O APRENDIZADO DA LEITURA NO BRASIL DO SÉCULO XIX Francisca Izabel Pereira Maciel Ceale/FaE/UFMG [email protected] Na História do Ensino no Brasil, as Primeiras Cartas, ou as Cartinhas destinadas ao ensino da leitura e da escrita, foram produzidas em Portugal, e chegou até nós no final do século XVI. Entretanto, são esparsas as informações sobre o material didático destinado a alfabetização da população brasileira entre os séculos XVI e século XVIII. Essa lacuna, pode em parte, ser explicada pelo alto índice de analfabetismo no país, retomando os dados levantados por Lawrence Hallewell, (1985) no ano de 1888 a população livre era de 12.950 milhões de pessoas, desses 258.302 estavam matriculados nas escolas primárias, ou seja apenas 0,2%; diante de percentagem tão medíocre tornava-se inviável produzir livros para um mercado inexistente. As pesquisas historiográficas presentes na literatura internacional são também produções recentes, de meados da década de 80. Entre os autores que têm ajudado a refletir sobre a história da alfabetização no Brasil, destacamos as contribuições de Harvey Graff (1990,1994) como um dos pioneiros a questionar a complexidade do fenômeno do alfabetismo; as relações de causa e conseqüência entre alfabetização e desenvolvimento econômico; a dificuldade de se definir e avaliar os critérios para a alfabetização. Além dos estudos de Graff, merecem também destaque as pesquisas realizadas por Havelock (1995), Goody (1987), Olson (1995) e Chartier (1996, 2002), que versam sobre as culturas orais e os efeitos sobre elas da introdução da cultura escrita e tipográfica. Destaca-se, ainda, Vinão Frago (1990,1993) que tem ampliado estudos sobre as culturas e as práticas escolares, incluindo o aprendizado da leitura e da escrita, como elementos que se articulam na configuração de um campo do saber pedagógico, no qual estará presente a produção de uma consciência individual e social de que a instrução é um fator importante de reordenamento social. Magalhães (1994) também nos ajuda a repensar a história da alfabetização no Brasil, a partir de seus estudos sobre a cultura escrita e o processo de escolarização em Portugal no antigo regime. Uma outra contribuição para as questões da história da alfabetização é o debate da relação entre escolarização e alfabetização em pesquisas realizadas por Jean Hébrard (1996, 1999). No Brasil começa a delinear-se uma crescente produção acerca da história da alfabetização. Para a análise da produção bibliográfica nacional, priorizo aqui os resultados de pesquisas de autores brasileiros que vêm desenvolvendo trabalhos sobre a aprendizagem inicial da leitura e da escrita. As teses e dissertações na perspectiva histórica, identificadas na pesquisa anteriormente mencionada - Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento - compõem basicamente o conjunto de pesquisas históricas no Brasil sobre o tema. É, como já foi dito, uma produção pequena, se comparado ao total de teses e dissertações sobre alfabetização, o que demonstra o interesse ainda incipiente pela abordagem histórica na área da alfabetização. Esse interesse pode ser explicado por vários fatores, entre eles, a ampliação de uso, pelos historiadores, de fontes primárias tais como: relatórios de presidentes de províncias, de inspetores, de diretores, solicitações de pedidos e remessas de materiais escolares e os próprios objetos escolares como as cartilhas, os cadernos de alunos e professores e as práticas que envolvem o aprendizado da leitura e da escrita . Juntamente à ampliação das fontes, surgem novas abordagens, sobretudo graças ao referencial da história cultural, que traz a possibilidade de relacionar os usos e funções sociais do aprendizado da escrita aos diferentes contextos sociais e, desse modo, recuperar práticas culturais relativas à leitura e às suas sociabilidades - formas de produção, de circulação, de modos de recepção de textos.(Chartier, 1996). No conjunto das teses e dissertações sobre alfabetização, numa perspectiva histórica, três delas têm como foco o Estado de São Paulo: Dietzsch (1979), Mortatti (1997) e Carvalho (1998); as demais têm como foco o Mato Grosso - Amâncio (2000), Minas Gerais – Maciel (2001) e Rio Grande do Sul – Trindade (2001). Em síntese, pode-se dizer que nas pesquisas citadas, o período analisado corresponde às últimas décadas do século XIX, e a problematização em torno da alfabetização pode ser agrupada em dois eixos temáticos: os métodos de leitura e escrita e os manuais escolares - cartilhas. É óbvio que os dois eixos se entrelaçam, mas o que os diferencia é o foco de análise, segundo os questionamentos propostos pelo pesquisador. Além disso, não é possível problematizar os métodos de leitura e as cartilhas desvencilhadas dos movimentos reformistas. Pode-se dizer também que, excetuando a pesquisa de Dietzsch (1979), as demais autoras utilizam o referencial teórico da história cultural em suas pesquisas. Esse fato aponta a relação entre os novos aportes teóricos e a história da alfabetização. As pesquisas atuais sobre a história do livro, da escrita e da leitura estão, de certo modo, entrecruzadas com a história da alfabetização e, de modo mais próximo, com os manuais escolares. Não há como negar a necessidade do diálogo entre essas áreas de conhecimento, para não corrermos o risco de fazermos uma história multifacetada. Entretanto, diante do objetivo deste trabalho, enfatizaremos as pesquisas voltadas especificamente para os manuais de alfabetização. Podemos dizer que os livros didáticos, em especial, os manuais de iniciação à leitura (sejam eles silabários, cartas do abc, cartilhas, pré-livros), eram debatidos nas políticas educacionais. Além disso, é importante destacar o lugar dos professores nesse debate, não apenas como mero receptor e repassador de um saber a ser ensinado, sistematizado nos manuais, mas como potenciais autores. Atuando numa simbiose com os métodos de leitura, os manuais didáticos - cartilhas entram no clima e esquentam o debate em torno das questões metodológicas para a aprendizagem da leitura e da escrita. É significativo o número de relatórios que abordam a questão de se organizar compêndios com métodos mais racionais para a aprendizagem da leitura e da escrita. Os concursos e distribuição de prêmios para autores de livros escolares era uma prática comum desde o século XIX, conforme descreve o Art. 61 do Regulamento do Ensino Público e Particular - 1883:20: “São garantidos prêmios aos professores, que escreverem compêndios e livros para uso nas escolas. Esses prêmios serão concedidos pelo governo, depois de adotados os livros, a que se referem, e se farão efetivos, logo que a assembléia provincial houver concedido quota para este fim.” Os manuais escolares - cartilhas - podem ser tomados como uma conseqüência do problema para o atraso na instrução pública e/ou como uma possível solução. Sem entrar no mérito dessa questão, apontaremos aqui como os pesquisadores têm analisado as cartilhas como fonte ou como objeto, e os desdobramentos desses trabalhos para a historiografia da alfabetização. Falar da/sobre a história da alfabetização no Brasil no século XIX é algo que demanda do pesquisador um grande esforço, pois este é um trabalho que ainda carece de muitas pesquisas. Não só pelas dificuldades de acesso aos documentos, mas também pelo contexto. As poucas escolas existentes, o descaso de Portugal com relação a escolarização da população brasileira. A crônica de Machado de Assis , publicada originalmente em 15 de agosto de 1876 denuncia o alto índice de analfabetismo no império: “- A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns 9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância.” A relação entre livro didático e a nacionalização, no Brasil, remonta ao século dezenove. Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1996) demonstram que o “abrasileiramento dos livros didáticos só se torna realidade no fim do século XIX”(p.183). O processo de nacionalização é demandado por escritores nacionais, professores e outros intelectuais, numa luta pelo mercado editorial e também na esteira da reivindicação ideológica de um país que se quer independente. (Lajolo et al.:193). A necessidade de uma produção didática nacional sempre esteve em pauta, pois o fato de se ter uma lei que proibia a produção e circulação editorial nacional até 1808 era motivo de um certo descontentamento por parte de alguns intelectuais, professores e autores de livros didáticos que se viam obrigados a editar suas obras fora do Brasil, era comum a produção desse tipo de material na França, assim como temos autores brasileiros com seus livros editados em Portugal. Entre as dificuldades encontradas pelos autores brasileiros na produção e edição de seus livros podemos listar o auto custo dessa produção, assim como o controle do Estado mesmo após a liberação da produção no Brasil. No que diz respeito ao ensino das 1as letras podemos afirmar que mesmo após a liberacão de ediçao nacional durante muito tempo ainda foram largamente utilizados as cartilhas portuguesas juntamente com as primeiras cartilhas brasileiras. Ainda que o Estado visasse uma política uniformizaçào metodológica em torno dos livros didáticos, tal como descreve o Ato Adicional de 1834: Esta política visava, em última instância, executar um processo de uniformização de procedimentos técnicopedagógicos e, principalmente, de caráter ideológico. (...) Desde logo prevaleceu a concepção de que constituía tarefa inarredável do Estado a supervisão de manuais e compêndios usados no sistema escolar” (p. 28) o que se constatava na prática do aprendizado inicial da leitura e da escrita eram cartilhas com diferentes metodologias. Como exemplos podemos a utilização de cartilhas portuguesas, tais como “Método Português Castilho”, de Antonio Feliciano de Castilho, editada em 1846 e da Cartilha Maternal, do poeta português João de Deus, são um exemplo, na alfabetização, da importação de cartilhas. Lajolo e Zilberman (1996) informam que, no caso da produção de cartilhas nacionais, foram preteridos alguns autores brasileiros com formação específica na metodologia indicada, que não tiveram condições de publicar seus livros. No entanto, o trabalho de Mortatti (1997) permite verificar um movimento de produção de cartilhas nacionais, identificado no final do século XIX, que ocorre junto com a construção de um campo de estudos sobre a alfabetização e a produção de um pensamento pedagógico brasileiro sobre os métodos. Cabe citar aqui um trecho citado pela mesma autora, que retrata um debate da época feito no Rio de Janeiro, por Veríssimo, (1890) sobre o tema de livros nacionais: “neste levantamento geral que é preciso promover a favor da educação nacional, uma das mais necessárias reformas é a do livro de leitura. Cumpre que ele seja brazileiro, não só feito por brazileiro, que não é o mais importante, mas brazileiro pelos assumptos, pelos espírito, pelos autores trasladados, pelos poetas reproduzidos e pelo sentimento nacional que o anime.” P. 48 No campo de produção de cartilhas nacionais, podemos dizer que o ano de 1883 é um importante marco na história da produção de manuais didáticos. Nesse ano, realizou-se no Rio de Janeiro a Exposição Pedagógica com avaliação de vários manuais, entre eles merece destaque a 'Cartilha Nacional' e o 'Primeiro Livro de Leitura', ambos de autoria de Hilário Ribeiro (Pfromm Neto et el). Outros títulos e seus respectivos autores merecem ser mencionados:'Cartilha da Infância', de Thomas Galhardo, 'O Primeiro Livro de Leitura' de Felisberto de Carvalho, 'Méthodo Racional e Rapido para Aprender a Lêr sem Soletrar', de João Kopke. Produção nacional e nacionalismo/civismo nos textos de cartilha nem sempre ocorrem pari passu, tendo em vista a especificidade deste material que parece encontrar-se no “limbo” em relação a outros livros de leitura, quanto mais se aproxima dos métodos sintéticos, em que os textos são apresentados e forjados para ensinar as letras e sílabas, mais do que para passar outros conteúdos. Com relação aos manuais escolares, em especial os livros de iniciação à leitura (sejam eles silabários, cartas do abc, cartilhas, pré-livros), pode-se afirmar que são uma publicação especializada, com identidade própria, trazem um ideário e um modelo pedagógico para configurar o currículo e organizar a prática escolar. (Escolano, 1997:21) Segundo Choppin (1992), a expansão e a diversificação dos manuais escolares devemse, em grande parte, à vulgarização do Ensino Simultâneo, como metodologia que tinha como princípio racionalizar e uniformizar o sistema de instrução pública. Atuando numa simbiose com os métodos de leitura, os manuais escolares – as cartilhas - entram no clima e esquentam o debate em torno das questões metodológicas para a aprendizagem da leitura e da escrita. No século XIX, é significativo o número de Relatórios dos Presidentes de Província que argumentam a favor da organização de compêndios e do uso desse artefato por parte dos alunos e professores visando ao bom desempenho do ensino. Buscar a uniformidade do ensino por meio de uma metodologia se tornaria mais viável e racional se os princípios metodológicos pudessem ser materializados em um compêndio destinado aos alunos e professores. A falta de compêndios para o ensino da leitura é discurso recorrente nos relatórios do oitocentos, assim como não são raras as explanações sobre os gastos feitos pelo governo com os meninos pobres e com a compra de compêndios, e de diversas obras, cuja lição pode muito interessar não só aos discípulos, mas também aos professores . [Presidente Sebastião Barreto Pereira Pinto, 04/02/1841] Pode-se dizer que dois fatores contribuíram decisivamente para a escassez dos livros, em geral, nas escolas primárias: o alto custo dos livros e a escassez de livros de autoria nacional. Assim, na tentativa de sanar a falta de autores de manuais escolares, o governo provincial institui concursos e distribuição de prêmios para autores de livros escolares, conforme descreve o Art. 61 do Regulamento do Ensino Público e Particular de Minas Gerais(1883:20): São garantidos prêmios aos professores, que escreverem compêndios e livros para uso nas escolas. Esses prêmios serão concedidos pelo governo, depois de adotados os livros, a que se referem, e se farão efetivos, logo que a assembléia provincial houver concedido quota para este fim.[ Regulamento do Ensino Público e Particular MG1883:20] É importante destacar o lugar dos professores nesse debate, não apenas como meros receptores e repassadores de um saber a ser ensinado, sistematizado nos manuais, mas como potenciais autores. Os manuais escolares configuram, de certo modo, como uma estratégia didática fundamental para o desenvolvimento dos programas oficiais seguidos pelos professores (Escolano, 1997). Assim, é pertinente a atenção e o espaço que os manuais ocupam nos debates das políticas educacionais. As condições estabelecidas podem ser a configuração do currículo, a metodologia, os valores com que se quer configurar a cidadania do futuro. Podemos atribuir a ausência de autores brasileiros de cartilhas à introdução tardia da Imprensa Régia no Brasil, em 1808, ao alto custo de impressão e à política governamental. Tambara (2002) tem investigado e inventariado os manuais escolares das escolas de primeiras letras no Brasil, no século XIX. Entre as cartilhas portuguesas mais utilizadas no Brasil, podemos citar a Grammatica da lingua portuguesa com os mandamentos da Santa Madre Igreja, mais conhecida como a Cartinha de João de Barros (1539)1 e a Cartilha Maternal de João de Deus. Essa última é considerada como uma cartilha inovadora por apresentar os pressupostos do método analítico (Mortatti,1997). A Cartilha Maternal foi muito utilizada no Brasil e, em especial no Estado do Rio Grande do Sul. (Trindade, 2001,2004). As pesquisas de Mortatti (1997) e de Carvalho (1998) revelam que o movimento republicano possibilitou a expansão do ensino, e, consequentemente, o aumento do número de manuais escolares de autores brasileiros e a diversidade de títulos publicados. Para Maciel (2001, 2002) e Frade & Maciel (2002), os princípios pedagógicos escolanovistas propunham um rompimento com o modelo pedagógico tradicional. O novo modelo apresentava-se como uma verdadeira revolução copérnica na educação ao trazer para o centro da educação a criança. Esse ideário transformava os antigos métodos e materiais didáticos em obsoletos e, assim, os idealizadores reformistas incentivavam, em seus estados, a produção de manuais didáticos segundo os pressupostos metodológicos de uma escola ativa, levando-se em conta o processo natural de desenvolvimento da criança. Na verdade, os estudos sobre a história da alfabetização têm priorizado fazer inventários das cartilhas (Stamatto, 1996; Mortatti, 1997; Amâncio, 1998; Tambara, 2002; Maciel & Frade, 2002). Pesquisas dessa natureza é uma etapa necessária para a constituição do campo e do conhecimento, pois as cartilhas são representativas das práticas e dos ideários pedagógicos, assim como das práticas editoriais e, historicamente, vêm se constituindo como primeira via de acesso à cultura escrita. (Maciel, 2003) Uma abordagem histórica das cartilhas vem responder também a uma necessidade de compreender as práticas escolares da leitura e da escrita e as transformações das concepções de ensino-aprendizagem da alfabetização ao longo do tempo. Os pesquisadores Amâncio (1998), Maciel & Frade (2002,2004) e Trindade (2004), que buscam repertoriar as cartilhas2, têm não só contribuído para a identificação desse material produzido desde o século XIX, mas também possibilitado a realização de pesquisas comparativas de natureza editorial, metodológica e regional. Um trabalho dessa natureza é a pesquisa Cartilhas escolares: ideários, práticas pedagógicas e editoriais-1834-19973, que envolve pesquisadores de três Estados: Minas Gerais, Mato Grosso e Rio Grande do Sul. 1 As cartilhas portuguesas, em especial a Cartilha de João de Barros foi analisada pela profa. Carlota Boto . 2 Além dos pesquisadores do CEALE, que têm se dedicado às investigações de manuais escolares de alfabetização e língua portuguesa, e dos autores mencionados no texto, que desenvolvem pesquisas tematizando a história da alfabetização, destaco o grupo de pesquisadores da USP e PUC/SP, coordenado pela Profa. Circe Bitencourt e Kazumi Munakata, que desenvolvem pesquisas sobre manuais escolares em geral 3 Esta pesquisa conta com o financiamento do CNPq, é uma pesquisa interinstitucional sob a coordenação geral de Frade & Maciel. O repertório realizado por Frade & Maciel (2002,2004) leva à identificação de enfoques que precisam ser investigados; entre eles, destaca-se o sucesso editorial alcançado por alguns títulos. A estabilidade de determinadas obras por mais de um século e com várias edições precisa ser melhor investigada, assim como o número de Inspetores de Ensino, diretores de Liceus e Escolas Normais e professoras primárias que foram autores de manuais didáticos. O fato de se ter um número representativo de professores como autores nos fazem indagar quem são esses professores que, de certa forma, definiam e ordenavam os saberes, escolarizando-os e didatizando-os para uso dos demais professores do Brasil. Quem são os professores-autores das cartilhas cujas edições são longevas? Como explicar a semelhança entre vários títulos? Na tentativa de responder a essa questão, Escolano (1997:28) esclarece que a uniformidade e o plágio foram comportamentos habituais no setor de produção editorial de manuais escolares. Esses comportamentos tornam-se mais evidentes na produção de cartilhas, que apresentam uma linguagem textual reduzida em pequenas lições que podem ser de letras, sílabas, palavras e textos com um vocabulário reduzido. A longevidade de determinadas cartilhas é conseqüência da estabilidade de alguns títulos que tiveram inúmeras reedições sem apresentar nenhuma alteração. É comum encontrarmos cartilhas em que personagens e animais possuem o mesmo nome, cuja temática é semelhante, assim como as divisões das lições e os tipos de exercícios. A prática do plágio pode ser explicada em função do sucesso editorial alcançado por determinado título que, conseqüentemente, servirá de modelo para outros autores e editores. A importância do estudo das cartilhas para a história da alfabetização está no fato de que as cartilhas, independente de sua proposta metodológica, elas são concebidas com finalidade didática, diferentemente de outros livros que foram posteriormente didatizados (Escolano, 1997). As cartilhas oferecem muitas possibilidades de investigação como em sua materialidade - formato, volume, ilustrações, disposição das lições e exercícios, tipo de letra; sua proposta político-didática - concepção de método de leitura e escrita; e ainda nos permite aproximarmos daqueles que aprenderam e dos que ensinaram, em contextos diferenciados. (Maciel, 2003) Essa reflexão revela que são muitos os aspectos sob os quais as cartilhas e manuais escolares em geral podem ser estudados, sob uma perspectiva historiográfica em (Escolano, 1997;1998 Ossenbach, & Somoza,2001), o que tem levado os pesquisadores a buscar novas fontes e novos métodos de análise e enfoques diferenciados. (Nóvoa & Berrio, 1993). Buscando compreender a produção histórica de estudos sobre os manuais escolares destinados à aprendizagem inicial da leitura e da escrita no Brasil do século XIX, volteime inicialmente para a compreensão historiográfica dos manuais escolares. Para tal, contemplei a análise das obras de Benito Escolano, Gabriela Ossenbach Sauer, Roger Chartier, Justino Magalhães, em que pude desenvolver um estudo mais aprofundado do campo, analisando os impasses e os desafios dos historiadores frente à compreensão histórica da materialidade dos manuais - objeto, fonte, circulação, apropriação, produção editorial. A partir deste estudo, procurei analisar a produção nacional, estabelecendo um diálogo com Bittencourt, Boto, Munakata. Esses autores sustentaram minha pesquisa sobre a produção historiogáfica de manuais escolares no século XIX, tendo como eixo a investigação do ideário de civilização e progresso que constituíram elementos centrais da ciência oitocentista. Com base na leitura de tais autores, foi possível obter uma compreensão mais depurada do campo, matizando e precisando alguns conceitos e tendo acesso à produção dos próprios autores. No diálogo com estes estudos, em que pude sistematizar uma análise da produção em torno da história sobre manuais escolares busquei inventariar a circulação e a produção de cartilhas no Brasil do século XIX. Para a execução do estudo comparativo das cartilhas brasileiras e portuguesas, foi inventariado em fontes brasileiras, com destaque para o levantamento bibliográfico de cartilhas na Biblioteca Nacional e no Real Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro, no Arquivo do Museu de Petrópolis e no acervo do LIVRES/FEUSP, em São Paulo. Esse inventário possibilitou não só identificar a produção bibliográfica, mas, sobretudo, ter acesso à materialidade, objetivo central da pesquisa. No que se refere ao inventário realizado em acervos brasileiros, pode-se afirmar que se trata de um inesgotável material de pesquisa, que indica trabalhos posteriores, numa leitura comparativa com a produção brasileira do período. Como última etapa da investigação, contemplei o estudo comparado de duas cartilhas: uma brasileira e outra portuguesa, ambas largamente utilizadas no Brasil. A escolha dessas produções se deu a partir do cruzamento das fontes inventariadas no Arquivo Público Mineiro sobre os pedidos e as remessas de livros escolares no século XIX4. No levantamento bibliográfico e na análise da materialidade das cartilhas, uma grande preocupação foi focalizar os aspectos teórico-metodológicos, procurando identificar os pressupostos teóricos, a concepção de leitura, aluno, professor, pois em várias cartilhas não estão explicitadas as orientações para o professor/pais utilizarem. Torna-se possível e necessário, neste trabalho, analisar mais detidamente e de modo comparativo outras cartilhas produzidas e usadas contemporaneamente com a Cartilha Nacional de Hilário Ribeiro, as motivações teórico-metodológicas que levaram os autores a produzirem as cartilhas brasileiras. A Cartilha Nacional de Hilário Ribeiro destaca-se no cenário educacional brasileiro por ser uma produção premiada em Paris e no Brasil, além de ser uma produção de fácil manuseio por parte daqueles que vão utilizá-la, sejam os professores ou os pais. Os pressupostos metodológicos desta Cartilha estão embasados em uma produção portuguesa, muito utilizada em alguns Estados brasileiros, a Cartilha Maternal de João de Deus. Tive a oportunidade de conhecer e acompanhar um trabalho realizado na Escola João de Deus, em Lisboa, onde esta cartilha é utilizada até hoje. Cabe ressaltar aqui a riqueza dos estudos desenvolvidos, do levantamento de fontes, e a possibilidade de poder debruçar-me na realização de pesquisa arquivística, num estudo teórico mais verticalizado. Alguns dados nós tínhamos: a proibição de produções oficiais até 1808. O fato de se poder publicar a partir desta data gerou uma produção de cartilhas brasileiras? Hoje podemos responder que não. E porque? Os dados estatísticos apontavam que no ano de 1869 tínhamos uma população livre de 7.720.000 – 115735 = 7604265 fora do primário; 4 Esse levantamento já havia sido realizado em pesquisa anterior. 1878 = 9.200.000 --175714 = 9024286. Aqui poderíamos indagar: qual era a real necessidade de se aprender a ler e escrever? E diante de tão poucas escolas de primeiras letras, do alto custo da impressão de livros escolares tanto para Portugal que produzia boa parte em Paris e o que podemos dizer com relação ao Brasil? A seguir apresentaremos, ainda que brevemente uma amostra das cartilhas mais utilizadas para o ensino inicial da leitura e da escrita, no Brasil do século XIX. Hoje, a partir da pesquisa que realizei podemos fazer algumas afirmativas: as primeiras produções brasileiras datam da década de 70 do século XIX. Por quê? Também podemos afirmar que a criação dos grupos escolares, o incentivo que autores receberam a partir das apresentações em exposições pedagógicas e, consequentemente as premiações recebidas serviram para alavancar não só a nossa produção como também dar legitimidade a produção nacional. Além dos fatos mencionados anteriormente, podemos acrescentar que uma das cartilhas de maior aceitação nos estados brasileiros foi a Cartilha Nacional de Hilário Ribeiro Cartilha nacional: ensino simultâneo da leitura e escrita / Hilário Ribeiro. Premiado com o diploma de 1ª classe na Exposição de Objectos Escolares em 1887 e Medalha de prata na Exposição de Paris de 1889. - 9ª ed. - Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887. - 79 p. - 204ª ed. - Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1919. - Inclui um guia do método. Na p.16 fala-se do «valor das invogais» com a referência: «seguimos a classificação do erudito Sr. João de Deus». O sucesso editorial desta cartilha pode e deve ser também creditado ao fato de que se anteriormente tínhamos como modelo de cartilha a Cartilha Maternal de João de Deus, ao analisar as duas cartilhas: Cartilha Maternal de João de Deus e a Cartilha Nacional de Hilário Ribeiro constatamos que Hilário Ribeiro usou a mesma metodologia usada por João de Deus. As alterações entre as duas, quando comparadas no conjunto da obra, são pequenas. Hilário Ribeiro adequa mais ao vocabulário brasileiro fazendo trocas de algumas palavras, mais usuais ao contexto brasileiro. Também faz algumas alterações nas introduções de alguns fonemas. Outra grande inovação de Hilário Ribeiro é que o autor diferentemente de João de Deus introduz ilustrações. Segundo João de Deus, contrário ao uso de ilustrações como apoio para o aprendizado da leitura afirmava que as ilustrações desviaria a atenção dos alunos para o aprendizado dos fonemas e grafemas (sons e letras).Ambos os autores utilizam como estratégia visual os tons cinza e preto, liso e lavrado na representação gráfica das silabas para destacar das palavras. No Brasil, em vários estados, a Cartilha Maternal foi largamente usada, entre eles podemos citar o Rio Grande do Sul, Espírito Santo, São Paulo e outros e coube ao Visconde de Arcozelo a divulgação deste material entre nós. Outra cartilha de autoria portuguesa e contemporânea a de Hilário Ribeiro é a cartilha de Caldas Aulete. o que elas tem em comum? O titulo, ambas são denominadas de Cartilha Nacional. Nossa hipótese é de que o titulo dado por Hilário Ribeiro demonstra uma forma de marcar na literatura de livros didáticos a nacionalidade dos manuais destinados a aprendizagem inicial da leitura e da escrita. Pois se comparamos as metodologias, elas são muito distintas. Outro sucesso editorial brasileira e a cartilha Methodo Hudson, em parte atribuímos o sucesso desta cartilha por ser mais próxima das cartilhas de soletração, E diferentemente de outras cartilhas, em que os autores reivindicavam seus direitos, o Methodo Hudson (1876) traz nas paginas inciais a oferta de sua cartilha para a infância brasileira. Oferecia não só 5000 exemplares para infância e ao povo impressa por conta do grande oriente unido do Brasil para distribuicao gratuita. E ainda: Reserva-se o direito de aplicar todo o rigor da lei contra quem vender este methodo, concedendo, porem franca permissão as autoridades da instrução pública e sociedades beneficentes para reimprimir e distribui-lo gratuitamente. Oras se imaginarmos que o estado poderia imprimir sem custos de editora e autoria esta cartilha e além disso a cartilha era do ponto de vista metodológico de fácil aplicação. Apresentava as vozes puras (vogais) vozes compostas (ditongos) todo o alfabeto, vozes nazaladas(am, am: em, em, im, im) Inicia as familias silabicas ba ba ba ba ba abaixo be be be be be). Era um material que de certa forma atendia o primeiro momento da aprendizagem da leitura e da escrita, quando se acreditava que primeiro tinha que decorar todo o alfabeto e as todas as combinações para depois iniciar a leitura e escrita de palavras. Diante desses fatos torna-se evidente o sucesso de uso desse método em vários estados brasileiros. Além dessa breve apresentação das cartilhas utilizadas, poderíamos elencar outros títulos, tais como o Primeiro Livro de leitura para uso da infância brasileira Abilio Cesar Borges 14 edição revista e melhorada Bruxellas E. Guyot [1877] composto e publicado em Pariz.. As cartas do Abc, que são várias cartas com o mesmo título, mas destacamos a Cartas de ABC do Professor F. Nazareth. RJ: Serafim Jose Alves 1897 27p. Esta é uma outra história que precisa ser feita. Referências Bibliográficas AMÂNCIO, Lazara Nanci de Barros Ensino de leitura em Mato Grosso: a introdução do método analítico por normalistas paulistas, no início do séc. XX. IV Congresso Luso-brasileiro de História da Educação – Porto Alegre/ 2002. CHARTIER, Roger. (org.) Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. p. 35 - 74. ESCOLANO, Augustin. La renovacion de la manualistica escolar em la España de entresiglos. In: Actas do Colóquio a geração de 98 e o pensamento finisecular na Península Ibérica. FAVEIRO, Iole Maria Trindade Práticas culturais frente aos discursos modernos e positivistas de escolarização e alfabetismo. IV Congresso Luso-brasileiro de História da Educação – Porto Alegre, 2002. 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