EDITORIAL U m cachorro, magro e doente, passa pela frente de uma janela e vê, atrás dela, um velho amigo gordo e sorridente. – Oi, cara! Como vão as coisas? Vejo que a vida não tem te tratado muito bem... – É que aqui fora as coisas estão horríveis. O desemprego, a fome... E tu, como tens conseguido ficar tão próspero? – Ora, aqui dentro tem um cara chamado Pavlov que gosta de brincar com luzes e campainhas. Aí eu me dei conta que, cada vez que ele bate a campainha, se eu cuspir um pouco ele me da de comer. É só cuspir, meu caro, é só cuspir... Vemos neste chiste como aquilo que, em nome do Grande Outro da Ciência, é inserido como significante da prova (o cuspe), se revela, pela verdade que o dito espirituoso descobre no seu avesso, ser não outra coisa do que a própria demanda. O sujeito que conta a piada, defendido pelo guarda-chuvas que a comicidade lhe oferece, se encoraja a denunciar diante seu semelhante, o quanto o Outro não passa de um grande mentiroso. Como a criança o faz na sua travessura, o contador de histórias revela nelas (quando são das boas) o quanto o Discurso se empenha em ocultar o desejo. As recentes descobertas no campo das neurociências costumam ser apresentadas por alguns setores da neuropsiquiatria contemporânea como contrárias à psicanálise. Havendo um curioso esforço em reduzir a operação clínica a um procedimento exclusivamente farmacológico. Que se invente primeiro o medicamento para, depois, criar a doença à sua medida, tem passado a ser uma prática psicopatológica comum. Ora, as descobertas operadas nas neurociências básicas, muito pelo contrário, demonstram que a leitura clínica da psicopatologia que a psicanálise vem estabelecendo durante os últimos cem anos, se verifica atualmente a nível do Sistema Nervoso Central de forma incontestável. E, de modo claro e decisivo, fica comprovado que o SNC é completamente dependente do exercício do significante para estabelecer seu modo de funcionamento. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 1 EDITORIAL NOTÍCIAS Por isso enunciar o correlato comportamental da variabilidade neuroquímica como prova do caráter exclusivamente químico do processo psíquico, ou como contraprova do valor da palavra para esse processo, não constitui senão uma curiosa piada, já que o que oferece como prova não é mais do que sua própria demanda. Com efeito qualquer estudo de metabolismo cerebral que ofereça a leitura em transparência dos efeitos da palavra, revela de forma inequívoca a modificação neuroquímica produzida por esta, e, ainda para a tosca imprecisão da farmacologia atual é muito difícil oferecer a prova da mudança da palavra por indução química. Para isso teremos que esperar até que se inventem poesias injetáveis... Tal viés do discurso poderia ter seu efeito cômico se não capturasse numa gigantesca e iatrogênica proposta hipocondríaca a grande parte de sociedade, e, sobre tudo, se não tentasse nos chantagear com a ameaça mal humorada de um fracasso clínico que nunca existiu. JORNADAS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA NEUROSE OBSESSIVA A peculiaridade com que a neurose obsessiva tem se imposto ao trabalho clínico, fez com que este fosse o tema escolhido para nossas jornadas. Esta forma de neurose – mais resistente aos efeitos de transferência – toma sua contextualidade na maneira como o laço social se constitui hoje. Alguns trabalhos têm sublinhado a sintonia dessa expressão clínica com a busca de uma racionalidade absoluta, pautando nisso o fundamento de uma universalidade. Ainda assim faz-se necessário ampliar a pesquisa, na medida em que a dificuldade no trabalho clínico empurra-nos a isso. Há alguns anos atrás, o diferencial das neuroses parecia definir as identidades sexuais: histéricas, as mulheres; obsessivos, os homens. Hoje, cada vez mais mulheres parecem ter na obsessão uma escolha de sintoma. Uma das vertentes necessárias a ser explorada diz respeito a essa modificação: por um lado, a abordagem das razões dessa mudança, bem como a relação do homem a essa mulher; por outro lado, a peculiaridade da expressão da obsessão na mulher. Outra questão, não menos obsessiva, diz respeito às formas de preservação do pai. Talvez aqui se torne mais evidente o paradoxo que essa referência contém, na medida em que é uma preservação que implica num apagamento. É por essa via que se apresentam as diferentes formas de um luto irresolvido, muitas vezes aparecendo pela inibição e outras tantas pela compulsão. No lugar dessa irresolução comanda a voz do supereu, essa espécie de inimigo íntimo. PROGRAMA SEXTA-FEIRA – DIA 19/11 ABERTURA – 19h “Atualidades da obsessão” - Ana Maria M. da Costa “Luto e forclusão na neurose obsessiva” - Lúcia A. Mees “Entre o desejo e a obrigação”- Conceição de F. Beltrão 2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 3 NOTÍCIAS NOTÍCIAS SÁBADO – DIA 20/11 MANHÃ – 9h “Quando se ama uma mulher, se a respeita” - Mario Fleig “Voz impessoal e mutismo” - Liz Nunes Ramos “A inibição na infância e seus desdobramentos” - Ieda Prates da Silva TARDE – 14h e 30min “Blefe” - Maria Rita Kehl “A neurose obsessiva, o superego e o medo de mulher” - Jaime Betts Lançamento da Revista da APPOA 16h e30min – Intervalo 17h “Em busca das conexões perdidas” - Liliane S. Froemming “Manual de instruções para refazer o pai a cada instante” - Alfredo Jerusalinsky LOCAL DO EVENTO: HOTEL CONTINENTAL - Largo Vespasiano JúlioVeppo nº 77 INFORMAÇÕES E INSCRIÇÕES: Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA Profissionais – R$ 50,00 Associados – R$ 30,00 Estudantes – R$ 35,00 A TRANSFERÊNCIA COM A INSTITUIÇÃO NA CLÍNICA INSTITUCIONAL EM DEBATE INSTITUIÇÃO CONVIDADA: Comunidade Terapêutica Ambulatório da Cruz Vermelha REPRESENTANTES: Otávio A. Winck Nunes (Coord. da COTE) Márcio Mariath Belloa (Psicólogo do Ambulatório) DATA: 11 de novembro HORÁRIO: 21h PROMOÇÃO: Fórum LOCAL: Sede da APPOA – Rua Farias Santos, 258 Fone: 333.2140 OBS.: atividade isenta de taxa e de inscrição prévia aberta a todos os interessados 4 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 Dando prosseguimento ao projeto do Fórum, de constituir um lugar de debate sobre os interrogantes que a clínica institucional nos coloca, dia 11 de novembro estaremos nos reunindo com a Comunidade Terapêutica e o Ambulatório da Cruz Vermelha em torno do tema da transferência com a instituição. Lembramos que já tivemos a satisfação de nos reunirmos, no primeiro encontro desta série de debates sobre a clínica institucional, com o Núcleo de Estudos Sigmund Freud, representado na ocasião por Rosane Stefen, oportunidade em que a transferência foi o centro do debate. A questão de então foi a transferência posta em cena por aqueles que endereçavam um pedido de tratamento à instituição. Desta vez, o que nos interessa são os efeitos produzidos no trabalho pelo laço transferencial do membro com a instituição na qual ele insere seu trabalho. A este propósito, cabe comentar aqui a reunião ocorrida no último 16 de setembro, quando o Fórum teve o prazer de receber a Clínica de Psicologia da UNIJUÍ, para discutir o tema do pagamento na clínica institucional, terceiro encontro da série. Como representantes da Clínica, estiveram presentes a atual coordenadora, Ângela Drügg, e Tânia Borba, ambas supervisoras da Clínica e professoras do Curso de Psicologia da UNIJUÍ. Representando o Fórum, Ângela Lângaro Becker. Pensar a transferência com a instituição – via temática do pagamento – , desde o estagiário1, foi o motor do debate. Ângela Drügg observou que , na Clínica, a maior dificuldade, no que se refere ao pagamento, é enfrentada pelos alunos, e não pelos pacientes, como se poderia supor. Mas, a questão que movimentou a discussão foi a interrogação central de sua intervenção, a respeito dos estagiários de psicologia: “o que eles 1 É importante observar que, onde aparece estagiário ou aluno, sugerimos que se leia qualquer um que se encontre numa posição semelhante, qual seja, a de exercer uma prática clínica numa instituição que tenha como objetivo a formação psicanalítica ou com “orientação” psicanalítica (isto é, onde a psicanálise está como referência de uma formação). C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 5 NOTÍCIAS NOTÍCIAS pedem, e às vezes até reivindicam, quando perguntam a nós, super-visores, sobre o destino do dinheiro recolhido através do pagamento que os seus clientes efetuam pelo tratamento?” Que tal pedido possa gerar um mal-estar entre os supervisores/professores, a quem eles, os alunos, endereçam esta pergunta/queixa, parece ser um faceta bem importante da questão. Denuncia os inevitáveis e indesejáveis efeitos de espelhamento, por identificação à falta do Outro, que sofrem aqueles que estão tomados numa transferência. Afinal, sabe-se o quanto as universidades têm pago mal aos seus professores, o quanto eles têm sido vítimas de uma desvalorização social , etc. Entretanto, a despeito da relevância e verdade destas considerações, estas ainda não nos satisfazem. O que demandam esses alunos a seus professores? Tal qual é sabido, desde Freud, no laço transferencial, o dinheiro interpõe-se como o significante que intermedia a relação do sujeito com a falta do Outro. Desobriga o paciente a pagar com o seu ser em troca do lugar dado por aquele que acolhe suas palavras e reconhece ali um saber inconsciente. Se, para o paciente, a questão do pagamento não se formula diferentemente num consultório privado ou num contexto institucional, haveria alguma especificidade para aquele que o acolhe numa instituição, e mais particularmente, numa instituição de formação2? Para alguém que se inicia na prática clínica é muito comum defrontar-se com a dificuldade relativa à cobrança de seus honorários, no que estes podem sugerir de um reconhecimento (imaginário) do lugar de analista. Tanto que os mais desavisados até poderiam se dar por satisfeitos quase que somente com a vinda (retorno) do paciente, por exemplo. 2 Como instituição de formação, entendemos aqui qualquer instituição que vise formação psicanalítica, mesmo que esta figure como um horizonte ideal em instituições que não se destinam a oferecer esta formação específica. O que consideramos aqui é a posição em que o sujeito se encontra em relação a mesma, a saber, a de quem demanda uma formação. 6 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 Nesse sentido, o que estaria pedindo aquele que reivindica (à instituição) pagamento por um trabalho prestado dentro da instituição de formação a que pertence? Reconhecimento, uma filiação. Talvez isso não seja problema para um candidato à analista na IPA, por exemplo, onde o acesso ao lugar de analista se dá através de reconhecimento de um analista-didata, conforme dispositivo pré-estabelecido na instituição. Mas, certamente, o será para aquele que faz sua formação numa instituição psicanalítica lacaniana, onde o pedido de reconhecimento é tomado como um efeito inevitável – mas sempre presente – de uma transferência com a instituição, tal qual a demanda de amor de um analisante; e, por isso mesmo, a resposta não poderá ser de ordem amorosa, e sim uma que remeta o demandante à condição desejante. Representar a instituição (ao acolher um pedido de tratamento dirigido à ela, por exemplo), respondendo em nome dela; e, por outro lado, estar no lugar de quem pede à ela uma formação, o que implica estar de per si, estar por sua conta e risco, talvez constitua um nó difícil de desfazer. Pode advir daí a dupla nomeação: Fórum ( nome do grupo de trabalho que se dedica a pensar e produzir sobre a clínica institucional), para a APPOA; e Serviço de Atendimento Clínico da APPOA ( nome que designa um lugar de acolhimento dos pedidos de tratamento dirigidos à instituição e não a um analista), para fora da APPOA. Valéria Rilho (p/ Fórum) INSTITUIÇÃO E QUESTÕES TRANSFERENCIAIS No próximo dia 11/11/1999, às 21 horas, à convite do Fórum da APPOA, estaremos debatendo algumas questões que dizem respeito à instituição e à toxicomania, os seus desdobramentos e atravessamentos transferenciais. Falaremos especificamente da Cruz Vermelha Brasileira/ POA, através de dois de seus setores: o Ambulatório e a Comunidade Terapêutica (COTE), embora haja outros três. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 7 NOTÍCIAS NOTÍCIAS A filial da Cruz Vermelha Brasileira no Rio Grande do Sul foi instalada em 16 de maio de 1940. Todo o trabalho realizado na Instituição tem caráter voluntário, incluindo a Direção da casa, contando apenas com um quadro mínimo de funcionários. Em sua equipe de trabalho possui 65 voluntários das mais diversas áreas, como: psicologia, terapia ocupacional e familiar, medicina (clínica geral, toxicologia e psiquiatria), comunicação, serviço social, música, educação, nutrição, educação física, artes plásticas, biblioteconomia, artes gráficas, artes cênicas, direito e contabilidade. A fonte de recursos é proveniente de doações feitas pela sociedade civil. Tendo por finalidade prevenir e atenuar o sofrimento humano nos casos de calamidade, verificou-se que as pessoas de baixa renda quase não dispunham de acesso à assistência médica e de tratamento terapêutico adequado na área de dependência química. Em razão disso, a partir da metade da década de 1980, optou por dedicar-se ao assunto, estando hoje estruturada nos seguintes setores: I – Prevenção; II – Ambulatório; III – Comunidade Terapêutica; IV – Grupo da 3a Idade; e V – Departamento de atenção à HIV/AIDS. II - AMBULATÓRIO: Destina-se ao atendimento de usuários de drogas, onde é desenvolvido trabalho terapêutico e médico por uma equipe profissional das áreas de psicologia, psicanálise, médicos das áreas de psiquiatria, toxicologia e clínica geral. Neste setor é realizado trabalho terapêutico, triagem e encaminhamento do paciente aos demais serviços da Instituição, ou para outros locais de atendimento, quando necessário. No período de janeiro a dezembro de 1997 foram realizados aproximadamente 6.000 atendimentos. Além deste serviço, o Ambulatório atua em outros espaços de trabalho, como: Grupo de adolescentes e Seminários. III - COMUNIDADE TERAPÊUTICA (COTE): Através de equipe multidisciplinar e de programa específico, a Comunidade Terapêutica desenvolve tratamento especializado ao dependente químico, voltado à sua reinserção social. Tem instalação para o atendimento de até 15 dependentes, com programa de tratamento adequado a cada cliente. Os familiares engajados ao tratamentos dos clientes, tem reuniões semanais onde são acompanhados por especialistas durante o período deste. Muitas questões têm sido provocadas pelas toxicomanias, nos diversos setores que compõem a Cruz Vermelha. Desde uma definição mais ampla, envolvendo os seus mais diversos aspectos e manifestações, passando por particularidades próprias estabelecidas pela relação entre um sujeito e o objeto que o produz. Nestas últimas, encontram-se passagens extremamente peculiares do uso de um objeto que transita com extrema desenvoltura pelas bordas do remédio e do veneno. Não causando espanto que as drogas, lícitas ou ilícitas, despertem nos jovens e adultos uma curiosidade ilimitada. Claro, é só uma armação. Muitos vasculham o mundo (ou sub-mundo, se preferir) das drogas com exemplar dedicação. Desde a aurora da humanidade até os exemplos recentes (sempre úteis e muito bem-vindos) do Tio Sam - fumar mas não tragar, cheirar mas não aspirar – o fascínio causado pela promessa de gozo pode levar muitos a uma viagem mais longa, alguns resistem, outros embarcam com a passagem só de ida. É um terreno bastante fértil, principalmente, quando se pensa nos usuários de drogas e nos sujeitos de toxicomania que lutam bravamente e preferem dar provas da sua resistência psíquica, mostrando marcas, muitas indeléveis, deixadas em seus corpos e em suas vidas, das angústias que a existência, nem sempre simples, lhes convoca. Se a clínica com usuários de drogas ou com sujeitos de toxicomania apresenta e garante trabalho suficiente para quem deles se ocupa – causando, inclusive, uma certa dependência - outras questões igualmente complexas originam-se dentro de setores de Instituições como a Comunidade Terapêutica da Cruz Vermelha Brasileira/POA(COTE) e o Ambulatório. A Cruz Vermelha é uma Instituição marcada por vários cruzamentos de idéias, de posições e, antes de tudo, guiada por diferentes enquadres éticos, em função disso sofre conseqüências no dia-a-dia do seu trabalho. A COTE propõe um enfoque psicanalítico para o tratamento das toxicomanias, e, guiada por este referencial, propõe um modelo de tratamento bastante diferenciado dos modelos tradicionais existentes, o que não significa dizer que está isenta das influências da Instituição na qual encontra-se inserida. Já no Ambulatório existe uma diversidade maior de referenciais C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 8 9 NOTÍCIAS NOTÍCIAS teóricos, dependendo da formação dos seus integrantes. Visto que a proposta da Cruz Vermelha, de uma maneira geral, está identificada mais com os pressupostos encontrados nos grupos de autoajuda – que tem o ideal da abstinência como cura, e não fazem parte da Instituição, mesmo que lá se reúnam - do que propriamente nos setores que a compõem, este, talvez, seja o primeiro paradoxo institucional com que nos confrontamos. Existem outros atravessamentos institucionais que marcam a transferência e que poderemos discutir mais detalhadamente nessa reunião proposta pelo Fórum da APPOA. Otávio Augusto Winck Nunes Coordenação da COTE colega Volnei Dassoler se dispôs a apresentar, no próximo encontro do cartel, o texto de Freud “Inibição, sintoma e ansiedade”. Considerou-se interessante que as reuniões do Cartel possam se dar na mesma data dos Exercícios Clínicos, pois o sábado (dia 25/09) configurou-se como um dia de trabalho muito produtivo na APPOA, o que, sem dúvida, favorece a vinda dos participantes de outras cidades. A próxima reunião do Cartel do Interior será marcada posteriormente, e comunicada por correspondência. Coordenação do Cartel do Interior TEMAS DO CORREIO DA APPOA 1º SEMESTRE 2000 CARTEL DO INTERIOR No dia 25 de setembro, na APPOA, tivemos a reunião do Cartel do Interior. Como de praxe, na primeira hora de trabalho conversamos sobre o andamento do Cartel. Entre os temas abordados, discutiu-se a possibilidade de publicação dos trabalhos da Jornada Imigração e Fundações, cujos textos já se encontram nas mãos da Comissão de Aperiódicos, para revisão e encaminhamento. O cartel enfatizou a importância desta publicação, apesar de transcorridos 4 anos da realização da Jornada. Consideramos sua pertinência, pois poderá ser uma publicação preparatória ao Congresso dos 500 ANOS, além de trazer a público um momento de produção bastante fecundo para a APPOA e, em especial, para o Cartel do Interior. Na 2ª parte da reunião, tivemos uma discussão teórico-clínica, a partir do trabalho apresentado por Ieda Prates da Silva: “A inibição na infância e a neurose obssessiva - Algumas interrogações”. O debate foi bastante instigante, levantando questões sobre a angústia na infância, e suas relações com a inibição e o sintoma. Houve interesse de que pudéssemos seguir debatendo o tema, e o 10 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 Estamos divulgando a lista com os temas que foram estabelecidos para as seções temáticas dos números do Correio que serão publicados no primeiro semestre do próximo ano. Desta forma, procuramos convocar a todos os membros e participantes da APPOA para contribuir com textos sobre os temas em questão. É importante que possamos contar com a produção escrita de todos aqueles que se sintam, de alguma forma, implicados com as questões levantadas para publicação. Assim, torna-se possível promover a circulação das idéias e discussões que fazem parte do cotidiano de nossa instituição. Lembramos que todos os textos devem ser encaminhados à Comissão do Correio, sendo publicados de acordo com nossas possibilidades editoriais, e que o prazo de entrega é sempre no dia 1º do mês anterior ao da publicação. Março/2000 – Tema da Jornada de Abertura – Resp.: Francisco Settineri Abril/2000 – Estética – Resp.: Edson de Sousa Maio/2000 – Tema do Relendo Freud – Resp.: Maria Lúcia/Márcia Junho/2000 – 500 Anos – Resp.: Robson Julho/2000 – As questões da clínica institucional – Resp.:M. Ângela Brasil C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 11 NOTÍCIAS NOTÍCIAS JORNADA DE ESTUDOS - CENTRO LYDIA CORIAT PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO COM MARIA CRISTINA KUPFER O Centro Lydia Coriat convida a todos para a terceira jornada do ciclo de atividades psicopedagógicas, cujos temas serão “Psicanálise e educação na clínica de crianças com problemas do desenvolvimento” e “O trabalho psicanalítico e educacional na instituição do tratamento”. Para trabalhar estas questões, contaremos com a presença da psicanalista Maria Cristina Kupfer, professora da USP e diretora da pré-escola terapêutica Lugar de Vida. A atividade acontecerá no próximo dia 11 de dezembro. Maiores informações no Centro Lydia Coriat, rua André Puente, 415, fones (51) 311 2243 ou (51) 311 0091. CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE E SUAS CONEXÕES: O ADOLESCENTE E A MODERNIDADE Rio de Janeiro, 18 a 21 de agosto de 1999. Um resumo do Congresso, foi o que me pediram. Difícil. Imaginem umas 900 pessoas - psicanalistas, educadores, filósofos, estudantes,etc.das mais diferentes proveniências do Brasil e do mundo, reunidos (“encerrados”) num Hotel, na mais bela cidade do mundo, durante quatro dias. Detalhe: os trabalhos, nas diferentes modalidades – conferências, mesas redondas, temas-livres,- eram apresentados das 8 horas da manhã às 9 horas da noite, ininterrupitamente. Trabalho árduo, mas que teve como maior interesse, a meu juízo, poder ouvir a psicanálise, e seus desdobramentos clínicos, contada em diferentes sotaques e línguas o que, de alguma forma, materializa as diferentes leituras e estilos.”Efeito cotonete”.O familiar retornando como estranho, dando-nos a ouvir articulações significante para os quais a cotidianeidade das palavras nos torna surdos. A tônica da discussão foi a indagação acerca da adolescência – para 12 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 além da concepção desemvolvimentista da psicologia e dos efeitos da maturação maturação biológica do corpo – como um momento lógico de operação do sujeito em suas relação ao significante. Esta concepção, que Rassial já nos havia feito ver, encontrou, seus desdobramentos nos trabalhos de vários colegas. Um outro aspecto considerado em vários momentos do Congresso foi a particularidade da operação da adolescência como se ela fosse o próprio efeito na cultura do declínio da função paterna. Ora, a este declínio associamos de imediato a incosistência simbólica do pai hodierno. Porém, no Congresso introduziu-se algo que, ao menos para mim, soou como novidade no discurso analítico:a falência não apenas simbólica mas também imaginária do Outro. Assim, alguns trabalhos tentaram dar conta dos efeitos no sujeito e, portanto, no sintoma social, desde “Outro vazio”- inconsistente simbólica e imaginariamente. Por um lado, a “melancolização”dos discursos como índice do desamparo do sujeito diante do Real do corpo Por outro (e talvez sejam verso e reverso da mesma questão), a produção de atos perversos como tentativa do sujeito de fazer borda a este Real. A toxicomania, trabalhada especialmente pelo Dr. Charles Melman, é o principal exemplo. A questão que fica no ar, no entanto, é oque a psicanálise pode fazer com com isto sem cair na discurso moralista, sem encarnar ela mesma o Outro, tornado-se insuportável ao adolescente? Melmam convoca os analistas a darem aos objetos seu verdadeiro nome, quando,por exemplo, chama as drogas de “sexolíticos”, indicando, como seu principal efeito, agamento da diferença sexual. REVISTA DA APPOA Lembramos aos membros e participantes da APPOA que o seu exemplar da Revista da APPOA nº 16 – Psicanálise e educação: uma (trans) missão possível – encontra-se disponível na secretaria. Aos que ainda não o retiraram, que o façam entre o horário das 9 às 21h. Para os demais, oferecemos a possibilidade de aquisição, através de assinatura anual ou de venda avulsa. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 13 NOTÍCIAS 14 NOTÍCIAS C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 15 NOTÍCIAS NOTÍCIAS DOM CASMURRO; CEM ANOS INVENTANDO UM BRASIL A Jornada promovida pela APPOA, em conjunto com o Instituto de Letras, no início do mês de outubro passado, foi mais um passo numa trajetória de trabalhos que remontam ao início da própria Associação. Além disto, teve efeitos muito interessantes em diversas situações. Um destes efeitos está expresso nas manifestações dos participantes a respeito da qualidade do debate/diálogo entre as pessoas oriundas da Psicanálise e das Letras. Qualidade evidenciada no rigor das conferências, onde não se tentou reduzir o texto a um ou outro campo do saber. Uma pequena menção aos trabalhos apresentados – resenhá-los na totalidade seria tarefa impossível. Luís Augusto Fischer e Enéas Costa de Souza fizeram a noite de abertura. Ao discorrer sobre “A equação de Machado”, Fischer abordou ,principalmente, os ensaios onde o “bruxo do Cosme Velho” elaborou as condições para escrever sua grande obra. Desde 1857, onde pretendia analisar o “passado, presente e futuro” da literatura brasileira, passando pelas décadas de 60 e 70 do século passado, onde afirmava a importância da crítica para o crescimento da literatura, criticava o realismo ao analisar “O primo Basílio” e desvendava as conseqüências da ciência moderna “que despovoara o céu de estrelas da juventude romântica”. Sem nos esquecermos do famoso ensaio, onde Machado analisa nosso “instinto de nacionalidade” onde toma forma a tese de que a identidade e a criatividade brasileira está além dos signos imediatos da “cor local” – tema que voltaria a ser abordado, de maneiras singulares, por Lucia Serrano Pereira e Maria do Carmo Campos. Eneas de Souza, no “Luto de Bentinho e o silêncio de Capitu” falou deste luto extremo, onde morreram todos os personagens principais, nesta tragédia que dialoga com o Otelo shakesperiano, de maneira invertida. O silêncio de Capitu, efeito de sua condição social inferior, sua tentativa de proteger o filho e, finalmente, sua morte no exílio, fazem com que a narrativa de Dom Casmurro possa ser lida como “um eco do silêncio de Capitu”, conforme definiu Enéas. A ironia que desvenda o cinismo de Bentinho, a postergação calculada e a passagem do direito privado para o âmbito públi- 16 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 co foram outros tópicos abordados. A atualidade do problema da justiça, possibilitou que o palestrante pudesse nos lembrar da atualidade do “Malestar na cultura” , de Freud. No sábado, continuando a jornada, Homero Araújo, ao abordar a “Estratégia narrativa de Dom Casmurro”, lembrou este mal-estar inexplicável, “este abafamento e claustrofobia após a leitura” que o leitor não consegue explicar totalmente. Homero retomou o ensaio de 1873, onde Machado falava do sentimento íntimo de nacionalidade , assim como expandiu a pergunta a respeito do papel reservado ao leitor, num texto onde os argumentos podem ser lidos com índices positivos ou negativos, caso tenhamos ou não confiança no narrador. Diga-se de passagem que a confiança na respeitabilidade e honestidade no narrador Bentinho/Bento Santiago levou quase setenta anos para ser colocada em questão. Ana Costa abordou a impossibilidade de unir “as duas pontas da vida”. Tarefa que o narrador colocou como objetivo de sua obra e que só constatou seu fracasso. A dicotomia do livro, à parte outra interpretações possíveis, só nos faz reconhecer a dicotomia brasileira com a escravatura e a impossibilidade vigente na construção do pai no brasileiro. Impossível conciliar o pai idealizado com o pai real. Segundo Ana, foi o desprendimento de Machado pela identidade que permitiu transcender a dicotomia que aparece em diversos momentos: Brasil x Europa, Potência x miséria corporal ou mesmo agregado x filho legítimo. Maria do Carmo Campos ressaltou a riqueza de detalhes da obra de Machado e sua atualidade. Neste sentido, o grande escritor oferece a possibilidade de ser lido pelo viés da opacidade. Onde o leitor trabalha as pistas, os disfarces sem a imposição de fazer um juízo que correria o risco de ser reducionista. Machado “amarra” seus personagens no espaço doméstico, mas descreve toda a vida urbana do Rio de janeiro e nos insere na literatura ocidental. “Convivas de boa memória”, título de um dos capítulos do livro, foi o pretexto utilizado por Lucia Pereira para falar das articulações entre memória e invenção. As obras de Machado, em particular Dom Casmurro com suas memórias, produzem uma realidade, recriam a origem no futuro, sem C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 17 NOTÍCIAS SEÇÃO TEMÁTICA negligenciar um passado. Assim, o “sentimento íntimo” que descreveu Machado é um campo de enunciação que organiza e determina o sujeito, tendo por conseqüência impossibilidade de fazer uma dicotomia, uma escolha definitiva entre a “cor local” e o universal. Robson de Freitas Pereira ressaltou a importância do agregado José Dias para mostrar como o desejo de um sujeito se articula com o “discurso do outro”. De uma figura secundária na escala social, saiu a grande revelação da vida de Bentinho: seu amor por Capitu. Além disto, a impossibilidade de “reconciliar-se” com sua filiação impediu Bento Santiago de assumir sua paternidade e conseguir fazer frente a um ciúme extremado que o levou a tragédia do desejo. A MUDANÇAS DE ENDEREÇO Robson de Freitas Pereira comunica mudança de endereço e telefone de consultório: Rua Marques do Pombal, 783 - cj. 405; Telefone: 337 8399 Jaime Betts comunica seu e-mail: [email protected] Liliane Fröemming comunica a mudança de seu e-mail: [email protected] seção temática deste número do Correio trabalha a questão do humor, tema que esteve presente desde os momentos iniciais da teorização freudiana em torno das formações discursivas próprias ao sujeito do inconsciente, quer dizer, de linguagem, até quase o final de sua produção. Compareceu também nos estilos de Freud e Lacan transmitirem suas experiências, muitas vezes pelo viés da ironia, e não deixou de marcar o percorrido da psicanálise em torno da psicopatologia e da formação dos analistas, além de nos tomar, cotidianamente, na prática clínica e na vida institucional. O texto da Ana Maria da Costa cruza os textos freudianos sobre O humor e o Fetichismo, ambos de 1927 e demonstra como se produz o humor a partir da realidade do significante, através dos jogos de semelhanças e contrastes, ordenadores do paradigma fálico que nos funda e sustenta. Abraão Slavutzky questiona os novos rumos para a abordagem clínica, para a psicanálise, numa tentativa de romper com o encanto narcísico pela tragédia e pelas “verdades sérias” como visão de mundo, percorrendo o conceito e a história do humor. O texto de Francisco Settineri detalha a técnica de produção dos chiste, quanto à metáfora e produção de sentido indagando também sobre uma possível retórica e possibilidade de intervenção analítica na psicose. Alfredo Jerusalinsky faz um contraponto relativo aos tipos de mau-humor, ressaltando as diferentes modalidades de invocação do Outro contra o semelhante. Liz Ramos traz algumas observações, colhidas de um capítulo da tese de doutorado de Luiz Augusto Fischer, sobre a produção de humor em Nelson Rodrigues, destacando alguns dos recursos e posições subjetivas mais presentes em seus ensaios. E, sendo pertinente ao tema, incluímos na Seção Temática uma crônica de Luís Fernando Veríssimo. Para rirmos um pouco, reproduzimos a seguir dois cartuns de Miguel Paiva. Aos que colaboraram com a elaboração desta seção, nossos agradecimentos e a todos uma boa leitura! Liz Nunes Ramos C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 NOTÍCIA ANA COSTA - M. R. KEHL 18 19 SEÇÃO TEMÁTICA SEÇÃO TEMÁTICA CONTRASTES E SEMELHANÇAS CARTUNS MIGUEL PAIVA Ana Maria Medeiros da Costa “Qual a semelhança entre um homem e uma garrafa de cerveja? - Do pescoço prá cima são vazios. Qual a semelhança entre o homem e o caracol? - Tem chifres, babam e se arrastam. E ainda pensam que a casa é deles! Qual a semelhança entre o homem e o microondas? - Aquecem-se em 15 segundos. Por que não existe um homem inteligente e bonito ao mesmo tempo? - Porque seria uma mulher.” (Piadinhas da Internet) A lista dessas piadinhas pode ser inesgotável. Elas correspondem à versão feminista das piadas machistas dos anos 50/60 (essas datas podem variar, dependendo dos lugares). Naquele então, numa roda de homens, era compartilhada a ilusão de que haveria um sexo único (o masculino), que estaria “por trás” e seria a medida de todas as coisas. A mulher entrava na roda como o objeto terceiro – o véu – que escondia a mostrava. Era o objeto dos tratos extremos: desde extremadas paixão e dedicação, até à virulência do escárnio. As piadas masculinas sobre a insignificância das mulheres sempre fazem lembrar o pequeno Hans olhando os genitais de sua irmãzinha: “é tão pequenininho”. Pois bem, o contraponto feminino atual dessas piadas parece dizer o mesmo dos genitais masculinos: “olha só como é pequenininho”. Como é possível que sexos tão diferentes possam representar a mesma coisa? O texto de Freud, O humor1, foi escrito depois de seu clássico texto 1 20 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 FREUD, S. El humor. (1927) In: _____.Obras Completas. Madri: Biblioteca Nueva, 1972. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 21 SEÇÃO TEMÁTICA O fetichismo2, que tantas questões ainda continua nos trazendo. Ao lê-lo, indagava-me sobre a diferenciação das três categorias: cômico, chiste e humor. Para as duas primeiras – cômico e chiste – o autor dedicou as interpretações de 19053, que se tornaram clássicas. Lá, ele propõe que no cômico alguém faz do outro objeto de seu riso (excluindo-se, ou bem economizando o reconhecimento de sua própria miséria); enquanto que no chiste o objeto é um terceiro ausente, o que faz com que o efeito de chiste inclua os dois interlocutores. Já no texto do humor, o objeto é o eu. Freud propõe, então, a seguinte diferença: enquanto que o chiste é uma contribuição ao cômico, oferecida pelo inconsciente, o humor seria uma contribuição ao cômico mediada pelo supereu. Ele propõe o humor como uma criação com o narcisismo, uma espécie de economia da realidade, com um efeito de exaltação produzida pelo supereu. É por essa “economia” da realidade que Freud vai dizer que o humor é rebelde (como no exemplo do condenado à morte, que vai para uma execução na segunda-feira e comenta: “linda maneira de começar a semana”). Independente das diferenças de tópicas, propostas por Freud, que por vezes embaralham nossas abordagens conceituais, talvez possamos considerar três convocações identificatórias, no gozo com o cômico, que são as três posições possíveis do trato com o objeto: o objeto no outro, o objeto no eu, ou o objeto na palavra. Bem entendido, “objeto” aqui indica somente o suporte de um traço que produz a alternância presença-ausência. Essa alternância é o que permite pensar que o gozo se constitui ou bem num efeito de contraste, ou bem num efeito de semelhança. No que diz respeito ao contraste, Pirandello4 vai propor o humor como um sentimento dos “contrários”. Ele procura diferenciá-lo tanto do cômico, quanto da retórica, na medida em que nestes dois casos o autor coloca-se 2 FREUD, S. El fetichismo. (1927) In: _____.Obras Completas. Madri: Biblioteca Nueva, 1972. 3 FREUD, S. El chiste y su relación com lo inconsciente. In: _____.Obras Completas. Madri: Biblioteca Nueva, 1972. 4 PIRANDELLO, L. O humorismo. São Paulo: Experimento,1996. 22 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 COSTA, A. M. M. da. Contrastes e semelhanças. fora daquilo que produz. Ou seja, sua produção não faz parte de sua “vivência”, na expressão do autor. Assim, o cômico aponta algo risível no outro e o retórico é mestre em jogar com as palavras para encantar o outro. O sentimento do contrário liga-se principalmente ao desacordo entre a vida real e o ideal, entre nossas aspirações e nossas fraquezas e misérias. Vemos aqui a coexistência, numa mesma expressão, da idealização e do rebaixamento. Sublime e degradado constituem a polarização fálica que mantém o véu entre símbolo e real. No humor trata-se de levantar o véu, superando o apelo fálico. Um bom exemplo que traz a brincadeira dos contrários encontrei num filme de Almodóvar, denominado “Maus hábitos”. Tratava de um pensionato de freiras – no caso, mulheres que usavam hábitos – compondo personagens muito peculiares. Bastam dois exemplos para indicar do que se trata: uma delas, somente cozinhava depois de tomar ácido, enquanto a madre superiora se drogava com cocaína e transava com as protegidas. Ou seja, “hábitos” tanto serve para indicar uma veste que santifica, quanto serve para indicar um vício. Almodóvar, ao brincar com as mulheres santas-degradadas, brinca com um dos pilares de sustentação da cultura espanhola, que diz respeito ao culto às virgens (diferentes representações da Virgem Maria). Retomando as questões da abertura deste texto, talvez não seja indiferente que Freud tenha escrito sobre o humorismo depois do trabalho sobre o fetichismo. Deste último, é possível deduzir a ampla gama que nos organiza enquanto jogo das semelhanças e que se situa nesse paradigmático “muito pequenininho”, do menino Hans (curiosamente ele se cristalizou como “pequeno Hans” no meio analítico). A expressão “pequenininho” joga com duas faces. Por um lado apresenta o contraste em relação ao “grande”, trazendo a identificação do menino na sua não correspondência ao falo. Não se trata somente dessa historinha freudiana, que o menino vendo alguém que não tem pênis teme perder o seu. É que todo irmão (ou rival) traz essa dimensão do “pequenininho”, que faz referência ao contraste criado pela perda de um lugar único (não é por nada que os meninos vivem medin- C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 23 SLAVUTZKY, A. A piada e sua relação... SEÇÃO TEMÁTICA do seus pênis, mesmo os “meninos” grandes), e que se produz por um jogo de alternância presença-ausência. Nesse momento, não há experiência da diferença dos sexos, a não ser pela interpretação dos pais. A outra face do “pequenininho”, contém a semelhança (na verdade, as duas faces não são separáveis). A semelhança interpreta a identificação. É por essa razão que as representações de falo materno sempre nos parecerão risíveis, ridículas, ou nojentas, porque é a face que mais “lembra” o recalque. O exemplo que Freud dá de fetichismo é extremamente interessante e reproduz o jogo das semelhanças. Ali vemos como um trânsito interlingüístico transforma “brilho sobre o nariz” (fetiche do jovem), em “olhar sobre o nariz”. Por aí uma presença (brilho) contém uma ausência (olhar). O olhar é o objeto que se fixa na referência ao Outro sexo (Lacan coloca em maiúscula para sublinhar a ausência de identidade). O olhar como objeto é sem conteúdo (ou seja, não há “algo” a ser olhado), puro exercício sem arrimo nem descanso. O que o pára é o fetiche: uma “realidade” criada pelo significante. É nesse terreno do jogo dos contrates e semelhanças, numa suspensão da dualidade “realidade”-ilusão (ou mesmo, real e símbolo), que se produz o humor. Enquanto definição, é aquilo que não serve para nada, mas que pode mudar nossa vida. A PIADA E SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE OU A PSICANÁLISE É MUITO SÉRIA 1 Abrão Slavutzky 2 Porque aprendi luchando que es mi deber terrestre propagar la alegria elementaresPablo Neruda O escritor Anton Tchekov ensinou que o trágico e o cômico são apenas duas janelas diferentes, que dão para a mesma paisagem atormentada. O homem para resolver seus enigmas foi inventando mitos e deuses, filosofias e artes, para expressar suas idéias, sua perplexidade frente a vida. Olhar para poder penetrar os mistérios humanos e naturais. Foram os gregos que na antigüidade criaram o teatro e a filosofia, a política e a literatura para expressar uma nova fase de descobertas, sobre quem realmente é este estranho ser humano, que sabe chorar e rir, que vai do sofrimento a felicidade, da paz a guerra, que encerra tantas contradições. Nos famosos festivais de teatro na Hélade, durante um dia inteiro, toda a população da cidade assistia tragédias e comédias, as diferentes janelas para a mesma paisagem humana, que escreveu Tchekov. Freud 1 Uma parte das idéias deste artigo foi desenvolvida num grupo que realizo com a Sandra Bandeira, Ana Maria Tolentino de Souza, Rosana Steffen e Sonia Piva da Silva no N.E.S.F. A leitura de Escrever a clínica de Renato Mezan, bem como suas revisões deste artigo foram importantes, por isso a todos expresso a minha gratidão. 2 Psicanalista e autor de: Psicanálise e cultura, Rio de Janeiro, Vozes,1983; Para início de conversa com Cyro Martins, Porto Alegre, Movimento, 1990; Transferências, (org.), São Paulo, Escuta, 1991; Jogo uma paixão, co-autoria de Paulo Burd e Ricardo Padilha, Porto Alegre, Sólivros, 1994; História, clínica e perspectivas nos cem anos da psicanálise, organizado com Edson de Sousa e Cesar Brito, Porto Alegre, Artes Médicas, 1996; A paixão de ser - Depoimentos e ensaios sobre a identidade judaica, Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1998. 24 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 25 SLAVUTZKY, A. A piada e sua relação... SEÇÃO TEMÁTICA que tanto contribuiu para compreender a realidade psíquica via o drama humano através de qual janela? Octave Mannoni3 publicou uma carta de Dora (uma adolescente tratada por Freud) à senhora K, a mulher de pele branca que tanto excitava o seu pai. Na carta Dora escreve que havia nele uma estranha contradição: “Estou sempre dizendo para que os senhores me façam proposições, mas é para rechaçar e esbofetear. Parecia importante, mas Freud não me disse nada. Se ao menos tivesse rido. É um homem elegante fisicamente. Cheira a charuto e a água de colônia.Se houvesse se atrevido a lançar uma boa gargalhada, dizendo: Você queria que eu fizesse proposições para dar-se ao gosto de esbofetear-me? Então haveria rido também, haveríamos rido (não se ri nunca) e isso quem sabe, nos teria aproximado a compreensão da contradição”. Mais adiante Mannoni que inventou esta carta, insiste em enfatizar que Dora era jovem e Freud era sério, mortalmente sério. Sigmund Freud, ao que tudo indica era muito sério no seu consultório. Nos seus famosos casos clínicos, ou em seus diversos artigos de técnica, não há referência ao humor, a piada, ou alegria na relação entre psicanalista e paciente. A tragédia de Édipo Rei, bem como Hamlet são importantes nas suas elaborações teóricas, mas não há referências a obra de Aristófanes e também Molière. O QUE É O HUMOR? A palavra é latina humor, humoris, é líquido, fluido, humores do corpo humano como o sangue, a linfa, a bílis, enfim as seivas da vida. Portanto sua origem é médica, revelada pelos gregos cujos traços principais foram dados por Hipócrates, que estabeleceu relações entre os temperamentos e os humores, líquidos corporais. Segundo esta fisiologia, que vai até o fim da Idade Média, os humores do corpo humano influiriam no caráter dos indivíduos, no seu temperamento. Foi só no século XVII, que a palavra começou a ter o significado atual. Em 1906, Louis Cazamian, um jovem professor de literatura inglesa, escreveu um artigo cujo título era: Porque não podemos definir o humor4. Título paradoxal e bem humorado, pois em seguida tenta definir o humor desde seu mecanismo estético. Em 1950, o mesmo Cazamian escreveu um livro sobre o desenvolvimento do humor inglês, mas renuncia a definir o humor. A renúncia de definição revela a dificuldade, mas Luigi Pirandello num livro sobre o humor escreve “o humorismo consiste no sentimento do contrário, provocado pela especial atividade de reflexão que não se esconde, como geralmente na arte, uma forma de sentimento, mas o seu contrário, mesmo seguindo passo a passo o sentimento como a sombra segue o corpo”5 . Para o humorista, segue Pirandello, “as causas na vida, não são nunca tão lógicas, tão ordenadas, como nas nossas obras de arte comuns. A ordem? A coerência? Mas se nós temos no interior quatro, cinco almas em luta entre si: a alma instintiva, a alma moral, a alma afetiva, a alma social? E conforme domine esta ou aquela compõe-se a nossa consciência, e nós consideramos válida e sincera aquela interpretação fictícia de nós mesmos, do nosso ser interior que desconhecemos, porque não se manifesta nunca inteiro, mas ora de um modo ora de outro como queiram os casos da vida. O humorista decompõe o caráter em seus elementos; mostra as suas incongruências”6. O sentimento do contrário tão bem descrito por Pirandello é uma das essências do humor, que permite relativizar tudo e quebra toda seriedade teórica e prática seja do que for. O humor não reconhece heróis; diverte-se em decompor, mesmo quando não seja um divertimento agradável. Parte do sentido em busca do nonsense, ao contrário da interpretação que parte do nonsense, para buscar um sentido. É um ato de desdobramento no ato mesmo da concepção; por isso, todo sentimento, todo impulso, todo pensamento que surge no humorista, se desdobra em seguida no seu contrário: todo sim em um não que assume o valor de sim. O humor, como diz Jankélévitch, “caminha sem 4 ESCARPIT, R. L’Humour. Paris: PUF, 1994, p. 5. PIRANDELLO, L. O humorismo. São Paulo: Experimento, 1996, p.169-70. 6 Idem, ibidem. 5 3 MANNONI, O. Ficciones freudianas . Madrid: Fundamentos, 1980, p.16. 26 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 27 SLAVUTZKY, A. A piada e sua relação... SEÇÃO TEMÁTICA alvo sobre a terra, não tem tese, não advoga, vai sempre mais além, está sempre a caminho; mesmo no fundo da infelicidade extrema e da vergonha, o gracioso arabesco, o bizarro, faz emergir o sorriso do deslumbramento. A ironia é a arma dos fortes, enquanto o humor é a única arma dos fracos, pois a humildade humorística permite ultrapassar a humilhação. O humor é a arma dos desarmados e não triunfa pois o humor goza a si mesmo. O humorista traz à tona a dúvida e a precariedade, sempre busca a liberdade de brincar com o poder de qualquer ordem. O humor não leva a sério nada, nem a si mesmo”7. O humor interno, independe das condições da vida: até na infelicidade o gracioso pode emergir, e por isso Freud relata, no final do livro das piadas, a história do delinqüente que levado ao cadafalso numa segunda feira, manifesta: “Ah!, começa bem a semana! Este condenado a morte mantém o seu humor e assim nos economiza desprazer, pois frente a morte ele nos faz rir – um riso contido, até um pouco tristonho, mas também de alívio. Freud volta a esta piada no início do texto sobre o humor, quando define este como sendo rebelde, e diz que o essencial do humor é mostrar o seguinte: Vejam este mundo que aparece tão perigoso, é um jogo de crianças, bom nada mais que para brincar sobre ele”8. Caracterizado o humor, ficam as dúvidas sobre as relações deste com a comédia, o cômico, o riso, a piada - enfim quais são as semelhanças e as diferenças. Peter Gay, em O cultivo do ódio9, decide sabiamente desprezar estas sutilezas para concentrar-se no componente agressivo em seus variados disfarces. Realmente estabelecer diferenças precisas não é fácil e às vezes pode até ser inútil. Pirandello e Freud fazem força para provar que existem estas diferenças entre o cômico e o humor. Entretanto em um recente livro sobre a história cultural do humor, da antigüidade aos dias de hoje, os vários autores preferem definir o humor de forma ampla, isto é como qualquer mensagem que busca o sorriso ou o riso. Justificam esta definição como a única forma de estender as investigações da antigüidade até os dias de hoje10. Como escreveu Aristóteles 11, “a comédia é uma imitação de homens inferiores”. Não se nutre do fundo histórico ou mitológico, suas conclusões em geral são otimistas, o riso do público é de cumplicidade, protege-o da angústia trágica, dando-lhe um sentimento de superioridade ante os mecanismos de exagero. A tragédia não é obrigada a terminar em morte, mas traz sempre muito sofrimento, atua em nossas angústias profundas, enquanto a comédia sensibiliza nossos mecanismos de defesa contra estas angústias. A tragédia é um gênero literário e o trágico um princípio antropológico e filosófico. Finalmente o drama é uma síntese da comédia e da tragédia.Talvez, como escrevi antes o melhor teria sido seguir o conselho de Peter Gay, pois as definições ajudam, mas criam dúvidas e as vezes são contraditórias. De qualquer forma, para pensar a visão trágica da psicanálise seria preciso fazer um estudo histórico de todas estas questões. Como esta tarefa aqui seria impossível, pode ser útil uma breve história do humor, para aí sim estudar as difíceis relações entre o humor e a psicanálise. O HUMOR TEM UMA HISTÓRIA No final do Banquete, Aristodemo recorda que Agatão, Aristófanes e Sócrates seguiam conversando, quando já cantavam os galos e escutou Sócrates defender a idéia, que um mesmo homem deve saber fazer uma comédia e uma tragédia, e que o poeta trágico é também um poeta cômico. A tragédia grega ficou tão famosa que em geral a comédia fica esquecida. Werner Jaeger12 destaca com sobra de argumentos, como a comédia era valorizada pelos gregos do século de Péricles. A comédia de Aristófanes tem uma liberdade de espírito que lhe permite encarar como efêmeros os sucessos da vida cotidiana. As loucuras e fraquezas humanas precisam 7 10 JANKÉLÉVITCH, V. Entrevistas do Le Monde. In: Filosofias . São Paulo: Editora Ática,1990, p. 117-9. 8 FREUD, S. Humor. In: _____. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1986, 216-7. 9 GAY, P. O cultivo do ódio. São Paulo: Comp. das Letras, 1995, p. 375. 28 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 BREMMER; ROODENBURG. A Cultural History of Humour. Cambridge: [s. ed.], 1997, p.1 ARISTÓTELES. Poética. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1990, p.109. 12 JAEGER, W. Paidéia. São Paulo: Martins Fontes/UnB,1989, p.288-92. 11 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 29 SLAVUTZKY, A. A piada e sua relação... SEÇÃO TEMÁTICA ficar em liberdade plena, para que não falte a beleza eterna do riso, condição indispensável para viver bem. Para Jaeger a cultura ática não pode manifestar a amplidão e profundeza de sua humanidade com maior clareza do que por meio da diferenciação e integração do trágico e do cômico, operada no drama ático. Portanto bem antes de Tchekov, a Grécia que inventou o teatro, ressaltava a importância da comédia ao lado da tragédia.Luigi Pirandello questiona a existência do humor em Aristófanes, bem como Theodor Lipps, mas quando Sócrates assiste As nuvens, comédia onde é criticado, e ri do escarnio que dele fez o poeta, demonstra ter o sentido do humor. No livro O nome da rosa, de Umberto Eco, é possível imaginar como a religião na Idade Média, associava o riso ao diabo. Ao final do livro o monge Jorge explica que “a comédia nasce nas komai, ou seja, nos vilarejos dos camponeses, como celebração jocosa após um banquete ou uma festa. Explica que o riso é a fraqueza, a corrupção, a insipidez de nossa carne (...) o riso libera o aldeão do medo do diabo. E o que seremos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais benéfico e afetuoso dos dons divinos? (...) E este livro, a segunda parte da Poética de Aristóteles, sobre a comédia, a sátira e o mimo é um remédio milagroso, pois produzem a purificação das paixões através da representação do defeito, do vício, da fraqueza, induzindo os falsos sábios a tentarem redimir (com diabólica inversão) o elevado, através da aceitação do baixo”13. Impressionante as críticas ao riso por parte da religião na Idade Média, que Umberto Eco tão bem reproduziu no seu romance. Com o Renascimento, vai nascer a Commedia dell’ Arte na Itália e escritores do teatro como Ben Jhonson na Inglaterra que em 1599 – Cada homem fora de seu humor – propõe uma nova teoria do humor: baseado na concepção médica dos quatro humores que regem a conduta humana, aponta a criação de personagens-tipo, determinados psicologicamente e que atuam em função de um deles, mantendo um comportamento idêntico em todas as situações. Este gênero se aproxima a comédia de caracteres. Mas foi outro inglês, William Shakespeare, que ao inventar um personagem como Sir João Falstaff em As alegres comadres de Windsor ou O sonho de uma noite de verão, consolida a comédia e o famoso humor in-glês. Hamlet, sua grande tragédia, possui passagens bem humoradas como o dialogo entre Hamlet e quem haviam sido seus amigos: Rosencrantz e Guildenstern. Em seguida vira Cervantes na Espanha com o Dom Quixote, a primeira criação humorística moderna. As histórias do humor e da comédia que sempre estão próximas unem-se em Molière, com um humor lúcido, com o qual ataca a tolice e a maldade no interesse da humanidade sofredora e iludida. Suas comédias expõe o riso e a melancolia, como no O doente imaginário, ironia voltada contra si próprio, ao satirizar os médicos que lhe minaram a saúde. O que impressiona em Molière é a sua atitude bem humorada perante as desgraças da vida, sua capacidade de fazer comédia com as dificuldades do viver. A palavra humor no seu sentido moderno aparece em 1682 na Inglaterra como uma disposição mental ou temperamento. Lord Shaftesbury’s em 1709 no seu famoso Sensus communis: na essay on the freedom of wit and humour dá o sentido atual da palavra humor. Voltaire defende que a palavra tem origem no francês: humeur mas Victor Hugo em 1862 reconhecera a palavra como de origem inglesa. Jean Paul, o poeta do movimento romântico alemão, escreve em 1804 Propedêutica da estética, onde define o humor como um riso filosófico em que o homem compara a finitude do mundo com o infinito da idéia. Neste livro, a palavra witz, que vem de wissen - conhecimento14, vai adquirir a nova dimensão de graça, piada. O humor seria a forma do cômico própria do espírito romântico. No Oxford Dictionary o humor é definido como a faculdade de perceber o que é ridículo ou divertido, ou expressar através da conversação, da escrita, ou outra forma, a 14 13 ECO, U. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1983, p.532-5. 30 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 O estudo da palavra witz foi feito pela psicanalista Karen Hellen Kepler Wondracek, responsável pela tradução do livro Cartas entre Freud&Pfister (1909-1939), Ultimato Editora, 1998, a quem agradeço. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 31 SLAVUTZKY, A. A piada e sua relação... SEÇÃO TEMÁTICA imaginação ou abordagem jocosa de um assunto. O humor judaico terá um grande desenvolvimento a partir do século XIX, nas escolas rabínicas das schtetls o que permitiu a Freud ir colecionando histórias alegres até escrever o seu livro sobre a piada. Finalmente neste século das grandes guerras mundiais, o gênio de Charles Chaplin, que entre tantos filmes fez O grande ditador em 1940, uma genial sátira política contra o Nazismo que aterrorizava o mundo naquele momento. Chaplin, o maior humorista de todos os tempos através da comédia trata temas trágicos e difíceis, enfrenta a difícil realidade cotidiana com graça. O humor como tudo tem uma história, mas não se sabe quando começou, sempre fica mais fácil avaliar o humor de um povo a partir de sua literatura. O humor oral nem sempre é acessível como pode ser o das tribos indias ou africanas, que deve existir mas fica difícil avaliar. A literatura e o teatro são as duas artes que o humor foi sendo desenvolvido, nes-te sentido o aparecimento da imprensa e o Renascimento vão contribuir para um crescimento do humor. Ben Jhonson, Shakespeare, Molière e a Commedia Dell’ Arte, só para citar algumas referências, mudaram a historia do humor. O homem aprende a viver com uma nova liberdade trazida pelo riso, com esta forma filosófica que dá o humor de rir de si mesmo e dos seus semelhantes, dos problemas, enfim o humor e a alegria cresceu nos últimos séculos a ponto de ir ocupando um espaço cada vez mais destacado em todas as artes, na propaganda e na filosofia15. Freud tinha um interesse especial pelo tema, manifestado pelo seu livro sobre a piada e a sua volta ao tema no artigo do humor, mas teve dificuldade de entender a sua verdadeira importância para o ser humano. No texto de 1927, escreveu: “O 15 CHAUÍ, M. ????em República, maio de 1999, p.85: “Então, o que são afetos de alegria? O amor é um afeto de alegria, a generosidade, a indignação é um afeto de alegria. O que é um afeto de tristeza? O ódio, o medo , a modéstia, a humildade. Tudo o que nos diminui é triste, tudo aquilo que nos aumenta é alegre. Então o que se trata de fazer? O que a filososfia faz? A filosofia é esse caminho pelo qual nós afastamos a tristeza e aumentamos a alegria. Porque o aumento da alegria é o aumento de nossa força interior, a força do nosso corpo e a força do nossa alma. E essa força que é a liberdade.” 32 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 campo em que nos sentimos seguros é o da patologia da vida anímica; aí vemos nossas observações, aí adquirimos nossas convicções”. Um dos maiores problemas da psicanálise talvez seja o de dar uma grande ênfase para a psicopatologia, como se os problemas e conflitos psíquicos sempre fossem vistos com uma lente de aumento. Já o humor e a alegria é olhada com uma lente de diminuição. O humor goza das nossas dificuldades e ao fazer isso diminui os nosso problemas, e mesmo que sejam alívios temporários, fazem muito bem para a vida. Porque viver seus problemas com bom humor, é sempre viver melhor pois é transformar o narcisismo e diminuir o sofrimento. No final do seu texto Freud reconhece que “nem todos os homens são capazes de uma atitude humorística: é um dom precioso e raro, muitos até são incapazes de gozar do prazer humorístico que se lhes oferece”. Este é ponto chave talvez: como adquirir este dom raro de desfrutar a vida com humor? Um outro trabalho talvez pudesse ser sobre a conquista do humor. O HUMOR COMO VISÃO DO MUNDO E. Gombrich autor da História da arte, escreveu “que Freud não foi adiante no seu livro, porque qualquer tentativa de tradução de uma piada está fadada ao fracasso. A piada interdita qualquer distinção entre forma e conteúdo. E é precisamente esta separação que Freud pesquisava em seu trabalho clínico. Ele considerava a si próprio como um tradutor capaz de interpretar, por conta de seus pacientes, o conteúdo secreto de seus sonhos e de seus sintomas. Interpreta-los significaria simplesmente lhes dar uma forma verbal”16. Gombrich não é psicanalista, mas crítica a tendência da psicanálise em estar sempre buscando explicações. Após anos e anos interpretando e sendo interpretado, o psicanalista vai desenvolvendo uma máquina de pensar, de interpretar, criando assim muitas vezes a ilusão de estar explicando o cotidiano humano, a arte, a vida e a morte. A linha do raciocínio psicanalítico oscila entre o trágico e o 16 KON, N. M. Freud e seu duplo. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1996, p. 204. Recomendo especialmente este livro, por suas amplas conexões com o tema tratado aqui neste artigo. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 33 SLAVUTZKY, A. A piada e sua relação... SEÇÃO TEMÁTICA dramático. A tragédia é monótona, pois a ação cumpre o seu destino, estava escrito desde o início. Já no drama pode haver mudança, não é preciso seguir o destino tragicamente. O drama no teatro passa a ser uma síntese entre a tragédia e a comédia. Mas no drama psicanalítico há pouco espaço para a comédia e o humor. O psicanalista busca o conflito como um caçador, um caçador de conflitos, que existem, não é que sejam inventados, o problema é o enfoque, a escuta dramática. Ricardo Piglia, escritor argentino, em uma conferência disse “que ao lado da resistência a psicanálise, esta visão gera muita atração, pois é um dos aspectos mais atraentes da cultura contemporânea, e isso porque todos nós queremos ter uma vida intensa. Gostaríamos de admitir que em algum lugar de nossas vidas banais, experimentamos grandes dramas, que quisemos matar nossos pais e que portanto vivemos num universo de grande intensidade, vencendo assim o tédio, a monotonia em que estamos mergulhados. O psicanalista nos convoca como sujeitos trágicos, diz que há um lugar em que todos somos sujeitos extraordinários, lutando contra tensões e dramas profundíssimos, e isso é muito atraente”17. Pontali em Fora do templo,18 revela que “deveríamos nos inquietar ao ver, como freqüentemente acontece hoje em dia, analistas que parecem nunca ter tido experiência de outra coisa a não ser a análise, sempre lendo Freud ou Lacan, e dispensando a experiência do estrangeiro”. A experiência do estrangeiro também seria ler as críticas a psicanálise de forma diferente, isto é sem ficar na defesa e criticando rapidamente os que ousam desprezar as verdades do templo, usando para isso o conceito de resistência. Situação perigosa que revela a resistência a pensar as críticas à Psicanálise. Muitas vezes nas festas institucionais, nos intervalos de jornadas e congressos, os psicanalistas revelam uma capacidade de alegria e humor que aparece, rompendo as barreiras da formalidade. Humoristas como Quino, Caloi, Millôr Fernandes, L.F.Veríssimo, Woody Allen e tantos outros que gozam Freud e os psicanalistas, poderiam ser um bom ponto de partida para uma reflexão diferente. Será que há possibilidades de abrir um espaço para repensar a clínica psicanalítica, e alterar este clima de seriedade tão estruturado? Agora, por que a ênfase no humor? Amos Oz, escritor israelense, em uma recente carta ao escritor japonês e Nobel de literatura Kenzaburo Oe, escreveu sobre o humor e o fanatismo: “Se o senhor prometer que me acompanhará com uma boa dose de ceticismo, posso até lhe dizer que descobri a cura para o fanatismo. A cura é o bom humor. Nunca vi um fanático bem humorado, nem alguém bem humorado se tornar fanático (...) o fanatismo é contagioso, pode-se pegá-lo no próprio ato de tentar curá-lo. Conheço o perigo de se tornar um fanático anti-fanatismo”, conclui Amós Oz. A seriedade que Sigmund Freud imprimiu à sua obra foi todo um esforço para demonstrar a sua cientificidade, logo a sua verdade, palavra esta sempre muito valorizada. Mas o que é a seriedade? Para Schopenhauer o contrário do riso e do risível é o sério. Em decorrência disso, este consiste na consciência da total concordância e congruência do conceito, ou pensamento, com o concreto ou a realidade. O sério está convencido de que pensa as coisas como elas são e de que elas são como ele pensa. Quanto mais a congruência parece perfeita, mais facilmente pode ser revogada por uma incongruência inesperada, e é por isso que a passagem do sério ao riso é tão fácil. O sério, no seu limite, é a aparência de uma congruência que não existe. Esta reflexão sobre o sério e riso pode ser lida no interessante livro O riso e o risível na história do pensamento19. A falta de humor e do riso na história da Psicanálise pode ser atribuída talvez ao excesso de seriedade, como se esta qualidade fosse prova da verdade. Os pacientes contam seus dramas, seus sofrimentos, suas angústias que não são fáceis e tampouco motivo de riso. O problema não é só o que conta aquele que procura o psicanalista, mas a forma como 17 Originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 21/06/98, como transcrição de uma conferência realizada em Buenos Aires, na Associação Psicanalítica Argentina em 7/7/1997; e na Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1998 - Psicanálise e Literatura. 18 PONTALIS, J.-B. Perder de vista. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1991, p.139. 34 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 19 ALBERTI, V. O riso e o risível : na história do pensamento. Rio de Janeiro: J. Zahar/ FGV, 1999, p.176. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 35 SETTINERI, F. Nota sobre a técnica do chiste... SEÇÃO TEMÁTICA é escutado. A escuta psicanalítica é estimulada a buscar o conflito, levantar as resistências, desafiar as defesas: as transferências vão sendo levadas à neurose de transferência e uma vez resolvida esta, após muitos anos, o paciente ficara curado. O humor é uma forma de enfrentar o difícil mundo que se vive, e Kohut destaca que: “o sentido do humor é uma adquisição singularmente humana. O sentido de humor como o narcisismo cósmico constituem transformações do narcisismo que ajudam ao homem a alcançar um domínio final sobre as exigências do self narcisista, ou seja, a tolerar o reconhecimento de sua finitude”20. Finalmente explica que o sentido de humor não representa um quadro de grandiosidade e euforia mas de sereno triunfo interior, com uma mescla de melancolia não negada. Voltando ao início, para imaginar a boa idéia de Tchekov sobre as formas de ver a realidade humana: Por que um psicanalista tem mais dificuldade para ver pela janela cômica, ou escutar o lado alegre das novelas familiares? Talvez o problema, o sintoma não seja só dos psicanalistas, mas mais geral, é sabido que tragédia vende muito mais jornal que uma comédia da vida cotidiana. As manchetes em geral são de guerras, violências, notícias assustadoras. O homem é trágico e a doença e a morte, as diferentes formas de violência revelam seu desamparo. O primeiro livro da literatura ocidental, a Ilíada começa com a palavra ira e sua trama ocorre durante a guerra de Tróia. A Bíblia enfatiza a ira divina contra os homens pecadores, logo a janela trágica é a mais ampla e dominante. Por este ângulo, a Psicanálise estaria certa, mas a comédia e o humor sendo criações humanas permitem uma forma diferente de viver ou de enfrentar o sofrimento, bem como revela através da surpresa um lado esquecido da realidade. Wittgenstein escreveu que o humor não é só um estado de espírito, mas uma visão do mundo. E aí surge a pergunta sobre o encanto psicanalítico com suas teoria e práticas versus o desencanto que manifesta o humor, não criando aí um difícil confronto. 20 KOHUT, H. Formas y transformaciones del narcisismo. Asociación Psicoanalítica Argentina, 26:394-6. 36 Revista de Psicoanálisis 2, C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 NOTA SOBRE A TÉCNICA DO CHISTE NA RETÓRICA PSICÓTICA Francisco Settineri P erguntado sobre o motivo de sua internação em uma instituição psiquiátrica, um jovem de 29 anos, diagnosticado como esquizofrênico, explicou que havia sido levado à força pelos atendentes da instituição, chamados em razão da implicância dos vizinhos, pois estaria apenas vendo televisão: “Eu liguei a televisão, né? Porque eu olho televisão, né? E acompanho a programação toda, né?”. Mais adiante, fala, na entrevista o seguinte: “Não me envolvo com brigas, com problamas 1, né? Procuro - né? - fugir de problamas.” Perguntado sobre “fugir de que?”, continuou: “... assim, com malandros, marginais, né? Então eu procuro mais ficar do lado de pessoas pacíficas, né? Que sabem, que sabem o que é bom na vida, né? E viver a vida. Não, não tenho problamas, assim. Não gosto de problamas. Também, quem é que gosta? Ninguém gosta. A gente tem que resolver o problamas, né?” Não tendo sido possível uma entrevista mais longa, ou um número maior de entrevistas, não foi possível entender exatamente o que poderiam significar os “problamas” referidos, mas, mesmo assim, se o motivo da internação estava relacionado com o fato de ficar assistindo à programação da televisão, fiquei com a impressão que poderia se tratar de uma compressão (Safouan, 1982, alerta contra o uso do termo “condensação”, nesses casos) de “programas” com “problemas”. 1 Não é possível considerar-se “problamas” como um desvio fonológico. Já Jakobson formulou uma lei, segundo a qual haveria uma ordenação da aquisição, e não se poderia falhar em um fonema simples, já se tendo adquirido o mais complicado. No caso, é impossível alguém pronunciar corretamente o “”r”-fraco em onset complexo, acertar o encontro consonantal “bl” e falhar na escolha da vogal. Ou seja, o sujeito pronunciou assim porque assim o quis. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 37 SETTINERI, F. Nota sobre a técnica do chiste... SEÇÃO TEMÁTICA Outro entrevistado, de 43 anos, igualmente com diagnóstico de esquizofrenia, para explicar porque dizia “seta anos”, em vez de “sete anos”, enuncia: “É, pra trocar a palavra, né? Se a gente pretende muitas coisas... que a pessoa muda o termo, ou lembra de outro termo... é pra mudar a palavra, né? Ou em poucas palavras ela quer dizer muita coisa (...)”. Ou seja, para dizer uma outra coisa - que não o que se poderia esperar - é preciso trocar a palavra. Assim como em “famillionar”, no famoso chiste de Heine relatado por Freud, e igualmente quando se chamou, na Europa, o imperador Leopoldo de Cleopoldo, em função de seu enamoramento por Cleo. Porém, voltemos um pouco à teoria. De acordo com Safouan (1982), deve-se separar a técnica do chiste de seu efeito de pôr o cômico a descoberto. Pode haver espírito sem comicidade, assim como pode haver riso sem dito espirituoso. E o espírito, manifestando-se na linguagem, só pode valer-se, para criar novos efeitos de sentido, da metáfora e da metonímia, ou seja, jogar com os eixos do paradigma e do sintagma. Não haveria outro meio. Freud (1905c) classifica a técnica de chistes como “famillionar” e “Cleopoldo” como sendo da ordem de “substituição com palavras compósitas”, concebendo, nesse caso, de acordo com Safouan (op. cit.), o trabalho do espírito mais como um trabalho de produção do que de transformação. E Safouan (op. cit.) procura transpor o caso de chamar Leopoldo de Cleopoldo à fórmula da metáfora, de Lacan: S . S’ S’ x _____ S I A em que S’ é Cleopoldo, S é Leopoldo e x é a significação de seu enamoramento. Pode-se considerar de uma outra maneira a técnica dessa composição, ou seja, mantendo-se a idéia de metáfora, de substituição, pensar-se que, ao chamar Leopoldo de Cleopoldo, há um efeito de corte na primeira 38 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 sílaba, que leva a tomar o trecho “poldo” como sendo um sufixo, inaugurando-se um eixo paradigmático sobre “Leo”, que pode então ser trocado: no caso do chiste, por “Cleo”. Teríamos então o “poldo da Cleo”, inaugurandose uma etimologia imaginária, em que o nome próprio “Leopoldo” é considerado agora como um sintagma sujeito a modificações. E, sendo um sintagma, se quisermos dizer outra coisa, temos de alterar-lhe os termos para citar o segundo de nossos entrevistados, que foi muito perspicaz nesse sentido. Pode-se pensar do mesmo modo a compressão, a palavra-valise formada por programas e problemas. Não se pode dizer se o rapaz quis fazer piada, que o entrevistador não teria entendido - aliás, o problema, ou problama, é dele -, mas, mesmo assim, o que não se pode negar é que problamas foi construído segundo a mesma técnica, a mesma substituição por palavras compósitas, de que Freud nos fala. Onde era esperado “problemas”, veio “problamas”. É recortada a segunda sílaba, em que constam um encontro consonantal e uma vogal. Aberto o paradigma e a possibilidade de substituições (e a metáfora é isso, substituição com acréscimo de sentido), temos a equação: programas, problemas, problamas... Há, sem dúvida, uma técnica, que funciona como as demais técnicas do chiste, destinadas a um efeito de sentido a posteriori aliás, como todos os efeitos de sentido. E, se há uma técnica, está claro que pertence à retórica, que consideramos, com Safouan, como sendo “o modo ou os caminhos segundo os quais o significante determina o significado”. É possível, pois, pensar-se em uma retórica psicótica. Uma retórica que muitas vezes fracassa, pelo fato do psicótico não estar referido da mesma maneira que os outros ao sistema da língua, mas, mesmo assim, uma retórica. Pensando bem, creio que não se pode ainda considerar o “achado” do chiste - ou da técnica empregada, no caso do problamas - como sendo o significante do Outro. Talvez também fosse precário afirmar que se tratasse de uma formação do inconsciente, dado que, na psicose, não parece haver distinção entre outro e Outro. Não há, como havia na Europa de Leopoldo, um saber coletivo, disponível aos falantes da língua, sobre o C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 39 JERUSALINSKY, A. Algumas notas sobre o mau-humor. SEÇÃO TEMÁTICA ALGUMAS NOTAS SOBRE O MAL-HUMOR enamoramento em questão, o nome da amada e o ridículo da situação. Entretanto, se na metáfora delirante do psicótico há uma técnica, se há uma retórica, um esforço para que o significante determine um efeito de sentido, nesse caso um acréscimo de sentido, pois se trata de substituição, de metáfora, pode-se dizer, com certeza, pelo menos uma coisa: há sujeito. E, se há sujeito, pode haver escuta de um sujeito, pode haver pontuação, escansão, interpretação. Mas esse é outro problama... BIBLIOGRAFIA FREUD, S. El chisye y su relación com lo inconciente (1905c). In: _____. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. SAFOUAN, Moustapha. L’inconscient et son escribe. Paris: Seuil, 1982. 40 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 Alfredo Jerusalinsky “...é que as pedras são pedras.” (Juan Rulfo, in “Pedro Páramo”) S e no bom humor o sujeito convoca seu semelhante a gozar desmascarando o Outro, o sujeito mal humorado convoca o Outro para esmagar seu semelhante. Enquanto parece se queixar da tragédia em que ele mesmo converte a qualquer engano, em verdade ele goza secretamente da angustia e a mágoa que semeia entre seus comparsas. Mestre do mal estar, sabe como ninguém colocar o Nome-do-Pai na posição necessária para que seu efeito sobre a cadeia significante não possa ser outro senão a profecia de uma desgraça. Às vezes, disfarçado de “prudente” se esmera em advertir os outros sobre as funestas conseqüências de seguir o caminho do desejo. É claro que tais conjecturas não necessariamente se aplicam a ele mesmo. Seguindo o caminho que S.Freud balizou na sua classificação do modo do bom humor, tentamos, a seguir, elaborar algumas breves notas sobre os tipos do mau-humor, apelando para isso à diferente posição do sujeito proponente do enunciado que espalha o mal estar, assim como o chiste resume no seu enunciado a operação que provoca a comicidade. Colocamos assim o acento no “tinhoso” como eixo duma oposição entre o “dito espirituoso” e o “dito sem espírito” (pensamos em “dito cadavérico” ou “mal dito” mas nos pareceram nomes excessivos e, também, mal humorados). Se a piada se esmera em surpreender o Outro (enquanto discurso social) e desarmá-lo na sua tentativa de nos enganar - provocando um efeito de identificação entre os semelhantes ao redor do desejo -, o enunciado do mal-humor invoca o Outro contra o semelhante desencorajando neste último qualquer empreitada relativa a seu desejo. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 41 SEÇÃO TEMÁTICA O QUE SEMPRE DIZ A VERDADE É difícil colocar uma objeção diante daquilo que parece ser um nobre empenho em ser sempre sincero. Mas, pensando bem, por que estaríamos obrigados a suportar que esse mestre da mágoa nos diga a cada momento o que ele supõe ser a verdade? Costuma ser um especialista em enunciar “O GRANDE OUTRO NÃO TE AMA”, sendo, é claro, muitas das vezes, ele mesmo a encarnação desse Grande Outro, ou, ao menos, seu falo. Posição clássica da histérica (e também do histérico) que descarrega a cada passo sobre os outros “a verdade de seus sentimentos”, especialmente, por sinal, os contrários ao desejo dos seus parceiros. É curioso, nesses casos, como se opera no enunciado uma pequena torsão que, ao colocar o desamor e a frieza (“la belle indeferênce”) fora do campo do sintoma, os situa na posição de fatalidades do destino, governado - “naturalmente” - pelo Outro. A indiferença, a frigidez, o constante assinalamento dos defeitos do outro, se tornam, assim, expressões tão autônomas que o sujeito não pode senão simplesmente descrevê-las como se se tratasse de um procedimento botânico. O outro, no entanto, é quem suporta as conseqüências de tais enunciados ficando totalmente desarmado no seu desejo. O RANZINZA Vítima da “má sorte”, injustiçado crônico, tenta incessantemente oferecer para os outros a prova definitiva de que “O GRANDE OUTRO NÃO ME AMA” (a ele, naturalmente). Por isso, inconscientemente, se transforma, ele mesmo, em fabricante de suas próprias desgraças. É claro que ele se empenha em magnificá-las, até que, finalmente, consegue que alguma de estas formações do seu inconsciente, se precipite no real. Eis ali onde e quando esse jogo mortífero na borda da tragédia imaginária acaba cobrando seu preço. Geralmente quando já é tarde demais para escapar ao desígnio que ele mesmo traçou. JERUSALINSKY, A. Algumas notas sobre o mau-humor. Grande Outro (numa versão a cada vez - a instituição, um texto, um mestre qualquer, A Verdade, A Ética, etc.), constrange a seus parceiros para colocar-los ao serviço de seu gozo. Inventor de fábulas mentirosas, se esmera em produzir enunciados de alusões indiretas acerca de histórias inexistentes. Surpreende seus pares ao encontrar em seus atos e enunciados fallas que eleva à categoria de faltas graves, seja qual for o parâmetro em questão: faltas morais, erros teóricos, atos banais que adquirirão conseqüências catastróficas, falhas profissionais, etc. Sua fórmula fundamental pode resumir-se em “VOU CONTAR AO GRANDE OUTRO”. Seguramente vítima de um fantasma paterno cruel, não cessa de oferecer - a esse fantasma - seus semelhantes em sacrifício, na tentativa inconsciente de acalmar-lo. Acreditando-se generoso, porque oferece a seus parceiros uma aproximação ao Grande Outro, oculta, porque seguramente o ignora, que, em verdade os está convocando para que o substituam na sua relação sado-masoquista com o Pai. Estes parecem ser três tipos básicos de “mestres do mal-humor”. Todos eles profetas da transformação das “desventuras comuns” em “tragédias neuróticas”, são especialistas em produzir a inversa do caminho clínico proposto por Sigmund Freud na cura psicanalítica. Destruidores de sonhos, inimigos do dito espirituoso, vem em cada sorriso uma ameaça de perda de seu poder imaginário, e em cada divertimento uma fraqueza moral. O ALCAGÜETE Introdutor de um clima de intriga e ameaça, sempre em nome do 42 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 43 SEÇÃO TEMÁTICA RAMOS, L. N. O humor nos ensaios de Nelson... O HUMOR NOS ENSAIOS DE NELSON RODRIGUES SEGUNDO LUIZ AUGUSTO FISCHER Liz Nunes Ramos A o trabalhar a obra de Nelson Rodrigues como ensaísta, em sua tese de doutorado, (USP - 19 —), Luiz Augusto Fischer dedica parte de seus comentários à pensar a produção de humor nesta obra, destacando muitas de suas características, que aqui resumiremos brevemente, por constituírem um apanhado bastante perspicaz da questão que tomamos nesta seção temática. Como humorista, Nelson Rodrigues pareceria sempre querer “apontar o que lhe parece deslocado, errado, insuportável, sem contudo querer moralizar”. Após ter entrevistado personalidades, durante muitos anos, ele cria um expediente, ao qual batizou de “entrevista imaginária”, onde faz uso dos seus mais requintados recursos, como ensaísta e humorista. Nelson imagina uma entrevista, na qual arrancaria do entrevistado as verdades que, em geral, ficam ocultas, tentando romper com a sensação de cinismo que as entrevistas verdadeiras lhe deixavam, após tantos anos de jornalismo. Elas não “acontecem” num escritório, ou sala, mas num terreno baldio, tendo uma cabra vadia por testemunha. Fischer ressalta que o terreno baldio constitui algo bem brasileiro, de um país jovem, cujo proprietário não se preocupa com sua inserção no conjunto da cidade. As “personalidades” entrevistadas são as mais variadas, mas todas figuras expressivas da cultura brasileira ou da sociedade burguesa vigente. Nelson declara que “sentia de maneira obscura, quase dolorosa, que lhe faltava alguém (para entrevistar) no capinzal. Mas quem? Quem? E súbito, um homem ilumina minhas trevas interiores - Dom. Hélder! De todos os vivos ou mortos (também entrevistáveis) no Brasil, era o mais urgente, o mais premente”. Note-se que transcorria março de 68. “E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística”. 44 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 Abaixo reproduzimos essa pérola, publicada em 14 de março de 1968, no texto A Cabra Vadia: Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a “entrevista imaginária”. À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estava também a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo, comendo a paisagem. À luz do archote, começamos a conversar. Primeira pergunta: – “O senhor fuma, d. Hélder?”. Resposta: – “A entrevista é imaginária?”. Acho graça: – “Ou o senhor duvida?”. E d. Hélder: – “Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?”. Digo: – “Caporal amarelinho”. Cuspiu por cima do ombro: – “Deus me livre! Mata-rato!”. Faço a pergunta: – “Que notícias o senhor me dá da vida eterna?”. Riu: – “Rapaz! Não sou leitor do Tico-Tico nem do Gibi. Está-me achando com cara de vida eterna?”. No meu espanto, indago: – “E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?”. O arcebispo abre os braços, num escândalo profundo: – “Nem o Alceu acredita. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta”. Ele continuava: – “O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém”. D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: – “Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste? Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?”. Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este: – “A fome do Nordeste é a fome do Nordeste”. D. Hélder estende a mão: – “Dá um dos teus mata-ratos”. Acendi-lhe o cigarro. D. Hélder não pára mais: – “Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: – Joana D’Arc. Já viu a nossa querida Joana D’Arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal de são Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!”. Lanço outra isca: – “É verdade que o senhor vai para o Amazonas?”. Riu: – “Onde fica esse troço? Ó rapaz! Ainda não desconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E o Amazonas é terra de jacaré. Tenho C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 45 SEÇÃO TEMÁTICA cara de jacaré?”. Concordo em que ele não tem nenhuma semelhança física com o jacaré. Indago: – “E o comunismo?”. D. Hélder conta: – “Quando estive nos Estados Unidos, bolei um cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebispo vermelho, eu!”. Insinuei a dúvida: – “Mas esse negócio de comunismo é meio perigoso”. Nova risada: – “Perigosa é a direita. A direita é que não dá mais nada. O arcebispo vermelho fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos”. Pede outro cigarro. Fez novas confidências: – “Sou homem da minha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, do Sobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: – cada época tem seus padrões. Benjamin Costallat, no seu tempo, era o Proust. O charleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falem da vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais Benjamin Costallat, nem o charleston. Entende? É Guevara. O santo é Guevara. E acompanho a moda”. Desfechei-lhe a pergunta final: – “E a Presidência da República?”. D. Hélder respira fundo: – “Depende. A fome do Nordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade infantil, muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá”. Era o fim da “entrevista imaginária”. Despedi-me assim: – “Até logo, presidente”. Respondeu: – “Obrigado, irmão”. E antes de partir fez a última declaração: – “Olha, as donas de casa têm uma simpatia para curar dor de barriguinha de criança. Acredito mais na simpatia do que na ressurreição de Lázaro”. Disse isso e sumiu na treva. RAMOS, L. N. O humor nos ensaios de Nelson... Nos seus comentários, Fischer ressalta que Nelson não está satirizando Dom Hélder - arcebispo de tanta importância no ambiente de resistência à ditadura militar - com intenções reformistas, mas que, como cronista, através do humor, seu alvo seria “desvelar a verdade profunda, que supunha existir nas entranhas do prelado”. Vemos que ele fabula, usa o jocoso, mas com um olho na busca da verdade que fica oculta, quando, paradoxalmente, a entrevista é verdadeira. Neste caso, a verdade teria mais chances de emergir na mentira, no suposto ou mesmo na criação de quem a persegue. Segundo Fischer, Nelson “objetiva-se como personagem da cena”, no terreno baldio, em si mesmo algo insólito, a verdade de uma pessoa pública podendo aparecer num território baldio, que o próprio dono o abandona, sem prestar atenção à cidade, ao público. Como personagem, sutilmente, usa de uma suposta posição crédula, recurso de alta eficácia dramática e narrativa, mostrando-se surpreso com as verdades reveladas. Coloca o entrevistado na posição desconfortável, de quem se ocultava com todas as forças e agora se mostra a céu aberto, muito além do que o entrevistador esperava, numa inversão de papéis, quando se trata da entrevista verdadeira. O arcebispo fuma, fila cigarro “mata-rato” e invoca Deus no popular, confessando que não crê em Deus. O arcebispo é acuado a mostrar-se generoso, indo para o Amazonas, mas só consegue negar sua semelhança com os jacarés, como saída frente à denúncia da farsa.. Fischer cita Celestino de la Veja: “O humorista não nos deixa chorar ou rir a gosto, porque humorismo é, no fundo, afã de compreender”. Rimos do ridículo das frases de Dom Hélder, principalmente conhecendo Dom Hélder, “mas com um riso travado”, diz Fischer, “com um riso que vai sendo temperado com certa melancolia, certa dúvida, certa tristeza”. Ele cita também Paul Stapfer: “O humorista é desaforadamente cínico, mas não por gosto da libertinagem, mas por desprezo ao decoro hipócrita...”. No mesmo capítulo da tese há outras entrevistas imaginárias, por exemplo, com Cacilda Becker, diva do teatro na época, em que Nelson vê, surpreso, chegar ao terreno baldio, na hora marcada, uma passeata. Pensa haver um engano, ele convidara Cacilda, que passeata é essa? Quando indaga, não há engano. Ele “não consegue” entrevistar Cacilda, mas a Classe, o Grupo, a Assembléia, o Discurso Teatral. Àquela altura do campeonato ela já era O Teatro, e foi ele quem compareceu ao terreno, abordando aí as colagem identitárias, tão comuns quando se trata de abordar os mitos da cultura nacional, ou as reivindicações de reconhecimento de uma classe. Em sua produção Nelson faz questão de individualizar-se, importante observação da tese, e tal solidão seria a matriz de sua veia ensaística e humorística, trazendo o critério do sofrimento como matriz do humor. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 46 47 SEÇÃO TEMÁTICA RAMOS, L. N. O humor nos ensaios de Nelson... Segundo Alcides Maya, um dos tantos citados, “o humor é a tragicomédia de um homem que indiretamente se confessa”, na suposição de que “o verdadeiro humorista sofre e só quando sofre pode ser um grande humorista”. Nelson Rodrigues seria um desses homem, que pode distanciar-se do sofrimento o suficiente, para percebê-lo, incluir-se e rir dele. Há também uma entrevista com Wladimir Palmeira, o líder estudantil, onde usa outros recursos, como o imprevisto e as expressões de surpresa, o inusitado para um pobre mortal jornalista, a falta de harmonia entre causa e efeito, os elogios desproporcionais, repetições, hipóteses absurdas, a intervenção brusca da fantasia na sequência lógica do relato, parênteses fora de propósito, antagonismos postos frente à frente, o exagero. Todos artifícios que Nelson utilizava mesclados com sabedoria e de grande efeito na produção de humor. Destacam-se também o uso de traços humanos animando a natureza ou animais. No terreno baldio a cabra vadia, enquanto pasta no terreno, também intervém no diálogo, demonstrando compreender o jovem líder estudantil melhor que o velho jornalista. Ela assume a posição do terceiro que observa e, por não estar comprometido, pode perceber a incoerência ou o óbvio. Outro exemplo, na chegada de Cacilda, ou da passeata, ao terreno, os pirilampos poderiam piscar freneticamente, eles também, seduzidos pelo brilho da artista. Fischer recorta ainda, de muitos autores que pesquisaram o humor, as características relativas ao uso da digressão; dos comentários laterais que enriquecem ou abrem outra versão para o episódio; da morosidade da cena, como se tudo viesse transcorrendo normalmente, apesar do absurdo, da progressão de cenas laterais inexpressivas, mas que lá pelas tantas se entrecruzam; o uso de contrastes; formas equívocas ou exageradas de tratamento produzindo constrangimentos e desacertos; etc., todos em equações que põem lado à lado sentimentos díspares, em arranjos patéticos. Para Viana Moog “o humor nasce do desencanto irremediável com a vida”. O humorista precisaria de valentia e grandeza de alma para posicionar-se e suportar a dor da vida. Vemos o quanto podem ser alvo do humor tanto a milionária afortunada e imbecil, quanto o popular e sábio padeiro da esquina, desde que tomados em suas asperezas humanas. Nelson teve coragem, segundo Fischer, para colocar em cena não apenas personagens, mas pessoas da vida real, conhecidas, para transitar num universo já construído e ali fazer vibrar o humor. Em sua obra apresenta também o caráter confessional do humorista, que se desdobra, se divide, colocando uma metade a rir da outra. O adulto ri da própria infância, do amor deslumbrado por todas as professoras, por exemplo, caso do próprio Nelson, bastando que fosse sua professora para por-se, imediatamente, irrevogavelmente, apaixonado. O objeto de humor sendo ele mesmo, o autor. Esse é um humor que pode ser triste, meditativo, mas no qual o olhar examina detalhadamente seu objeto, uma parte de si mesmo, com benevolência e fatalidade. De Nelson, Fischer recolheu a sensibilidade, presente em cada detalhe narrativo, como testemunho da força dramática que emerge da própria experiência, no interior do texto. Nota que, na produção do humor, a reflexão não se esconde, mas decompõe uma imagem. Mais além da pura percepção do contrário, dessa decomposição de uma imagem surge o sentimento do contrário que, conforme Pirandello, dará origem ao humor. É impressionante que, de um trabalho com fins tão distantes da investigação psicanalítica, como o realizado por Fischer, restem conclusões tão próximas de muitas teses freudianas e lacanianas, sobre os vários efeitos possíveis, para os falantes, de sua divisão subjetiva. Efeitos que se desdobram, no uso singular da palavra, no que intervém da verdade ou mentira de cada um, na relação com o semelhante, na língua que eles partilham. De nossa interlocução com Nelson podemos colher essa experiência, certos de que nosso terreno é fértil, mesmo que nos pareça, brasileiramente, baldio. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 48 49 BECKER, A. L. A clínica institucional... SEÇÃO DEBATES A CLÍNICA INSTITUCIONAL EM DEBATE A QUESTÃO DO PAGAMENTO Ângela Lângaro Becker É com grande interesse em dividir nossas preocupações sobre este tema, que o propusemos aos nossos convidados do mês de setembro, a Clínica da Psicologia da Unijuí . Entendemos que a questão do pagamento está enlaçada com um significante que não é qualquer, dentro de nosso contexto neo-liberal contemporâneo e que tem efeitos importantes tanto num atendimento institucional quanto num consultório particular. Se numa sociedade tradicional, a crença em “ sermos todos filhos de Deus “ era o que fazia laço e tomava os homens num sentido universal e ainda, na modernidade, a igualdade de direitos se daria pela idéia de que todos eram homens de razão, no pós – modernismo, nossa nova universalidade é dada por um objeto ( dinheiro) que tem a função de um equivalente universal .Digamos que é através de uma lógica mercadológica que as condutas sociais são reguladas. Por isso, falar em pagamento numa análise é enfrentar-se com um paradoxo que apresenta de um lado os enunciados do senso comum ditados pela lógica de mercado e por outro a sustentação de uma ética que leva em conta o desejo dentro da lógica do significante. Antes de cairmos numa crítica direta, própria de um sentimento nostálgico, afirmando que todo homem moderno não quer pagar porque não quer saber sobre sua dívida simbólica, é importante que possamos examinar mais de perto a problemática a que estamos referindo. Freud, no texto sobre “ O caráter e o Erotismo Anal” (1908) relaciona o valor do dinheiro com o prazer sádico-anal no controle das fezes. Sujeira e dinheiro aparecem referidos a uma moral religiosa, em que as tentações do diabo, quando satisfeitas, são pagas por este com ouro, mas transformadas, logo em seguida, em fezes. Freud examina a moral vitoriana revelando a presença das pulsões sexuais no significante dinheiro .Ele coloca o homem moderno frente a frente com seu recalque, afirmando que o mais 50 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 temido ou odiado é o mais desejado. Em outro texto, “Observações sobre o Amor Transferencial” (1914), Freud refere que, na transferência, o amor correspondido é uma análise desfeita. Esta parece ser a razão de sua inviabilidade, quando sustentada numa intenção de fazer o bem, seja ele social, no sentido da igualdade de direitos, seja o bem da vida, no sentido da saúde para todos. O atendimento institucional por parte do Fórum nasceu com a idéia de proporcionar uma escuta a quem dirige seu pedido de atendimento a uma instituição, sem poder formular uma transferencia singularizada. A idéia é de que, através da transferência, seria possível trabalhar o que vem na forma de “não ter como pagar” ou, “falar a quem queira ouvir”, tomando estes ditos como significantes de um determinado modo de gozar, característico do sujeito pós-moderno. Freud deixou claro que numa análise sempre se paga, mesmo sem o saber e quando há uma ilusão de economia é o engano que está recalcado. Desta forma, não há da parte deste Serviço de Atendimento Clínico qualquer proposta assistencial, pois seria necessariamente recalcar este engano e, portanto inviabilizar a ética de uma análise. Por outro lado, é preciso diferenciar uma intenção assistencialista de uma proposta de acolhida a diversos modos de apresentação das demandas. Desta acolhida, entende-se que é necessário levar em conta que o modelo da lógica de mercado é um dos principais reguladores nas relações entre sujeito e objeto e isto estará presente nos pedidos de ajuda, que nada se parecem com uma demanda de análise. Na busca de soluções aos problemas, buscamos comprar os objetos que parecem garantir nossa paz ou segurança, ou então contratamos serviços que possam proteger ou embelezar nosso corpo ou a extensão dele, nossa casa ou nosso carro. Esta lógica supõe que o dinheiro é o referente fálico em torno do qual se organiza a diferença: os que tem e os que não tem. A busca de reconhecimento se apresenta na procura em estar incluído ou não nestes lugares que caracterizam os que tem. Considerar o sujeito contemporâneo como inserido nesta lógica, não significa tomá-lo necessariamente como quem não quer saber de sua dívida ao pai, mas talvez numa condição aproxima- C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 51 SEÇÃO DEBATES BECKER, A. L. A clínica institucional... da com o que Rassial chama de “pane do Nome-do- Pai” (1997). Isto porque, como um adolescente, o sujeito moderno apresenta-se órfão e descrente de toda possibilidade de filiação, já que não a encontra nos lugares de autoridade que tradicionalmente estavam constituídas. Uma hipótese possível, é que há uma tentativa de constituir laço no engajamento do indivíduo em lugares coletivos caracterizados como “para aqueles que não tem”. Estas instituições fariam a função de um terceiro na medida em que neutralizariam a ameaça do duplo idealizado “o que tem” ou “o que explora”. Talvez por isso os lugares coletivos sejam cada vez mais procurados para atendimento, inclusive por pessoas que (financeiramente) estariam do lado “dos que tem”. Certamente não há na clínica psicanalítica o que poderíamos chamar de uma especificidade institucional, pois cada analisante se apresentará com uma demanda singular cujo significante dinheiro estará referido a este ou àquele outro significante, como a carta roubada de Edgar Allan Poe. No seminário sobre a Carta Roubada, a posição do sujeito diante de uma terceiro é dada a partir do significante de uma falta, que é esta carta que circula . Se o dinheiro é tomado como tendo valor pela sua realidade, então não poderíamos trabalhá-lo como significante e sua ausência ou presença não estaria considerada no discurso do analisante, como elemento transferencial. Então, é por causa do significante, que a análise não pode ser tomada como uma contratação de serviço, por exemplo. No mínimo teríamos a questionar que serviço é esse, se quem o faz é o próprio contratante. Pommier nos apresenta as razões pelas quais o sujeito deve pagar pelo que diz: “na transferência, é suficiente que o analisante pague para confessar que, sem saber, ele ama, com este amor voltado para seu trauma de origem graças ao qual o recalque se descobre. De modo que o pagamento será um equivalente da confissão, ato suficiente para que a transferência assegure seu império. Não seria o pagamento tanto mais eficaz quanto mais lhe pareça pouco justificado? Aquele que paga sem fundamento aparente deve ter, por isso, alguma obscura razão, e se ele pode constatar seus motivos, não será logo na conta de sua culpabilidade que a soma será endossada? Pagando ‘gratuitamente’, segundo as aparências, ele terá reconhecido sua pecaminosa existência. Como explicar a necessidade de pagar, a alguém que, como um psicanalista, se vem ver somente para lhe falar?” (Pommier, O Amor ao Avesso, p.16). Sempre o modo como cada um se propõe a pagar sua análise é o modo no qual está instalado nessa relação ao Outro. O que é preciso levar em conta é que, embora a lógica mercantil não possa sustentar o trabalho analítico, estaremos numa idealização nostálgica se não a escutarmos como um dos principais reguladores afetivos das condutas sociais. Assim como se organizam filiações referidas a esta ou àquela grife, aqueles que se sentem fora destas possibilidades em pertencer a este ou aquele grupo consumidor, apresentam suas referências filiatórias nas instituições onde circulam: Escola, Posto de Saúde, Hospital, Abrigo, Associação do Bairro, etc. Nestes, os indivíduos tem seu nome escrito em fichas e pastas, sua vida reunida em prontuários, onde podem encontrar o nome perdido daqueles que em algum pedaço de sua vida fizeram a função de pais ou irmãos. Talvez a relação com estas instituições seja a de “quem me deve é o Outro”, “já que da vida nada ganhei”, mas talvez seja um modo de reforçar o pai, já que este se mostrou imaginariamente insuficiente, nestas passagens para a modernidade. No texto sobre “A direção da Cura”, Lacan aponta o inverso da lógica de mercado, pela lógica do significante, na transferência. A análise não é pagável mercadológicamente pois o que o analisante foi buscar com ela não lhe será dado e aquilo que passa a demandar a partir do estabelecimento da transferência é resultado da oferta de uma escuta por parte do analista. Poupar o analisante do pagamento é também poupar o analista dos pagamentos que faz, na medida em que sua palavra tem que sustentar-se como operação analítica e que, para isso, precisa esvaziar-se de toda intenção pessoal. O pagamento no final da sessão pontua o que foi dito e remete as palavras do analisante a um aniquilamento de toda significação. É neste sentido que o preço da análise é diferente para cada um, mesmo quando é o mesmo, dentro ou fora de uma instituição. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 52 53 SEÇÃO DEBATES REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 FREUD, S. O caráter e o erotismo anal. (1908) In: _____. Obras Completas. 4. ed. Madrid:Biblioteca Nueva, 1981. 2 _____. Observações sobre o amor transferencial. (l914) In: Obras Completas. 4.ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. 3 LACAN, J. Seminário sobre A carta roubada. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. 4 _____. A direção da cura. In: Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. 5 POMMIER, G. O amor ao avêsso. Rio de Janeiro, Comp. de Freud, 1998. 6 RASSIAL, J. J. A passagem adolescente. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. 54 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 BIANCO, A. C. Lo. Da dúvida do relato à certeza... DA DÚVIDA DO RELATO À CERTEZA DA INTERPRETAÇÃO NOS SONHOS Anna Carolina Lo Bianco Num trecho da Traumdeutung, Freud faz um pequeno percurso, já muitas vezes refeito, que merece ser olhado com detalhes, para mais uma vez surpreendermos nele a magnitude de algumas de suas conseqüências para a psicanálise. Trata-se do caminho percorrido entre a dúvida do relato e a certeza da interpretação nos sonhos, no sub-capítulo O Esquecimento dos Sonhos. Usando a estratégia que tanto o caracterizaria, na qual está sempre arrebatado pelo debate com um interlocutor exigente, arguto e questionador, o qual mais tarde “tornar-se-á um freudiano” (Forrester, 1997, p.163), Freud ressalta uma série de problemas, os quais lhe haviam sido apontados, sobre a falta de garantia quanto à interpretação do sonho relatado pelo paciente. Seria o relato fiel ao que se passou durante o sono? Faz desfilar, então, todas as insistentes perguntas enfrentadas pelo analista quando ouve um sonho: como saber se não houve uma falha na memória levando à mutilação do sonho? Essa falha exatamente não levaria à perda de um fragmento significativo do sonho? Como confiar na recordação por vezes insegura de apenas alguns fragmentos oníricos, uma recordação lacunar e incompleta que não faz mais que refletir o sonho de maneira infiel e falsa? Como lidar com um sonho incoerente e nebuloso o qual mal se conserva na memória? Como saber se não se preencheu a lacuna com um material novo, escolhido ao acaso, usado apenas para o sonho alcançar uma boa forma final? E, ainda mais, como saber se o objeto cujo valor estamos empenhados em determinar, justamente ele, não nos escapa? Trata-se, pois, em relação a um sonho ouvido, da persistente falta de garantia, da infidelidade, do esquecimento, da mutilação, da fragmentação, da incompletude, da incoerência, da nebulosidade, da perda. Diria o crítico impertinente: “há um risco envolvido na interpretação feita nos sonhos; não C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 55 SEÇÃO DEBATES BIANCO, A. C. Lo. Da dúvida do relato à certeza... é possível apoiar uma tal interpretação em parecer tão frágil como o relato de um sonho”. Freud, no clímax da discussão, reverte as expectativas e afirma ser exatamente deste aspecto de claudicação e de incerteza no sonho que surge o incentivo, o estímulo para sua análise. Dá um destaque e uma ênfase inéditos precisamente ao que fazia dos sonhos, até aquele momento, um fenômeno pouco valorizado e até mesmo desprezado pelos estudos científicos – seu aspecto fragmentário, impreciso e impossível de ser pensado com as predicações fornecidas pela lógica consciente. Estava, em verdade, formulando uma outra lógica, atemporal e ahistórica –a lógica inconsciente, a lógica “dos pensamentos oníricos latentes” que têm que ser admitidos como uma “operação de nossa atividade anímica”(Freud, 1901, p.625 e 626 respectivamente). Os sonhos e, ainda mais, o próprio sujeito seriam regidos por essa lógica que os determinaria. Da mesma maneira, a fragmentação, a incoerência com que o sonho se apresenta no relato não são arbitrárias, estão sob a égide dos pensamentos oníricos como qualquer outra parte desse relato, obedecendo as leis do inconsciente. Entretanto, como apontamos, são características, às quais Freud (1900) vai atribuir um valor especial, porque remetem à impossibilidade de realização do desejo justamente no sonho “que é realização de desejo” (p.543). Poderíamos dizer que o desejo aí tem simultaneamente uma face da força constante (Kontanzkraft) exercida pela pulsão, formulada tempos depois (Freud, 1915), e uma dimensão do desejo realizado no sonho. Há, pois, momentos privilegiados por Freud que são momentos de obstáculo, de censura a um desejo sufocado. Indicam de várias maneiras pelo disfarce, pela desfiguração, pela substituição dos elementos do sonho, a impossibilidade de realização do desejo inconsciente, infantil e imortal que, no entanto, demanda a realização. Esse momento crucial de impossibilidade e de realização do desejo é tematizado por Freud (1900) quando fala do “umbigo do sonho” (p.519). É o momento em que mostra o limite e o ilimitado da inscrição significante da pulsão, como é possível dizer depois das formulações lacanianas sobre os obstáculos à significantização (cf., por exemplo, Lacan, 1962/1963) Mas, apenas mencionar o “umbigo do sonho” na sua relação com esse momento seria deixar de lado, na amplitude do comentário, toda a riqueza da elaboração teórica minuciosa que o cerca. É necessário acompanhar o contexto em que essa idéia se desenvolve para precisarmos as relações que se estabelecem e acompanharmos o percurso de Freud ao lidar com a dúvida nos sonhos: “Mesmo nos sonhos melhor interpretados é preciso amiúde deixar um lugar nas sombras, porque na interpretação se observa que daí se arranca uma meada de pensamentos oníricos que não se deixam desembaraçar”... “Então esse é o umbigo do sonho, o lugar em que ele se assenta no não conhecido”(p.519). Apontando para o inesgotável do trabalho onírico, esse trecho de Freud, tão citado, diga-se de passagem, coloca em ato o que ele mesmo propõe: as derivações que se pode fazer dele – como prova a elaboração teórica da psicanálise ao longo desses cem anos – são infindáveis. Tomaremos três questões que são levantadas nessa citação de Freud: a que diz respeito à rede – raiz da interpretação e do desejo –, a que se refere ao lugar do não conhecido e a referente à dúvida que aí se instala, a qual leva à certeza da interpretação. De início vemos a idéia da rede que nutre as interpretações no sonho, a qual serve também de solo para o aparecimento do desejo; trata-se desse tecido enredado que está na base da interpretação, tanto quanto da emergência do desejo. Como Freud diz em continuação à referida citação: “Os pensamentos oníricos com que nos deparamos na raiz da interpretação têm que permanecer sem limite algum e transbordar em todas as direções dentro da emaranhada rede de nosso mundo de pensamentos. E, num lugar mais espesso desse tecido se eleva logo o desejo do sonho, da mesma maneira que o fungo do seu micélio” (p.519). O desejo e a interpretação surgem como um “ponto central”, segundo Lacan (1973, p.28), do enredado de idéias que se difundem e se dispersam em todas as linhas do pensamento. É o lugar em que “o desejo é, em suma, a interpretação”, afirma também Lacan (1973, p.161). O sonho que é C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 56 57 SEÇÃO DEBATES BIANCO, A. C. Lo. Da dúvida do relato à certeza... responsável pela realização, pela emergência do desejo, é justamente esse emaranhado de idéias, a partir do qual o desejo vai ser interpretado, no ato mesmo em que é realizado. Na formulação que Freud lhe daria alguns anos mais tarde, como ressaltamos, trata-se do sonho como o interpretante da moção pulsional, a qual, constantemente demanda esse infindável trabalho de interpretação. É um trabalho que não se completa porque justamente se assenta num núcleo duro em que a teia não se desembaraça, não se deslinda, não permitindo que se conheça os seus meandros. Aí se localiza o não conhecido a que se refere Freud. Trata-se do “mundo de larvas”, como o chamou Lacan (1973, p.26), relançando esta dimensão incógnita do inconsciente e ecoando o “lugar das sombras” mencionado por Freud. É preciso chegar a esse “mundo de larvas”, com cuidado, mas sempre chegar lá, afirma Lacan. É para falar do movimento em direção a esse “mundo do além” (Lacan, 1973, p.35), que Freud recorre ao desenrolar do trabalho onírico nos sonhos, os quais testemunham exatamente do trabalho incansável realizado pelo psiquismo. O acento nesse trabalho vai permitir a Lacan (1973) reconhecer um “encaminhamento ético” (p.37) de Freud quando postula o inconsciente. Esse não se refere a uma essência de ser, mas a uma posição ocupada frente a isso que está por ser realizado e que paradoxalmente comporta em si essa impossibilidade de uma realização completa. É nesse ponto que se situa a dúvida, surgida nessa ambigüidade frente à incompletude da realização do desejo. Resta sempre algo a ser interpretado pelo sonho, há uma abertura que nunca se fecha. E, ainda que, no cotidiano, tentemos tapá-la, evitemos a sua irrupção, fujamos do confronto com esse impossível, ele sempre retorna e sempre se mostra em seu aspecto de “tropeço, desfalecimento, rachadura” (Lacan,1973, p.27). Justamente, os fenômenos que Freud valorizou e no qual apoiou toda a concepção de inconsciente. A dúvida que emerge quanto a um elemento do sonho relatado resume, ao mesmo tempo que redobra, todas as dúvidas do interlocutor com quem Freud discutia, acerca desse relato. Assim como o relato claudica, a dúvida mostra o ponto em que o sonho esbarra com a impossibilidade da realização do desejo. Fazendo dela um ponto de apoio da análise, Freud, agora, de forma mais radical, afirma que nesse ponto da dúvida é preciso abandonar toda a “escala de apreciação da certeza”, isto é, propõe tratar o ponto de dúvida com uma “certeza plena” (Freud, 1900, p.519; cf., também, Lacan, 1973). A dúvida passa a indicar paradoxalmente um ponto de certeza na análise do inconsciente. Isso seria o mesmo que dizer que ela indica um ponto infinito que requer do sujeito uma “tomada de posição, um julgamento e uma conclusão”. Algo que se pode considerar um “testemunho ético” (Lacan,1973, p.40). Falar de um testemunho ético da psicanálise frente à dúvida, poder tratar com absoluta certeza a dúvida que se instala no relato do sonho,– aí se encontra o grande efeito de se deixar perpassar pela injunção freudiana –, é convocar o sujeito da análise ao trabalho incessante de elaboração dos pensamentos inconscientes: “Travailller comme une bête”, lembra Freud (1900, p.517) citando Claude Bernard. Essa a conseqüência mais importante que mostra o cerne da psicanálise: o trabalho tenaz e despreocupado, principalmente despreocupado com a falta de garantia quanto aos resultados aí obtidos, principalmente despreocupado quanto ao fim desse trabalho assim realizado. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FORRESTER, J. Dream Readers. Dispatches from the Freud Wars, Cambridge/ Mass: Harvard University Press,1997. FREUD, S. (1996). La interpretación de los sueños. (1900) In: _____. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1996. v. IV-V. _____. Pulsiones y destinos de pulsión. (1915) In: Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1996. v. XIV. p. 105-34. _____. Sobre el sueño. (1901) In: Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1996. v. V. p. 613-8. LACAN, J. J. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. In: _____. Le Séminaire. Livre XI. Paris: Seuil, 1973. _____. Angústia. (1962/1963) Seminário Inédito. 59 RESENHAS RESENHAS PSICANÁLISE E COLONIZAÇÃO SOUZA, Edson L. A. de. (Org.) Psicanálise e colonização; leituras do sintoma social no Brasil. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999. ??? p. Psicanálise e Colonização - Leituras do Sintoma Social no Brasil, organizado por Edson Luiz André de Souza, é o quinto título da Coleção Letra Psicanalítica da Editora Artes e Ofícios. Lançada em 7 de outubro passado, a obra está dividida em seis partes. A primeira - A colonização no Brasil e Sintoma Social - apresenta textos de Contardo Calligaris, Luís Cláudio Figueiredo e Carmem Backes. Em Colonização e Identidade Nacional - segunda parte - encontramos as contribuições de Ruben George Oliven, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Amélia Bulhões e Roland Chemama. A terceira, Raízes da Violência no Brasil contribuições de João Vicente Tavares dos Santos, Cláudia Tirelli, Mário Fleig, Tania Mara Galli Fonseca, Abrão Slavutzky, João Guilherme Biehl e Lucia Serrano Pereira. A seguir, Colonização: Percursos na Produção Artística apresenta as produções de Edson Luiz André de Sousa, Elida Tessler, Liliane Seide Fröemming e Zila Bernd. História e Discurso Colonial: Leituras Clínicas textos de Alfredo Nestor Jerusalinsky, Ana Maria Medeiros da Costa e Manoel Tosta Berlinck. A sexta e última parte, Infância no Brasil: Razões de um Abandono, produções de Cláudia Fonseca, Diana Myriam Lichtenstein Corso e Eda Estevanell Tavares. O organizador, diz que a obra nasceu de uma questão crucial: “podemos ou não construir novos horizontes a partir de uma leitura crítica da história colonial do Brasil? Ela, a questão, acabou produzindo a reunião de autores de diferentes áreas do conhecimento - antropologia, arte, filosofia, história, literatura, sociologia, psicanálise e psicologia - num diálogo profícuo sobre, diríamos, os sintomas sociais no Brasil. 60 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 O livro é marcado por textos densos e instigantes sobre nossa contemporaneidade a partir da leitura dos traços - fruto de nossa história colonial e de três lugares iniciais possíveis: do colono, do colonizador e do colonizado - que constituem nossa ‘brasilidade’ e que produzem, ainda hoje, efeitos sobre nossa cultura. A prática da psicanálise precisa considerar a história e a cultura do lugar onde estamos situados, já que a história é determinante de nossa referência simbólica. Portanto, que lugares nossa história como povo - mesmo que nos seja desconhecida, já que para produzir efeitos não é preciso que dela tenhamos conhecimento - nos possibilita? Os autores nos lembram que nossa herança colonial, a história da colonização - assim como todas as práticas sociais decorrentes de nossa história: a escravatura e a violência sobre os corpos, os movimentos imigratórios - deixou suas marcas e efeitos na arte, na língua, na literatura, no cinema, na política, nos instrumentos de controle do estado, nas práticas psicanalíticas, nas representações sobre a infância e nos lugares oferecidos a ela e nas representações da brasilidade; enfim, nos estilos que expressam como organizamos nossos laços sociais contemporâneos. Os textos também resituam uma questão central para a psicanálise: ‘ela só se sustenta enquanto no laço social’ e, como conseqüência, no diálogo com outras disciplinas. A afirmação da psicanálise enquanto fato da cultura e inserida, portanto, nos laços sociais é tema sensível na obra freudiana, obviamente por isto há no livro referências a textos consagrados por Freud a este tema, como O mal-estar na civilização, O Futuro de uma ilusão e Psicologia das massas e análise do Eu Dentro desta perspectiva os autores fazem o resgate, sempre pertinente, da inviabilidade de realizar uma leitura do Eu desvinculada da leitura do social, já que a ‘oposição entre individual e coletivo’ não encontra suporte no discurso psicanalítico. Por fim, a obra nos remete a outra pergunta: Quem somos? Tomando o cuidado de não oferecer respostas unívocas e totalizadoras, os autores indicam que as respostas possíveis não poderiam deixar de contemplar uma outra questão: quem é o Outro do Brasil? Já que há uma C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 61 RESENHAS RESENHAS impossibilidade estrutural de situar a questão da identidade sem referência a alteridade. E, se a cultura é fruto de nossa história, ela só pode se manter pela transmissão da linguagem, com a condição que a dimensão do Outro, como lugar de endereçamento, esteja contemplada. Boa leitura! Marcia Helena de Menezes Ribeiro 62 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 CARICATURA FONSECA, Joaquim da. Caricatura - A imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999. 286 p. U ma das expressões humorísticas mais veiculadas nos meios de comunicação de nossos tempos é a caricatura que, como diz o título desta publicação, refere-se ao humor em imagem gráfica. Estamos habituados à caricatura do indivíduo, principalmente desde que esta forma de expressão ganhou os shoppings e feiras das grandes cidades. Não deixamos de nos imaginar ali retratados, embora não nos deixemos “vitimizar” nessa experiência. No entanto, apesar dessa manifestação ter se exacerbado, ganhando características específicas a partir do final da Idade Média - quando a figura humana deixa de ser associada a uma ordem universal, divina - já há registros do desenho de humor em épocas bem remotas da história, dos quais a caricatura evoluiu. Quando, no Renascimento, o homem passa a ser a medida de todas as coisas, ele torna-se também objeto de caricatura. Sua imagem pode ser alterada pelo olhar de um semelhante e não mais, somente, por obra de Deus. Deus criou, o homem recria. É surpreendente verificar que grandes pintores (da Vinci, Dürer) foram também grandes caricaturistas, demonstrando a imensa possibilidade de modulação de um olhar, que ora retrata o modelo de forma idealizada e edificante, ora o revela sob um prisma subvertido, impiedoso, desnudado pelo exagero do traço. O que, à princípio, parecia ser simples divertimento do artista, ao longo do tempo revelou-se a expressão de profundas mudanças na concepção do homem e sua posição no universo. Pois Joaquim da Fonseca faz dessas produções um extenso e divertido catálogo, abordando sua função de linguagem gráfica, as origens des- C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 63 RESENHAS RESENHAS sa expressão, seus aspectos de sátira social e/ou política, os estilos e técnicas que fizeram escola em diferentes épocas e países, até adentrar no Séc. XX e no exame das produções humorísticas gráficas no Brasil, com seus principais expoentes. O desenho caricatural mostrou-se uma arte ferina, forma sutil e poderosa de protesto, com repercussões e conseqüências tão pungentes quanto longos discursos. E exemplos modernos continuam a lembrar o quanto discursos repressivos, políticos, entre eles, podem ser maçantes e sem eficácia. O prestígio da caricatura junto ao povo advém, por um lado, justamente da enorme condensação que ali se produz e, por outro lado, de estar sempre vinculado a um contexto histórico - quando pode operar como fonte de informação, expressão estética, diversão, formação de opinião, etc. Este sofisticado trabalho, principalmente o cartum, pode expressar também os equívocos da cultura, sacrificando a verdade que pretende revelar aos moralismos e preconceitos do autor. De qualquer forma, se a caricatura deforma para fustigar, não deixa de expressar versões singulares da relação do artista ao popular ou universal. Como não poderia deixar de ser, a obra é amplamente ilustrada, o que, além de permitir o secreto prazer da leitura de um livro “com figurinhas”, permite uma outra experiência insólita ao leitor. Este, desconhecendo personagens e episódios, pode não perceber, de início, o sentido da charge, tira ou desenho ali reproduzido. Mas o apreende após a leitura do texto ao lado, que o referencia, vendo-se tomado num riso “retardado”, mas que ainda expressa a genialidade e deixa imaginar o efeito dessa produção em sua época. Paulo Caruso faz a apresentação deste livro dizendo que “caricatura não se aprende na escola”, que durante a confecção de sua tese de graduação lhe indicavam ler Freud. Disso discorda, argumentando que, se tivesse de ler Freud, para tornar-se desenhista, já teria abdicado da profissão, falando de sua sedução pela imagem em detrimento da palavra, já que reconhece sua dificuldade para a leitura. Da sedução pela imagem, todos sabemos, em tempos de individualismo moderno; mesmo assim este comentário espanta. É verdade que ninguém precisa ler Freud para tornar-se um artista, o próprio Freud já o disse, quando reconhecia na produção artística a antecipação de coisas que o conhecimento ainda não alcançara. Tampouco para tornar-se sujeito de linguagem, mesmo que sua teoria tenha fundado uma nova concepção de sujeito e de linguagem. Contudo, ninguém que pretenda teorizar sobre o humor pode ignorar a dimensão inconsciente que ali opera, e disso Freud falou magistralmente. Evidenciou, em sua obra, a possibilidade de reconhecimento do sujeito no que, para ele, restou como traço, justamente, a partir do qual ele fala, tem acesso à metáfora, a algum tipo de linguagem, que se funda amparada na imagem. Palavra e imagem não podem ser dissociados, portanto, mesmo quando insistimos numa certa gradação de valor, ou preferência, entre elas. Como seres de linguagem transitamos nesse enlace, com ou sem leitura, às vezes “com figurinhas”. Traço, metáfora, linguagem, são conceitos que encontramos no texto freudiano e os reencontramos, talvez noutra acepção, também nesta publicação, com certa insistência. Como vemos, a leitura do livro é de interesse para quem aprecia o humor, para profissionais das artes, e quem sabe para psicanalistas, profissionais da palavra, podendo ampliar a relação ao que nosso tempo produz. A biblioteca da APPOA conta com um volume desta extensa e cuidadosa pesquisa, que é recente - doado pelas Artes e Ofícios, a quem agradecemos - e que homenageia a produção de muitos gaúchos. Ao lado, reproduzimos o cartum de Santiago, premiado no Japão, em 1989, uma das ilustrações desta obra. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 64 Liz Nunes Ramos 65 RESENHAS AGENDA NOVEMBRO - 1999 CARTUM SANTIAGO Dia Hora Local 04 04 e 18 19 08 e 22 10 21h 20h 16h30min 20h30min 18h Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA 10 e 24 04 e 18 ?? 18 20h30min 20h 15h30min 21h Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA ?? ?? 21h 21h Sede da APPOA Sede da APPOA ?? 19h30min Sede da APPOA 19 e 20 Atividade Hotel Continental Reunião da Mesa Diretiva Reunião da Comissão de Biblioteca Cartel do Envelhecimento Reunião do Fórum Seminário “A topologia fundamental de Jacques Lacan” - Responsável: Ligia Víctora Cartel Brasil 500 anos Reunião da Comissão do Correio da APPOA Cartel do Interior Reunião da Mesa Diretiva aberta aos membros da APPOA Relendo Freud - Análise Finita e Infinita Cartel Preparatório para a Jornanda sobre Neurose Obsessiva Seminário “Novos apontamentos para a clínica das psicoses” - Responsável: Alfredo Jerusalinsky Jornada Clínica da Neurose Obsessiva PRÓXIMO NÚMERO APPOA 10 ANOS 66 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 74, nov. 1999 67 NOME: ___________________________________________________________________ ENDEREÇO: _______________________________________________________________ CEP:______________________CIDADE:____________________________UF: ________ FONE: _________________________FAX: ______________________________________ E-MAIL: ___________________________________________________________________ INSTITUIÇÃO: _____________________________________________________________ Sim, quero receber a Revista da APPOA nas condições abaixo: ( ) Assinatura anual – R$ 30,00 e receba o exemplar da revista n. 8 inteiramente grátis ( ) Para você que já é assinante do Correio da APPOA: Assinatura anual da Revista - R$ 25,00 e receba o exemplar da revista n. 8 inteiramente grátis ( ) Número da revista desejada para compra avulsa - Título:________________________ Data: ____/__________/1999. E pagarei com cheque número ___________, do Banco _____________, nominal à Associação Psicanalítica de Porto Alegre. ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE Rua Faria Santos, 258 - Petrópolis 90670-150 - Porto Alegre RS Se preferir, utilize telefone, fax ou e-mail: Fone: (51) 333 2140 Fax: (51) 333 7922 E-mail: [email protected] Assine já a Revista da APPOA e conecte-se com os temas e eventos mais atuais em Psicanálise. São 2 números por ano. Para receber a Revista da APPOA, copie e preencha o cupom abaixo e remeta-o para: N° 74 – ANO VII NOVEMBRO – 1999 DO HUMOR S U M Á R I O EDITORIAL ? NOTÍCIAS ? SEÇÃO TEMÁTICA ?? CONTRASTES E SEMELHANÇAS Ana Maria Medeiros da Costa ?? A PIADA E SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE OU A PSICANÁLISE É MUITO SÉRIA Abrão Slavutzky ?? NOTA SOBRE A TÉCNICA DO CHISTE NA RETÓRICA PSICÓTICA Francisco Settineri ?? O HUMOR Liz Nunes Ramos ?? SEÇÃO DEBATES ?? A CLÍNICA INSTITUCIONAL EM DEBATE - A QUESTÃO DO PAGAMENTO Ângela Lângaro Becker Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.) Criação da capa: Flávio Wild - Macchina ?? DA DÚVIDA DO RELATO À CERTEZA DA INTERPRETAÇÃO NOS SONHOS Anna Carolina Lo Bianco ?? RESENHA ?? AGENDA ?? ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE GESTÃO 1999/2000 Presidência - Alfredo Néstor Jerusalinsky 1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira 2a. Vice-Presidência - Maria Ângela Brasil 1o. Tesoureiro - Carlos Henrique Kessler 2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes 1o. Secretário - Jaime Alberto Betts 2a.Secretária - Marta Pedó MESA DIRETIVA Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa, Ana Marta Goelzer Meira, Cristian Giles, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora, Liz Nunes Ramos, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Mario Fleig, Robson de Freitas Pereira, e Valéria Machado Rilho. EXPEDIENTE Órgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RS Tel: (51) 333 2140 - Fax: (51) 333 7922 e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.br Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956 Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda. Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (051) 318 6355 Comissão do Correio Coordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira Integrantes: Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Luzimar Stricher, Marcia Helena Ribeiro, Maria Aparecida Loss, Maria Lúcia Müller Stein e Marta Pedó