O APRENDIZADO DA LEITURA NO BRASIL DO SÉCULO XIX
Francisca Izabel Pereira Maciel
Ceale/FaE/UFMG
[email protected]
Na História do Ensino no Brasil, as Primeiras Cartas, ou as Cartinhas destinadas ao
ensino da leitura e da escrita, foram produzidas em Portugal, e chegou até nós no final
do século XVI. Entretanto, são esparsas as informações sobre o material didático
destinado a alfabetização da população brasileira entre os séculos XVI e século XVIII.
Essa lacuna, pode em parte, ser explicada pelo alto índice de analfabetismo no país,
retomando os dados levantados por Lawrence Hallewell, (1985) no ano de 1888 a
população livre era de 12.950 milhões de pessoas, desses 258.302 estavam matriculados
nas escolas primárias, ou seja apenas 0,2%; diante de percentagem tão medíocre
tornava-se inviável produzir livros para um mercado inexistente.
As pesquisas historiográficas presentes na literatura internacional são também
produções recentes, de meados da década de 80. Entre os autores que têm ajudado a
refletir sobre a história da alfabetização no Brasil, destacamos as contribuições de
Harvey Graff (1990,1994) como um dos pioneiros a questionar a complexidade do
fenômeno do alfabetismo; as relações de causa e conseqüência entre alfabetização e
desenvolvimento econômico; a dificuldade de se definir e avaliar os critérios para a
alfabetização.
Além dos estudos de Graff, merecem também destaque as pesquisas realizadas por
Havelock (1995), Goody (1987), Olson (1995) e Chartier (1996, 2002), que versam
sobre as culturas orais e os efeitos sobre elas da introdução da cultura escrita e
tipográfica. Destaca-se, ainda, Vinão Frago (1990,1993) que tem ampliado estudos
sobre as culturas e as práticas escolares, incluindo o aprendizado da leitura e da escrita,
como elementos que se articulam na configuração de um campo do saber pedagógico,
no qual estará presente a produção de uma consciência individual e social de que a
instrução é um fator importante de reordenamento social. Magalhães (1994) também
nos ajuda a repensar a história da alfabetização no Brasil, a partir de seus estudos sobre
a cultura escrita e o processo de escolarização em Portugal no antigo regime. Uma outra
contribuição para as questões da história da alfabetização é o debate da relação entre
escolarização e alfabetização em pesquisas realizadas por Jean Hébrard (1996, 1999).
No Brasil começa a delinear-se uma crescente produção acerca da história da
alfabetização. Para a análise da produção bibliográfica nacional, priorizo aqui os
resultados de pesquisas de autores brasileiros que vêm desenvolvendo trabalhos sobre a
aprendizagem inicial da leitura e da escrita. As teses e dissertações na perspectiva
histórica, identificadas na pesquisa anteriormente mencionada - Alfabetização no
Brasil: o estado do conhecimento - compõem basicamente o conjunto de pesquisas
históricas no Brasil sobre o tema. É, como já foi dito, uma produção pequena, se
comparado ao total de teses e dissertações sobre alfabetização, o que demonstra o
interesse ainda incipiente pela abordagem histórica na área da alfabetização.
Esse interesse pode ser explicado por vários fatores, entre eles, a ampliação de uso,
pelos historiadores, de fontes primárias tais como: relatórios de presidentes de
províncias, de inspetores, de diretores, solicitações de pedidos e remessas de materiais
escolares e os próprios objetos escolares como as cartilhas, os cadernos de alunos e
professores e as práticas que envolvem o aprendizado da leitura e da escrita .
Juntamente à ampliação das fontes, surgem novas abordagens, sobretudo graças ao
referencial da história cultural, que traz a possibilidade de relacionar os usos e funções
sociais do aprendizado da escrita aos diferentes contextos sociais e, desse modo,
recuperar práticas culturais relativas à leitura e às suas sociabilidades - formas de
produção, de circulação, de modos de recepção de textos.(Chartier, 1996).
No conjunto das teses e dissertações sobre alfabetização, numa perspectiva histórica,
três delas têm como foco o Estado de São Paulo: Dietzsch (1979), Mortatti (1997) e
Carvalho (1998); as demais têm como foco o Mato Grosso - Amâncio (2000), Minas
Gerais – Maciel (2001) e Rio Grande do Sul – Trindade (2001).
Em síntese, pode-se dizer que nas pesquisas citadas, o período analisado corresponde às
últimas décadas do século XIX, e a problematização em torno da alfabetização pode ser
agrupada em dois eixos temáticos: os métodos de leitura e escrita e os manuais escolares
- cartilhas. É óbvio que os dois eixos se entrelaçam, mas o que os diferencia é o foco de
análise, segundo os questionamentos propostos pelo pesquisador. Além disso, não é
possível problematizar os métodos de leitura e as cartilhas desvencilhadas dos
movimentos reformistas. Pode-se dizer também que, excetuando a pesquisa de Dietzsch
(1979), as demais autoras utilizam o referencial teórico da história cultural em suas
pesquisas. Esse fato aponta a relação entre os novos aportes teóricos e a história da
alfabetização.
As pesquisas atuais sobre a história do livro, da escrita e da leitura estão, de certo modo,
entrecruzadas com a história da alfabetização e, de modo mais próximo, com os
manuais escolares. Não há como negar a necessidade do diálogo entre essas áreas de
conhecimento, para não corrermos o risco de fazermos uma história multifacetada.
Entretanto, diante do objetivo deste trabalho, enfatizaremos as pesquisas voltadas
especificamente para os manuais de alfabetização.
Podemos dizer que os livros didáticos, em especial, os manuais de iniciação à leitura
(sejam eles silabários, cartas do abc, cartilhas, pré-livros), eram debatidos nas políticas
educacionais. Além disso, é importante destacar o lugar dos professores nesse debate,
não apenas como mero receptor e repassador de um saber a ser ensinado, sistematizado
nos manuais, mas como potenciais autores.
Atuando numa simbiose com os métodos de leitura, os manuais didáticos - cartilhas
entram no clima e esquentam o debate em torno das questões metodológicas para a
aprendizagem da leitura e da escrita.
É significativo o número de relatórios que abordam a questão de se organizar
compêndios com métodos mais racionais para a aprendizagem da leitura e da escrita. Os
concursos e distribuição de prêmios para autores de livros escolares era uma prática
comum desde o século XIX, conforme descreve o Art. 61 do Regulamento do Ensino
Público e Particular - 1883:20:
“São garantidos prêmios aos professores, que escreverem
compêndios e livros para uso nas escolas. Esses prêmios
serão concedidos pelo governo, depois de adotados os
livros, a que se referem, e se farão efetivos, logo que a
assembléia provincial houver concedido quota para este
fim.”
Os manuais escolares - cartilhas - podem ser tomados como uma conseqüência do
problema para o atraso na instrução pública e/ou como uma possível solução. Sem
entrar no mérito dessa questão, apontaremos aqui como os pesquisadores têm analisado
as cartilhas como fonte ou como objeto, e os desdobramentos desses trabalhos para a
historiografia da alfabetização.
Falar da/sobre a história da alfabetização no Brasil no século XIX é algo que demanda
do pesquisador um grande esforço, pois este é um trabalho que ainda carece de muitas
pesquisas. Não só pelas dificuldades de acesso aos documentos, mas também pelo
contexto. As poucas escolas existentes, o descaso de Portugal com relação a
escolarização da população brasileira.
A crônica de Machado de Assis , publicada originalmente em 15 de agosto de 1876
denuncia o alto índice de analfabetismo no império: “- A nação não sabe ler. Há só
30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns 9% não lêem letra
de mão. 70% jazem em profunda ignorância.”
A relação entre livro didático e a nacionalização, no Brasil, remonta ao século
dezenove. Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1996) demonstram que o
“abrasileiramento dos livros didáticos só se torna realidade no fim do século
XIX”(p.183). O processo de nacionalização é demandado por escritores nacionais,
professores e outros intelectuais, numa luta pelo mercado editorial e também na esteira
da reivindicação ideológica de um país que se quer independente. (Lajolo et al.:193).
A necessidade de uma produção didática nacional sempre esteve em pauta, pois o fato
de se ter uma lei que proibia a produção e circulação editorial nacional até 1808 era
motivo de um certo descontentamento por parte de alguns intelectuais, professores e
autores de livros didáticos que se viam obrigados a editar suas obras fora do Brasil, era
comum a produção desse tipo de material na França, assim como temos autores
brasileiros com seus livros editados em Portugal.
Entre as dificuldades encontradas pelos autores brasileiros na produção e edição de seus
livros podemos listar o auto custo dessa produção, assim como o controle do Estado
mesmo após a liberação da produção no Brasil.
No que diz respeito ao ensino das 1as letras podemos afirmar que mesmo após a
liberacão de ediçao nacional durante muito tempo ainda foram largamente utilizados as
cartilhas portuguesas juntamente com as primeiras cartilhas brasileiras.
Ainda que o Estado visasse uma política uniformizaçào metodológica em torno dos
livros didáticos, tal como descreve o Ato Adicional de 1834:
Esta política visava, em última instância, executar um
processo de uniformização de procedimentos técnicopedagógicos e, principalmente, de caráter ideológico. (...)
Desde logo prevaleceu a concepção de que constituía
tarefa inarredável do Estado a supervisão de manuais e
compêndios usados no sistema escolar” (p. 28)
o que se constatava na prática do aprendizado inicial da leitura e da escrita eram
cartilhas com diferentes metodologias. Como exemplos podemos a utilização de
cartilhas portuguesas, tais como “Método Português Castilho”, de Antonio Feliciano de
Castilho, editada em 1846 e da Cartilha Maternal, do poeta português João de Deus, são
um exemplo, na alfabetização, da importação de cartilhas. Lajolo e Zilberman (1996)
informam que, no caso da produção de cartilhas nacionais, foram preteridos alguns
autores brasileiros com formação específica na metodologia indicada, que não tiveram
condições de publicar seus livros.
No entanto, o trabalho de Mortatti (1997) permite verificar um movimento de produção
de cartilhas nacionais, identificado no final do século XIX, que ocorre junto com a
construção de um campo de estudos sobre a alfabetização e a produção de um
pensamento pedagógico brasileiro sobre os métodos. Cabe citar aqui um trecho citado
pela mesma autora, que retrata um debate da época feito no Rio de Janeiro, por
Veríssimo, (1890) sobre o tema de livros nacionais:
“neste levantamento geral que é preciso promover a
favor da educação nacional, uma das mais necessárias
reformas é a do livro de leitura. Cumpre que ele seja
brazileiro, não só feito por brazileiro, que não é o mais
importante, mas brazileiro pelos assumptos, pelos
espírito, pelos autores trasladados, pelos poetas
reproduzidos e pelo sentimento nacional que o anime.” P.
48
No campo de produção de cartilhas nacionais, podemos dizer que o ano de 1883 é um
importante marco na história da produção de manuais didáticos. Nesse ano, realizou-se
no Rio de Janeiro a Exposição Pedagógica com avaliação de vários manuais, entre eles
merece destaque a 'Cartilha Nacional' e o 'Primeiro Livro de Leitura', ambos de autoria
de Hilário Ribeiro (Pfromm Neto et el). Outros títulos e seus respectivos autores
merecem ser mencionados:'Cartilha da Infância', de Thomas Galhardo, 'O Primeiro
Livro de Leitura' de Felisberto de Carvalho, 'Méthodo Racional e Rapido para Aprender
a Lêr sem Soletrar', de João Kopke. Produção nacional e nacionalismo/civismo nos
textos de cartilha nem sempre ocorrem pari passu, tendo em vista a especificidade deste
material que parece encontrar-se no “limbo” em relação a outros livros de leitura,
quanto mais se aproxima dos métodos sintéticos, em que os textos são apresentados e
forjados para ensinar as letras e sílabas, mais do que para passar outros conteúdos.
Com relação aos manuais escolares, em especial os livros de iniciação à leitura (sejam
eles silabários, cartas do abc, cartilhas, pré-livros), pode-se afirmar que são uma
publicação especializada, com identidade própria, trazem um ideário e um modelo
pedagógico para configurar o currículo e organizar a prática escolar. (Escolano,
1997:21)
Segundo Choppin (1992), a expansão e a diversificação dos manuais escolares devemse, em grande parte, à vulgarização do Ensino Simultâneo, como metodologia que tinha
como princípio racionalizar e uniformizar o sistema de instrução pública. Atuando numa
simbiose com os métodos de leitura, os manuais escolares – as cartilhas - entram no
clima e esquentam o debate em torno das questões metodológicas para a aprendizagem
da leitura e da escrita. No século XIX, é significativo o número de Relatórios dos
Presidentes de Província que argumentam a favor da organização de compêndios e do
uso desse artefato por parte dos alunos e professores visando ao bom desempenho do
ensino.
Buscar a uniformidade do ensino por meio de uma metodologia se tornaria mais viável
e racional se os princípios metodológicos pudessem ser materializados em um
compêndio destinado aos alunos e professores.
A falta de compêndios para o ensino da leitura é discurso recorrente nos relatórios do
oitocentos, assim como não são raras as explanações sobre os gastos feitos pelo
governo com os meninos pobres e com a compra de compêndios, e de diversas obras,
cuja lição pode muito interessar não só aos discípulos, mas também aos professores .
[Presidente Sebastião Barreto Pereira Pinto, 04/02/1841]
Pode-se dizer que dois fatores contribuíram decisivamente para a escassez dos livros,
em geral, nas escolas primárias: o alto custo dos livros e a escassez de livros de autoria
nacional.
Assim, na tentativa de sanar a falta de autores de manuais escolares, o governo
provincial institui concursos e distribuição de prêmios para autores de livros escolares,
conforme descreve o Art. 61 do Regulamento do Ensino Público e Particular de Minas
Gerais(1883:20):
São garantidos prêmios aos professores, que escreverem
compêndios e livros para uso nas escolas. Esses prêmios
serão concedidos pelo governo, depois de adotados os
livros, a que se referem, e se farão efetivos, logo que a
assembléia provincial houver concedido quota para este
fim.[ Regulamento do Ensino Público e Particular MG1883:20]
É importante destacar o lugar dos professores nesse debate, não apenas como meros
receptores e repassadores de um saber a ser ensinado, sistematizado nos manuais, mas
como potenciais autores.
Os manuais escolares configuram, de certo modo, como uma estratégia didática
fundamental para o desenvolvimento dos programas oficiais seguidos pelos professores
(Escolano, 1997). Assim, é pertinente a atenção e o espaço que os manuais ocupam nos
debates das políticas educacionais.
As condições estabelecidas podem ser a
configuração do currículo, a metodologia, os valores com que se quer configurar a
cidadania do futuro.
Podemos atribuir a ausência de autores brasileiros de cartilhas à introdução tardia da
Imprensa Régia no Brasil, em 1808, ao alto custo de impressão e à política
governamental. Tambara (2002) tem investigado e inventariado os manuais escolares
das escolas de primeiras letras no Brasil, no século XIX. Entre as cartilhas portuguesas
mais utilizadas no Brasil, podemos citar a Grammatica da lingua portuguesa com os
mandamentos da Santa Madre Igreja, mais conhecida como a Cartinha de João de
Barros (1539)1 e a Cartilha Maternal de João de Deus. Essa última é considerada como
uma cartilha inovadora por apresentar os pressupostos do método analítico
(Mortatti,1997). A Cartilha Maternal foi muito utilizada no Brasil e, em especial no
Estado do Rio Grande do Sul. (Trindade, 2001,2004).
As pesquisas de Mortatti (1997) e de Carvalho (1998) revelam que o movimento
republicano possibilitou a expansão do ensino, e, consequentemente, o aumento do
número de manuais escolares de autores brasileiros e a diversidade de títulos
publicados. Para Maciel (2001, 2002) e Frade & Maciel (2002), os princípios
pedagógicos escolanovistas propunham um rompimento com o modelo pedagógico
tradicional. O novo modelo apresentava-se como uma verdadeira revolução copérnica
na educação ao trazer para o centro da educação a criança. Esse ideário transformava os
antigos métodos e materiais didáticos em obsoletos e, assim, os idealizadores
reformistas incentivavam, em seus estados, a produção de manuais didáticos segundo os
pressupostos metodológicos de uma escola ativa, levando-se em conta o processo
natural de desenvolvimento da criança.
Na verdade, os estudos sobre a história da alfabetização têm priorizado fazer inventários
das cartilhas (Stamatto, 1996; Mortatti, 1997; Amâncio, 1998; Tambara, 2002; Maciel
& Frade, 2002). Pesquisas dessa natureza é uma etapa necessária para a constituição do
campo e do conhecimento, pois as cartilhas são representativas das práticas e dos
ideários pedagógicos, assim como das práticas editoriais e, historicamente, vêm se
constituindo como primeira via de acesso à cultura escrita. (Maciel, 2003)
Uma abordagem histórica das cartilhas vem responder também a uma necessidade de
compreender as práticas escolares da leitura e da escrita e as transformações das
concepções de ensino-aprendizagem da alfabetização ao longo do tempo.
Os pesquisadores Amâncio (1998), Maciel & Frade (2002,2004) e Trindade (2004), que
buscam repertoriar as cartilhas2, têm não só contribuído para a identificação desse
material produzido desde o século XIX, mas também possibilitado a realização de
pesquisas comparativas de natureza editorial, metodológica e regional. Um trabalho
dessa natureza é a pesquisa Cartilhas escolares: ideários, práticas pedagógicas e
editoriais-1834-19973, que envolve pesquisadores de três Estados: Minas Gerais, Mato
Grosso e Rio Grande do Sul.
1
As cartilhas portuguesas, em especial a Cartilha de João de Barros foi analisada pela profa. Carlota
Boto .
2
Além dos pesquisadores do CEALE, que têm se dedicado às investigações de manuais escolares de
alfabetização e língua portuguesa, e dos autores mencionados no texto, que desenvolvem pesquisas
tematizando a história da alfabetização, destaco o grupo de pesquisadores da USP e PUC/SP, coordenado
pela Profa. Circe Bitencourt e Kazumi Munakata, que desenvolvem pesquisas sobre manuais escolares em
geral
3
Esta pesquisa conta com o financiamento do CNPq, é uma pesquisa interinstitucional sob a coordenação
geral de Frade & Maciel.
O repertório realizado por Frade & Maciel (2002,2004) leva à identificação de enfoques
que precisam ser investigados; entre eles, destaca-se o sucesso editorial alcançado por
alguns títulos. A estabilidade de determinadas obras por mais de um século e com várias
edições precisa ser melhor investigada, assim como o número de Inspetores de Ensino,
diretores de Liceus e Escolas Normais e professoras primárias que foram autores de
manuais didáticos. O fato de se ter um número representativo de professores como
autores nos fazem indagar quem são esses professores que, de certa forma, definiam e
ordenavam os saberes, escolarizando-os e didatizando-os para uso dos demais
professores do Brasil. Quem são os professores-autores das cartilhas cujas edições são
longevas? Como explicar a semelhança entre vários títulos? Na tentativa de responder a
essa questão, Escolano (1997:28) esclarece que a uniformidade e o plágio foram
comportamentos habituais no setor de produção editorial de manuais escolares. Esses
comportamentos tornam-se mais evidentes na produção de cartilhas, que apresentam
uma linguagem textual reduzida em pequenas lições que podem ser de letras, sílabas,
palavras e textos com um vocabulário reduzido. A longevidade de determinadas
cartilhas é conseqüência da estabilidade de alguns títulos que tiveram inúmeras
reedições sem apresentar nenhuma alteração. É comum encontrarmos cartilhas em que
personagens e animais possuem o mesmo nome, cuja temática é semelhante, assim
como as divisões das lições e os tipos de exercícios. A prática do plágio pode ser
explicada em função do sucesso editorial alcançado por determinado título que,
conseqüentemente, servirá de modelo para outros autores e editores.
A importância do estudo das cartilhas para a história da alfabetização está no fato de
que as cartilhas, independente de sua proposta metodológica, elas são concebidas com
finalidade didática, diferentemente de outros livros que foram posteriormente
didatizados (Escolano, 1997). As cartilhas oferecem muitas possibilidades de
investigação como em sua materialidade - formato, volume, ilustrações, disposição das
lições e exercícios, tipo de letra; sua proposta político-didática - concepção de método
de leitura e escrita; e ainda nos permite aproximarmos daqueles que aprenderam e dos
que ensinaram, em contextos diferenciados. (Maciel, 2003)
Essa reflexão revela que são muitos os aspectos sob os quais as cartilhas e manuais
escolares em geral podem ser estudados, sob uma perspectiva historiográfica em
(Escolano, 1997;1998 Ossenbach, & Somoza,2001), o que tem levado os pesquisadores
a buscar novas fontes e novos métodos de análise e enfoques diferenciados. (Nóvoa &
Berrio, 1993).
Buscando compreender a produção histórica de estudos sobre os manuais escolares
destinados à aprendizagem inicial da leitura e da escrita no Brasil do século XIX, volteime inicialmente para a compreensão historiográfica dos manuais escolares. Para tal,
contemplei a análise das obras de Benito Escolano, Gabriela Ossenbach Sauer, Roger
Chartier, Justino Magalhães, em que pude desenvolver um estudo mais aprofundado do
campo, analisando os impasses e os desafios dos historiadores frente à compreensão
histórica da materialidade dos manuais - objeto, fonte, circulação, apropriação,
produção editorial. A partir deste estudo, procurei analisar a produção nacional,
estabelecendo um diálogo com Bittencourt, Boto, Munakata. Esses autores sustentaram
minha pesquisa sobre a produção historiogáfica de manuais escolares no século XIX,
tendo como eixo a investigação do ideário de civilização e progresso que constituíram
elementos centrais da ciência oitocentista. Com base na leitura de tais autores, foi
possível obter uma compreensão mais depurada do campo, matizando e precisando
alguns conceitos e tendo acesso à produção dos próprios autores.
No diálogo com estes estudos, em que pude sistematizar uma análise da produção em
torno da história sobre manuais escolares busquei inventariar a circulação e a produção
de cartilhas no Brasil do século XIX. Para a execução do estudo comparativo das
cartilhas brasileiras e portuguesas, foi inventariado em fontes brasileiras, com destaque
para o levantamento bibliográfico de cartilhas na Biblioteca Nacional e no Real
Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro, no Arquivo do Museu de Petrópolis e
no acervo do LIVRES/FEUSP, em São Paulo. Esse inventário possibilitou não só
identificar a produção bibliográfica, mas, sobretudo, ter acesso à materialidade, objetivo
central da pesquisa.
No que se refere ao inventário realizado em acervos brasileiros, pode-se afirmar que se
trata de um inesgotável material de pesquisa, que indica trabalhos posteriores, numa
leitura comparativa com a produção brasileira do período.
Como última etapa da investigação, contemplei o estudo comparado de duas cartilhas:
uma brasileira e outra portuguesa, ambas largamente utilizadas no Brasil. A escolha
dessas produções se deu a partir do cruzamento das fontes inventariadas no Arquivo
Público Mineiro sobre os pedidos e as remessas de livros escolares no século XIX4.
No levantamento bibliográfico e na análise da materialidade das cartilhas, uma grande
preocupação foi focalizar os aspectos teórico-metodológicos, procurando identificar os
pressupostos teóricos, a concepção de leitura, aluno, professor, pois em várias cartilhas
não estão explicitadas as orientações para o professor/pais utilizarem. Torna-se possível
e necessário, neste trabalho, analisar mais detidamente e de modo comparativo outras
cartilhas produzidas e usadas contemporaneamente com a Cartilha Nacional de Hilário
Ribeiro, as motivações teórico-metodológicas que levaram os autores a produzirem as
cartilhas brasileiras.
A Cartilha Nacional de Hilário Ribeiro destaca-se no cenário educacional brasileiro por
ser uma produção premiada em Paris e no Brasil, além de ser uma produção de fácil
manuseio por parte daqueles que vão utilizá-la, sejam os professores ou os pais. Os
pressupostos metodológicos desta Cartilha estão embasados em uma produção
portuguesa, muito utilizada em alguns Estados brasileiros, a Cartilha Maternal de João
de Deus. Tive a oportunidade de conhecer e acompanhar um trabalho realizado na
Escola João de Deus, em Lisboa, onde esta cartilha é utilizada até hoje.
Cabe ressaltar aqui a riqueza dos estudos desenvolvidos, do levantamento de fontes, e a
possibilidade de poder debruçar-me na realização de pesquisa arquivística, num estudo
teórico mais verticalizado.
Alguns dados nós tínhamos: a proibição de produções oficiais até 1808. O fato de se
poder publicar a partir desta data gerou uma produção de cartilhas brasileiras? Hoje
podemos responder que não. E porque? Os dados estatísticos apontavam que no ano de
1869 tínhamos uma população livre de 7.720.000 – 115735 = 7604265 fora do primário;
4
Esse levantamento já havia sido realizado em pesquisa anterior.
1878 = 9.200.000 --175714 = 9024286. Aqui poderíamos indagar: qual era a real
necessidade de se aprender a ler e escrever? E diante de tão poucas escolas de primeiras
letras, do alto custo da impressão de livros escolares tanto para Portugal que produzia
boa parte em Paris e o que podemos dizer com relação ao Brasil? A seguir
apresentaremos, ainda que brevemente uma amostra das cartilhas mais utilizadas para o
ensino inicial da leitura e da escrita, no Brasil do século XIX.
Hoje, a partir da pesquisa que realizei podemos fazer algumas afirmativas: as primeiras
produções brasileiras datam da década de 70 do século XIX. Por quê? Também
podemos afirmar que a criação dos grupos escolares, o incentivo que autores receberam
a partir das apresentações em exposições pedagógicas e, consequentemente as
premiações recebidas serviram para alavancar não só a nossa produção como também
dar legitimidade a produção nacional.
Além dos fatos mencionados anteriormente, podemos acrescentar que uma das cartilhas
de maior aceitação nos estados brasileiros foi a Cartilha Nacional de Hilário Ribeiro Cartilha nacional: ensino simultâneo da leitura e escrita / Hilário Ribeiro. Premiado com
o diploma de 1ª classe na Exposição de Objectos Escolares em 1887 e Medalha de prata
na Exposição de Paris de 1889. - 9ª ed. - Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887. - 79
p. - 204ª ed. - Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1919. - Inclui um guia do
método. Na p.16 fala-se do «valor das invogais» com a referência: «seguimos a
classificação do erudito Sr. João de Deus».
O sucesso editorial desta cartilha pode e deve ser também creditado ao fato de que se
anteriormente tínhamos como modelo de cartilha a Cartilha Maternal de João de Deus,
ao analisar as duas cartilhas: Cartilha Maternal de João de Deus e a Cartilha Nacional de
Hilário Ribeiro constatamos que Hilário Ribeiro usou a mesma metodologia usada por
João de Deus. As alterações entre as duas, quando comparadas no conjunto da obra, são
pequenas.
Hilário Ribeiro adequa mais ao vocabulário brasileiro fazendo trocas de algumas
palavras, mais usuais ao contexto brasileiro. Também faz algumas alterações nas
introduções de alguns fonemas. Outra grande inovação de Hilário Ribeiro é que o autor
diferentemente de João de Deus introduz ilustrações. Segundo João de Deus, contrário
ao uso de ilustrações como apoio para o aprendizado da leitura afirmava que as
ilustrações desviaria a atenção dos alunos para o aprendizado dos fonemas e grafemas
(sons e letras).Ambos os autores utilizam como estratégia visual os tons cinza e preto,
liso e lavrado na representação gráfica das silabas para destacar das palavras.
No Brasil, em vários estados, a Cartilha Maternal foi largamente usada, entre eles
podemos citar o Rio Grande do Sul, Espírito Santo, São Paulo e outros e coube ao
Visconde de Arcozelo a divulgação deste material entre nós.
Outra cartilha de autoria portuguesa e contemporânea a de Hilário Ribeiro é a cartilha
de Caldas Aulete. o que elas tem em comum? O titulo, ambas são denominadas de
Cartilha Nacional. Nossa hipótese é de que o titulo dado por Hilário Ribeiro demonstra
uma forma de marcar na literatura de livros didáticos a nacionalidade dos manuais
destinados a aprendizagem inicial da leitura e da escrita. Pois se comparamos as
metodologias, elas são muito distintas.
Outro sucesso editorial brasileira e a cartilha Methodo Hudson, em parte atribuímos o
sucesso desta cartilha por ser mais próxima das cartilhas de soletração, E diferentemente
de outras cartilhas, em que os autores reivindicavam seus direitos, o Methodo Hudson
(1876) traz nas paginas inciais a oferta de sua cartilha para a infância brasileira.
Oferecia não só 5000 exemplares para infância e ao povo impressa por conta do grande
oriente unido do Brasil para distribuicao gratuita. E ainda: Reserva-se o direito de
aplicar todo o rigor da lei contra quem vender este methodo, concedendo, porem franca
permissão as autoridades da instrução pública e sociedades beneficentes para reimprimir
e distribui-lo gratuitamente.
Oras se imaginarmos que o estado poderia imprimir sem custos de editora e autoria esta
cartilha e além disso a cartilha era do ponto de vista metodológico de fácil aplicação.
Apresentava as vozes puras (vogais) vozes compostas (ditongos) todo o alfabeto, vozes
nazaladas(am, am: em, em, im, im) Inicia as familias silabicas ba ba ba ba ba abaixo be
be be be be). Era um material que de certa forma atendia o primeiro momento da
aprendizagem da leitura e da escrita, quando se acreditava que primeiro tinha que
decorar todo o alfabeto e as todas as combinações para depois iniciar a leitura e escrita
de palavras. Diante desses fatos torna-se evidente o sucesso de uso desse método em
vários estados brasileiros.
Além dessa breve apresentação das cartilhas utilizadas, poderíamos elencar outros
títulos, tais como o Primeiro Livro de leitura para uso da infância brasileira Abilio
Cesar Borges 14 edição revista e melhorada Bruxellas E. Guyot [1877] composto e
publicado em Pariz.. As cartas do Abc, que são várias cartas com o mesmo título, mas
destacamos a Cartas de ABC do Professor F. Nazareth. RJ: Serafim Jose Alves 1897
27p. Esta é uma outra história que precisa ser feita.
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o aprendizado da leitura no brasil do sculo xix