se ao que Michael Serres chamou de guerra de todos contra tudo.”108 2.2.2 Crítica do Ecocentrismo ao Personalismo No que diz respeito ao personalismo o ecocentrismo considera que sua matriz notamente judaico-cristã separa o homem e a natureza da mesma forma que acontece na visão antropocêntrica. Assim o personalismo também vê o homem como superior hierarquicamente em relação aos animais, reforçando a idéia de uso instrumental da natureza. Ao contrário de uma perspectiva holística, o personalismo nega que o princípio primordial dos fenômenos do mundo é imante à natureza. Este princípio primordial estaria fora da natureza, seria então transcendente. Assim os seres humanos não são vistos como parte do mundo natural. Foram colocados por Deus 104 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2. ed. São Paulo: revista dos tribunais, 2001, p. 85. 105 Nancy Mangabeira Unger, O Encatamento do Humano: Ecologia e Espiritualidade. São Paulo: Loyola, 1991, p. 71. apud MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de direito ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, out./dez. 2004. p. 36. 106 NETO, Aristides Arthur Soffiati. Ecossistemas aquáticos: antropocentrismo, biocentrismo e ecocentrismo. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 10, n. 37, jan./mar. 2005, p. 205. 107 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2. ed. São Paulo: revista dos tribunais, 2001, p. 85. 108 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1974; SERRES, Michel. O contrato natural. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1991 apud NETO, Aristides Arthur Soffiati. Ecossistemas aquáticos: antropocentrismo, biocentrismo e ecocentrismo. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 10, n. 37, jan./mar. 2005, p. 205. 20 acima dos outros seres. “O que importa, acima de tudo, é o relacionamento com Deus e não com o mundo natural.”109 Aquilo “que é tido como sagrado tem mais probabilidade de ser tratado com respeito 110 e cuidado” e negando essa característica à natureza ela está aberta à exploração. Deus está acima e separado do mundo e ao homem foi conferido o direito de usar a natureza conforme seus interesses.111 Com a irrupção do monoteísmo hebraico e seu desdobramento no cristianismo e no islamismo, foi dado o passo inicial para a dessacralização da natureza na acepção atual. [...] tudo se passou como se a divindade incriada e criadora absorvesse a sacralidade do mundo e a concentrasse na sua pessoa absoluta, onipotente, onipresente e onisciente.112 Daí em diante, Deus e Natureza tornam-se realidades distintas e separadas, ocupando o ‘homem’ posição intermediária entre ambas. Lançam-se, assim, as raízes do teocentrismo-antropocentrismo e da história.113 Para o ecocentrismo, o personalismo além de separar o ser humano e a natureza, fundamenta sua racionalidade em dogmas que foram superados pelas descobertas científicas e pelo método científico. Assim é um retrocesso à medida que coloca o homem acima dos outros seres, nesse sentindo assumindo uma visão antropocêntrica, sem aceitar os benefícios alcançados pela humanidade com as descobertas científicas. 3 ECOLOGISMO PERSONALISTA “[...] el hombre es un don que ama.[...] El hombre es imago Dei en cuanto ama.”114 O ecologismo personalista é um pensamento de inspiração monoteísta que considera a relação entre homem e natureza como uma relação de colaboração, simbiótica, de cooperação. O ser humano é superior aos outros seres, mas continua sendo dependente do meio em que vive. O homem está dentro da natureza, depende dela, porém ao mesmo tempo é dotado de uma superioridade própria, de uma perfeição que o distingue dos outros seres. O homem é corpo pessoal,115 “formado de la tierra y al mismo tiempo como imagen de Dios”.116 109 PONTING, Clive. Uma história verde no mundo. Tradução de: Ana Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 241. 110 MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de direito ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, out./dez. 2004. p. 37. 111 PONTING, Clive. Uma história verde no mundo. Tradução de: Ana Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 241. 112 PAPAIOANNOU, Kostas. La consecration de l’histoire. Paris: Champ Libre, 1983; ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Lisboa: Livros do Brasil, s/d; e Aspecto do mito. Lisboa: Edições 70, s/d apud SOFFIATI, Arthur. A natureza no pensamento liberal clássico. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 5, n. 20, out./dez. 2000, p. 161. 113 SOFFIATI, Arthur. A natureza no pensamento liberal clássico. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 5, n. 20, out./dez. 2000, p. 161. 114 BALLESTEROS, Jesús. Ecologismo Personalista. Madri: Tecno, 1995, p. 98. 115 Ibidem, p. 35-36. 21 Persona, do latim significa máscara. Até o advento do cristianismo persona era a máscara que os atores usavam para ampliar a voz e se comunicar com o público, designando também um papel na peça teatral. É com o cristianismo que o homem é percebido em uma nova dimensão, a dimensão da pessoa humana. A formulação do conceito de pessoa foi decisivamente influenciada pelos estudos ocorridos por ocasião de disputas teológicas que versavam sobre os mistérios da Trindade e da Encarnação.117 O uso da palavra persona para designar o indivíduo humano foi introduzido pelo Direito Romano. Mas a pesquisa do conceito de pessoa como ente distinto do fisiopsiquismo humano (ausente em Aristóteles e na demais Filosofia grega) é iniciativa da filosofia patrística. A palavra personalitas, bem como o correspondente conceito, é criação exclusivamente escolástica.118 A mais conhecida definição de pessoa nos é dada por Severino Boécio onde diz que “persona est rationalis naturae individua subtantia” (“a pessoa é uma substância individual de natureza racional”).119 Para São Tomás “a pessoa significa o que de mais nobre há no universo, isto é, o subsistente de uma natureza racional”.120 Substância é aquilo que é em si e não em outra coisa. É essencialmente independente; para subsistir não depende de estar em outro sujeito. A referida independência chamamos de subsistência. Subsistência, então, é a aptidão para ser sem dependência.121 O ser humano que é um composto psicossomático, corpo e psique (ou alma), dispõe da própria natureza para livremente realizar-se. A pessoa, ser em si, além de corpo e alma tem uma personalidade, que é própria de cada ser humano. Pessoa é ser humano em relação, precisa do outro para perceber-se como pessoa. A pessoa é um fim em si mesmo e reconhecendo a si mesmo e ao outro como pessoa, reconhece que o outro é um fim em si mesmo. Então o outro, que é pessoa, não pode ser coisa. A relação entre pessoa com os outros tem essencialmente o caráter de diálogo. Na relação pessoa e coisa imperam a posse, a utilização, fatalidade, arbítrio. Quando estas características se fazem presente na relação entre pessoas, na relação eu-tu, a pessoa já não é mais pessoa. O outro passa a ser uma coisa. Interrompe-se a possibilidade de diálogo, de descoberta do outro e conseqüentemente do ser humano enquanto pessoa.122 116 Ibidem, p. 13. MONDIN, Battista. O homem: quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. Tradução de: R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, revisão de: Danilo Moraes. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 285. 118 MORAES, Walter. Concepção Tomista de Pessoa. Um contributo para a teoria do direito da personalidade. Revista de Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 1, n. 2, abr./jun. 2000, p. 191. 119 BOÉCIO, Contra Eutichen et Nestorium apud MONDIN, Battista. O homem: quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. Tradução de: R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, revisão de: Danilo Moraes. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 286. 120 AQUINO, São Tomás. Summa Theologiae. I, 29, 3 apud MONDIN, Battista. O homem: quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. Tradução de: R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, revisão de: Danilo Moraes. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 286. 121 MORAES, Walter. Concepção Tomista de Pessoa. Um contributo para a teoria do direito da personalidade. Revista de Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 1, n. 2, abr./jun. 2000, p. 191-192. 122 MONDIN, Battista. O homem: quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. Tradução de: R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, revisão de: Danilo Moraes. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 288-294. 117 22 A pessoa se distingue das coisas. Tem liberdade e dessa liberdade decorre a capacidade de conhecer e transformar a natureza. É por causa da liberdade que o homem consegue aquilo que os animais obtêm mediante os instintos. A liberdade é condição essencial que faz do homem um ser cultural: é produto da natureza e da história ao mesmo tempo. Sendo o homem um ser cultural, a função da cultura é promover a realização da pessoa. O homem transforma o ambiente de modo que o entorno colabore para o desenvolvimento das suas potencialidades. As transformações do ambiente realizadas pelo homem (transformações culturais) visam a realização da pessoa.123 Abrangendo essas características podemos considerar como conceito de pessoa humana A pessoa humana deve ser considerada como um ser concreto, visto que existe de fato. Ela é, igualmente, um ser individual, porque é um todo em si mesmo, não podendo ser considerada como mero fragmento de um todo maior. Não se pode olvidar que a pessoa humana tem raciocínio próprio, peculiar, estando apta para autodeterminar-se nos atos da vida pessoal, capacitada a viver como bem entender e habilitada a conhecer a verdade por si mesma, por intermédio da livre razão. Por derradeiro, deve-se considerar a pessoa humana como um ser social, que só consegue desenvolver-se na sua plenitude, vivendo em comunidade com seus pares (outras pessoas).124 Resta saber qual característica define o homem como pessoa e os animais não. Qual é o “algo mais” que o diferencia? O que possibilita o homem fazer tantas transformações e compreensões? O que distingue as pessoas das coisas, no nível fenomelógico, mais profundamente é a capacidade de comunicação.125 O homem é pessoa porque é dotado de um modo de ser que supera nitidamente o modo de ser das plantas e dos animais [...]. Ora, o que é absolutamente peculiar ao seu ser com relação ao das outras coisas deste mundo é que, não obstante a sua autonomia no ser, não obstante a sua clausura ontológica, não obstante a sua força individual, ele conserva uma extrema abertura intencional (tanto no conhecer quanto no querer), pela qual é capaz de toda sorte de comunicação com as coisas, com os outros, com Deus. Observamos, também, que graças a tal abertura fundamental o homem se autotranscende sistematicamente em todas as direções.126 Para Ballesteros a característica que torna o homem superior é a intencionalidade, sua capacidade de projetar, sua diferença dos outros seres é procedente do reconhecimento de uma 123 MONDIN, Battista. Definição Filosófica da Pessoa Humana. Tradução de: Ir. Jacinta Turolo Garcia. Bauru: EDUSC, 1998, p. 14-17. 124 PALMA, Anuê do Canto. O direito de acesso e exercício de cargos públicos pelos adventistas do sétimo dia: privilégio ou justiça. Monografia (Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais) – Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 15. Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2007_1/anue_canto.pdf>. Acesso em: 1 jun. 2010. 125 MONDIN, Battista. O homem: quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. Tradução de: R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, revisão de: Danilo Moraes. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 296. 126 Ibidem, p. 296-297. 23 primeira Pessoa criadora, que o criou como imago Dei. Deus dotou o homem de um pensamento que o torna capaz administrar a realidade para o bem do homem e da natureza.127 Antes de proteger os direitos dos animais, o mais razoavél seria criar condições de vida que colaborem para a realização das pessoas. “Lo esencial no es la defensa de los derechos de los seres no humanos frente a los humanos, sino la garantía de condiciones de vida dignas para todos los seres humanos.”128 Quatro elementos principais constituem a pessoa, a saber, autonomia quanto ao ser, autoconsciência, comunicação e autotranscendência. Para Mondin o elemento que melhor ilustra a grandeza da pessoa humana é a autotranscendência. Esta é sinal de espiritualidade e espiritualidade pertence somente ao homem. Esta seria, portanto, “a razão profunda pela qual o homem é pessoa e as coisas não o são: o homem é dotado de espírito, enquanto as coisas dele são carentes”.129 Outra propriedade da autotranscendência é a dinamicidade. Ela nos mostra que o ser humano não algo que nasce pronto e acabado e sim, é uma imensa gama de possibilidades, a pessoa é em grande medida uma conquista. “[...] é justamente a autotrancendência que leva o homem continuamente para além do que já é e possui, propondo-lhe sempre novos objetivos e novas conquistas.”130 O ser humano é livre para cuidar dos outros seres e ao mesmo tempo é dependente dos outros seres. Somente o homem tem deveres e obrigações devido a sua dupla condição de ser livre e dependente.131 A principal função da ética ambiental para o ecocentrismo reside na consciência do ser humano em saber que proteger a natureza é proteger a si mesmo. Para que o homem seja superior ao resto da criação é necessário que ele preserve, cuide, administre o ambiente sabendo que ao cuidar do entorno está cuidando de si mesmo.132 O ser humano tem o direito de transformar as coisas, todavia não tem o direito de destruí-las. Ao destruí-las não projeta o resultado de sua ação ao futuro. Esquece que ao agir de maneira que degrada o ambiente compromete a relação com os outros e renuncia aquilo que o torna superior ao outros animais. Age sem conhecer, ou ignora o que conhece, inviabilizando comunicações inclusive futuramente. Eventualmente pode também usar a razão para alcançar satisfações efêmeras que da mesma forma comprometem o futuro e a harmonia da relação com os outros. Essa situação se encontra nas relações de consumo que não poucas vezes atendem apenas a caprichos, manifestando uma crescente tendência consumista. A proteção dos indivíduos em situação de vulnerabilidade econômica é um compromisso do ecologismo personalista. Neste entendimento se afirma a responsabilidade dos países do Norte, mais desenvolvidos, e que 127 BALLESTEROS, Jesús. Ecologismo Personalista. Madri: Tecno, 1995, p. 35. , Ibidem,p. 37. 129 MONDIN, Battista. O homem: quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. Tradução de: R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, revisão de: Danilo Moraes. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 297-298. 130 Ibidem, p. 298. 131 BALLESTEROS, Jesús. Ecologismo Personalista. Madri: Tecno, 1995, p. 37-38. 132 BALLESTEROS, Jesús. Ecologismo Personalista. Madri: Tecno, 1995, p. 39. 128 24 divulgam e promovem um padrão de consumo que não colabora para um desenvolvimento sustentável.133 A superação do darwinismo social também é uma das prioridades do ecologismo personalista, visando afastar a possibilidade do retorno dos fascismos. Assim também com a superação, baseado na solidariedade que nasce da piedade familiar, do nacionalismo do Estado. O objetivo é que uma pessoa considere o outro como um fim e não como um meio.134 A família é a primeira estrutura a favor da ecologia humana, é nela que se revela que o homem é um dom para si mesmo, dotado de uma estrutura dada por Deus, assim como a natureza e os recursos naturais. Tudo isso nos foi dado, mas não sem propósito, foi dado para ser bem empregado conforme o plano de Deus, e não destruído. Neste sentido nos assemelhamos com a natureza visto que ambos são dons com finalidade própria. Nos diferenciamos da natureza pela capacidade de amar. O homem é um dom que ama, e neste sentido além de nos diferenciarmos da natureza, nos assemelhamos a Deus. O homem é imago Dei enquanto ama.135 3.1 AÇÃO MORAL FACE À NATUREZA NO ECOLOGISMO PERSONALISTA Para o personalismo a ação moral com relação à natureza considera os interesses da pessoa humana: ser em si, concreto, individual, de natureza humana, com personalidade própria e necessidade de relação e reconhecimento mútuo (alteridade), capaz de exercer sua liberdade, descobrir a verdade por meio da livre razão136 e dispor dos recursos naturais para a realização própria e dos outros que compõem o corpo social (bem-comum). Por ter autoconsciência, autonomia quanto ao ser, comunicação e autotranscendência, a pessoa desenvolve um modo de ser totalmente diverso dos outros seres. Por ter a capacidade de conhecer o universo de forma profunda e de transformá-lo, o homem tem direito de usufruir os recursos naturais. O ecologismo personalista considera que “la naturaleza está al servicio del hombre, dado que el hombre es el único ser capaz de proyectar, de decir no (Scheler), de conecer su finitud y su muerte, y de pensar (Pascal), es el único ser dotado de intencionalidad (Brentano, Husserl).” 137 Só o homem tem direitos e deveres visto ele ser livre e dependente. Mas é importante notar que o homem tem natureza e está dentro da natureza, é parte dela. A natureza possui um valor intrínseco, porém dentro dela está o ser humano (pessoa humana) que tem um valor intrínseco ainda maior. Das suas potencialidades decorrem seus deveres em relação à natureza. Tem o dever de cuidar, proteger e administrar, por isso o ser humano é tão precioso, tem 133 Ibidem, p. 42. Ibidem, p. 42. 135 Ibidem, p. 98. 136 PALMA, Anuê do Canto. O direito de acesso e exercício de cargos públicos pelos adventistas do sétimo dia: privilégio ou justiça. Monografia (Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais) – Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 15. Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2007_1/anue_canto.pdf>. Acesso em: 1 jun. 2010. 137 BALLESTEROS, Jesús. Ecologismo Personalista. Madri: Tecno, 1995, p. 37. 134 25 capacidade de transformar de maneira ordenada o seu ambiente. A pessoa é responsável e dependente da natureza, ao mesmo tempo. Da capacidade de transcendência vem o outro motivo para tamanha valorização do ser humano. A pessoa transcende o mundo das coisas, por isso é sagrada. Entre todos os seres que compõem a natureza apenas o homem transcende, e esse sinal de espiritualidade é próprio somente do ser humano. 3.2 CRÍTICAS DO ECOLOGISMO PERSONALISTA 3.2.1 Crítica do Ecologismo Personalista ao Antropocentrismo A primeira crítica ao antropocentrismo pelo personalismo é que enquanto este vê o homem dentro da natureza, aquele olha o homem apartado dela. Para o antropocentrismo o indivíduo está separado da natureza, o conceito de natureza é construído sem alcançar o ser humano. Para o personalismo a pessoa humana integra e depende da natureza. Participa da ordem cósmica onde tudo o que existe tem um lugar a ocupar e uma função a cumprir. Ambas as perspectivas consideram que a natureza está a serviço do homem e ambas consideram o ser humano como centro, porém apenas o personalismo confere à natureza um valor em si e ao homem (que tem um valor ainda maior) que está dentro dela um dever de guardá-la, protegê-la.138 Desta forma poderíamos dizer que existe um antropocentrismo enquanto gênero que engloba espécies de antropocentrismos. Este gênero que podemos chamar de antropocentrismo em sentido amplo, abarca o antropocentrismo em sentido estrito139 e o personalismo. Estas duas espécies de antropocentrismo se diferenciam pela concepção de ser humano: para o antropocentrismo em sentido estrito o ser humano é considerado enquanto indivíduo; para o personalismo o ser humano é considerado enquanto pessoa humana. O indivíduo tem sua definição em relação com a autoconsciência. “O homem tem uma garantia de ser si mesmo, de existir efetivamente, de não ser um puro sonho, mas uma autêntica realidade, porque pensa a si mesmo: ‘Cogito, ergo sum!’ O eu consiste na autoconsciência.”140 A natureza racional do homem o distingue já como fim em si mesmo.141 Desta forma “[...] el hombre se ve distanciado de la naturaleza, y también respecto a su propio cuerpo. Éste es um objeto, una res extensa, frente al verdadero sujeto, que es el espíritu, la res cogitans.”142 O ser humano e a natureza estão tão apartados que o corpo, visto como natureza, não é sujeito, é objeto. Conclui-se então que “La relación entre ambas es una relacion de 138 BALLESTEROS, Jesús. Ecologismo Personalista. Madri: Tecno, 1995, p. 35. Essa forma de antropocentrismo foi abordada no capítulo um do presente trabalho. Ainda que sejam possíveis outras subdivisões dentro do antropocentrismo, adotamos uma visão mais generalista no primeiro capítulo, discorrendo sobre os elementos comuns às possíveis variações, enquanto no corrente capítulo a análise é mais específica. 140 MONDIN, Battista. O homem: quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. Tradução de: R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, revisão de: Danilo Moraes. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 287. 141 Ibidem, p. 287. 142 BALLESTEROS, Jesús. Ecologismo Personalista. Madri: Tecno, 1995, p. 14-15. 139 26 subordinación, de dominio. El sujeto es dueño del objeto, la naturaleza es un puro tener al servicio del sujeto.”143 A pessoa humana tem sua definição em relação a autotranscendência. É o traço mais característico da personalidade, porém não o único. Podemos definir pessoa como “um indivíduo dotado de autonomia quanto ao ser, de autoconsciência, de comunicação e de autotranscendência”.144 O homem é dotado de espírito. O espírito é a sua substância, é onde o homem consegue exercer em plenitude sua liberdade. É o que lhe faz ir além daquilo que já é, além das conquistas terrenas partindo para algo maior, “consiste na realização dos mais elevados ideais pessoais mediante o exercício do poder pessoal”.145 Sendo subsistente na ordem do espírito o ser humano é, enquanto subsistente, extremamente fechado, um mistério, e deve ser reconhecido como tal. Mas enquanto espírito é extremamente livre, capaz de uma abertura imensurável, de comunicar-se com os outros espíritos.146 Mas o homem não é apenas espírito. É um espírito encarnado. “A subsistência espiritual do homem é essencialmente, substancialmente ligada à matéria.”147 A pessoa humana é seu corpo também. “[...] a alma separada del cuerpo no puede ser considerada persona.”148 “[...] o eu pessoal é um todo vivente de experiência consciente, cujas partes não têm nenhuma existência isoladas do todo e cuja natureza é ser consciente como um todo.”149 Desta forma a pessoa faz parte da natureza mas se distingue dela ao transcender e a transcendência é o sinal do espírito no homem. En tanto individuo, cada uno de nosotros es un fragmento de uma especie, una parte de este universo, un punto singular de la inmensa red de fuerzas y de influencias cósmicas, étnicas, históricas, a cuyas leyes está sometido; está sujeto al determinismo del mundo físico. Pero cada uno de nosotros es también una persona, y en cuanto tal no está sometido a los astros, subsiste entero por la subsistencia misma del alma espiritual, y ésta es en él um principio de unidad creadora, de independencia y liberdad.150 Como o antropocentrismo em sentido estrito vê a natureza como objeto, mantém uma relação de dominação, como se ela fosse sua escrava, não reconhece a dependência do ser humano com relação à natureza e mais que isso, não considera o ser humano em todas as suas dimensões. 3.2.2 Crítica do Ecologismo Personalista ao Ecocentrismo 143 Ibidem, p. 15. MONDIN, Battista. O homem: quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. Tradução de: R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, revisão de: Danilo Moraes. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 297. 145 Ibidem, p. 295. 146 MONDIN, Battista. Definição Filosófica da Pessoa Humana. Tradução de: Ir. Jacinta Turolo Garcia. Bauru: EDUSC, 1998, p. 26. 147 Ibidem, p. 26. 148 AQUINO, Tomás apud BALLESTEROS, Jesús. Ecologismo Personalista. Madri: Tecno, 1995, p. 36. 149 MONDIN, Battista. O homem: quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. Tradução de: R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, revisão de: Danilo Moraes. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 295. 150 MARITAIN, Jacques. Revue Thomiste, p. 248 apud MEINVIELLE, Julio. Critica de la Concepcion de Maritain Sobre La Persona Humana. Buenos Aires: Nuestro Tiempo, 1948, p. 26. 144 27 Para o personalismo o ecocentrismo se manifesta em diferentes correntes que se assemelham em ao menos uma questão: todas consideram a natureza como dominadora absoluta do homem. Negam assim a liberdade ao ser humano. Não reconhecem que o ser humano é a principal riqueza biológica quando deixam de estabelecer diferenças entre o homem, animais e vegetais. CONCLUSÃO Primeiramente nota-se que a divisão utilizada nos capítulos, a saber, antropocentrismo, ecocentrismo e personalismo, não esgota possíveis variações terminológicas que podem ocorrer no esforço de classificar as referidas teorias. Foram adotadas as denominações mais recorrentes nos textos e artigos pesquisados. No que tange as diferenças, podemos dividir as teorias em dois grandes grupos: antropocentrismo e ecocentrismo. Enquanto no antropocentrismo, em regra geral, o homem descreve o mundo baseado em seus interesses e dá à natureza valor instrumental, o ecocentrismo busca uma nova ética, uma ética da natureza, onde tentando superar o paradigma antropocêntrico atribui à natureza um valor próprio. No ecocentrismo a natureza é um fim em si mesma. O avanço tecnológico e científico serve como base à teoria antropocêntrica para que os problemas ambientais sejam superados, entre eles, a finitude dos recursos naturais. O desenvolvimento industrial e econômico trata de atender a demanda das necessidades humanas. A crença nas potencialidades humanas é tão intensa que por meio de novas descobertas pretende-se reduzir os prejuízos já causados ao meio ambiente, prevenir futuros prejuízos e manter a produção industrial de forma que atenda aos anseios dos indivíduos sem comprometer o acesso a um ambiente saudável para as gerações futuras. Recentemente a criação de células artificiais em laboratório renovou a esperança da sociedade em restabelecer um ambiente saudável e equilibrado, sobretudo em acidentes com derramamento de óleo ao mar.151 Ocorre que mesmo que se concretize a esperança em relação a novos meios de recuperação de ambientes degradados a natureza continua tendo um caráter instrumental para o antropocentrismo. Assim na visão antropocêntrica o conceito de natureza tem uma tendência de não abarcar o ser humano, são 151 Sobre a criação de células artificiais em laboratório e a proteção ao meio ambiente: “A bomba-relógio do aquecimento global poderia ser desmontada com o uso das células artificiais. Para isso, seria necessário desenvolver um genoma que programasse as bactérias a absorver o dióxido de carbono, responsável pelo aquecimento. Uma possibilidade é que essas bactérias sejam programadas para quebrar as moléculas de gás carbônico, devolvendo-as ao ambiente na forma de carbono e oxigênio. Os pesquisadores explicam que as enzimas – proteínas que aceleram reações químicas – sintéticas poderiam permitir que se apressasse reações, como a degradação de manchas de óleo no oceano.” MELO, Itamar. Revolução das células: a descoberta que gera esperança. Zero Hora, Porto Alegre, 13 jun. 2010. Disponível em: < http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2912958.xml&template=3898.dwt &edition=14739§ion=1015>. Acesso em: 10 maio. 2010. 28 coisas distintas onde a relação resulta de uma harmonia construída por um altruísmo do ser humano. Ao ecocentrismo, na busca de um ambiente equilibrado, cabe a tarefa de conscientizar a sociedade sobre o valor intrínseco da natureza que deve ser tratada então como um fim em si mesma e não instrumentalmente, como um meio. Mesmo com a descoberta de novos instrumentos para a recuperação e proteção do ambiente, devido ao valor atribuído à natureza, o uso dos bens ambientais não pode ser centrado apenas nos desejos humanos e sim na interpretação da importância dos entes em relação que compõem o ambiente. Após esses dois grandes grupos (antropocentrismo e ecocentrismo), foi analisado o personalismo ecologista. O personalismo ecologista, a princípio, se assemelha ao que chamamos de antropocentrismo, visto que também considera que a natureza tem um valor instrumental, colocando o homem acima dos outros seres que não possuem a mesma capacidade de abstração e por conseqüência, não possuem a mesma capacidade de produzir cultura e de exercer liberdade, se afastando dos instintos. Desta forma não estaria equivocado concluir que o personalismo pode ser classificado como uma espécie do gênero antropocêntrico. Ocorre que mesmo sendo o personalismo ecologista uma tendência considerada antropocêntrica, há nele elementos que o diferenciam do antropocentrismo em sentido estrito e outros elementos que o aproximam do ecocentrismo, sem que ele deixe de integrar o grande grupo do antropocentrismo. A diferença entre o ecologismo personalista e o antropocentrismo é que o personalismo vê o ser humano como guardião da natureza. Mesmo que o homem seja diferente dela por estar em uma situação de “oposição irredutível” em relação a tudo aquilo que não é pessoa, ele é parte da natureza. O ser humano transcende ao mundo das coisas, todavia reconhece a sua dependência da natureza. A livre razão confere ao homem a capacidade de reconhecer-se como diferente da natureza e ao mesmo tempo dependente e responsável por ela. Os recursos naturais devem ser utilizados de tal forma que colabore para o bem comum; devem ser utilizados de tal maneira que auxiliem os grupos e seus respectivos membros a atingirem uma situação de realização, sempre considerando que a pessoa humana necessita da sociedade para realizar-se. Daí decorre a necessidade da pessoa humana reconhecer que tem um débito com a sociedade, é devedora das condições que tornam possível a existência humana, inclusive das condições ambientais. Esse compromisso da pessoa humana com a sociedade e conseqüentemente com o meio ambiente é um ponto onde o personalismo ecologista aproxima-se da teoria ecocêntrica. O personalismo acredita que cada pessoa tem um lugar a ocupar e uma função para cumprir dentro do “kosmos”, sempre no intuito de promover a harmonia. Na verdade isso não vale somente para as pessoas, vale para tudo o que existe. Onde se conclui que tudo o que existe tem um lugar e uma função a cumprir dentro do “kosmos” e todos os componentes desse “kosmos” exercem alguma função para a promoção da harmonia. Quando o personalismo considera que todos os elementos que compõem o “kosmos” têm alguma função ele está conferindo à natureza um valor, uma importância, e assim, aproxima-se do ecocentrismo sem 29 deixar de diferenciar-se deste quando admite que o ser humano tem um caráter sagrado que o torna um ser especial. Por fim, para responder a pergunta “como devo agir diante da natureza” é necessário saber além de o que é natureza, quem é o agente. Mais que isso, é preciso saber o que ele é. A relação entre homem e natureza receberá diferentes exigências éticas conforme a resposta que damos à pergunta: quem é o homem? Posteriormente podemos questionar: o que é natureza (para o homem)? E como o homem deve agir em relação à natureza? Conforme as respostas podemos enquadrar a ação devida como antropocêntrica ou ecocêntrica. Conclui-se que a tutela do meio ambiente se dará em razão do valor instrumental da natureza ou do valor em si conferido à natureza, o que não impede que posteriormente outras especificidades sejam constatadas e criem outras subdivisões dentro dos grupos maiores de pesquisa. REFERÊNCIAS ACOT, Pascal. História da Ecologia. Tradução de: Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Campus, 1990. 212 p. ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental: uma abordagem conceitual. 1. ed. 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