UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL KÉRCIA PRISCILLA FIGUEIREDO PEIXOTO O COMÉRCIO JUSTO E O TURISMO COMUNITÁRIO NA AMAZÔNIA: Ideais, práticas e nós do mercado BELÉM 2009 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL KÉRCIA PRISCILLA FIGUEIREDO PEIXOTO O COMÉRCIO JUSTO E O TURISMO COMUNITÁRIO NA AMAZÔNIA: Ideais, práticas e nós do mercado Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará para obtenção do título de mestre em Serviço Social, sob orientação da Profª Drª Maria José de Souza Barbosa. BELÉM 2009 O COMÉRCIO JUSTO E O TURISMO COMUNITÁRIO NA AMAZÔNIA: Ideais, práticas e nós do mercado Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará para obtenção do título de mestre em Serviço Social, sob orientação da Profª Drª Maria José de Souza Barbosa. Aprovado em: _____________________ Banca Examinadora: _________________________________ Profª Drª Maria José de Souza Barbosa Orientadora – PPGSS/UFPA _________________________________ Profª Drª Helena Dóris de A. B. Quaresma Examinadora Interna – Faculdade de Turismo/ ICSA/ UFPA _________________________________ Profº Dr. Farid Eid Examinador Externo – PPGEP/UFSCar Resultado: _________________________ Ao pequeno Gabriel, fonte de amor de todos aqueles que amo. AGRADECIMENTOS Agradeço a todos que embalaram, cuidaram, ninaram e brincaram com o Gabriel, bebê que nasceu durante o mestrado, enquanto precisava me dedicar às atividades acadêmicas e à elaboração desta dissertação. Agradeço ao meu amor Rodrigo que, muitas vezes, deixou seus próprios assuntos para discutir meu tema e que me deu força para concluir esta etapa quando pensei em desistir. Agradeço à minha mãe, amiga e companheira que me dá suporte e amor em todos os momentos. Agradeço à minha família e amigos, por existirem e fazerem parte da minha vida. Agradeço à prof. Zezé, orientadora que acreditou em mim e no meu assunto antes mesmo de eu embarcar nessa aventura. Agradeço a todos os produtores que com tanta boa vontade contribuíram para a realização deste trabalho. Agradeço aos amigos de ontem e de hoje, de Icoaraci e de Abaetetuba, que dividiram comigo suas experiências de vida e de trabalho. Agradeço ao Davide Pompermaier pelas inúmeras conversas, por dividir todo o seu conhecimento acerca do Comércio Justo e do Turismo Comunitário, e pela oportunidade de compor a equipe do Projeto do Ajuri, essencial para a realização deste trabalho. Agradeço ao Maurizio Fraboni, pelas conversas, disponibilidade e paciência em responder aos incontáveis questionamentos sobre o projeto Guaraná dos Sateré- Mawé. Agradeço ao Vicente Neves e a todos de Silves que me receberam com tanta gentileza na pousada Aldeia dos Lagos. Agradeço às meninas mulheres da Avive, que encontrei por acaso e que não hesitaram em me receber e me informar sobre o trabalho e vida delas, especialmente à Conceição, Bárbara, Franciane e Joyce. Enfim, agradeço a todos os professores, colegas e colaboradores do mestrado que enriqueceram a minha vida. A luta pela justiça é uma luta contra o poder e não contra as injustiças da justiça. Foucault (1999) RESUMO FIGUEIREDO, Kércia. 2009. Comércio Justo: ideais, práticas e nós do mercado. A relação com o Turismo Comunitário na Amazônia. Universidade Federal do Pará: Pará. Dissertação do Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – PPGSS. A dissertação estuda o comércio justo a partir dos ideais contidos em seu discurso político ideológico. Analisa as práticas que implicam as suas contradições, e apresenta as dificuldades da inserção de grupos de produtores e de suas mercadorias nesse campo do mercado. Inicialmente a dissertação situa o comércio justo no contexto do mundo atual, neoliberal e globalizado, e percorre sua história tanto internacional como nacionalmente. Baseada nas novas dinâmicas existentes no comércio justo, que contemplam relações de parceiros que compõem todo o circuito comercial, tanto no hemisfério Sul como no Norte, superando a inicial relação exclusiva Norte-Sul, percebe-se claramente a necessidade de uma redefinição para o comércio justo. Além do mais, a dissertação lança foco sobre o Brasil e a América Latina, onde os movimentos do comércio justo e da economia solidária estão cada vez mais ligados e complementares. Partindo da análise do comércio justo no Brasil, constatase o quão distante a Amazônia brasileira está em relação às práticas do seu próprio país. No âmbito do comércio justo, a região está mais próxima dos centros estrangeiros. Logo após, a dissertação pormenoriza os sujeitos, contextualizando-os no circuito do comércio justo, observando seus comportamentos ideais e suas práticas efetivas, baseada em fatos empíricos colhidos em bibliografias e em observação pessoal realizadas no trabalho de campo. No decorrer do trabalho é possível perceber que o comércio justo balança entre um movimento social com escopo prioritariamente político, com um discurso ideológico bem definido, e uma categoria comercial, que o faz ganhar, cada vez mais, moldes de um nicho de mercado. Nesse embate, ocorre uma divisão no posicionamento de diversos atores. Na sequência, serão tratados os pontos cruciais referentes aos nós do mercado, ou seja, às suas principais dificuldades. É fato que o comércio justo propõe uma verdadeira superação do famoso fetichismo da mercadoria de Marx? O comércio justo propõe uma real superação da separação entre mercadoria e produtor? E o que é o chamado preço justo? Este é um conceito inteligível? Finalmente, a dissertação discute a potencialidade dos produtos Amazônicos e os meios de valorizá-los. Aborda, entre outros aspectos, a possibilidade de formação de uma rede de comércio justo na Amazônia. Não obstante às dificuldades apresentadas e aos poucos projetos de comércio justo desenvolvidos na região, a Amazônia contempla casos de sucesso. Dentro desses casos é nítida a relação entre comércio justo e um tipo de turismo gerido pelas comunidades locais, o chamado turismo responsável. A partir de alguns estudos de caso, como o do projeto da Pousada Aldeia dos Lagos de Silves e o do projeto do Guaraná dos Sateré-Mawé, ambos no estado do Amazonas, demonstra-se como na região o comércio justo fortalece o turismo responsável e vice-versa. Palavras-chave: Comércio Justo. Economia Solidária. Mercado. Turismo Comunitário. ABSTRACT FIGUEIREDO, Kércia. 2009. Fair Trade: ideals, practices and trade’s difficulties. An approach in Amazonia. 2009. Universidade Federal do Pará: Pará. Master dissertation of Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – PPGSS. The dissertation studies the fair trade from the ideals of its political and ideological discourse. It analyses the practices which imply its contradictions, and presents the dificulties of the insertion of producers groups and their goods in this specific field of the market. At the beginning the dissertation places the fair trade in the context of the present neoliberal and globalyzed world, and traces its national and international history. Based on the new dynamics of the fair trade, which now involve partnerships in the whole commercial circuit, both in the North and the South hemispheres, overcoming the initial and exclusive relation North-South, it becomes clear the necessity of a redefinition for the fair trade. Moreover, the dissertation focuses on Brazil and Latin America, where the movements of fair trade and solidary economy become more and more tied and complementary. In addition, from the analyses of the fair trade in Brazil, it can be verified how farway the Brazilian Amazonia is from the practices in its own country. Regarding the fair trade, the region is closer to the foreign centers. Then, following these analysis, the dissertation brings to the scene the actors, contextualizing them in the circuit of the fair trade, confronting their ideals and their effective practices, taking into account empirical facts collected in bibliographical references and personal observation done in field work. Along the dissertation it is possible to see that the fair trade balances between a social movement, with a political scope and a well defined ideological discourse, and a commercial category, which makes it similar to a market niche. Between these two distincts stands – social movement and market niche - occurs a division and a confront among several actors. Following this approach, the dissertation treats the crucial points that refer to the so-called “nós do mercado”, that is, the market difficulties. Is it a fact that the fair trade proposes a real overcoming of the famous Marx’s fetishism of commodities? Does the fair trade overcome in fact the split between the commodities and the producers? And what is the so-called fair price? Is it an intelligible concept? Finally the dissertation debates the potencialities of the Amazonia’s products and the ways to valorize them. It debates the possibilities of the formation of a fair trade network in Amazonia. Notwithstanding the difficulties and the few fair trade projects developed, there are some well succeed cases in the region. And, among these successful cases, it is clear the relationship between the fair trade and the kind of tourism managed by local communities, the so-called responsible tourism. From some case studies, as the project Pousada Aldeia dos Lagos, situated in Silves, and the project Guaraná, managed by the Sateré-Mawé, both the State of Amazonas, the dissertation shows as in Amazonia the fair trade strengthens the responsible tourism, and vice-versa. Key-words: Fair Trade. Solidary Economy. Market. Community tourism. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 11 CAPÍTULO I O Comércio Justo: um sistema de solidariedade concreta 17 Comércio Justo: necessidade de uma redefinição Da caridade à promoção de oportunidades: uma história de sucesso Princípios norteadores América Latina: berço do movimento, escassos investimentos e a conquista do mercado interno 1.5- Comércio Justo e Economia Solidária no Brasil: a complementaridade dos movimentos 1.6- O Comércio Justo na Amazônia: raras experiências, rio-mar de possibilidades 19 24 36 39 1.11.21.31.4- 46 52 CAPÍTULO II A definição dos sujeitos e suas práticas: dificuldades e desafios 2.12.22.32.42.5 2.62.7- Produtores: o coração do sistema e também o elo fraco Centrais de Importação: o poder no Comércio Justo Lojas de Comércio Justo: uma ponte para o mercado Distribuição em Supermercados: a faca de dois gumes As Certificadoras: da criação do primeiro selo à dominação O Consumidor do Comércio Justo Organizações internacionais formam a rede do Comércio Justo 57 60 65 74 81 88 92 CAPÍTULO III Os nós do mercado e a realização da mercadoria A mercadoria no Comércio Justo: uma alternativa ao fetichismo? Destrinchando o Preço Justo? O papel do Estado: Conectando o consumo à produção familiar O Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário: A institucionalização do movimento no país 3.5- Os produtos amazônicos- dificuldades e possibilidades 3.6- Uma rede de Comércio Justo na Amazônia? 3.13.23.33.4- 108 116 123 131 140 151 CAPÍTULO IV Experiências na Amazônia – A relação entre Turismo Comunitário e Comércio Justo 4.14.24.34.4- O Turismo Responsável e o Comércio Justo: de onde vem essa relação? A rede Turisol: articulando o turismo comunitário no Brasil O turismo na Amazônia: a necessidade de uma inversão de prioridades Dois casos que envolvem quatro experiências na Amazônia 156 161 163 166 CONSIDERAÇÕES FINAIS 202 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 206 APÊNDICES 214 ANEXOS 222 11 APRESENTAÇÃO Ao longo do tempo a Amazônia vem sofrendo com um modelo de desenvolvimento que a destrói e que ignora o homem que ali vive. Com a pressão internacional para a proteção da floresta, o Governo Federal implanta novas políticas para, através delas periodicamente, buscar números de redução do desmatamento. Apesar de tudo, o tipo de desenvolvimento que prevalece na região é ainda aquele economicista, que não abrange aspectos sócio-culturais e ambientais. Assim, não tão lentamente, a floresta se esvai e com ela toda a riqueza dos conhecimentos tradicionais das populações locais. No entanto, com baixo rumor, novas possibilidades de crescimento surgem nos mais longínquos rincões da floresta. E não se trata da estigmatização do sentido da palavra crescimento, que a reduziu simplesmente ao aspecto econômico, mas de um crescimento que prima pela valorização tanto da capacidade biológica, que, segundo Pinzón (apud POMPERMAIER, 2007), é a garantia das condições para a plenitude da vida na sua diversidade, quanto da capacidade social, que busca a justiça e equidade em detrimento à pobreza, desigualdade e injustiças. Dentre as novas possibilidades, o que será estudado aqui é o movimento do Comércio Justo. O interesse pelo tema nasceu entre os anos de 2003 e 2005, quando tive a oportunidade de cursar o Mestrado de Arte e Cultura Européia: conservação e preservação de bens culturais, na Universidade de Nápoles Suor Orsola Benincasa. Vivendo na Itália, conheci lojas que propunham um modo alternativo de fazer comércio: eram as Botteghe del Mondo, da rede internacional de Comércio Justo, conhecido também como Fair Trade. Expostos nas prateleiras encontravam-se produtos de altíssima qualidade, produzidos por pequenos produtores de países subdesenvolvidos do Sul do mundo. Havia desde a erva-mate produzida pelo Movimento dos Sem Terra (MST) no Paraná e diversos produtos oriundos do guaraná dos índios Sateré Mawé da Amazônia, até artesanatos africanos entre temperos e tecidos indianos. O que mais me surpreendeu foi perceber nas etiquetas como eram compostos os preços, que fazia valer um dos principais slogans do Comércio Justo “trade not aid” (comércio e não ajuda), pagando ao produtor um preço justo, acima das variações do mercado. 12 O Comércio Justo se constrói por meio de um corpo discursivo que o coloca como uma atividade especial em um campo maior que é o próprio comércio internacional. Assim, a noção de campo, conforme empregada por Bourdieu (1989), é útil para a análise do que propõe o discurso do Comércio Justo, na medida que permite considerar como esta atividade específica se situa discursivamente em relação ao todo. Ao construir o objeto da pesquisa de forma relacional, acaba-se por se definir um “modelo”, composto por um sistema coerente de relações internas e externas. Conforme Bourdieu (idem), o campo - no nosso caso, o comércio internacional - apresenta propriedades gerais, e o caso particular, o próprio Comércio Justo, nosso objeto de estudo, se insere, com suas relações típicas, naquele corpo maior. O trabalho de pesquisa consiste em articular formulações teóricas a realidades práticas, procurando assim construir objetos científicos. Essa não é uma tarefa fácil por se tratar de um tema novo, ainda pouco estudado, com uma escassa bibliografia nacional. Foi necessário um grande esforço para conseguir inúmeras publicações disponíveis somente em língua estrangeira para dominar melhor o tema. Para a apresentação do movimento do Comércio Justo, serve seguir uma seqüência de tópicos que explicitarão, a partir de uma análise crítica, cada fator que o compõe. Esse trabalho analítico é diverso da mera descrição de conteúdos e atores que normalmente fazem os relatórios disponíveis. As entrevistas realizadas ao longo da pesquisa mostraram evidências para o argumento dessa dissertação, que se apóia muito no livro “La Crisi di Crescita – Le prospettive del commercio equo e solidale”, de Lorenzo Guadagnucci e Fabio Gavelli (2004). Baseia-se também na tese de doutorado intitulada “O Movimento do Comércio Justo e Solidário no Brasil: entre a Solidariedade e o Mercado” de Gilberto Mascarenhas (2007). Na dissertação de mestrado “Comércio Justo e o Caso do Algodão: a Cadeia Produtiva Têxtil Brasileira” de Ana Asti (2007). E, em inúmeros artigos, revistas, relatórios, documentos, além de incontáveis sites de organizações do Comércio Justo. A princípio, pensou-se em pesquisar apenas o universo do Comércio Justo, caracterizando-o, procurando meios para a inserção dos produtos regionais na rede, desatando os nós do mercado. Porém no decorrer da pesquisa, em muito apoiada pelo trabalho realizado dentro do “Projeto Especial de Qualificação – Comércio Justo e Turismo Responsável: oportunidades solidárias e sustentáveis para a Amazônia”1, percebeu-se que, na maioria das 1 Projeto realizado pelo Instituto Ajuri, durante o ano de 2007, dentro do Plano Nacional de Qualificação, financiado com recursos do FAT/MTE. 13 experiências investigadas, uma atividade atrai a outra, ou seja, as comunidades que estão inseridas em roteiros de turismo responsável acabam desenvolvendo produtos segundo critérios do Comércio Justo, e vice-versa. Optou-se então por abordar no último capítulo da dissertação a relação entre o Turismo Comunitário e o Comércio Justo com ênfase em dois casos, cada um envolvendo duas experiências. Procurar-se-á demonstrar como esses movimentos estão paulatinamente transformando a realidade de alguns povos amazônicos Como resultado da pesquisa pôde-se perceber que nas experiências na Amazônia, o Turismo Comunitário alavanca o Comércio Justo, e ao mesmo tempo o Comércio Justo alavanca o Turismo Comunitário. Ambos ocorrem sob princípios responsáveis e solidários. Ambos com critérios que priorizam os direitos humanos em contraposição ao que ocorre no livre comércio e no turismo convencional. Critérios esses que resguardam as culturas locais, que pretendem o respeito e a preocupação pelas pessoas e pelo ambiente acima do lucro, que procuram estabelecer um preço justo para os produtos e serviços, que valorizam o trabalho feminino estabelecendo a igualdade de oportunidades, que impõem regras adequadas para a comercialização, como as crianças freqüentando a escola e a utilização de matérias primas ambientalmente corretas, entre outros. Cabe enfatizar que no Brasil ambos têm interface com o movimento da Economia Solidária. Ambos quase desconhecidos pelos administradores públicos e pelas organizações sociais. Assim, a dissertação estuda os ideais impregnados nos discursos do movimento do Comércio Justo, as suas práticas e as suas principais dificuldades representadas pelos nós do mercado. Adotar-se-á uma atitude questionadora sobre aquilo que se encontra teórico ou “naturalmente” e popularmente estabelecido, conforme o método de Bourdieu (1989). Por isso, sentiu-se a necessidade de historializar e contextualizar as práticas, desconfiar das certezas amplamente aceitas, e, com paciência, fôlego e atenção aos procedimentos da pesquisa, penetrar no campo de estudo, preenchendo os discursos com fatos empíricos e extraindo assim uma nova realidade. Na construção do objeto científico, a postura principal é a de romper com o senso comum, com pontos de vista aceitos como verdades estabelecidas, que é justamente o conceito pré-construído a ser demitido. E vale observar, “o pré-construído está em toda a parte”, nos rótulos que se atribuem a agentes sociais e nos nomes que se empregam para conceituar atividades. Assim, de acordo com Pinto (2000, p.13), “não há conhecimento sem que se questione um fundo preexistente de crenças: ao contrário das certezas banais, sem 14 contraste e sem história, o que um texto rigoroso ensina é sobretudo a desconfiança acerca daquilo em que se pôde acreditar”. Desse modo, a dissertação avalia a coerência entre as proposições discursivas e as práticas efetivas. De fato, alguns dos princípios do Comércio Justo dificilmente vigoram no modo de produção capitalista. Segundo Fairclough (2001), o discurso constitui ou constrói a sociedade em várias dimensões: constitui os objetos de conhecimento, os sujeitos, as relações sociais e as estruturas conceituais. Diante do abundante material bibliográfico e sites de diversas instituições que praticam e/ou defendem o Comércio Justo, é preciso lançar mão de instrumentos que possibilitem discernir proposição e realidade, considerando que esta, conforme Bourdieu (1989), é também representação que depende do conhecimento e do reconhecimento. Estudar o Comércio Justo e, ainda, pensar em experiências amazônicas atreladas ao Turismo Comunitário como alternativa de desenvolvimento regional, requer mais que uma aproximação superficial do problema. Foi preciso uma atitude de relativização no que diz respeito às possibilidades da atividade específica, que ocorre dentro de um campo maior, ou seja, o comércio internacional. É necessário discernir entre o que é proposto e o que efetivamente se pratica e como superar as dificuldades. A intenção não é propriamente desconstruir o ideal como se ele fosse falso, porque a atividade que o discurso enuncia é essencialmente consistente, já que o número de atores associados à rede do Comércio Justo é crescente, assim como os valores movimentados. Mas será que este próprio crescimento e os interesses relacionados não tenderão a desvirtuar os ideais originários? O que dizem os produtores acerca da atividade, e o que dizem aqueles que não lograram participar dela? Neste trabalho a intenção não é de modo algum desqualificar o movimento do Comércio Justo, mas sim ponderar entre idealização, realidade e destrinchar os nós referentes à sua ampliação. Com esse escopo a dissertação está dividida em quatro capítulos, explicados sumariamente a seguir: O primeiro capítulo, intitulado “O Comércio Justo: um sistema de solidariedade concreta”, apresenta ao leitor o movimento do Comércio Justo. Inicialmente o situa no mundo onde o desequilíbrio entre os hemisférios Norte e Sul é evidente. A partir da análise da relação existente na América Latina entre Economia Solidária e Comércio Justo, onde este passa a ser reconhecido como o canal ideal de comercialização dos produtos dos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES), pretende-se demonstrar a necessidade de redefinição do que foi 15 estabelecido internacionalmente como Comércio Justo. Logo após faz-se uma viagem na história do Comércio Justo, a fim de esclarecer as etapas que o movimento superou. Em seguida, situa-se o movimento no Brasil e na América Latina, apresentado suas influências ideológicas, seus princípios norteadores e a forte relação entre Economia Solidária e Comércio Justo no Brasil. Finalmente aportamos na Amazônia, contextualizando-a e procurando entender como, apesar das minguadas experiências, ela pode se inserir melhor nesse cenário. No segundo capítulo, cujo título é “A definição dos sujeitos e suas práticas: dificuldades e desafios”, os sujeitos são abordados a partir do que no Comércio Justo pretendem ser e, por outro lado, do que de fato são. Dentro de cada tópico surgem polêmicas que são discutidas e analisadas para extrair o verdadeiro papel de cada ator. A descrição de produtores, centrais de importação, lojas de comércio justo, certificadoras e consumidores é permeada de experiências práticas que legitimam tais sujeitos. Além do mais, aborda-se a delicada questão da distribuição dos produtos “justos” nos supermercados. Já no terceiro capítulo, “Os produtos: como desatar os nós do mercado?”, busca-se fazer uma ligação entre a realização da mercadoria e entender se de fato ocorre uma contraposição ao fetichismo, como categoria estudada por Marx (2001), no livro I do Capital. A dissertação considera as abordagens teóricas sobre mercado na perspectiva de Polanyi (2000), Granovetter (1992), Abramovay (2004) e Lisboa (2000), a fim de situar a nova tipologia de mercado e a perspectiva de produto dentro do Comércio Justo. Além disso, procurar-se-á debater sobre o Preço Justo para entender se é possível destrinchá-lo. Alguns itens abordam problemas, outros tentam apontar soluções. É o caso das Compras Públicas e da implantação do Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário, que podem ser excelentes alternativas para a valorização e o escoamento de produtos da Economia Solidária. Logo após, será abordada a especificidade dos produtos amazônicos, suas dificuldades, possibilidades e de que forma estão inseridos no mercado internacional. Isso levou a considerações, apesar de levemente perscritivas, sobre a importância da formação de uma rede de Comércio Justo na Amazônia. Finalmente, o último capítulo, intitulado “Experiências na Amazônia – A relação entre Turismo Comunitário e Comércio Justo”, lança foco sobre a Amazônia. Parte-se da percepção de como o movimento de Turismo Comunitário nasce no coração dos projetos de Comércio 16 Justo e como a partir disso se estruturou uma rede internacional. Trazendo o assunto para a realidade nacional, constata-se o descaso das Políticas Públicas em relação ao Turismo Comunitário. Tal descaso ocorre também na Amazônia. Seria necessário uma inversão de prioridades das Políticas Públicas de Turismo com a valorização das comunidades locais, como protagonistas na promoção de um turismo mais voltado aos interesses das próprias comunidades. A dissertação se conclui com a apresentação de dois casos concretos de interligação entre Comércio Justo e Turismo Comunitário, envolvendo quatro experiências na Amazônia: A Pousada Aldeia dos Lagos e a Avive, ambas em Silves (AM), o Projeto Guaraná Sateré Mawé e o nascimento da Pousada 20 quilos. 17 CAPÍTULO I O Comércio Justo: um sistema de solidariedade concreta O atual momento de crise acentua o caráter excludente do capitalismo. As “medidas sem medidas”, o lema “custe o que custar” e os trilhões usados pelos governos mais ricos para salvar o “mundo” de uma crise, revelam o quanto a preocupação está centrada num determinado recorte do mundo. Uma pequena fração dos dólares que têm fluido aos bancos já seria suficiente para acabar com a fome e as guerras dela resultantes. Contudo, as populações que sofrem a fome e as guerras estão fora do mercado, e é esse ente abstrato, mas onipotente, que interessa aos governos. No universo inumano que é o capitalismo, interessa de fato o capital e o capitalista, mero predicado do homem, não o homem mesmo, homem-sujeito cuja existência não cabe no mundo das mercadorias (FAUSTO, 1983). É certo que uma discussão sobre o modo capitalista de produção e seu momento de crise não é o escopo desse trabalho, mas como ignorar esse pano de fundo para contextualizar o nascimento, a consolidação e o atual momento de um movimento social como o Comércio Justo? Com a crise, subitamente o Estado, que pela norma clássica liberal deveria ser o último a fazê-lo, intervém, naturalmente não pela sobrevivência da humanidade, como mostram os números abaixo, mas em função do capital, que precisa sempre se reproduzir para evitar o desmoronamento do sistema. Quadro I: A Pobreza globalizada As bolsas dominam as manchetes. Os governos dos EUA e da Europa distribuem 5 trilhões de dólares dos contribuintes para um punhado de banqueiros trapalhões e torcem para que eles pensem em consertar os estragos resultantes de suas travessuras, emprestar a seus clientes e reativar a economia depois de embolsar seus bônus e gratificações milionárias. Mas o aspecto mais desagradável dessa história é que ela jogou no esquecimento a crise mais grave que afeta os desprivilegiados pela economia globalizada. Segundo o Banco Mundial, a elevação dos preços dos alimentos e dos combustíveis aumentou o número de desnutridos em todo o mundo de 923 milhões em 2007 para 967 milhões neste ano. Segundo o senegalês Jacques Diouf, diretor da FAO, 30 bilhões de dólares anuais – menos de 1% do valor despejado nos bancos – bastariam para recuperar a agricultura nos países pobres e evitar a fome e os conflitos que dela resultarão. 18 Por 40 bilhões, pode-se também comprar 250 quilos de grãos para cada uma dessas pessoas, o suficiente para alimentá-las por um ano. Ao mesmo tempo, o relatório da Organização Internacional do Trabalho informa que, entre 1990 e 2000, em dois terços dos países estudados a participação dos salários na renda caiu e a desigualdade aumentou. Entre os de maior disparidade estão os EUA, a China e a Índia e continua o Brasil – embora este último também esteja na minoria dos que tiveram alguma redução de desigualdade. Em geral, a tendência continuou nos anos seguintes: em 2003, os diretores corporativos dos EUA ganhavam 360 vezes mais que o trabalhador médio; em 2007, 500 vezes mais. Em agosto, antes mesmo que o mundo começasse a se assustar com a crise, o índice global de desemprego atingiu 5,7%, o mais alto em oito anos. Se isso aconteceu enquanto a economia global crescia 5% ao ano, como será na recessão? Fonte: Publicado na revista Carta Capital, de 22/10/2008. Diante desse quadro a sociedade, particularmente daqueles que fazem a crítica ao mercado capitalista, tem buscado encontrar soluções como a proposta do Comércio Justo, uma nova modalidade de prática comercial apoiada por um forte discurso ideológico que busca influenciar instituições que regem as normas do mercado internacional, sensibilizar o consumidor e o poder público, aliando assim ações políticas às práticas comerciais. Em 2007, o Comércio Justo teve um faturamento de mais de €2,3 bilhões de euros, quase 70 vezes mais que há 10 anos. No mesmo ano, alcançou mais de 1,5 milhão de agricultores e trabalhadores de 58 países e estima-se que beneficiou diretamente 7,5 milhões de pessoas2. Segundo Ana Asti (2007), o movimento se consolida pelo tripé: a) lojas especializadas; b) distribuição e; c) sensibilização e ação política fortalecendo a dinâmica comercial, a qual se torna um meio de legitimação do projeto político. Para Fretel (2003, p.31): o Comércio Justo surge não só como uma alternativa de cooperação comercial para os produtores excluídos dos países do Sul, mas também como um conjunto de práticas que se inserem em uma concepção dos intercâmbios, rompendo com o paradigma econômico e com a visão neoliberal. Na mesma linha ativista de mudança do mundo, Asti; Ferrari (2003, p.39) argumentam que “os países ricos querem dominar os mercados” (...) “o comércio ético e solidário tem a pretensão de botar ordem na casa, afinal de contas alguém tem que zelar pelos interesses dos 2 Esses são dados do Relatório Anual da FLO (Fairtrade Labbeling Organization), 2007. 19 mais pobres”. Aqui, se atribui um excesso de potência ao comércio justo, como atividade capaz de promover uma revolução na ordem internacional. Exageros e hipérboles discursivas desse tipo permeiam os textos relativos ao comércio justo. No entanto, críticos do comércio justo tendem a apontar o fato de suas práticas priorizarem aspectos comerciais e econômicos, situando suas atividades apenas como um nicho de mercado. Isto porque a realização das mercadorias no mercado, mesmo que vinculadas a uma ideologia política, não é tarefa simples. Por mais que se procure estabelecer um modo de comércio alternativo, o mercado não deixa de ser prioritariamente competitivo, onde o que vigora é a lei do mais forte. A busca de alcançar um número sempre maior de consumidores leva a se adotar estratégias usuais do mercado, como por exemplo, o marketing, mesmo que esse esforço esteja envolto de argumentos sócio-políticos, além da tradicional busca de se consolidar um padrão de qualidade ao gosto do consumidor com certo poder aquisitivo. De acordo com Fretel; Simoncelli-Bourque (2003, p.9), “no mercado interno e muito mais no mercado externo, enfrentamos a competição, que nos obriga, com frequência, a baixar os preços e ainda ter que investir para melhorar na qualidade”. Outro aspecto que se observa é em relação à crescente demanda de inserção dos produtos das organizações de produtores do sul e o movimento do Comércio Justo, apesar de crescer a saltos galopantes, se vê limitado e em algumas situações acaba buscando soluções nada alternativas que acabam por gerar tensões internas. 1.1- Comércio Justo: necessidade de uma redefinição. O Comércio Justo, também conhecido como Fair Trade3, é um sistema de distribuição comercial criado para fazer chegar aos consumidores, principalmente europeus e norteamericanos, produtos provenientes de países da África, Ásia e América Latina, de acordo com critérios que valorizam os direitos dos trabalhadores e a capacidade associativa dos produtores. Esse sistema é concebido de modo a eliminar intermediações especulativas, na realização de aquisições diretamente dos produtores e as vendas também diretas aos consumidores dos produtos, prevalentemente agro-alimentares e artesanatos de vários tipos. 3 Termo em inglês para comércio justo. 20 O escopo do sistema é eliminar as desvantagens dos produtores e consumidores em face dos mecanismos tradicionais que vigoram no comércio internacional. As bases do comércio justo e solidário estão fundadas em uma visão política das relações Norte-Sul e da cooperação internacional, a qual, por um lado, privilegia processos de melhoria da capacidade produtiva com autonomia, existentes no Sul do mundo e, por outro, favorece a dimensão ética e política do consumo no Norte. O movimento do Comércio Justo faz uma crítica ao pressuposto de que a exportação mundial dos produtos típicos dos países do Sul do mundo constitui, em princípio, uma oportunidade econômica para os produtores. O comércio internacional, na forma tradicional, monopolística e/ou cartelizada, como é organizado, faz com que: (i) haja uma grande diferença entre o preço pago ao produtor e o preço pago pelo consumidor final, diferença esta que pode chegar a 10 ou 20 vezes, em razão da posição dominante dos grandes intermediários, tanto nos países de origem como nos países de destino; (ii) os produtores não tenham suficiente autonomia para decidir sobre a própria produção; e (iii) os consumidores finais não tenham conhecimento acerca da proveniência, técnicas, processos de trabalho e modos de elaboração dos produtos. Ao contrário disso, as linhas-guia das organizações do comércio justo pretendem: (i) relações diretas entre importadores e produtores de modo a evitar intermediações parasitárias e especulativas; (ii) definição de um preço de aquisição dos produtos livre das oscilações do mercado, capaz de remunerar adequadamente o trabalho e decidido por importadores em conjunto com os produtores; (iii) contratos de longa duração, proporcionando segurança e estabilidade, assim como possibilidades de prazos e pré-financiamento de compras, permitindo aos produtores absterem-se de recorrer a financiamentos e tomar empréstimos em sistema de usura; (iv) incentivos voltados ao melhoramento das produções e da qualidade de vida das comunidades locais (serviços sociais e sanitários, escolas, formação e ambiente); e (v) reconhecimento da identidade dos produtos quanto a sua proveniência territorial e produtiva, discriminando de forma transparente os componentes do preço de venda dos produtos (IOVENE, 2004). A especificidade proposta pelo comércio justo consiste em perseguir estes objetivos mediante o estabelecimento de um canal alternativo e tão direto quanto possível entre os produtores do Sul e os consumidores do Norte, de modo que, valorizando fatores éticos e não 21 apenas econômicos como critérios de escolha por parte dos consumidores, o resultado deste comércio seja a melhoria das condições de trabalho e vida dos produtores. A relação menos intermedializada entre consumidores e produtores, ao passo que lhes permitiria um preço mais remunerativo, negociado e definido, proporcionaria a eles um outro aspecto igualmente importante, qual seja o adiantamento de até 50% do valor de compra do produto, antes mesmo da aquisição, a título de pré-financiamento. Evidentemente tudo isso tendo em conta as condições do mercado, quando da apresentação da proposta de preço dos produtores às centrais que realizam a importação e a comercialização dos produtos. Assim, depois do longo processo de definição do preço do produto e da efetuação do pedido, se necessário o sistema adianta metade do valor de compra, a fim de financiar a produção. Além disso, o comércio justo propõe se caracterizar também pela manutenção do preço independentemente de flutuações no mercado e/ou estabelece um preço mínimo à mercadoria, abaixo do qual, mesmo que haja uma queda abrupta dos preços internacionais, o preço justo (prezzo equo) não pode cair. Finalmente, a relação entre as cooperativas importadoras/comercializadoras e os produtores prevê um planejamento das atividades econômicas que pode incluir assistências à produção e à comercialização, o micro crédito para financiar novas atividades, o reforço aos órgãos coletivos e associações de produtores, cursos de formação e visitas de intercâmbio. Até o ano de 2001, não existia uma base conceitual sólida para a definição de comércio justo. Disso derivava inúmeros conceitos, que por mais que tivessem como pano de fundo a mesma definição, geravam ambigüidades e confusões. Foi na Conferência Anual do IFAT (Internacional Federation of Alternative Trade) que as principais entidades internacionais (FINE4) uniformizaram seus conceitos. O termo comércio justo foi assim definido: O Comércio Justo é uma parceria comercial baseada em diálogo, transparência e respeito, que busca maior igualdade no comércio internacional. Ele contribui para o desenvolvimento sustentável ao oferecer melhores condições comerciais e assegurar os direitos de produtores e trabalhadores marginalizados – especialmente no Hemisfério Sul. [foi acrescentado]. As organizações de Comércio Justo (apoiadas pelos consumidores) estão engajadas ativamente no apoio aos produtores, na conscientização e informação, e em campanhas para promover mudanças nas regras e práticas do comércio internacional (FINE, 2001). 4 Plataforma que reúne os principais atores internacionais do Comércio Justo. 22 De acordo com o IFAT, o Comércio Justo é uma estratégia mundial para a diminuição da pobreza e para o fortalecimento do desenvolvimento sustentável, que vem conseguindo gerar oportunidades para produtores que, até então, estavam sendo explorados economicamente ou se encontravam à margem do chamado comércio convencional. Sem discordar dessa afirmação, o sociólogo e professor da Universidad de la Republica (Uruguay) Pablo Guerra (2009), acrescenta que, ademais de o Comércio Justo ser uma dessas experiências que no mundo se incluem dentro da busca por construir um mundo diferente apostando não em meras elocubrações, mas em práticas concretas, é um movimento que situa a economia em um contexto social retomando valores, como a ética, no discurso econômico. O que Polanyi, no seu livro “A Grande Transformação”, denomina (2000) de economia imbricada. Por isso o professor Pablo Guerra (2009, s/p) afirma: que o comercio justo es la fase de comercialización de toda economia solidária. Conviene precisar aqui que el comercio es connatural a qualquier modelo economico, en tanto actividad encaminada a intercambiar bienes. Más dificultoso es definir la justicia en el plano comercial. (...) A los efectos de estas líneas digamos que el comercio justo se distingue del comercio mercantil por establecer los valores (precios) conforme motivaciones y bilateralidad guiadas por uma racionalidad solidaria. De fato, esta é uma definição muito mais ampla e ao mesmo tempo mais objetiva, que a reconhecida definição estabelecida pela FINE, cuja ênfase está no comércio internacional e na cooperação Norte-Sul. Na prática ocorre que, os produtores do sul desenvolvem novas formas de fazer comércio apoiados nos princípios do comércio justo, mas não inteiramente dentro do script, dando ao movimento um novo perfil. Na verdade, os produtores buscam um maior protagonismo no movimento e com o passar do tempo eles superaram a relação exclusiva Norte-Sul, desenvolvendo mercados internos justos e solidários e estabelecendo novas relações comerciais Sul-Sul. Exemplar dessa nova dimensão do movimento é a experiência da América Latina, onde a maioria dos atores do movimento são os produtores que se reconhecem no movimento da Economia Solidária. Não obstante, os movimentos de Economia Solidária na América Latina se apropriaram do termo comércio justo e procuram articular os dois conceitos, adequando princípios e práticas aos valores do comércio justo5. Particularmente no Brasil, o movimento do Comércio Justo adotou o adjetivo solidário6, sendo reconhecido como Comércio Justo e Solidário, cujo conceito foi formulado 5 Já são comuns os encontros Latino Americanos de Economia Solidária e Comércio Justo. Na Itália o nome do movimento também inclui a palavra Solidário, sendo reconhecido como Commercio Equo e Solidale. 6 23 na longa construção de uma proposta para um Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS)7. Considerando que o movimento do Comércio Justo brasileiro tem grandes afinidades com o movimento da Economia Solidária, por também priorizar o mercado nacional e o desenvolvimento local, chegou-se ao seguinte conceito: Entende-se por Comércio Justo e Solidário ‘o fluxo comercial diferenciado, baseado no cumprimento de critérios de justiça e solidariedade nas relações comerciais, que resulte no protagonismo dos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) por meio da participação ativa e do reconhecimento da sua autonomia’ (FACES DO BRASIL, S/D, p. 4). No conceito brasileiro observa-se claramente a relevância dada aos grupos de produtores. Isso ocorre porque tais organizações conquistaram espaço junto às entidades que discutiam a consolidação de uma proposta de um comércio justo brasileiro. Portanto, essa é uma definição mais abrangente que sintetiza as aspirações das diversas faces do movimento espalhadas no hemisfério Sul, onde o protagonismo, a participação ativa e a autonomia dos grupos passam a ser incentivadas e reconhecidas. Portanto, o movimento do Comércio Justo deve reconhecer o movimento da Economia Solidária como potencial de articulação entre inúmeras iniciativas econômicas associativas e cooperativas, redes sócio-produtivas de comércio comunitário, economia familiar e comércio solidário (GOMES, 2007). Deste modo, a definição de Comércio Justo estabelecida pela FINE carece urgentemente de uma atualização. Para isso é preciso permitir e incentivar um maior protagonismo dos atores do Sul, reconhecendo que o Comércio Justo fomenta uma Economia Solidária. Ou seja, é preciso superar a idéia de que o Comércio Justo só se realiza considerando a lógica geopolítica Norte – Sul (compra e venda) e assumir que existem consumidores conscientes e produtores em desvantagem tanto no Norte como no Sul, o que permite a relação tanto Sul – Sul, quanto Norte – Norte. Assim, vem a ser extremamente válida uma redefinição do Comércio Justo, considerando o que defende o professor Pablo Guerra (2009, s/p): En lo particular creo que entender al comercio justo como toda comercialización operada en el marco de um paradigma de economia solidária contribuirá a avanzar en el desafio de entender esto fenomeno no tanto desde una perspectiva de altruismo, como desde una perspectiva de la reciprocidad y de la ayuda mutua. Contribuirá además a entendermos como parte de um mismo sector econômico, y parte de um mismo movimiento que a nivel mundial impulsa uma economia alternativa, reconociendo que en 7 O Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário será explicado no terceiro capítulo. 24 todas las partes podemos producir, consumir, ahorrar, invertir, distribuir y comercializar de manera justa e responsable. O movimento do Comércio Justo precisa urgentemente entender as novas dinâmicas e estratégias desenvolvidas pelas organizações de produtores e pelas redes de atores dos países do Sul. Isso ajudaria a alcançar uma visão global das orientações e potencialidades possíveis (GOMES; TORRES, 2008). É preciso entender que nos países do Sul a aliança com o movimento da Economia Solidária induz os atores, sejam eles ONGs ou organizações de produtores a uma vocação muito mais ampla, que considera em primeiro lugar o esforço das organizações sociais em promover uma sociedade mais justa e sustentável. Esse entendimento possibilita ampliar um conceito que transcenda o foco comercial. A opção dos sujeitos do Sul, de deixar para um segundo plano o aumento do volume de vendas e a busca por novos mercados, características principais dos atores do Norte, requer consideração. Logo, assumir uma nova definição do Comércio Justo significa incluir e possibilitar uma maior paridade entre os atores do movimento, deixando para trás a lógica Norte-Sul, ou seja, a ordem de “cima para baixo”, de onde as regras são continuamente ditadas. 1.2- Da caridade à promoção de oportunidades: uma história de sucesso O principal mote do discurso do Comércio Justo e Solidário é ainda oferecer aos produtores um preço justo8. Foi com esse princípio que nasceu, a partir da metade do século XX, uma nova forma de fazer comércio, com a finalidade de diminuir as disparidades entre o Norte e o Sul do planeta. Um dado importante é que a globalização pressionou os preços dos produtos agrícolas para baixo. Essa situação piorou as condições de produção e de vida dos pequenos produtores da América Latina, Ásia e África. Essas novas circunstâncias do mercado global criam o contexto para o desenvolvimento do discurso e das práticas do Comércio Justo. Um retorno aos últimos cinqüenta anos, período em que a desigualdade entre os países cresceu significativamente, faz-se necessário para melhor entender o processo de consolidação desse movimento. 8 Segundo a FLO – Fairtrade Labelling Organizations International (2006), o “preço justo”, dado aos produtos dentro desse sistema de comércio alternativo deve, além de refletir os custos de produção da mercadoria, proporcionar uma renda que seja, no mínimo, suficiente para suprir as necessidades básicas dos produtores. O que os permitirá gozar de uma vida digna, como determinado tanto pela Declaração Internacional dos Direitos Humanos quanto pelas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 25 Por volta de 1945, a relação entre a renda global dos países desenvolvidos e a dos países mais pobres era de 35 a 1. Em 1973, a diferença havia crescido para 44 a 1 e já em 2004 a renda dos países mais ricos era 74 vezes maior que a dos mais pobres (Guadagnucci; Gavelli, 2004). Na mesma linha de argumentação, Castells (2000, p.106), afirma que o avanço da pobreza “e principalmente da pobreza extrema” é um fenômeno global. Ou seja, o desequilíbrio entre nações ricas e pobres é crescente. Apesar do Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2000/2001, do Banco Mundial, intitulado “Luta contra a pobreza”, constatar que as condições humanas melhoraram nos últimos 100 anos mais do que em todo o resto da história, a distribuição dos ganhos globais é crescentemente desigual9. A renda média nos 20 países mais ricos equivale a 37 vezes a média dos 20 mais pobres, uma diferença que duplicou nos últimos 40 anos10. Dos então 6 bilhões de habitantes do planeta, 2,8 bilhões viviam com menos de 2 dólares por dia e 1,2 bilhão de pessoas (um quinto da população mundial), com menos de 1 dólar por dia. Este contexto de desigualdade e a sua superação é o substrato do discurso do comércio justo. Foi viajando e trabalhando nos países pobres que os fundadores do movimento constataram a dramática desigualdade existente no mundo, com um Norte que se enriquecia sempre mais, indiferentemente às tragédias do Sul. Foram os Norte-Americanos que, por volta dos anos 1950, instituíram os Ten Thousand Villages, grupos que começaram as primeiras experiências do comércio justo comprando bordados de Porto Rico. Em 1956 foi inaugurada a primeira loja formal de “comércio justo”, nos Estados Unidos, vendendo estes e outros produtos. Logo em seguida, a Europa começou a ter seus primeiros envolvimentos com o tema, que logo se consolidou como uma alternativa de comércio. A literatura reporta que a primeira experiência na Europa do comércio justo foi uma iniciativa da OXFAM, uma das mais importantes e antigas ONGs do mundo, que teve a idéia de vender nas suas lojas almofadinhas porta-alfinetes, produzidas por chineses refugiados em Hong Kong. Entretanto, foi no fim dos anos de 1960 que o Comércio Justo se estabeleceu como um movimento, quando as ATOs (organizações de comércio alternativo) foram formadas (Kunz 9 www.bancomundial.org.br Somente no leste da Ásia houve um melhoramento, entre 1987 e 1998, diminuindo de cerca de 420 milhões para cerca de 280 milhões o número de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, então delimitada no valor de 1 dólar por dia. 10 26 apud Mascarenhas, 2007). A partir de então as organizações que trabalhavam no comércio solidário Norte-Sul, antes desarticuladas, formaram um conjunto com identidade própria e unido por objetivos comuns. Ao mesmo tempo, acontecia em Delhi, 1964, a segunda conferência da UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development) onde os países em desenvolvimento difundiam a famosa frase “trade not aid”11 (EFTA, 2006), slogan que acompanha as atividades do comércio justo, desde o início. Com esse lema os governantes dos países do Sul demandavam um sistema comercial internacional mais inclusivo e igualitário, onde o Norte não continuasse se apropriando dos benefícios, remetendo apenas uma pequena parcela destes como forma de ajuda humanitária às nações do Sul. Em 1967, nos Países Baixos, foi fundada a primeira central de exportação na lógica de produtos justos e solidários, a SOS Wereldhandel, transformada depois em Fair Trade Organizatie. Dois anos depois, foi inaugurada a primeira loja exclusivamente de comércio justo no mundo, na cidadezinha holandesa de Breukelen. Os holandeses alternativos introduziram nos relacionamentos comerciais o lema da necessidade de justiça. Ficaram conhecidos lançando mensagens como “comprando açúcar de cana você dá um lugar ao sol aos produtores dos países pobres”. Germinava daí uma alternativa de comércio. A Fair Trade Organizatie foi responsável pela primeira importação de “café justo”, hoje um símbolo do próprio movimento, sendo ainda o produto de maior comercialização. Hoje o café justo gera entre 25% a 50% das receitas das organizações de Comércio Justo do Norte, com crescimento significativo de consumidores na Europa. Foi no ano de 1973 que a FTO importou café “Índio Solidaritätskaffe” de cooperativas de pequenos agricultores de Guatemala e as vendas logo superaram a dos artigos artesanais (BUCOLO, 2004). Nos países do Sul, o artesanato sempre foi produzido pelas mulheres, que historicamente tiveram poucas oportunidades de emprego formal. Através das mulheres, as habilidades manuais foram passadas de geração em geração, se tornando um importante complemento da renda familiar nesse hemisfério. Entretanto, ainda que o comércio justo tenha iniciado com a importação de artesanatos, foram os produtos alimentares que, ao longo de décadas, conheceram um verdadeiro crescimento comercial. Ou seja, as produtoras de artesanatos continuaram relativamente à margem do mercado. 11 Comércio em vez de ajuda. 27 A partir da primeira experiência com o café vieram outras, com a importação de açúcar, banana, cacau, chá, castanhas, arroz e mais recentemente cresce o mercado das frutas frescas tropicais, como a manga e o abacaxi, além de sucos de fruta, geléias, mel, vinho e temperos. Com o crescimento da importação desses produtos, a comercialização supera as vendas nas lojas do mundo exclusivamente dedicadas à venda dos produtos do comércio justo, conhecidas como worldshops. Essa comercialização “excedente” passa então a ocorrer também em lojas especializadas de orgânicos e sistemas tradicionais de comércio, como supermercados, causando um impasse entre os ativistas do movimento, sendo uma das principais tensões por que passa o movimento. Um fato que significou um grande passo de transição entre um movimento que se prestava somente à solidariedade, com motivações altruísticas, a um movimento cujo pano de fundo era ainda a solidariedade, mas agora com escopos acentuadamente mercadológicos, foi o advento do selo certificador. Ainda nos anos de 1980, o padre holandês Franz Vanderhoof e um colaborador, trabalhando com pequenos cafeicultores do México, tiveram a idéia de criar um selo para caracterizar os produtos do comércio justo. Portanto, aqueles produtos que respeitassem os critérios do movimento ganhariam essa certificação e dessa forma poderiam ser distribuídos em canais comerciais convencionais (atacadistas e varejistas), podendo atingir o público em grande escala. O primeiro produto certificado foi o café produzido na cooperativa UCIRI, no Estado de Oaxaca, sul do México (Jaffe, Monroy & Kloppenburg, 2004, apud ASTI, 2007). Este primeiro selo, lançado na Holanda em 1988, foi chamado “Max Havelaar”12 e a idéia foi tão bem sucedida que, no período de um ano, o café justo certificado alcançou uma fatia de 3% no mercado. Figura 1: Os primeiros selos de Comércio Justo: Fonte: Comércio Justo Módulo 1: O que é o Comércio Justo? FLO e. V 2006 12 Max Havelaar foi um personagem de um romance que lutou contra a exploração de cafeicultores nas colônias holandesas. 28 A partir dessa primeira experiência surgiram novas estruturas empenhadas na certificação dos produtos. Foi o caso da Transfair International e da Fair Trade Foundation. Um momento importante para a estruturação do comércio justo foi dado em 1997, com a criação da Fairtrade Labelling Organizations (FLO)13, “que representou o início de um sistema internacional unificado, reagrupando as diversas organizações nacionais, (...) que geram selo certificador do comércio justo” (Ferreira, 2003, p.82). A criação de um selo comum a todos os países significou um grande avanço de conquista de mercado para o comércio justo. A FLO, além de estar presente em 14 países europeus, encontra-se também nos Estados Unidos, no Canadá e no Japão. Até 2006, 17 dos 20 membros da FLO já haviam introduzido a nova marca de certificação da FLO14. Atualmente existem três federações na rede do comércio justo: a Network of European World Shops (NEWS), que agrupa federações nacionais de lojas do Comércio Justo, com 2.400 lojas em 13 países europeus; a European Fair Trade Organization (EFTA), que reúne 11 centrais de importação dos produtos do comércio justo, em 9 países europeus; e, maior que as duas federações acima citadas, a antiga International Federation for Alternative Trade (IFAT), agora WFTO - World Fair Trade Organization, que conta com organizações de produtores, importadores e empresas do Sul e do Norte, que trabalham na lógica do comércio justo. Finalmente, existe o FINE, um fórum (cujo nome integra as letras iniciais das organizações-membro) que reúne a FLO, a IFAT, a NEWS e a EFTA, possibilitando a circulação de informação entre as diversas organizações européias do comércio justo. Para Clec’h(2003, p.136), “todo o sistema visa ao reagrupamento dos atores para a prática de lobbying15, de sensibilização e de promoção do comércio justo”. Atualmente, com quase quarenta anos de existência efetiva, o comércio justo já está bastante consolidado, com todos os seus atores definidos: produtores, agências e cooperativas importadoras, distribuidores, voluntários e obviamente consumidores. Estima-se que hoje o setor represente 0,01% do comércio mundial, alcançando em 2005, apenas na União 13 Cabe esclarecer que existe uma corrente do movimento do Comércio Justo, que é contrária aos critérios estabelecidos pelo selo. São representantes de lojas dedicadas que não exigem a certificação dos produtos e estabelecem critérios diferenciados em relação à produção e aos produtos provenientes do Sul, como é o caso do conjunto de lojas agrupadas no Espacio Comercio Justo. www.espaciocomerciojusto.org 14 Comércio Justo Módulo 1: O que é o Comércio Justo? FLO e. V 2006 15 “Em campanhas de pressão junto aos organismos internacionais aos governos e às grandes empresas multinacionais” Clec’h (2003, p.136). 29 Européia, o faturamento de 660 milhões de Euros, essa cifra significando 2,5 vezes o faturamento de 2001(http//it.wikipedia.org). Embora haja certa discrepância de dados, já que, segundo Pistelli e Zerbini (2003), no continente europeu, estima-se existir mais de 3.500 worldshops, como são chamadas as lojas do comércio justo, e mais de 70 mil pontos de venda, comercializando produtos dessa natureza, entre lojas e supermercados, enquanto, de acordo com a pesquisa realizada pela Universidade Cattolica e Bicocca de Milão, seriam 2.800 as worldshops e 79 mil os pontos de venda (http//it.wikipedia.org), a grandeza dos números, qualquer que sejam as fontes, expressa a pujança do setor. O documento intitulado “Sessenta anos do Comércio Justo” 16 EFTA (2006) informa que hoje o Comércio Justo é um movimento mundial com mais de um milhão de pequenos produtores e trabalhadores organizados em cerca de 3.000 organizações, em 50 países do Sul. Os produtos são vendidos nas centenas de worldshops17, supermercados e em muitos outros pontos de venda no hemisfério Norte, contando com um crescimento de vendas também no Sul. Ainda conforme o documento, o movimento está engajado em debates com os dirigentes de instituições européias e internacionais para que realizem um mercado justo, além de realizar negócios com responsabilidade social e ambiental. Enfim, o documento resume que o Comércio Justo está se tornando um crescente sucesso. 16 17 Disponível no site www.european-fair-trade-association.org Lojas do mundo, como são chamadas as lojas exclusivas do Comércio Justo. 30 Tabela 1: O Histórico do Comércio Justo FONTE: Folder FACES 2004. 1.2.1- O Comércio Justo e Solidário no Brasil: a voz e a vez dos produtores Uma das principais características dos países do Sul é a acentuada desigualdade social. No Brasil não é diferente. Apesar de estudos indicarem uma diminuição da desigualdade, o país ainda apresenta enorme diferença na distribuição de renda e elevados níveis de pobreza. Portanto, o Brasil continua um país muito desigual, fadado ao desafio histórico de enfrentar uma herança de injustiça social, que excluiu grande parte de sua população do acesso a condições mínimas de dignidade e cidadania (BARROS et al, 2001). È nesse contexto que várias expressões da sociedade civil, como movimentos sociais e ONGs, e até mesmo governos, trabalham a fim de amenizar esse cenário. 31 Em torno do lema “uma outra economia é possível”, difundido nas várias edições do Fórum Social Mundial (FSM), se formou uma sinergia entre vários movimentos e organizações que buscavam soluções de integração do maior número de excluídos e marginalizados pelo sistema capitalista. Assim, movimentos de resistência, como o Comércio Justo e a Economia Solidária, cresceram e ganharam força consolidados em experiências locais e/ou inspiradas em iniciativas internacionais contextualizadas à realidade nacional. Paralelamente, governos com propostas mais sociais fomentaram diversas políticas públicas de inclusão, como o programa de combate à fome, o fortalecimento da agricultura familiar e várias concepções de desenvolvimento territorial. Nasce nesse contexto, o Faces do Brasil18 - Fórum de Articulação do Comércio Ético e Solidário no Brasil, em 2001. Um grupo formado por ONGs, representantes governamentais, empresas, representações de trabalhadores e prestadoras de serviços, para debater os diversos temas relacionados ao Comércio Justo. Isso marcou os primeiros passos para a consolidação do movimento no Brasil. O fórum surge com o objetivo de “fomentar a criação de um ambiente favorável à construção e implementação de um sistema brasileiro de comércio ético e solidário, promovendo a equidade e a inclusão social” (França, 2003, p.2). A constituição do Faces significou a articulação nacional de várias iniciativas de Comércio Justo existentes no Brasil, desde a década de 1980, que até então trabalhavam de forma isolada e pontual. Tabela 2: Lista dos 13 membros do Faces do Brasil em 2002: SIGLA ORGANIZAÇÃO BS&D BS&D (Business PRINCIPAL ATUAÇÃO and Development) FASE FES/ILDES Sustainable Representante FLO (Fairtrade labeling Organization) no Brasil Federação de Órgãos para Assistência Capacitação para pequenos Social e Educacional produtores/ Economia Solidária Fundação Friedrich Ebert Direitos humanos, relações públicoprivadas FLS Fundação Lyndolfo Silva Promoção do comércio norte-sul para os pequenos produtores IMAFLORA Instituto de Manejo e Certificação Florestal Certificação florestal e Agrícola 18 A idéia de constituir o Faces surgiu em uma reunião no Rio de Janeiro, organizada pela Fundação Friedrich Ebert e o Instituto Sere, em julho de 2001. Participou dessa reunião, além dos proponentes, a FASE, que é uma entidade ligada à Economia Solidária. 32 Instituto SERE Serviços, Estudos e Realizações para o Desenvolvimento local e sustentável Desenvolvimento Sustentável KAIRÓS Instituto Kairós – Ética e Responsável MDA/SAF Atuação Educação para responsável familiar REDE Agroecologia ECOVIDA participativa e certificação Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Capacitação e apoio às micro e Pequena Empresas SEMAB consumo Ministério do Desenvolvimento Agrário – Políticas públicas para a agricultura Secretaria de Agricultura Familiar SEBRAE o pequenas empresas Banco de Alimentos da Cidade de São Segurança alimentar e abastecimento Paulo VISÃO Visão Mundial MUNDIAL VIVA RIO Inclusão social e promoção comercial de pequenos produtores Movimento Viva Rio Inclusão social de comunidades carentes FONTE: Mascarenhas (2007) O que motivou inicialmente esse grupo foi a percepção de que o Comércio Justo Internacional apresentava uma prática que serviria como resposta à demanda de mercado dos produtores rurais e urbanos brasileiros. Portanto, a criação de canais alternativos de comercialização, tanto em termos nacionais quanto internacionais, significava uma possibilidade concreta para a colocação dos produtos no mercado dos grupos marginalizados pelo sistema convencional de comércio. Assim, a partir dessa inclusão seria possível garantir a sustentabilidade financeira e a melhoria da capacidade organizacional desses empreendimentos. Logo nos seus primórdios o Faces do Brasil definiu o comércio ético e solidário como uma “forma de empoderamento dos trabalhadores assalariados, produtores e agricultores familiares, que estão em desvantagem ou marginalizados pelo sistema convencional de comércio” (FACES, 2002, p.5). Percebe-se claramente a preocupação de garantir o protagonismo aos desfavorecidos pelo comércio tradicional. No entanto, segundo Mascarenhas (2007, p.154): Pode-se afirmar que, apesar da relevância dessas propostas e da sua importância para a configuração do movimento num contexto nacional, elas não dialogaram com a realidade mais imediata dos produtores, comerciantes 33 e consumidores, havendo pouco ou quase nenhum protagonismo desses atores, o que evidenciou um caráter mais regulador e cívico das mesmas. É o que confirma os inúmeros eventos19 realizados pelo Faces nos seus primórdios, sendo mínima a participação de organizações direcionadas à produção, consumo e comercialização. Tais atores, na maioria das vezes, participavam apenas como ouvintes ou convidados “visando referendar os modelos ideais que estavam sendo apresentados” (idem). Isso demonstra que na prática, apesar de bem intencionados, o Faces em princípio não proporcionou ou incentivou nem mesmo um diálogo mais inclusivo, quanto mais um real fortalecimento ou um “empoderamento” dos trabalhadores excluídos; o que acabou por repetir critérios desenvolvimentistas onde a formulação de modelos e teorias é construída sem a participação dos prováveis beneficiários. Entretanto, os grupos de produtores, já envolvidos em iniciativas de comércio justo Norte-Sul, não se conformaram com a passividade de seus parceiros, inclusive com o Faces, e instituíram em 2004 a Articulação das Organizações de Produtores Familiares no Comércio Justo e Solidário (OPFCJS), transformada em ECOJUS Brasil (Associação Brasileira de Empreendimentos do Comércio Justo e Solidário) em 2007. A formação desse grupo nasceu de uma proposta de produtores, no I Simpósio Nacional sobre experiência de Organizações de Produtores nos Mercados de Exportação, realizado no final de 2004, em Brasília (MASCARENHAS, 2007), a proposta de uma articulação nacional dos grupos que se relacionavam com o Comércio Justo, tendo como principal objetivo a construção de uma frente em defesa dos seus próprios interesses perante a força inerente de outros atores da cadeia produtiva do Comércio Justo. Em princípio 15 organizações de produtores compuseram o núcleo da atual ECOJUS Brasil. Ao longo do tempo, essas organizações têm sido reconhecidas e apoiadas por instituições governamentais, como o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), através da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), tendo, esta última, inserido a plataforma no Grupo de Trabalho de Produção, Comercialização e Consumo Solidário20 (GT-PCCS), que foi formado para discutir um Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS), conforme será apresentado no terceiro capítulo. 19 Os eventos eram organizados a fim de discutir princípios e critérios do movimento do Comércio Justo, adequando-os ao contexto brasileiro. 20 O Faces também compõe o GT-PCCS. 34 Os membros da ECOJUS estabeleceram alguns elementos para a constituição de sua identidade e definiram o seu público-alvo, conforme o que segue: (i) foco em organizações autogestionárias de agricultores familiares nas quais pelo menos 80% dos membros sejam agricultores familiares assentados de Reforma Agrária, extrativistas e pequenos artesãos ou façam parte de pequenas empresas ligadas ao movimento de Economia Solidária; (ii) tenham atividades coletivas na comercialização, procurando melhorar a sua própria autonomia, sob uma perspectiva de desenvolvimento sustentável; (iii) é permitida a participação de organizações formais ou informais. Além do mais, foram definidos os seguintes objetivos: • Estimular o fluxo de informações entre os membros e as pessoas interessadas; • Trocar experiências e habilidades entre as organizações no nível regional ou em cada cadeia produtiva; • Promover o consumo responsável e o mercado solidário no Brasil; • Promover a articulação nacional e internacional para o Comércio Justo e Solidário; • Ampliar a participação e o acesso aos mercados nacionais e internacionais de Comércio Justo, congregando forças e elevando a escala de ofertas. A característica convergente da ECOJUS em relação a outras organizações da Economia Solidária e do Comércio Justo, na América Latina, está em ser contrária à participação de médias e grandes empresas agrícolas, salvo exceção quando houver necessidade de uma eventual prestação de serviços a fim de viabilizar vendas de produtores familiares e empreendimentos solidários. O cafeicultor Fábio Gonçalves dos Anjos, presidente da COASOL21, na Reunião Sul de Produtores no Comércio Justo e Solidário, demonstra o crescimento e fortalecimento dos produtores: Já ofertamos para o mercado interno e externo um elenco expressivo de produtos como café, sucos e polpas de frutas, conservas, açúcar mascavo, soja, cacau, castanhas e artesanato, em diversas escalas de faturamento, fornecendo para compras governamentais. Participamos também diretamente de fóruns e conselhos de desenvolvimento. (http://www.emater.pr.gov.br) Atualmente a ECOJUS Brasil22 é uma articulação de mais de 100 empreendimentos de produtores e consumidores, entre cooperativas, associações e grupos informais, centrais e redes, com mais de 15.000 famílias, rurais e urbanas, de todas as regiões do Brasil. Esses grupos produzem uma grande diversidade de produtos frescos do campo, alimentos 21 22 Cooperativa Agroindustrial Solidária de Lerroville. Informações encontradas no folder da organização intitulado Comércio Justo e Solidário. 35 processados, artesanatos, e também prestam serviços de alimentação. A ECOJUS valoriza e incentiva as experiências de comercialização comunitária e a participação de consumidores organizados na distribuição de produtos da Economia Solidária e da Agricultura Familiar, principalmente da produção agro-ecológica. Com o passar do tempo e a inclusão de várias organizações de produtores, apoio e consumo, o Faces do Brasil23 cresceu e amadureceu. Substituiu o ético do seu nome para o adjetivo justo, tornando-se Fórum de Articulação do Comércio Justo e Solidário do Brasil. Relativizou o papel do Comércio Justo na promoção do desenvolvimento se articulando a outras iniciativas e políticas, incluindo demandas e propostas de outros importantes movimentos como a Economia Solidária, a Agricultura Familiar e a Responsabilidade Social e Empresarial. Dessa forma, o Faces vem procurando articular os setores público e privado “em prol da busca de convergências e da construção participativa de estratégias e políticas comuns, direcionadas ao fomento e à construção de relações mais justas e solidárias ao longo da cadeia produtiva” (FACES, s/d). Além do mais, o Faces do Brasil foi protagonista na construção participativa de conhecimento e informação sobre o Comércio Justo Brasileiro. A partir do envolvimento de diversos atores em estudos técnicos, na elaboração de documentos, em consultas públicas, e no desenvolvimento de projetos piloto, foi consolidada a “Carta de Valores, Princípios e Critérios de Comércio Justo e Solidário Brasileiro”24. Foi também elaborado o modelo de “Sistema de Reconhecimento de Conformidade”. Ambos os documentos estão legitimados no processo de construção do Sistema Nacional de Comércio Justo, do qual o Faces é um dos principais proponentes e incentivadores. Tabela 3: A composição atual do FACES MEMBROS DO CONSELHO POLÍTICO: ONG’s e outras entidades (assessoria, apoio, consumo etc.): • • • • • 23 Cáritas Brasileira; CEDAC (Centro de Ação Comunitária); CONSOL (Mundo Paralelo); DESER (Departamento de Estudos Sócio-econômicos Rurais); Ética Brasil; O Faces assumiu, em 2005, uma personalidade jurídica se transformando em Instituto Faces do Brasil. Isso foi o resultado de uma busca por um papel mais ativo na implementação de um Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário. O Instituto Faces passou a ter uma função mais operativa e estruturante, enquanto o Fórum de Articulação Faces permaneceu como espaço de discussão de vários atores. 24 Consta versão completa nos anexos deste trabalho. 36 • • • • • • • • FASE Nacional (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional); FASE Pará; IMAFLORA (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola); Instituto Kairós (Ética e Atuação Responsável); Onda Solidária; SEBRAE Nacional (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequena Empresas); Tulipe Engenharia e Projetos; Visão Mundial. Representação de Produtores: • • • • ACS Amazônia (Associação de Certificação Socioparticipativa da Amazônia); ANTEAG (Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão); Rede Cerrado; UNICAFES (União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária); • UNISOL (União e Solidariedade das Cooperativas Empreendimentos de Economia Social do Brasil). Parceiros Governamentais • SENAES – Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE); • SAF – Secretaria de Agricultura Familiar; • SDT – Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). FONTE: Cartilha FACES “O Comércio Justo e Solidário no Brasil” (2008, p.9) 1.3 - Princípios25 norteadores Baseado no conceito de Comércio Justo, estabelecido pela plataforma FINE, foram estabelecidos 10 princípios que devem guiar as atividades do movimento mundial. São eles: I. Criar oportunidades para produtores economicamente em desvantagem: o comércio justo é uma estratégia para a diminuição da pobreza e para o desenvolvimento sustentável. Seu propósito é criar oportunidades para produtores que estão economicamente em desvantagem ou que vêm sendo marginalizados pelo sistema convencional de comércio; II. Transparência e Prestação de contas: comércio justo envolve gerenciamento e relações comerciais transparentes para lidar de forma mais justa e respeitosa com parceiros comerciais; III. Construção de capacidades: comércio justo é um meio para desenvolver a independência dos produtores. Relações de comércio justo promovem continuidade, 25 Princípios pesquisados no item “The 10 Standards of Fair Trade” no link “About Fair Trade” na página www.wfto.com 37 durante a qual o produtor e suas organizações comerciais podem melhorar suas habilidades gerenciais e seu acesso a novos mercados. IV. Promoção do Comércio Justo: as organizações do comércio justo aumentam a conscientização sobre o comércio justo e a possibilidade de estender a justiça no comércio mundial. Elas fornecem aos seus consumidores informações sobre a organização, os produtos e em quais condições eles foram feitos. Elas usam propagandas e técnicas comerciais honestas e objetivam a máxima qualidade dos produtos e embalagens; V. Pagamento do Preço Justo: o preço justo nos contextos regionais e locais é aquele que foi definido através de diálogo e participação. Além dos custos de produção ele deve permitir uma produção socialmente justa e ambientalmente correta. Isso promove pagamento justo ao produtor levando em consideração a igualdade entre o trabalho de homens e mulheres. Importadores garantem pagamento imediato a seus parceiros e sempre que possível ajudam produtores a pré-financiar a produção. VI. Igualdade de Gênero: O comércio justo garante que o valor do trabalho da mulher seja satisfatoriamente valorizado. As mulheres sempre são pagas por sua contribuição no processo produtivo e são fortalecidas dentro de suas organizações. VII. Condições de trabalho: O comércio justo significa um ambiente de trabalho seguro e saudável para os produtores. VIII. Trabalho Infantil: É aceita a presença de crianças desde que não afete o seu bem estar, segurança, educação e divertimento, estando de acordo com a Convenção das Nações Unidas para o Direito da Criança e com as leis locais. IX. Meio Ambiente: O comércio justo encoraja ativamente práticas ambientais melhores e a aplicação de métodos responsáveis de produção. X. Relações Comerciais: As organizações de comércio justo se preocupam com o desenvolvimento social, econômico e o bem estar dos produtores marginalizados e não maximinizam lucros às suas custas. Elas mantêm relações duradouras baseadas na solidariedade, confiança e respeito mútuo que contribuem para a promoção e crescimento do comércio justo. Quando requerido, elas fornecem um pré- financiamento de pelo menos 50% do valor contratado. Esses princípios serviram de base para a construção dos sete princípios norteadores do Comércio Justo no Brasil. Os princípios sofreram adequações ao contexto brasileiro e se constituem como eixos temáticos que ligam os valores, considerados teóricos - filosóficos, 38 aos critérios, significando o campo prático. Eles se institucionalizaram a partir do documento “Valores, Princípios e Critérios do Comércio Justo e Solidário Brasileiro”, construído coletivamente pelo Faces do Brasil. A construção coletiva do documento definitivo, exigiu que fossem realizadas 5 consultas públicas nacionais, com envolvimento de mais de 30 empreendimentos em projetos de pesquisa e avaliação participativa e mais de 300 atores nacionais (ZERBINI, 2008). Tais princípios foram adequados e compõe o “Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário” (SNCJS). Seguem abaixo os princípios do Comércio Justo no Brasil: Princípio 1 – Fortalecimento da democracia, autogestão, respeito à liberdade de opinião, de organização e de identidade cultural, em todas as atividades relacionadas à produção e à comercialização justa e solidária. Princípio 2 – Garantia de condições justas de produção e trabalho, agregação de valor, bem como o equilíbrio e o respeito nas relações entre os diversos atores, visando a sustentabilidade econômica, sócio-ambiental e a qualidade do produto em toda a cadeia produtiva. Princípio 3 – Apoio ao desenvolvimento local em direção a sustentabilidade, de forma comprometida com o bem-estar sócio-econômico e cultural da comunidade, promovendo a inclusão social através de ações geradoras de trabalho e renda. Princípio 4 – Respeito ao meio ambiente, primando pelo exercício de práticas responsáveis e sustentáveis do ponto de vista sócio-ambiental. Princípio 5 – Respeito aos direitos das mulheres, crianças, grupos étnicos e trabalhadores, garantindo a equidade e a não discriminação entre todos. Princípio 6 – Garantia de informação ao consumidor, primando pela transparência, pelo respeito aos direitos dos consumidores e pela educação para o consumo responsável. Princípio 7 – Estímulo à integração de todos os elos da cadeia produtiva, garantindo uma maior aproximação entre todas as pessoas e entidades a ela ligadas. Os princípios acima elencados serão a base para a discussão das experiências na Amazônia, discutidas no capítulo 3. Servirão para demonstrar na prática como são permeadas as relações entre os atores e as dificuldades inerentes à produção e comercialização. O mercado, mesmo o do Comércio Justo, impõe técnicas e habilidades que a maioria dos grupos produtores não dispõe. Isso torna mais difícil uma relação paritária, que é um dos principais lemas do movimento. Mais particular ainda é o caso da Amazônia, onde em muitas comunidades a 39 economia não é estabelecida por relações monetárias. Cbe informar que os critérios internacionais adotados para medir a pobreza26 não são adequados para essa realidade. 1.4 - América Latina: berço do movimento, escassos investimentos e a conquista do mercado interno. A história do Comércio Justo reporta à primeira experiência de apoio a pequenos produtores desfavorecidos através da comercialização de bordados de Porto Rico. A América Central teve papel determinante na constituição e fortalecimento do movimento do Comércio Justo. Cabe lembrar que o primeiro produto certificado foi o café mexicano, responsável pela mudança de dimensão do movimento com o alcance do grande público, através da exposição e venda nos supermercados holandeses. Não podemos esquecer que foi também o México o precursor do primeiro sistema nacional de comércio justo dentre os países do Sul, através da Associação de Comércio Justo México, baseado praticamente em um único produto: o café fértil. Devemos considerar que o café é uma das cinco mais importantes commodities comercializadas na economia internacional e que é predominantemente produzido por pequenos agricultores pobres da América Latina, África e Ásia. Esses dados mostram como o café desempenha um papel estratégico na afirmação do Comércio Justo na América Latina. O mercado para o café justo aproximou consumidores conscientes do Norte a grupos democraticamente organizados de produtores pobres do Sul. Inicialmente com o café, ao longo do tempo a América Latina se consolidou como o principal continente exportador de produtos alimentícios para o comércio justo. Dentre os principais produtos exportados estão: o cacau, o mel, as frutas frescas, a banana, o açúcar, a quinoa27, os sucos, chás, vinhos, e, não poderia faltar, o próprio café. Uma característica distintiva do movimento de comércio justo latino americano é a de buscar o fortalecimento interno, almejando alcançar de forma incisiva os mercados locais, em detrimento do que caracteriza o movimento do Comércio Justo internacional que é a colocação dos produtos nos mercados do Norte. 26 Um desses critérios mundialmente padronizados é o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que é uma medida comparativa que engloba três dimensões: riqueza, educação e esperança média de vida. 27 A Quinoa é uma planta nativa da Colômbia, Peru e Chile, que produz um grão indispensável à alimentação e à vida do homem no altiplano andino. Segundo a FAO – Food and Agriculture Organization, a quinoa é um dos alimentos mais completos que existem. Novas Pesquisas da planta mostram que ela tem o poder proteico do leite materno (Wikipédia, 20/03/09). 40 Pode ser que isso seja reflexo das rarefeitas possibilidades de financiamento internacional, pois, de acordo com Asti (2007), nos últimos anos a África e a Ásia passaram a ser prioridades das instituições internacionais, ficando a América Latina apenas com os escassos investimentos resultantes das relações comerciais entre produtores e importadores. Não obstante esse cenário é constante o brotar de iniciativas de comércio justo na América Latina em pequena e grande escala, desde pequenos grupos produtores até grandes redes agregadoras de associações e cooperativas. Destas, uma das mais importantes é a CLAC (Coordinadora Latinoamericana y del Caribe de Pequeños Productores de Comercio Justo), que é composta de cerca de 300 organizações de pequenos produtores de vinte países, que estão organizadas tanto em redes internacionais baseadas em um único produto, quanto em redes nacionais com uma gama de produtos. Atualmente, a CLAC abrange cerca de duzentas mil famílias de produtores associados alcançando um total de mais de um milhão de beneficiados28. Outra importante organização é a RELACC, a Rede Latino-Americana de Comercialização Comunitária. Criada em 1991, como uma resposta concreta aos setores populares e a situação de crise e deteriorização das suas condições de vida29, é uma corporação reconhecida pelo governo equatoriano. Seus sócios são as Redes Nacionais de Comercialização Comunitária integradas por organizações de produtores, consumidores, artesãos e instituições de apoio e serviços. Tanto a CLAC quanto a RELACC têm assento na diretoria da IFAT Latino Americana (IFAT LA), que é um braço da rede internacional de Comércio Justo, formada pelos membros desse continente, que busca unificar o diálogo do bloco latino americano com o bloco europeu. Figura 2: Logomarcas das principais organizações da América Latina 28 29 Informação obtida no site www.claccomerciojusto.org (09/03/09). Disponível em www.relacc.org (09/03/09). 41 A IFAT LA foi consolidada no início de 2007 com a proposta de manter uma conformidade com o movimento internacional, conciliando interesses e mantendo o direcionamento estratégico (ASTI, 2007). Seus membros optaram por manter o nome e a ligação institucional com o movimento internacional, sediado na Holanda. Cabe esclarecer que a rede internacional era chamada até 2008 de IFAT (Associação Internacional de Comércio Justo), transformada depois em WFTO (Organização Mundial de Comércio Justo). Ainda não se sabe se a organização latino americana acompanhará o movimento mundial, adaptando seu nome. Ademais, com a finalidade de comunicar os debates sobre os argumentos mais interessantes à América Latina, a IFAT LA produz a revista eletrônica “Mercado Justo”30, que aborda a realidade dos movimentos de Economia Solidária e de Comércio Justo, harmonizando idéias e experiências concretas. FIGURA 3: Revista Latino-americana Mercado Justo Edição de Janeiro de 2009 Edição de Novembro de 2008 Além das organizações citadas, existe a Mesa Coordenadora Latino Americana de Comércio Justo (MCLACJ), que integra redes de comércio justo e de economia solidária. A Mesa é expressão do que vem se consolidando no continente, que é a articulação entre o movimento de Economia Solidária e o de Comércio Justo. Apesar de a Economia Solidária ser maior e mais forte, ambos os movimentos possuem na sua raiz os mesmos princípios éticos e motivacionais. Não obstante a aproximação recente, ocorrida nas primeiras edições do Fórum Social Mundial (FSM), muitas redes de Economia Solidária já debatem o tema do Comércio Justo e muitos produtores já adotam os seus princípios. 30 www.mercadojusto-la.org. 42 É o que acontece no Espacio MERCOSUR Solidario (EMS)31, uma plataforma aberta de organizações e redes nacionais do Cone Sul (Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai) que trabalha na promoção e no desenvolvimento das economias solidárias e do Comércio Justo. Na ocasião da III Feira Canária de Economia Solidária e III Feira do Espacio MERCOSUR Solidário, em janeiro de 2008 no Uruguai, os representantes do EMS elaboraram uma declaração que expressa um duplo propósito: 1. Incidir a partir do seu caráter específico, para que o MERCOSUL finalmente concretize uma verdadeira integração regional que permita a circulação dos bens produzidos sob os princípios da Economia Solidária e do Comércio Justo. 2. Contribuir, a partir de suas ações específicas, à promoção de todas as formas de associação e cooperação, sobretudo nos setores populares e vulneráveis, como forma concreta de alcançar mercados justos e democráticos. Além do mais, foi recentemente formado o Grupo de Lojas de Economia Solidária e Comércio Justo, cujo objetivo é conhecer e promover o intercâmbio de experiências, concretizando alianças, a fim de consolidar uma verdadeira integração latino americana. Delegados de 20 organizações se reuniram no I Encontro Latino Americano de Lojas de Economia Solidária e Comércio Justo, em janeiro de 2008, e compuseram a seguinte declaração: 1. Acreditamos em uma Economia Solidária e em um Comércio Justo que contribuam a gerar mercados públicos, democráticos e solidários com o propósito de mudar as pautas atuais do consumismo por uma cultura de consumo responsável e ético no marco de uma sociedade mais justa, responsável e humana. 2. Constatamos um notável dinamismo dos setores populares e associativos ao longo do nosso continente construindo alternativas concretas de um verdadeiro desenvolvimento humano. 3. Destacamos o papel relevante de instrumentos específicos como as Lojas de Economia Solidária e Comércio Justo que se formam em vários dos nossos países. Lojas que além dos diferentes estilos de funcionamento, compartilham a mesma filosofia, valores e princípios de ação. 4. Desejamos Lojas que consigam sua sustentabilidade mediante um manejo e gestão eficientes e dignos dos elevados valores éticos que perseguimos; Lojas que consigam incidência para um tratamento jurídico, impositivo e regulador, atendendo a seus objetivos socioeconômicos de inclusão social, qualidade, participação dos trabalhadores, equidade e cuidado do meio ambiente; Lojas que focalizem a construção de mercados no Sul; Lojas que envolvam os interesses do trabalho humano mediante as diferentes formas organizativas e associativas de nossas produtoras e 31 Inaugurada em janeiro de 2006, na I Feira Canária de Economia Solidária, em Assunção, Paraguai 43 produtores; Lojas que promovam nossas identidades culturais. 5. Apostamos na criação de um trabalho articulado entre as diversas Lojas Latino Americanas com o propósito de começar a gerar circuitos de comercialização solidária, processos participativos de certificação que confluam em uma marca compartilhada para o continente, trabalho conjunto de incidência assim como ações que contribuam a mostrar que uma OUTRA ECONOMIA É POSSÍVEL As declarações acima evidenciam a relação na América Latina entre os movimentos de Comércio Justo e Economia Solidária. A união dessas duas frentes é um meio eficaz de alcançar objetivos comuns, difundindo conceitos, incentivando novas experiências e garantindo o protagonismo aos atores do Sul. Essa realidade Latino Americana é tão concreta que existe uma verdadeira difusão de redes de organizações de Economia Solidária e Comércio Justo espalhadas pelo continente. O III Encontro Latino Americano de Economia Solidária e Comércio Justo, intitulado “Por uma integração solidária dos povos da América Latina e do Caribe”, realizado em outubro de 2008 e organizado pela Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social e Solidária (RIPESS) é um bom exemplo de como vem se dando essa relação. Os participantes desse encontro escreveram a declaração de Montevidéu denominada “Sim, existem alternativas: a Economia Social e Solidária e o Comércio Justo”, que sintetiza os anseios dos integrantes de ambos os movimentos. A declaração de Montevidéu32 é extremamente importante e cada um dos seus pontos inclui especificidades próprias do movimento de Economia Solidária na América Latina. Contudo, a fim de não delongar, é válido destacar quatro dos oito pontos da declaração que demonstram mais claramente a preocupação com um objetivo que transcenda o plano econômico, com o respeito às identidades dos povos, com critérios para uma produção e comercialização mais justa e com a preocupação da formação e fortalecimento das redes de organizações de Economia Solidária, são eles: • Ponto 1: Reafirmamos, mais uma vez, que a Economia Social e Solidária é uma alternativa para a humanidade, pois persegue como objetivo principal o bem viver de todas as pessoas, a partir da autonomia produtiva, da equidade econômica, da justiça social, da sustentabilidade ambiental e da participação política.(...) • Ponto 2: Nos comprometemos a promover uma integração regional que privilegie os direitos, sabedorias e interesses dos povos latino americanos – caribenhos, e que 32 Ver a versão completa da Declaração de Montevidéu nos anexos deste trabalho. 44 tenha como principais fundamentos a cooperação, a reciprocidade e a complementaridade na produção, no comércio e nas finanças, assim como em todas as dimensões da vida social dos povos; portanto, diferente do modelo de livre comércio que, por incidência das grandes transnacionais, hegemoniza as discussões e acordos no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC) e nos tratados comerciais regionais e acordos bilaterais que se pretendem impor na região. • Ponto 5: Convocamos a compartilhar, aperfeiçoar e inovar instrumentos, métodos e sistemas para melhorar os atuais níveis de eficiência econômica e social dos empreendimentos solidários, seus produtos e serviços, com o ânimo de contribuir ao bem viver de seus integrantes e comunidades. • Ponto 6: Adotamos o compromisso de promover e/ou fortalecer redes e movimentos nacionais de Economia Solidária, consolidando espaços idôneos para a melhor articulação e o fortalecimento das organizações e seus integrantes, assim como de impulsionar alianças estratégicas com outras redes e movimentos sociais para o fortalecimento da Economia Solidária nas localidades, nos países e na região. Observou-se que em toda a declaração não se faz menção em nenhum momento ao Comércio Justo, exceto no próprio nome dado ao documento. Sendo esta declaração fruto de um encontro que reúne tanto o movimento de Economia Solidária quanto o de Comércio Justo, e sendo este considerado um instrumento da própria Economia Solidária, é como se na América Latina o movimento do Comércio Justo já tivesse sido incorporado no grande movimento da Economia Solidária. Portanto, é como se o movimento do Comércio Justo estivesse subtendido com seus princípios particulares em todo o documento quando se fala na própria Economia Solidária, pois afinal de contas o ponto mais tangível de convergência entre os dois movimentos é a base de princípios e motivações. 1.4.1 - Identidade Cultural: uma estratégia de valorização do produto do Comércio Justo De acordo com a IFAT LA, o principal desafio dos produtores é a conquista do mercado interno latino-americano, o que significaria garantir o escoamento da produção, principalmente dos artesanatos. Atualmente, a Ásia oferece grande oferta de produtos a preços comparativamente baixos e assim vem garantindo seu papel de tradicional exportadora de 45 artesanatos para o comércio justo. Isso faz com que América Latina sofra com uma concorrência difícil. Portanto, o desenvolvimento de mercados locais, além de garantir a colocação para muitos produtos até então excluídos ou sufocados por pesadas concorrências, é uma estratégia para recuperar e valorizar identidades culturais e étnicas como meio de se diferenciar no mercado. De um modo geral, os produtores que acessam os mercados internacionais acabam subordinando sua produção aos padrões estéticos destes consumidores, que significa a adoção de desenhos, cores e estilos, ditados pelas demandas da moda. Na edição de janeiro de 2009 da revista Mercado Justo, Gabriela Frers, presidente da IFAT LA, diz que apesar de o Comércio Justo desde seus primórdios ter manifestado o interesse de respeitar a identidade dos povos, a relação entre consumidores do Norte e produtores do Sul não dá valor à cultura, com toda a sua bagagem de significados. Ela afirma que a cultura, que dá origem aos produtos típicos, por sua profundidade, saberes, riqueza de conteúdos e valores estético-visuais, poderia perfeitamente servir de atrativo comercial. Assim, os produtores com toda a sua riqueza cultural assumiriam um papel mais ativo e protagonista nesta relação comercial que atualmente os faz ocupar um espaço passivo e subvalorizado. Afirma ainda Gabriela que, estando a oferta tão determinada pela demanda, a criatividade e o significado da produção se diluem e se perdem. Isso abre espaço para uma simples adequação à demanda, atuando os produtores apenas como mão de obra. Deste modo, eles acabam desconsiderando a possibilidade de valorização da cultura, impressa na tipicidade dos seus produtos, como meio de ampliar suas vendas. Por esse motivo é que a IFAT LA está propondo a incorporação de um novo princípio capaz de valorizar e revitalizar a identidade cultural da produção, traduzindo-se em um mecanismo concreto para garantir o respeito à identidade dos povos, através da sua valorização. Cabe enfatizar que tanto o Comércio Justo como a Economia Solidária objetivam alcançar pequenos produtores em situação de desvantagem, e seriam eles os principais beneficiados com a valorização de suas identidades culturais, favorecendo assim a inclusão e garantindo mais justiça e conteúdo aos mecanismos de mercado. A proposta da IFAT LA para o padrão de produção com identidade é a seguinte: Promover a valorização da identidade cultural da produção de artesanato e alimentos realizada por produtores e produtoras em pequena escala, levando em conta os elementos de identidade cultural contidos e refletidos em seus produtos, através da tecnologia utilizada, dos materiais empregados, dos desenhos e dos significados transmitidos. É importante fazer com que essa valorização se reflita na informação aos consumidores e nos preços dos 46 produtos, que deve contemplar esse aspecto como valor agregado da produção, estimulando o desenvolvimento com identidade (Revista Mercado Justo, n°8, ANO III, p.7). 1.5 – Comércio Justo e Economia Solidária no Brasil: a complementaridade dos movimentos Para entender as fortes convergências entre os movimentos de Comércio Justo e de Economia Solidária, é importante partir de um relato histórico da Economia Solidária no Brasil. Assim, contextualizá-la é necessário para identificar os pontos de contato e a influência que ela exerce no movimento do Comércio Justo, retrato focado do que vem ocorrendo na América Latina. A ênfase nos mercados locais, a inclusão apenas de pequenos produtores e a participação em políticas públicas redistributivas são algumas das práticas da Economia Solidária incorporadas pelo Comércio Justo brasileiro. As primeiras iniciativas baseadas nos fundamentos da Economia Solidária no Brasil surgiram na década de 1980. Porém, um momento decisivo para a articulação do movimento foi a organização da primeira edição do Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre. Nesse momento, criou-se o Grupo de Trabalho (GT) brasileiro de Economia Solidária, cujo objetivo era o de mediar a participação de redes nacionais e internacionais de Economia Solidária no FSM. Nesse GT houve a participação de 12 organizações, entre as quais: a Rede Brasileira de Sócio-Economia Solidária (RBSES), a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educação (FASE), a Associação Nacional dos Trabalhadores em Empreendimentos Autogestionários (ANTEAG), o Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Economicas (IBASE), a Cáritas do Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a Rede de Universidades de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs), a Agência de Desenvolvimento Social (ADS/CUT), e a cooperativa UNITRABALHO. Para Vieira (2005), o primeiro FSM, realizado em janeiro de 2001, causou uma mudança radical nas teorias de Economia Solidária. Enquanto no Brasil, na década de 1990, a Economia Solidária era discutida apenas como utopia e projeto de combate à exclusão social, com o FSM houve a percepção de que em outras partes do mundo ela já era uma realidade. Deu-se então uma ruptura teórica, com o abrupto deslocamento dos autores do plano utópico para o empírico, onde os projetos foram substituídos por estudos de casos e de tendências. 47 Essa mudança permitiu que a Economia Solidária transitasse subitamente do plano teórico, nos anos 90, para a realidade concreta, no novo milênio. Nesse processo, a ansiedade por encaixar os projetos nos acontecimentos e vice-versa resultou um certo custo teórico, jogando-se para um segundo plano elaborações sobre as possibilidades transformadoras desse movimento para abraçar-se um empirismo muitas vezes pouco consistente. Entretanto, logo a fragilidade dos grupos de produtores que mergulharam nessas práticas exigiu que a economia solidária fosse reassumida enquanto projeto, com a execução de estudos de identificação dos limites das experiências. O resultado desse cenário está demonstrado nos mapeamentos realizados no âmbito do Atlas de Economia Solidária no Brasil. Apesar de comprovarem um crescimento significativo dos empreendimentos33, tais mapeamentos ainda situam a Economia Solidária como experiências isoladas, projetos avulsos de geração de renda e alternativas emergentes, contudo sem um caráter sistêmico e influente sobre as realidades produtivas locais e por extensão sobre a economia nacional. De acordo com Vieira (2005), na Economia Solidária destacam-se dois tipos de grupos e experiências: os endógenos e os exógenos. A empresa falida que passa a ser autogerida por seus funcionários é um bom exemplo de experiência endógena. O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) é também um exemplo, pois são os excluídos que criaram e administram o próprio movimento. Por outro lado, caracterizando as experiências exógenas, estão aquelas organizações que atuam apoiando a formação de grupos para o trabalho autogestionário, como a Cáritas, as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs), as ONGs em geral e o Sebrae. Para compreender as tramas do surgimento e amadurecimento da Economia Solidária no Brasil, é válido traçar um perfil de tais grupos, já que estes são os sujeitos que fazem a história, conforme segue: • O MST: é o mais importante movimento de inclusão social no Brasil. Foi fundado em 1979, com o escopo de ocupar as terras consideradas improdutivas e que constituem grandes e médias propriedades rurais, organizando assim as lutas pela Reforma Agrária. Trabalha, desde 1985, a organização de cooperativas agrícolas de assentados estimulando a autogestão para a organização de serviços e atividades subsidiárias. A 33 A Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) realizou dois mapeamentos, no âmbito do SIES (Sistema Nacional de Informações em economia Solidária). No primeiro, realizado em 2005, o número de Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) foi de 14.954. No último mapeamento, de 2007, esse número cresceu para 21.859. 48 Economia Solidária é praticada nas diversas formas de cooperação, na capacidade de reivindicação e de combate à pobreza, e nas atividades de formação, com o estudo de alternativas sócio-econômicas baseadas na crítica ao capitalismo. • A Cáritas Brasileira: organização de cunho religioso34, durante os anos de 1980 e de 1990, desenvolveu uma série de projetos que conciliavam assistencialismo e inclusão social. No ano 2000, se anunciava como instituição responsável pela realização de 20 anos de economia popular35 solidária no Brasil. • ITCPs: As Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares nasceram inicialmente para apoiar cooperativas urbanas, mas logo o seu alcance se estendeu para a zona rural. As ITCPs demonstram na prática a função pública das universidades brasileiras, sendo formadas por grupos interdisciplinares de profissionais, como professores, alunos, colaboradores e funcionários. Além do mais, não se limitam ao apoio aos grupos, pois fomentam a economia solidária, constituindo um fórum que prima pela independência política e intelectual, reiterando o papel público da universidade. Rechaçando, deste modo, o conceito de que a universidade brasileira é elitista. Além do mais, a partir dos anos de 1990, houve a propagação de um movimento autogestionário entre as empresas em processo falimentar. A ANTEAG36 é a principal instituição que reuniu empresas convertidas, ou seja, tomadas por trabalhadores. Posteriormente, entidades como a Unisol37, teriam as mesmas finalidades. Outras organizações que passaram a apoiar a economia solidária foram as Centrais Sindicais, como a CUT. Contudo, o passo decisivo para a institucionalização da Economia Solidária no Brasil ocorreu em 2003, com a criação, pelo presidente Luíz Inácio Lula da Silva, da Secretaria Nacional de Economia Solidária, a SENAES. Vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a SENAES é desde o começo dirigida pelo prof° Paul Singer e tem como responsabilidade o fomento de políticas nacionais de Economia Solidária. Paralelamente à constituição da SENAES, na III Plenária Nacional da Economia Solidária realizada em junho daquele ano, foi criado o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), cuja atuação 34 Entidade apoiada pela CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) e por grupos católicos. A utilização da palavra popular tem a finalidade associar suas iniciativas à população de baixa renda. 36 Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária. 37 Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários. 35 49 deveria ser como um interlocutor da sociedade civil, apresentando demandas e acompanhando as políticas públicas da SENAES para esse setor. No FBES articulam-se três segmentos do movimento de Economia Solidária, quais sejam: os empreendimentos solidários, as entidades de assessoria e fomento, e os gestores públicos. A Carta de Princípios do FBES38 aprovada na mesma ocasião, mas com teor atualíssimo, expressa que: A Economia Solidária ressurge hoje como resgate da luta histórica dos(as) trabalhadores(as) como defesa contra a exploração do trabalho humano e como alternativa ao modo capitalista de organizar as relações sociais dos seres humanos entre si e destes com a natureza. (...) a ampliação do trabalho assalariado no mundo levou a que essa forma de relação capitalista se tornasse hegemônica, transformando tudo, inclusive o trabalho humano, em mercadoria. As demais formas (comunitárias, artesanais, individuais, familiares, cooperativadas, etc.) passaram a ser tratadas como ‘resquícios atrasados’ que tenderiam a ser absorvidas e transformadas cada vez mais em relações capitalistas. (...) A atual crise do trabalho assalariado desnuda de vez a promessa do capitalismo de transformar a tudo e a todos/as em mercadorias. (...) A Economia Solidária é fundada em relações de colaboração solidária, inspirada em valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica. No Atlas da Economia Solidária, desenvolvido pela SENAES, a Economia Solidária é “o conjunto de atividades econômicas – de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito – organizadas e realizadas solidariamente por trabalhadores e trabalhadoras sob a forma de autogestão”. Nesse contexto deverão ser consideradas as atividades econômicas de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, comércio justo e consumo solidário, que estejam organizadas em cooperativas, associações, empresas autogestionadas, grupos solidários, redes solidárias, clubes de trocas, entre outros. Essas organizações são denominadas de Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) e se caracterizam por serem instituições suprafamiliares formadas por trabalhadores/as, pertencentes ao meio urbano ou rural, que exerçam em seus empreendimentos a gestão coletiva em caráter permanente. Podendo os EES apresentar ou não uma situação legalizada. Para esse conjunto de atividades econômicas e formas de organização, o Atlas de Economia Solidária determina quatro características centrais. Embora sejam complementares e nunca funcionem isoladamente, tais características podem ser observadas e compreendidas de forma objetiva como categorias analíticas diferentes, mas sempre presentes na Economia Solidária. Além do mais, elas demonstram grande afinidade com os princípios do movimento do Comércio Justo. São elas: 38 Disponível em 15/12/2006, no site do Fórum Brasileiro de Economia Solidária www.fbes.org.br 50 • Cooperação: Existência de interesses e objetivos comuns, união de esforços e capacidades, propriedade coletiva parcial ou total de bens, partilha dos resultados e responsabilidade solidária diante das dificuldades. • Autogestão: Exercício de práticas participativas de autogestão nos processos de trabalho, nas definições estratégicas e cotidianas dos empreendimentos, na direção e coordenação das ações nos seus diversos graus e interesses. • Atividade Econômica: Agregação de esforços, recursos e conhecimentos para viabilizar as iniciativas coletivas de produção, prestação de serviços, beneficiamento, crédito, comercialização e consumo. • Solidariedade: Preocupação permanente com a justa distribuição dos resultados e com a melhoria das condições de vida de participantes. Comprometimento com o meio ambiente saudável e com a comunidade, com movimentos emancipatórios e com o bem estar de trabalhadores(as) e consumidores(as)”. Desta forma, para ser considerado um Empreendimento Econômico Solidário (EES) deve-se comtemplar as quatro características acima expostas. Não é necessário estar ligado especificamente a algum ente ou mesmo pertencer a uma rede. Tanto é que nos mapeamentos o que vale é a confirmação de tais características. Além de ser possível o cadastramento on line de novos empreendimentos. Isso demonstra uma abertura e certa generalização da Economia Solidária, que ao mesmo tempo em que a faz um grande movimento, dificulta suas delimitações. Isso marca uma clara distinção em relação ao movimento do Comércio Justo, onde as organizações sejam elas de produtores, apoiadores, importadores ou comerciantes, precisam estar necessariamente dentro de um circuito bem definido. Interessante observar que em relação às fronteiras, tanto a Economia Solidária quanto o Comércio Justo não são fenômenos exclusivamente nacionais. Os acontecimentos que despontaram no Brasil também ocorrem em outros países. Além do mais, em muitos casos o Brasil se espelha nos êxitos e insucessos de experiências estrangeiras, importando modelos dos casos mais viáveis. Essa relação com o que acontece fora do Brasil é demonstrada, em termos governamentais, pela declaração39 do ministro do Trabalho e Emprego Carlos Lupi “O empenho do Governo Federal no fortalecimento da Economia Solidária mostra que o Brasil 39 Apresentada no artigo “Economia Solidária: alternativa de inclusão no mercado”, de 09/01/08. Disponível no site www.fomezero.gov.br . 51 está sintonizado com o mundo. A economia solidária significa políticas públicas para ajudar os mais humildes, estimulando dessa forma o comércio justo”. A afirmação do ministro também aponta que, no Governo Federal, a economia solidária é vista como instrumento de combate à exclusão social, porém é possível notar um quê de assistencialismo ao enfatizar a ajuda aos mais humildes. As políticas públicas devem servir não só a oferecer ajuda, mas sim garantir verdadeiras oportunidades de inclusão social através do fomento de alternativas de geração de trabalho e renda, que é o escopo da Economia Solidária. A clara relação que o ministro faz entre Economia Solidária e Comércio Justo demonstra que ao menos no plano governamental, o Comércio Justo já foi reconhecido e incorporado como suporte à Economia Solidária. Ainda no âmbito do Governo, o Programa Economia Solidária em Desenvolvimento40, realizado pela SENAES, tem como principal objetivo “promover o fortalecimento e a divulgação da Economia Solidária, mediante políticas integradas, visando à geração de trabalho e renda, a inclusão social e a promoção do desenvolvimento justo e solidário”. Tal Programa faz evidente referência ao desenvolvimento do Comércio Justo, no seguinte objetivo específico: “articular cadeias produtivas, ampliando a produção, distribuição e consumo dos produtos da economia solidária, apoiando o consumo ético e responsável e contribuindo para a construção de um Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário”. Esse objetivo se relaciona com o fato de que 64% dos quase 22.000 Empreendimentos Econômicos e Solidários, reconhecidos e mapeados através do SIES41, apontaram à comercialização como principal dificuldade para a consolidação dos seus empreendimentos. A constatação de que 56% vendem diretamente para intermediários locais e apenas 7% alcançam o mercado nacional torna urgente o incentivo de formas de comercialização e de novas aberturas de mercado, conforme propõe o movimento do Comércio Justo brasileiro. Por isso, foi criado um Grupo de Trabalho na SENAES para a implantação de um Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS), conforme veremos no terceiro capítulo. Finalmente cumpre dizer que a Economia Solidária e o Comércio Justo são exemplos dos novos movimentos sociais econômicos (OTERO apud MASCARENHAS, 2007). Ambos 40 41 Extraído em 20 de março de 2009, do site do Ministério do Trabalho e Emprego www.mte.gov.br Atlas de Economia Solidária, ano de 2007, disponível no site www.mte.gov.br/sistemas/atlases 52 os movimentos objetivam criar uma nova sociedade e um modelo econômico alternativo, no qual os atores ambicionam se reapropriar da economia a partir de valores próprios e através de transações econômicas com conteúdo social e político. Ambos têm como principal objetivo a criação de um mundo mais igualitário e democrático. Ademais, lutam por uma solidariedade internacional, pela cooperação, pela autogestão nas empresas e pelas finanças solidárias, além de denunciarem as relações comerciais injustas entre atores e lugares. 1.6 - O Comércio Justo na Amazônia: raras experiências, rio-mar de possibilidades A produção agro-alimentar orgânica e beneficiada, os vários artesanatos produzidos criativamente com materiais típicos, os fitoterápicos e as pequenas fábricas de móveis de estilo rústico representam na Amazônia alguns dos mais importantes setores potencialmente capazes de desenvolver uma produção com uma marca de identidade territorial. Visando à realização dessas potencialidades produtivas regionais, cursos e programas de capacitação profissional dos mais variados tipos costumam ser executados, com resultados aquém das expectativas criadas, talvez porque falte a eles o componente mais prático que só o próprio mercado pode proporcionar. O mercado, as demandas dos consumidores e toda a competição42 própria dos ambientes comerciais são fatores extremamente indutores de evoluções e desenvolvimentos tecnológicos e organizacionais. Contudo, como dito, os mercados são excludentes porque controlados por poderosos interesses capitalistas e estão longe de funcionar de modo favorável aos pequenos produtores. A dominação dos fortes sobre os fracos é a lógica prevalecente dos mercados tradicionais. Reafirma-se, que justamente contra isso, o Comércio Justo procurou se constituir como um sistema de regras capaz de se opor às práticas comerciais iníquas e como ato concreto a favor dos povos do Sul do mundo, discriminados por leis voltadas unicamente para favorecer e proteger o lucro econômico do Norte. No entanto, parece que a Amazônia está fora do mapa para as organizações do Comércio Justo, que não a abrange e a alcança apenas minimamente, haja vista o pequeno número de projetos por aqui desenvolvidos. Nesse caso também o Comércio Justo, contradizendo o seu ideal de atingir os menos favorecidos, vem considerando a Amazônia como um Norte tipicamente brasileiro, desprivilegiado, distante e 42 O professor Armando de Melo Lisboa (2001, p. 8) afirma que “uma grande dificuldade aqui é superar o estereótipo de que qualquer forma de competição é perversa”. Para o autor “a competição, quando integrada num ethos não utilitarista, combinada com a dimensão da responsabilidade ecológico-social, tem efeitos positivos, pois estimula a inovação proporciona qualidade e multiplica as energias produtivas” 53 historicamente marginalizado, uma longínqua periferia enfim. No Brasil, o maior número de organizações inseridas no Comércio Justo se encontra no Sul e Sudeste. No levantamento realizado no âmbito da pesquisa do Proesq43 “Comércio Justo e Turismo Responsável: Oportunidades Solidárias e Sustentáveis para a Amazônia”, desenvolvida pelo Instituto Ajuri44, durante o ano de 2007, constatou-se o quão distante estava a inserção de grupos produtores no comércio justo. Nessa pesquisa, somente no Estado do Pará foram entrevistados, através de formulário45, 46 organizações de produtores. Destes, 16 produziam artesanatos, e apenas 6 afirmaram vender nos circuitos do comércio justo. Ainda do total de entrevistados, 28 grupos desenvolvem atividades ligadas à agricultura familiar, extrativismo e pesca, destes somente 3 alegaram vender no comércio justo. Verificamos que a maior parte das organizações que afirmaram comercializar no comércio justo teve apenas experiências de venda, não tendo estabelecido uma relação duradoura e nem um fluxo contínuo de vendas, conforme propõe os princípios do movimento. Ou seja, o Comércio Justo parece aqui uma utopia. Na verdade, apesar da região Amazônica apresentar inúmeras possibilidades de desenvolvimento econômico, político e social, o modelo de desenvolvimento que sempre vigorou na região foi o latifundiário-monocultural46 (COSTA, 2004). Por outro lado, o professor Francisco de Assis Costa, explica que a Lei n° 7.827, de 1989, determinava que 3% das receitas da União deveriam ser aplicados em programas de financiamento de setores produtivos de regiões menos desenvolvidas47. Para o professor isso significaria uma “inversão profunda na orientação da política de desenvolvimento regional de base agrária” (idem, p.136). Esta lei deveria privilegiar os micro e pequenos produtores e reforçar o modelo por ele chamado familiar-policultural. Tal modelo é caracterizado pela unidade estrutural pequena propriedade familiar com produção diversificada, formação de capital humano e social, e elevação da equidade social, pelo acesso desconcentrado dos meios de produção e pela distribuição de renda. Esse redirecionamento da política de desenvolvimento “ademais de 43 Projeto Especial de Qualificação dentro do Plano Nacional de Qualificação - PNQ, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). 44 Instituto para o Desenvolvimento Solidário e Sustentável da Amazônia. 45 Ver formulário nos anexos. 46 Este é caracterizado por (i) unir a propriedade latifundiária, trabalho assalariado e produção homogênea de gado e grãos; (ii) apresentar elevados riscos ambientais; (iii) padronizar as bases produtivas, concentrando os meios de produção e renda. 47 Norte (0,6%), Nordeste (0,6%) e Centro-oeste (1,8%). 54 apontar para um desenvolvimento com raízes mais profundas, indicaria a possibilidade de têlo ecologicamente prudente e com capacidade de formação e distribuição de renda” (ibidem). A partir de certas instâncias do Estado brasileiro, não absolutamente monolítico nas suas diretrizes políticas, algumas medidas tentam efetuar tal redirecionamento, além de programas de crédito como o Fundo Constitucional de Desenvolvimento do Norte (FNO), administrado pelo Banco da Amazônia, muitos outros programas vêm sendo incentivados no atual Governo, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). A mudança é feita lentamente. Segundo Bianchini (2003), do Ministério do Desenvolvimento Agrário, na pirâmide da agricultura familiar quase 50% do segmento está abaixo da linha da pobreza, ou bem mais próxima da pobreza do que da capitalização. Para o autor, uma proposta de inserção de produtos agrícolas no mercado justo e solidário deve considerar que as estruturas da agricultura familiar mais capitalizadas têm maior acessibilidade aos instrumentos de políticas agrícolas como pesquisa, assistência técnica e financiamento. O que também caracteriza a maioria das organizações inseridas no comércio justo. Além do mais, as políticas atuais, que dão acesso ao crédito, se preocupam apenas com os insumos tradicionais e com a produção, não havendo recursos disponíveis para o fortalecimento da organização produtiva e comercial (idem). O comércio justo e solidário se apresenta como uma alternativa para o desenvolvimento sustentável da região, mas, para sua efetiva consolidação, é imprescindível o fomento de políticas locais que congreguem os aspectos territoriais e os arranjos produtivos locais. Para Sampaio e Prada (2003), é dever do poder público promover o desenvolvimento, através de condições e ferramentas adequadas para um conhecimento consistente e informações precisas. Novamente o professor Francisco Costa (2004, p.142) especifica essa necessidade de atuação do poder público: Seria necessário um ambiente institucional capaz de apreender os requisitos de uma tal tarefa, a saber: valorizar sistemas produtivos baseados em diversidade; formar conhecimentos para a gestão da diversidade; formar conhecimento para transformar a diversidade em base de eficiência econômica (em força produtiva) e de transformar a eficiência econômica em base para a justiça social 55 Mesmo que a Amazônia esteja no centro das atenções mundiais48, a discussão de propostas de desenvolvimento como a prática do Comércio Justo, como dito, ainda é rara na região. Instituições de apoio à micro e pequenas empresas, como o Sebrae, que, mesmo trabalhando há anos sem alcançar o impacto esperado, ainda adotam principalmente políticas de capacitação profissional e de incentivo ao empreendedorismo, como solução ao desenvolvimento econômico e social. Segundo Castro (2005), além do esforço global pela preservação ambiental, a Amazônia representa um mercado de insumos e produtos para grandes empresas multinacionais nos setores da siderurgia, mineração, eletroeletrônicos e madeira. Afirma ainda que “os pequenos e médios produtores, organizados em sistemas coletivos, também estão presentes nas redes internacionais, com uma gama de produtos da floresta. “Por meio de redes informais de comercialização, conseguem repassar ao mercado globalizado produtos valorizados justamente pelo seu conteúdo cultural e ambiental” (idem, p.33). Portanto, a inserção de produtos regionais dentro de sistemas formais de comércio, como a rede do comércio justo, que determinam critérios ambientalmente sustentáveis, reforçaria os grupos de pequenos e médios produtores que superariam o estágio de subsistência e passariam a ter uma renda digna, promovendo, conseqüentemente, o desenvolvimento local e regional. Na verdade, aqui na Amazônia, pouco se sabe sobre comércio justo, inclusive nos meios científicos. Apesar de ser esta uma alternativa que, em outros lugares, vem apresentando resultados sociais, econômicos e ecológicos bastante favoráveis. No site do Faces do Brasil (www.facesdobrasil.org.br), pouco se faz referência à região amazônica. Na observação dos vários eventos promovidos pelo fórum apenas o IV Seminário de Comércio Ético e Solidário “Promoção do Comércio Ético e Solidário no Brasil, por meio de ações integradas no território nacional”, foi realizado na região, na cidade de Manaus, em 2004. E mesmo assim, nas mesas e apresentações dos temas não havia instituições paraenses. Do Estado do Pará, apenas o Grupo de Mulheres da comunidade de Urucuerá, rio Arapiuns, Santarém, esteve presente no Seminário. No Seminário do Comércio Justo e Solidário no Brasil, ocorrido na cidade de São Paulo, nos dias 29 e 30 de março de 2007, perguntei aos componentes da mesa temática “Comércio Justo e Solidário: uma prática promotora de justiça social” se havia alguma estratégia de desenvolvimento das ações nas regiões mais periféricas, como a Amazônia, já 48 Condição ainda mais reforçada pelo relatório Planeta Vivo 2006 da WWF, que afirma que o consumo humano supera a capacidade de regeneração do planeta (www.wwf.org.br). 56 que todos os membros da mesa apresentavam “casos de sucesso” de produtos de associações e cooperativas das regiões Sul e Sudeste, no máximo do Centro-Oeste. Com certo embaraço, vários representantes afirmavam a importância de um envolvimento maior da região, entre desculpas de que dado à distância do centro do país e à dimensão geográfica da Amazônia, qualquer projeto mais abrangente encontraria dificuldades reais em se concretizar. Não obtive resposta à minha inquietação, porém, como representante amazônica, senti que havia conseguido sensibilizar, além de abrir uma discussão de que o Brasil deve ser justo com ele mesmo, e que tais disparidades regionais deveriam ser quebradas a partir de um projeto, como este, impregnado de discurso político-ideológico. Afinal de contas, se não pensarmos nisso agora, quem pensará e quando? E a quem servirá a tão aclamada justiça social? 57 CAPÍTULO II A definição dos sujeitos e suas práticas: dificuldades e desafios 2.1 - Produtores: o coração do sistema e também o elo fraco Como já foi dito, os produtores são considerados a “razão de ser” do Comércio Justo, afinal o movimento nasceu para promover a comercialização dos seus produtos de forma ética. Podem ser agricultores, artesãos, empreendedores familiares ou populares em geral, urbanos ou rurais, de preferência organizados em cooperativas ou associações. Para fazer parte do Comércio Justo tudo que precisam é a organização e elaboração de seus produtos de acordo com exigências, normas técnicas e condições determinadas pelos princípios do comércio justo. Mas isso é tudo que precisam para existirem dentro do comércio justo? Os produtores devem ser atores de pleno direito e esse é um dos desafios para o Comércio Justo avançar. Contudo, se observa na realidade uma permanente busca ilusória por parte dos produtores de uma paridade de poder no mercado, já que no modo de produção capitalista quem detém os controles não são eles. Quando acontece deles alcançarem essa paridade, eles já não são mais exclusivamente produtores, mas as suas organizações passam a assumir novos papéis, como exportadores, e outros perfis de traders. Cada vez mais os produtores buscam igualdade com os demais atores da cadeia, por isso exigem a sua incorporação nas discussões e definições dos critérios para a certificação justa, bem como na avaliação e acompanhamento desses critérios. Eles se dizem vítimas de uma série de exigências estabelecidas pelo preenchimento de um enorme formulário de enquadramento dos seus produtos no circuito comercial do movimento. Os produtores não conseguem com clareza expor, nesse formulário, as particularidades e especificidades da sua produção. Além do mais alegam serem os mais “vigiados”, com constantes verificações por parte dos importadores e certificadores a fim de confirmar a obediência dos critérios. Há pois, um evidente conflito no interior do movimento. Além disso, as atividades relacionadas à educação e sensibilização sobre o comércio justo na Europa são concebidas, organizadas e realizadas sem uma participação efetiva dos produtores (CASERTA, 2003). Os produtores buscam uma nova relação de parceria onde eles 58 possam participar dos processos de decisão, se transformando em verdadeiros atores do movimento e não apenas beneficiários passivos. A afirmação de Caserta (2003, p.162) é bastante contundente: São raros os casos em que os produtores podem desempenhar um papel mais ativo, por exemplo, decidir em conjunto (...) sobre os temas, as estratégias, as metodologias, os públicos-alvo. Também acontece que ninguém lhes pede que verifiquem se as mensagens que falam deles, das suas vidas, das suas expectativas, veiculadas pelas organizações de comércio alternativo nos países economicamente desenvolvidos, correspondem ao que eles gostariam ou quereriam dizer. De acordo com Guadagnucci; Gavelli (2004) são ainda escassas as pesquisas realizadas sobre as experiências de comércio justo. Das pesquisas informadas por eles, retiramos alguns aspectos importantes sobre as condições dos produtores. Segundo a pesquisa da OXFAM49, os grupos de produtores com uma identidade bem definida, com boa capacidade empreendedora e de inovação, em grau de exercer uma forte liderança, são os que conseguem os melhores resultados no comércio justo. Nesse contexto, o papel dos missionários, ou seja, aqueles que vêm do hemisfério Norte para desenvolver atividades no Sul, também chamados de cooperantes, é fundamental. São eles que se tornam os pontos de referência para muitas comunidades, pois conhecem o circuito do comércio justo e acabam desenvolvendo projetos e assessorando os grupos de produtores. Assim, muitos grupos espelham verdadeiros melhoramentos sociais, pois alguns se equiparam com instrumentos de trabalho mais modernos, outros construíram seus próprios laboratórios, outros ainda conseguiram se aperfeiçoar com cursos de formação, ou mesmo, em muitos casos, conseguiram manter as crianças na escola por alguns anos a mais. Muitos produtores freqüentemente se tornam dependentes das organizações do comércio justo, acabando que sem o seu suporte se vêem incapazes de enfrentar o mercado. Uma outra pesquisa50, igualmente citada no livro de Guadagnucci; Gavelli, encomendada pelas associações alemães Fundação Friederich-Ebert, a agência (católica) para o desenvolvimento Misereor, e a protestante Brot für die Welt (idem), informa que apesar de o comércio justo ter sido avaliado positivamente, os produtores se queixam de serem escassamente informados (sendo que a transparência é um dos pilares do movimento) e de serem pouco envolvidos nas tomadas de decisões. 49 50 É uma organização que faz parte da história da construção e desenvolvimento do comércio justo mundial. Nesta pesquisa foram considerados 17 grupos produtores de alimentos e artesanatos em 6 países. 59 No Fórum Social Mundial (FSM) 2009, na mesa “Regulação e padrões de Comércio 51 Justo” , Ovídio Lopez representante da Frente Solidário52, que já tem uma relação bastante consolidada com o movimento, apontou a necessidade de o movimento não apenas exercer controle sobre os produtores, mas também encontrar formas de averiguação dos sistemas de certificação, bem como das próprias lojas do comércio justo. Além do mais, disse que os produtores querem ser sócios acionistas do negócio, pois vêem distintas formas de aplicar o capital. Ainda Ovídio reclama o fato de que não querem mais ser vistos como “los pobrecitos”53. Percebe-se claramente a busca por parte dos produtores de um papel mais efetivo dentro do movimento. Superadas as fases de engajamento e consolidação da relação, os produtores buscam diálogos para definir estratégias para a extensão do comércio justo a novos produtos e mercados, com ênfase na transformação dos produtos localmente. Ainda no FSM 2009, na mesa “A mudança de escala do Comércio Justo, suas escolhas no ambiente da economia capitalista”, Maurizio Fraboni, representante do projeto Guaraná dos Sateré Mawé54, criticou o critério das importadoras de fazer pesquisas de mercado nos países do Norte para definir o que os consumidores querem comprar. Disse que em vez disso, deveriam ser feitas pesquisas no Sul para conhecer o que os produtores têm a oferecer, já que nem os consumidores do Norte e nem mesmo os importadores conhecem o que existe de produção no Sul. Deu o exemplo da Amazônia, onde existem inúmeros produtos que, sem uma campanha de divulgação e incentivo ao consumo, jamais serão requisitados por não serem conhecidos. Essa crítica condiz com a afirmação de Schumpeter (1998), para quem as inovações no sistema não aparecem de maneira espontânea, ou seja, as inovações precisam, de alguma forma, ser apresentadas aos consumidores para que se tornem demandadas e, então, sob pressão, o mercado se mobilize para suprir novas necessidades. De forma que cabe ao produtor iniciar a mudança econômica, estimulando e direcionando consumidores a querer coisas novas ou coisas que diferem em um aspecto ou outro daquelas que tinham o hábito de usar. 51 Organizada pela Federação Artisans du Monde, com a co-organização da Orgasition Mondiale du Commerce equitable-Europo e da FLO-International. 52 Associación latinoamericana de pequeños caficultores. 53 Expressão transcrita de fala no FSM 2009. 54 O Projeto Guaraná será apresentado no quarto capítulo. 60 Contudo, esse ponto de vista precisa ser bem ponderado, porque, se de um lado existem casos de introdução de produtos exóticos com sucesso no mercado europeu, por outro não é qualquer produto, ou qualquer sabor, que encontra correspondência no gosto dos consumidores. Essa realidade, que diz respeito à realização da mercadoria, ou seja, à sua venda no mercado e sua conversão em dinheiro, é a essência da crítica de Karl Marx a Jean Baptista Say, cuja postulação de que toda produção cria sua própria demanda é objetada por Marx, que considera a possibilidade de interrupção no circuito de circulação das mercadorias: ... “la mercancia ... no sale convertida en dinero, es decir, vendida por su poseedor y comprada por el del dinero. (...) Nadie puede vender si no hay quien compre” (Marx, 2001, p. 73). Assim, a oferta não cria a sua própria demanda e o grande drama dos produtores continua a ser a realização de sua produção no mercado. O desmesuramento é próprio do Comércio Justo, seja quando se propõe a suplantar o modo de produção capitalista, seja no que diz respeito à abrangência da atividade.Aumentar as vendas é a solicitação mais freqüente dos produtores já inseridos no circuito do comércio justo. Por isso, solicitam que os produtos sejam apresentados aos consumidores de modo profissional, que as lojas de comércio justo estejam bem localizadas e que os seus vendedores sejam pessoas realmente comprometidas com o movimento. Portanto, cresce a pressão vinda dos produtores do Sul, resultado dos inúmeros pedidos de organizações de trabalhadores que querem ter acesso a um canal comercial considerado vantajoso, seja ele alternativo ou não (GUADAGNUCCI; GAVELLI, 2004). E, a notícia de que o Comércio Justo existe e possibilita a inserção dos pequenos produtores corre e se difunde rapidamente. Deste modo, é cada vez maior o número de grupos produtores solicitando parcerias com as centrais de importação de comércio justo, o que acaba resultando em uma demanda muito superior a capacidade de absorção das importadoras. 2.2 - Centrais de Importação: o poder no Comércio Justo As Centrais de Importação além de importar, divulgam, estocam e distribuem os produtos do Comércio Justo principalmente nos países europeus. Algumas são também varejistas e dão suporte aos seus parceiros produtores nas seguintes maneiras: (i) apoio técnico no desenvolvimento de produtos; (ii) oferta de treinamentos para o aperfeiçoamento técnico; (iii) apoio extra em momentos de dificuldades sociais e econômicas dos grupos; e (iv) 61 a antecipação de pagamentos para o pré-financiamento da produção. A distribuição dos produtos ocorre nas Lojas de Comércio Justo, também chamadas de Lojas do Mundo ou Worldshops, mas também em lojas de varejo tradicional, como aquelas de produtos naturais e orgânicos, de presentes e de decorações. As Centrais de Importação destinam as mercadorias também aos supermercados e mais recentemente promovem a venda por meio de catálogos impressos ou virtuais. Na realidade, é através do papel fundamental das Centrais de Importação que se efetiva a proposta do comércio justo de estabelecer um canal alternativo e tão direto quanto possível entre os produtores do Sul e os consumidores do Norte. Elas se constituem em atores determinantes de todo o processo, já que decidem de quem comprar e como realizar toda a distribuição. Portanto, as Centrais de Importação representam um elo decisivo e concentrador de poder nesse sistema de comércio. O seu papel é tão crucial que praticamente um grupo de produtores só se torna capaz de entrar na rede de comércio justo na medida em que estabelece um contato com tais centrais, o que pode não ser tão simples. O discurso do comércio justo fala de um trabalho de preparação dos produtores para que estes se qualifiquem. No entanto, este trabalho de preparação, por ser dispendioso e demorado, costuma ser substituído por uma ação mais pragmática de levantamento dos produtos existentes com potencial para o setor. E ocorre de o trabalho de levantamento destes produtos potencialmente bons para o comércio ser realizado por outros intermediários, que se estabelecem entre os produtores e as próprias agências. Foi o que aconteceu com os artesãos ceramistas do distrito de Icoaraci (PA). No primeiro semestre de 2003, as organizações de artesãos do município de Belém, entre essas as de produtores de cerâmica do distrito de Icoaraci, foram convocadas para uma reunião no Sebrae – PA. Especialistas da Ravinala, cooperativa italiana importadora do Comércio Justo, explicaram o que significava este novo tipo de comércio. Nos dias seguintes, visitas foram feitas às oficinas produtoras de artesanato, inclusive às de Icoaraci, e lá os técnicos disseram que dariam preferência para comercializar os produtos daqueles artesãos mais carentes. Brotava, então, uma nova esperança e um grande entusiasmo nos produtores. De Icoaraci, dois grupos foram escolhidos: a Coarti (Cooperativa de Artesãos de Icoaraci) e o Cosapa (Conselho Superior de Artesanato do Pará). O primeiro grupo foi indicado pelo Sebrae por possuir, num universo de 28 produtores, um pequeno núcleo de 7 artesãos, capacitados pelo próprio Sebrae para produzirem peças diferenciadas com um design 62 novo, argila beneficiada e corantes minerais, tornando as peças mais leves e resistentes. No Cosapa, o critério foi diferente, foi pedido aos associados que cada um levasse uma peça para uma determinada olaria do bairro. Dentre quase 30 peças, apenas 8 foram escolhidas para serem reproduzidas e exportadas. Por mera “coincidência” foram escolhidas as peças de produtores mais dotados de capital, com olarias bem mais estruturadas e equipadas. Os produtos dos artesãos mais pobres não foram selecionados, por não apresentarem seja acabamentos mais detalhados, seja uma qualidade superior. Os produtores das peças escolhidas preencheram uma grande e complexa ficha para darem a garantia que seus produtos poderiam ser enquadrados na lógica do comércio justo. Dessa forma, aconteceu a venda. Parece estranho informar, mas de lá para cá, essa foi a primeira e quase única negociação dos artesãos de Icoaraci com uma cooperativa importadora do comércio justo. O site da Ravinala (www.ravinala.org) informa: L'organizzazione – deve ispirarsi ai principi della democrazia e dell'autogestione; Il lavoro – deve dare possibilità ai più deboli, promuovere la partecipazione sociale e il ruolo dei produttori; La giustizia – deve essere garantita una giusta retribuzione, evitata l'intermediazione scorretta e speculativa; L'ambiente – le materie prime devono essere del luogo, minimo l'impatto ambientale del processo produttivo, sostenute le forme tradizionali di produzione con il ricorso a tecnologie appropriate; Lo sviluppo – il commercio equo e solidale deve servire i processi di sviluppo, sostenendo gli sforzi dei produttori per migliorare le condizioni di produzione e la qualità della vita55. De acordo com os artesãos houve um segundo pedido, mas a relação não prosseguiu por ter ocorrido no processo alguns enganos. Por exemplo, o que ocorreu com o Cosapa, foi que a Ravinala depositou na metade do ano, em vez de 50% da compra no ato da encomenda, como haviam combinado, 100% e nunca avisaram, o que só foi descoberto na véspera do Natal depois de muitos contatos e faxs enviados pelo Cosapa diretamente à Itália. Além do mais, uma empresa exportadora convencional foi contratada pela Ravinala, que contatou o Sebrae para articular aquela primeira reunião e que organizava todo o envio através de container a partir do Ceará56. Segundo informações dos próprios artesãos envolvidos no 55 Tradução: A organização – deve inspirar-se nos princípios da democracia e da autogestão; O Trabalho – deve dar possibilidade aos mais fracos, promover a participação social e o papel dos produtores; A justiça – deve garantir uma justa retribuição, devendo ser evitada a intermediação errada e especulativa; O ambiente – as matérias primas devem ser do lugar, mínimo impacto ambiental do processo produtivo, sustentadas as formas tradicionais de produção com o recurso de tecnologias apropriadas; O desenvolvimento – o comércio justo e solidário deve servir aos processos de desenvolvimento, sustentando os esforços dos produtores para melhorar as condições de produção e a qualidade da vida”. 56 Devido às pequenas quantidades de produtos artesanais adquiridas em diversos Estados brasileiros, era necessário que eles fossem reunidos em Fortaleza para serem enviados para a Europa em um único container. 63 processo, houve a desconfiança de que houve um superfaturamento em relação ao transporte de Belém para Fortaleza, o que veio a ser descoberto através de indagação sobre preços aos próprios produtores da parte da Ravinala. No município de Abaetetuba, naquela mesma operação, houve um pedido de cerca de R$3.000,00 aos artesãos da ASAMAB – Associação de artesãos de brinquedos e artefatos de miriti de Abaetetuba. Valdeli Costa, artesão e atual presidente da Miritong (Ong do Miriti), relatou: “Me enchi de esperança, mas eu fiquei triste porque não continuou. Preenchemos quatro vezes aquele formulário grande e complicado, mas não continuou”. E concluiu “a gente precisa muito ter um mercado pra poder fazer valer a idéia de que o artesanato de miriti vai gerar emprego e renda”. Enfim, no Estado Pará, a Ravinala adquiriu além da cerâmica e do miriti, bijuterias de sementes e artesanatos de balata. A seleção de todos esses produtos ocorreu através do preenchimento de um formulário inicial e de rápidas visitas. As compras se repetiram poucas vezes e nunca se tornaram regulares. Além do mais, muitas das realidades selecionadas estão claramente fora dos princípios do comércio justo, não se caracterizando como Empreendimentos Econômicos e Solidários, estando mais próximos da Economia Popular. A partir dessas e de outras experiências estudadas, é possível perceber que a valorização de fatores éticos e sociais, na escolha de produtos a serem introduzidos no comércio justo, pesa menos que fatores relacionados à própria qualidade dos produtos. Afinal de contas, estes precisam ser escolhidos pelos consumidores para saírem dos estoques das Centrais de Importação e conseqüentemente das prateleiras das lojas. E, naturalmente, os consumidores optam pelos produtos fazendo um balanço entre preço e qualidade. Significa dizer que os produtos incluídos na rede são aqueles que oferecem melhores condições de comercialização, o que nem sempre corresponde à ética de melhorar as condições de trabalho e vida dos produtores mais carentes do Sul do mundo. De acordo com a pesquisa “Fair Trade 2007: new facts and figures from an ongoing success story”57 são mais de 400 as organizações importadoras que atuam no mercado do comércio justo, oferecendo aos mercados do Norte do globo uma ampla variedade de alimentos e artesanatos produzidos por produtores do Sul. Mais da metade dessas 57 Pesquisa publicada pela DAWS (Dutch Association of Worldshops) com suporte da plataforma FINE (FLO, IFAT, NEWS! e EFTA). 64 importadoras estão localizadas nos 15 mercados nacionais, considerados “maduros”58, na Europa, e outras 200 nos Estados Unidos. Existem desde aquelas importadoras muito pequenas, representando um negócio familiar com apenas uma ou duas pessoas dedicadas, às grandes com uma gama enorme de produtos, entre artesanatos e alimentares, como a italiana Ctm Altromercato, que só perde para a gigante alemã Gepa. Nas diferentes Centrais de Importação, existe uma pluralidade de idéias, sujeitos e de modos de conceber o Comércio Justo. Na Itália, três das principais Centrais de Importação59 nasceram como lojas do mundo – lá chamadas botteghe del mondo – que tinham o papel de fazer chegar aos consumidores os produtos do Comércio Justo, mas que obtiveram grande sucesso em desenvolver seus próprios projetos de importação com o Sul do mundo. Não somente as grandes, mas também as pequenas Centrais de Importação do comércio justo italiano, apesar de algumas experiências mal sucedidas, procuram manter relacionamentos contínuos e diretos com os parceiros do Sul. Relações que se reforçam com a hospitalidade recíproca e com intercâmbio cultural, mas que não limitam o crescimento dos aspectos empresariais. Interessante é que cada uma das Centrais de Importação desenvolve projetos próprios e participa do crescimento geral do movimento que vai além do crescimento quantitativo, mas que engloba também idéias e múltiplas experiências. Conforme Guadagnucci; Gavelli (2003, p.73) Elementi comuni a tutti gli importatori sono la fantasia e l’inventiva, che hanno fatto scoprire nuovi sapori ai consumatori europei, come quello del guaraná, un succo energético che si ricava da una pianta amazzonica, oppure la pasta allá quinoa, che fornisce un apporto protéico superiore al frumento e al riso. Se la quinoa difficilmente potrá soppiantare la pasta di grano duro, il “Guaranitto”, che nell’estate 2003 ha fatto il suo ingresso nel mercato italiano, può aspirare a diventare la versione ética della CocaCola60. As Centrais de Importação têm um papel político muito ativo no movimento, pois promovem e participam de manifestações contra as injustiças Norte-Sul, incentivando a difusão do consumo consciente. Além disso, fazem lobby para viabilizar mudanças na esfera 58 Na pesquisa a Europa foi dividida em dois grupos. O primeiro abrange 15 países pertencentes aos chamados mercados maduros, onde foram desenvolvidas as iniciativas nacionais de certificação. Já no segundo grupo estão presentes 13 países que se enquadram nos chamados mercados “jovens”. 59 São elas: CTM Altromercato, Commercio Alternativo e Ravinala. 60 Tradução da autora: Elementos comuns a todos os importadores são a fantasia ea capacidade de invenção, que fizeram descobrir novos sabores aos consumidores europeus, como o do guaraná, um suco energético que é extraído de uma planta amazônica, ou mesmo, a massa feita de quinoa, que fornece um aporte protéico superior ao trigo e ao arroz. Se a quinoa dificilmente poderá substituir a massa feita com grãos (de trigo), o “guaranito”, que ingressou no mercado italiano no verão de 2003, pode aspirar a se tornar a versão ética da Coca-Cola. 65 política e nessas atividades integram e se articulam por meio de redes de troca de informações, com ONGs de desenvolvimento, agências de ajuda humanitária, centros educativos, dentre outros. Na Europa, onze das maiores centrais de importação, em nove países61, constituem a EFTA (European Fair Trade Association). Juntas, em 2006, tiveram um faturamento de €192 milhões, tendo um crescimento de 29% se comparado ao ano de 2002, cujo faturamento foi de 148 milhões (DAWS, 2008). 2.3 - Lojas de Comércio Justo: uma ponte para o mercado Exclusivamente criadas para vender os produtos do comércio justo, as Lojas de Comércio Justo (LCJ)62 também buscam funcionar como promotoras do movimento, através da informação e educação para o consumo responsável. Elas devem encorajar seus clientes a participarem de campanhas de pressão aos governos em favor de relações Norte-Sul mais equilibradas. Além disso, geralmente nascem de associações locais, e embora cada vez mais tomem forma de verdadeiras empresas, com uma linguagem cheia de termos administrativos empresariais como organogramas, qualidade e concorrência, expressam grande orgulho de se constituírem organizações não lucrativas. Figura 4: Loja de Comércio Justo Foto extraída do site www.ecologiae.com, em 12/05/09. 61 62 Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, França, Holanda, Itália, Reino Unido e Suíça. Serão chamadas assim, em referência a como são chamadas em espanhol: Tiendas de Comercio Justo (TCJ). 66 Um dado importante é que, na grande maioria das LCJ, o trabalho voluntário de ativistas ainda supera, e muito, o remunerado, apesar de ter havido um significativo crescimento nas contratações de pessoal (CARRARO et al, 2006). E, em muitos países europeus as lojas constituíram redes formadas dentro de associações nacionais, a fim de facilitar a cooperação e a comunicação entre si. Outra informação relevante é que, a maioria das LCJ européias não é auto-sustentável (idem), sendo freqüentemente apoiadas por grupos locais de solidariedade e até mesmo por grandes ONGs de comércio justo. Os autores Sichar e Cabrera (2002) consideram que as obrigações das LCJ são: (i) vender produtos de comércio justo; (ii) informar ao público sobre seus objetivos, a origem dos produtos, das produtoras e produtores; (iii) participar de campanhas para influenciar as políticas nacionais e internacionais e para melhorar a situação dos produtores; (iv) serem abertas e transparentes na sua estrutura e atividades; (v) ter em seu corpo funcional, sejam pessoas contratadas ou voluntárias, comprometidas com os objetivos do Comércio Justo, e; (vi) possibilitar as pessoas que compõem as lojas de participarem das decisões que as dizem respeito. A chamada cadeia comercial solidária compreende vários acordos comerciais, que pretendem ocorrer em um clima de confiança e de forma transparente. De acordo com Catalina Sosa (2008) diretora da Fundação Equatoriana Sinchi Sacha, a nova empresa social, como são consideradas as LCJ, é caracterizada por três tipos de relações empresariais: 1. Com o pequeno produtor no estabelecimento do preço e da forma de pagamento; 2. Com os trabalhadores, que podem ser remunerados ou voluntários; 3. Com o consumidor final, a quem se deve oferecer um produto de qualidade, com informação confiável e adequada tanto sobre os produtos como sobre a nova filosofia comercial da loja. A autora Marta Montoya (2008), no artigo “Las Tiendas de Comercio Justo en España”, exemplifica os diferentes tipos de lojas de comércio justo na Europa. Elas se dividem entre as tradicionais, que vendem exclusivamente produtos de Comércio Justo e são empenhadas em difundir o movimento, e aquelas lojas que vendem além de produtos de comércio justo, também os de grupos locais (do Norte) menos favorecidos, como os produtos 67 agroecológicos. Este segundo grupo de lojas63 objetiva aplicar os critérios do Comércio Justo nas relações Norte-Norte e busca ampliar sua oferta aos produtos da economia solidária. Lojas de Comércio Justo (LCJ) Comércio Justo e Produção Local Tradicionais Independentes Ligadas a organizações Fonte: Montoya (2008) Segundo Montoya (idem), para alcançar seus objetivos, as LCJ se apóiam em três pilares, quais sejam: informação/sensibilização, denúncia/pressão política e, comercialização. Na busca pela sustentabilidade econômica, ocorre que a maioria das LCJ tende a priorizar o aspecto da comercialização. Entretanto, fica para as lojas apoiadas por grandes organizações, devido ao suporte financeiro que recebem, a ênfase sobre o aspecto informação/sensibilização. Nesse último caso há uma nítida separação entre os três pilares, ficando para as organizações o papel da denúncia/pressão política, e para as lojas a função da informação e comercialização. Será descrito a seguir uma síntese sobre como funcionam os três pilares: • Informação/Sensibilização – é o pilar que está mais ligado a formação de um público consumidor de produtos do Comércio Justo. É através da informação64 sobre como ocorrem às relações comerciais entre países ricos e pobres que se demonstra a necessidade de um consumo crítico e responsável para que se promova uma mudança nas regras do comércio internacional, dando oportunidade para os produtores do Sul. Nessa perspectiva, sensibilizar o consumidor é o que faz com que ele se torne constante. 63 Cabe frisar que de acordo com Montoya (2008) nem todos os participantes do Comércio Justo consideram essa tipologia de loja como pertencente ao Comércio Justo. Por isso, se discute que porcentagem de produtos do Comércio Justo deve oferecer para ser considerada uma LCJ. 64 A informação sobre o Comércio Justo, as características dos produtos, sua procedência e sobre os grupos produtores, ocorre através de material impresso, painéis expositivos, internet e feiras. 68 • Comercialização – é a base e o pilar principal do Comércio Justo. Permite o acesso dos produtores ao mercado, garantindo-os inclusão e oportunidades. A comercialização garante o funcionamento das LCJ, entretanto é um aspecto delicado porque ao tentar se equilibrar com as leis do mercado pode colocar em risco a intenção de favorecer o maior número de produtores do Sul. Ocorre que a necessidade de adaptar as vendas à demanda faz com que, muitas vezes, se deixe de trabalhar com os grupos menos favorecidos por não estarem aptos a atender as normas do mercado internacional (CHARLIER et al apud MONTOYA, 2008). Porém também nesse ponto há uma divergência entre os tipos de LCJ. Aquelas ligadas a alguma organização consideram relevante a sensibilização e defendem que a comercialização no comércio justo não deve ser ditada pelas leis do mercado. Entretanto, as lojas independentes que sobrevivem exclusivamente das vendas tendem a se adequar à demanda, procurando adaptar os produtos ao gosto dos consumidores, com novidades na embalagem e introdução de desenhos e estilos ocidentais. • Denúncia/Pressão Política – é a partir desse pilar que as LCJ mobilizam a sociedade para exigir dos governos a adoção de critérios de justiça nas relações comerciais internacionais. Ocorre também a reivindicação de que o setor privado passe a adotar atitudes de justiça e de sustentabilidade. Como já foi dito, esse aspecto é mais trabalhado pelas lojas vinculadas a organizações, sendo menos relevante nas lojas independentes que devem se dedicar a parte comercial para assegurar sua sustentabilidade econômica. A denúncia ou pressão política se realiza através da adesão de uma LCJ às campanhas promovidas por ONGs que buscam mudanças nas relações comerciais ou que denunciam práticas que não respeitam os direitos dos trabalhadores ou que prejudicam o meio ambiente, porém ainda são poucos os consumidores que aderem às campanhas. Tabela 4: Tipos de Lojas de Comércio Justo: ofertas de produtos e relação de vínculos Características Lojas Tradicionais – Exclusivas de produtos de Comercio Justo Independentes Ligadas - Não estão - Recebem o apoio da ligadas a organização a qual está nenhuma vinculada organização. - Têm facilidade para realizar atividades de difusão - É o modelo mais difundido Lojas de Comércio Justo e de produtos locais (do Norte) - Oferecem junto aos produtos de Comércio Justo também produtos locais, principalmente agroecológicos, também de grupos socialmente desfavorecidos. 69 Pilares do Comércio Justo Sustentabilidade Econômica Futuro - Geralmente priorizam a comercialização em relação à sensibilização e à denúncia - Apresentam dificuldades - Dependem exclusivamente das vendas - Perda da essência do Comércio Justo e transformação em pontos de vendas comuns - Defendem os três pilares - Conferem muita importância à denúncia/pressão política - Apresentam dificuldades - Geralmente recebem colaborações - Geralmente trabalham os três pilares - Tendência a desaparecerem em algumas comunidades. - Tendência a crescerem e difundirem-se. - Apresentam dificuldades Fonte: Montoya (2008) Até aqui foi traçado um perfil das Lojas de Comércio Justo principalmente das localizadas na Europa, onde existe uma maior concentração. É possível constatar que, apesar da indispensável contribuição dos voluntários, as LCJ assumem cada vez mais o aspecto de empresas sociais em miniatura, mostrando grande dinamismo e força de vontade. E, não somente no plano comercial. Conforme consideram Guadgnucci; Gavelli (2004), entre as LCJ existem verdadeiras “lojas sociais”, que se transformam em verdadeiros microcosmos reunindo em um mesmo lugar: ponto de encontro, espaço de sociabilidade, e lugar de crescimento cultural e profissional. Interessante é observar que a tendência do comércio justo também refletida nas LCJ é o reconhecimento e incorporação de outros movimentos sociais, como o de Economia Solidária. Assim como o que ocorre na América Latina onde as lojas solidárias são hibridas reunindo artigos tanto de Comércio Justo como de Economia Solidária, fazendo valer a idéia de um comércio solidário Sul – Sul, constata-se uma forte tendência na Europa, principalmente na Espanha, de envolver produtores locais favorecendo o comércio justo Norte – Norte. Duas experiências, dois hemisférios, que se relacionam com critérios de justiça social, mas que amadurecem e encontram em seus próprios territórios seus limites e capacidades, fazendo com que a cooperação se fortaleça e buscando alternativas locais para o próprio crescimento. Na América Latina as Lojas de Comércio Justo são indissociadas da Economia Solidária o que as caracterizam com um perfil particular. No continente o número de LCJ 70 ainda é muito baixo, apesar da constatação da tendência de crescimento nos próximos anos. Guerra (2008, p.6) faz, a seguir, uma excelente síntese sobre o que caracteriza uma Loja de Comércio Justo e de Economia Solidária. Após, ele pormenoriza a distinção entre esta loja e uma outra qualquer, de comercio convencional, no quadro que segue à explicação: Una Tienda de Economia Solidaria y Comercio Justo definitivamente no es uma tienda como cualquier outra, de la misma manera que el sector de la Economia Solidaria no se pretende igual a los otros sectores, y que el Comercio Justo no se pretende equiparable al comercio tradicional. Obviamente que hay puntos en común con cualquier otra tienda (un lugar físico, un horário de atención al público, productos que se comercializan, estructuras de gestión que hay que atender, etc.) sin embargo, la identidad de estas tiendas pasa por los objetivos que persiguen así como por la racionalidad e instrumentos concretos utilizados en diversas áreas. Tabela 5: Quadro comparativo65: lojas convencionais e lojas de economia solidária e comércio justo Dimensão • Objetivos Loja convencional Basicamente comerciais • • Finalidade Propriedade • • Gestão Tipo de relação de trabalho Vínculos com organizações Estratégias de competitividade Fator predominante Lucro Privada individual ou por ações Piramidal Remunerado • • • • • • Tipo de consumo funcional Relação com os produtores Tipos de produtos comercializados Economia Solidária e Comércio Justo Comerciais, culturais e de campanhas de sensibilização Promoção Organizações sociais, comunitárias Participativa Basicamente voluntariado Não interessa De fundamental importância: sociais e redes Variada. Inclui competência por preço Capital Baseada na qualidade e nos valores Consumismo Fator C (própria força de trabalho e energia grupal) Consumo Responsável De compra e venda Alianças de longo prazo. Coogestão. Definidos pela lei da oferta e demanda Que cumpram com determinados requisitos morais (padrões ecológicos, sociais e culturais) Fonte: Guerra (2008). Aos poucos as Lojas de Comércio Justo vão se tornando mais conhecidas pela sociedade civil, principalmente através da informação boca a boca, das feiras e dos eventos. Caem de imediato no gosto do público devido à qualidade dos produtos oferecidos, as informações de origem neles impressas, a originalidade, o astral positivo e a atenção prestada pelos seus trabalhadores. Contudo, as LCJ ainda encontram limitações como o elevado preço 65 Traduzido de fonte original pela autora. 71 dos produtos, uma escassa variedade destes, e a má localização (GUADAGNUCCI; GAVELLI, 2004). A fim de superar essas limitações a importadora italiana CTM Altromercato concebeu o projeto de lojas em parcerias com outras organizações, que demonstrou ser um verdadeiro sucesso comercial. A idéia do projeto era abrir lojas em áreas urbanas de alto valor comercial, com atenção especial a exposição das vitrines e da decoração interna, além do investimento em material publicitário informativo de elevada qualidade e da oferta de artesanato de alta sofisticação. O projeto vingou66, porém demonstrou com mais clareza a face contraditória de que o Comércio Justo é fadado a alcançar apenas consumidores de elite. Na verdade, é como considera Catalina Sosa (2008, p.8) “lograr vendas es todo un arte, que passa por trabajar en vários aspectos” devendo-se atender critérios de administração e controle, horário de atendimento ao público fixos e permanentes, ótimo atendimento ao público (se for necessário, inclusive atendimento bilíngüe), limpeza, organização harmoniosa da loja, clara sinalização, informação idônea e atualizada de cada produto, estoque suficiente, embalagens apropriadas, além de oferecer formas de pagamento diferenciado. Um outro aspecto importante é que a loja deve estar localizada em uma zona comercial ou turística. A autora conclui de forma simples e incisiva dizendo que “las tiendas tienen que profesionalizarse y tener éxito comercial: ¡tienen que vender!” (idem). Enfim, o comércio justo para alcançar seus objetivos deve realizar as mercadorias no mercado. A venda através de Lojas de Comércio Justo representa uma das opções mais compatíveis com os princípios do movimento. 2.3.1- Lojas e pontos de vendas de Comércio Justo no Brasil No Brasil, a característica da maioria das organizações que pretendem a venda de produtos de acordo com os parâmetros do comércio justo é que elas são dedicadas exclusivamente aos produtos artesanais. Todas elas basearam-se em pesquisas de grupos de produtores que produziam artesanatos de acordo com uma tipicidade. É possível notar que os produtos escolhidos para a comercialização se enquadram no que melhor representa o Brasil e suas regiões. Entretanto, a empresa Ética Comércio Solidário além do artesanato, incorporou vendas de alguns produtos alimentícios e confecções. De acordo com nossas pesquisas, as 66 A primeira loja desse tipo foi inaugurada com grande sucesso, em dezembro de 2001 em Milão. Nasceu da parceria entre Ctm Altromercato e a cooperativa italiana Chico Mendes. 72 lojas estão concentradas na região sudeste. Podemos elencar seis organizações que mais se destacam na venda de produtos sob os critérios do comércio justo no país: 1- Mundaréu67 – É a primeira loja brasileira que se propõe a atuar seguindo os princípios de comércio justo. A Associação Mundaréu é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). Foi criada em 2001 para promover o desenvolvimento e a inclusão social de grupos de produtores artesanais de todo o país. A missão da Mundaréu é criar oportunidades de geração de trabalho e renda para pessoas excluídas do mercado formal de trabalho, como forma de combater a pobreza. A Mundaréu propõe-se, para tanto, a contribuir para a capacitação de produtores e para a comercialização de seus produtos em concordância com o conceito do comércio justo. No seu programa de comercialização, desenvolve parcerias com 70 grupos de produção artesanal, formais e informais, de 16 estados brasileiros. Criou a primeira loja de comércio justo, no Brasil, voltada para a comercialização de objetos artesanais. É filiada à rede do WFTO- World Fair Trade Organization que avaliza o trabalho de organizações de apoio ao comércio justo no mundo. Do estado do Pará estão sendo comercializados os produtos do Núcleo Mulher Cabocla – Projeto Saúde e Alegria, e do estado do Amapá os produtos da APITU – Associação dos Povos Indígenas de Tumucumaque; 2- Ética – Comércio Solidário. A Ética é uma empresa que nasceu de uma parceria entre a Visão Mundial68 e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Trabalha com cooperativas e associações de pequenos produtores, produtoras e ONGs, a fim de promover o desenvolvimento sustentável em comunidades menos favorecidas, criando oportunidade de emprego e renda para todos e todas, através da comercialização dos produtos, tanto no mercado interno como no externo. De acordo com informações do site da empresa, tudo o que as comunidades parceiras da Ética produzem obedece ao mais alto padrão de qualidade e tem preços justos. Entre os produtos comercializados pela Ética, é possível encontrar artesanato (decoração, utilitários, brindes, tecidos, bordados, papelaria, brinquedos, etc.), confecções (camisetas e acessórios de moda) e produtos agropecuários (castanha, mel, legumes, frutas, etc.) convencionais e 67 Informações disponíveis em www.mundareu.org.br A Visão Mundial é uma Organização Não Governamental (ONG) Cristã Humanitária e de Desenvolvimento criada em 1950 e presente em aproximadamente 100 países. No Brasil, seu Programa de Comércio Solidário começa em 1999 apoiando pequenos produtores agrícolas e de artesanato na exportação dos produtos, além de desenvolver o mercado interno. 68 73 orgânicos. Atua em 4 estados da região nordeste (Pernambuco, Alagoas, Bahia e Rio Grande do Norte) e atende a 14 associações, cooperativas e/ou ONGs desses estados. 3- Lojas Projeto Terra: As lojas Projeto Terra pretendem se constituir como o principal elo de ligação entre as comunidades e os consumidores. De acordo com informações do site da organização (www.projetoterra.org.br), as lojas disponibilizam informações sobre os conceitos de Comércio Solidário, sobre os grupos produtores e sobre as peças apresentadas. São quase 5.000 itens cadastrados oriundos de mais de 320 diferentes comunidades e grupos de produção, que envolvem milhares de pessoas de todos os Estados do Brasil. As lojas atuam sob licença do instituto Projeto Terra que, em troca da permissão para o uso da marca, recebe uma parcela das receitas de venda. 4- Ponto Solidário: É uma loja caracterizada por divulgar e vender a produção artística e artesanal de ONGs, associações, cooperativas, comunidades regionais, populações indígenas, artistas e outras instituições afins. É uma associação sem fins lucrativos que foi fundada em 2002 e que trabalha com o conceito de comércio justo, economia solidária e autosustentabilidade. É um projeto do Espaço Cultural Yázigi que visa à valorização do artesanato brasileiro e a inclusão social. Faz parte da política sóciocultural do Instituto de Idiomas Yazigi, que promove: ações de cidadania, como o projeto Cidadão do Mundo e Consumo Consciente; e ações culturais, promovendo o acervo, exposições de arte, e eventos afins 5- ArteSol – O Artesanato Solidário: programas de apoio ao artesanato e à geração de renda é uma Oscip criada em 2002. Desenvolve projetos de geração de trabalho e renda e comercializa artesanatos. Tais projetos objetivam a formação de grupos autônomos capazes de gerir seu próprio negócio, de preferência agrupados em cooperativas ou associações. Os produtos devem ter um preço justo e estar apto a competir no mercado nacional, para assim gerar mais renda para os mais de 4.000 artesãos beneficiados e suas famílias. A ArteSol executou mais de 90 projetos em 17 Estados brasileiros. Na região Norte, somente o Estado do Pará foi beneficiado. São dois projetos: a comercialização de brinquedos de miriti de Abaetetuba69 e de cuias de Santarém. A ArteSol é também membro do WFTO. 6- Selo Viva Rio Comércio Solidário: O Comércio Solidário do Viva Rio visa fortalecer as diversas formas de organização econômica existentes nas comunidades de baixa renda – cooperativas, empresas familiares, microempreendimentos, associações de 69 Produzidos pela ASAMAB (Associação dos artesãos de brinquedos e artefatos de miriti) e pela MIRITONG (Ong do Miriti). 74 produtores, etc. – através de um “selo de comércio justo”, com benefícios como apoio de crédito, capacitação dos produtores e negociação de melhores preços. Para obter o selo, o produtor deve garantir o funcionamento e coordenação democrática de seu negócio, um processo produtivo sustentável ambientalmente e contribuir para o desenvolvimento de sua própria comunidade. O projeto já beneficia mais de 200 costureiras em cooperativas, que produzem a coleção de roupas da grife Comércio Solidário. Além de disponíveis na sede do Viva Rio, os produtos estão à venda nas loja do Comércio Solidário no Shopping Rio Plaza. 2.4 - Distribuição em Supermercados: a faca de dois gumes O argumento de Xoán Gonzáles (2008), sobre a encruzilhada das políticas de distribuição em que vive o comércio justo na Espanha, é um reflexo do que vem acontecendo no resto do mundo: Las grandes superficies se han constituido en nuevos actores de la distribución de los productos de Comercio Justo en España. Este hecho ha suscitado controversia y ha provocado posicionamientos tan claros como heterogéneos entre las organizaciones que integran el movimiento de Comercio Justo. La pertinencia, la trascendencia, las consecuencias y el impacto que pueda tener que productos de Comercio Justo ocupen estantes de los supermercados e hipermercados es abordado por distintos actores a través de una serie de artículos de opinión. En ellos se refleja la diversidad de posturas y argumentos que sustentan el debate. (Xoán Hermida González, p.96 in SETEM 2008). A distribuição dos produtos do Comércio Justo nas redes de supermercados é ainda uma das maiores polêmicas entre as diferentes correntes que compõem o movimento. Nos seus primórdios, como já colocado, só havia uma maneira de fazer chegar aos consumidores do Norte os produtos do Sul: através da distribuição nas Lojas do Mundo ou Worldshops, nesse trabalho chamadas de Lojas de Comércio Justo (LCJ). Atualmente, o cenário é outro, porque na Europa em um grande número de supermercados é possível encontrar produtos com os selos de origem do Comércio Justo. Se de um lado esse fato é considerado, por alguns atores, benéfico, pois com o aumento significativo das vendas o movimento se difundiu, por outro, a inserção dos produtos em sistemas convencionais é, muitas vezes, considerada como um desvirtuamento e um perigo para o próprio movimento. 75 O Comércio Justo vem apresentando uma gama maior de produtos e também vem mudando a própria forma de atingir o consumidor. A presença dos seus produtos nas prateleiras das principais redes de supermercados marca uma tendência que muitos consideram que deixará para trás o tradicional comércio com consciência social para marcar uma nova fase de distribuição profissional. É o que vem acontecendo com um dos principais distribuidores de produtos justos, a organização Max Havelaar. Esta organização firmou acordos com várias das maiores redes de supermercados francesas. Isso gerou grande polêmica dentro do próprio movimento, pois não deixa de configurar uma contraditória relação com o mundo onde imperam os lucros. Guadagnucci; Gavelli (2004, p.78) discutindo sobre esta polêmica citam uma carta de Alex Zatonelli, um respeitado missionário cambojano, e um e-mail de Monica Ranieri, representante de uma loja de comercio justo italiana. Ambos são do ano de 2002, mas trazem argumentos atualíssimos. É válido reproduzi-los aqui70, pois demonstram a preocupação clara com a salvação da alma do movimento, ou seja, a sua identidade, conforme segue: Primeiro o questionamento de Alex Zatonelli: A escolha feita por algumas lojas e centrais de importação de entrar na grande distribuição é a melhor via para ajudar os pobres? E se for talvez uma maneira que o mercado procura de cooptar essa pérola que é o Comércio Justo e Solidário? A excessiva estruturação do Comércio Justo poderia matálo como movimento popular. Complementando o argumento, o email de Monica Ranieri: Queremos simplesmente ser empresas éticas, mais corretas que as outras, que se inserem no mercado com produtos um pouco mais justos? Então tudo bem com a inserção nos supermercados e na publicidade. Mas, se queremos construir uma economia diferente, que não traga consigo o mito do crescimento, que não esteja baseada na competição, mas na colaboração, então que sentido faz jogar-se na grande distribuição, que massacra as periferias urbanas, transformando a vida das pessoas em mercantilismo forçado. A preocupação com a relação entre comércio alternativo e supermercado, expressa nas duas correspondências, passou a afligir muitos atores do movimento. A perda da sua essência e a redução a uma simples relação comercial fez com que um grupo de organizações se reunisse para discutir os novos rumos do Comércio Justo e defender os seus verdadeiros ideais. Nasceu assim a rede internacional “Espaço por um Comércio Justo”, constituída pelas 70 Traduzidos pela autora. 76 organizações signatárias do Manifesto “Abrindo Espaço por um Comércio Justo”, aprovado em 12 de maio de 2006, em Barcelona. Essas organizações entendem que o comércio internacional deve ser um complemento do comércio local e não um motor de desenvolvimento prioritário baseado na exportação Sul/Norte. A idéia principal é diminuir a dependência dos produtores do Sul ao mercado internacional, ainda que seja um mercado justo. Em meio a esse debate é possível constatar que o movimento do Comércio Justo tem evoluído distintamente entre seus diversos atores, os quais acabam assumindo modelos antagônicos, baseados no que entendem como forma de intervenção mais adequada. Os autores Xavier Montagut e Esther Vivas (2006) identificam, no livro “Adónde va el Comercio Justo”, dois pólos71 de referência do movimento: (i) o tradicional e dominante, e (ii) o global e alternativo. Segue a explicação dos pólos: 1- Tradicional e Dominante: é baseado nos princípios e critérios originais estabelecidos pelo movimento, que enfatiza a exportação do Sul para o Norte, focando o processo de produção. É considerado dominante porque é a abordagem mais conhecida e difundida. 2- Global e Alternativo: Adota uma visão transversal do envolvimento dos diversos atores, englobando os processos de produção, transformação, distribuição, comercialização e consumo. Busca o desenvolvimento de mercados tanto no Sul como no Norte, superando a cooperação Norte/Sul. É alternativo porque estabelece alianças com movimentos sociais críticos ao modelo de globalização neoliberal. A inserção dos produtos de comércio justo em grandes redes de distribuição alimentar é um dos aspectos que mais distinguem os dois modelos. As organizações adeptas ao modelo “tradicional e dominante” acreditam que os produtos do comércio justo devem estar presentes nos supermercados e hipermercados, o que já acontece, criando alianças com os atores da Economia de Mercado. Conforme justificativa de Elodi Martin, da Max Havelaar: a nova tendência está a anos-luz dos ideais originários de autogestão, transparência e justiça. A distribuição especializada em comércios exclusivos tem um impacto limitado, só chega a ativistas. Para aumentar as vendas e marcar uma diferença precisamos recorrer a grandes distribuidores e aos supermercados (apud AVRIL 2008, s/p). 71 Segundo Federica Carraro et al (2006), apesar de existirem organizações consolidadas e com lideranças respeitadas em ambos os pólos, foi identificada a chamada “polarização dinâmica”. Nesta, determinadas organizações transitam entre os dois modelos segundo os temas e problemas que as dizem respeito. 77 Já as organizações ligadas ao modelo “global e alternativo” são completamente contra qualquer parceria com as multinacionais. Elas trabalham de acordo com o movimento da Economia Solidária, pela Soberania Alimentar e em parceria com os movimentos sociais de base. É neste modelo que se enquadra a rede internacional “Espaço por um Comércio Justo”. Não admitem a colocação dos produtos em supermercados, de acordo com o que defende Michel Besson, diretor da Andines, distribuidora francesa de produtos justos através da Internet “do ponto de vista estrutural, as grandes redes de distribuição visam maximizar os lucros e minimizar os custos. Isso atenta contra o objetivo de conseguir um preço justo, e salários decentes, para o trabalho de pequenos produtores” (apud AVRIL, 2008). No Fórum de Comércio Justo, ocorrido em Lisboa, em maio de 2007, houve um acalorado debate72 sobre a comercialização no comércio justo. Foram convidados representantes de duas organizações de Comércio Justo Européias: o Andrés Arechaga, da pequena importadora espanhola Espanica e o Leone de Vita, de uma das maiores centrais de importação de Comércio Justo, a italiana CTM Altromercato. Os dois debatedores representam exatamente a dualidade entre vender ou não os produtos do comércio justo na grande distribuição. Primeiramente, serão elencados os vários aspectos positivos da introdução de artigos de Comércio Justo em Supermercados, defendidos por Leone da Vita da CTM, quais sejam: • Resposta ao número crescente de consumidores que procuram produtos que respeitem critérios sociais e ambientais, através de diferentes alternativas, que partam de diferentes atores. Estes atores podem ser do comércio justo, agentes tradicionais do mercado ou novos atores que venham a se formar. • Os números começarem a ganhar relevância, como é o caso dos 15% da cota de mercado das bananas do comércio justo na Suíça, porque podem causar algum dano ao comércio convencional, pressionando-os a mudar as suas formas de atuação. Isso se chama de contaminação positiva. • A compatibilidade entre a venda dos produtos em Lojas de Comércio Justo e em hipermercados. Para Leone os tipos de cliente que freqüentam um ou outro são diferentes: o cliente de uma LCJ está à procura do mundo, de uma história; enquanto o cliente do hipermercado procura um produto com certas características e alguma comodidade, não 72 Relatado por CIDAC no artigo “O Comércio Justo face aos novos desafios comerciais”. http://www.cidac.pt/CJNovosDesafiosComerciais.pdf, consultado em 25/04/09. 78 estando disposto a deslocar-se a outra loja. Então, o objetivo é fazer com que se difunda o número de pessoas que conhecem o comércio justo através da primeira compra em supermercados. • O escoamento da produção. Leone diz que seria interessante debater esta questão com os produtores e perguntar-lhes o que pensam sobre a venda dos seus produtos na grande distribuição, já que a maioria tem uma capacidade de produção muito superior a que vendem para o comércio justo. E acrescenta que os produtores já vendem uma parte significativa da sua produção ao mercado convencional. • Finalmente, está a necessidade das organizações de comércio justo de serem economicamente sustentáveis. Leone considera como basilar esta vertente comercial do Comércio justo e essencial para a credibilidade do movimento, se quer de fato ser visto como uma alternativa ao comércio convencional. E completa, que quando se fala de justiça, só a viabilidade econômica permite a justa remuneração dos colaboradores. Além do mais, Leone enumera uma série de critérios para serem levados em consideração quando se decide trabalhar com a grande distribuição: 1. Os preços devem ser iguais aos praticados nas Lojas de Comércio Justo para que não haja concorrência desleal; 2. É importante negociar com os supermercados a diferenciação do espaço de exposição dos produtos do comércio justo; 3. Devem ser criados mecanismos que permitam canalizar os ganhos com a venda na grande distribuição para apoiar a rede das Lojas de Comércio Justo. 4. Há que se evitar que uma parte significativa das vendas sejam detidas por uma única empresa, o que significaria dependência e limitação da capacidade de decisão; 5. Continuar a discutir estas questões no seio das organizações e do movimento e analisar com cuidado onde estão os limites de trabalho com os atores convencionais. Para reforçar o argumento de Leone sobre a prática ideal de relacionamento com a grande distribuição, citamos Guadagnucci; Gavelli (2004) os quais afirmam que diante das mensagens de alarme do movimento, que já temia ser esmagado pela grande distribuição, um grupo de Lojas de Comércio Justo propôs, ainda em 2003, uma Assembléia Geral do Comércio Justo Italiano. A finalidade da Assembléia era modificar a Carta de Critérios para 79 regulamentar o relacionamento com os canais de vendas externos ao Comércio Justo. Ficou estabelecido que, primeiramente se deve fazer uma avaliação ética do distribuidor, observando o comportamento sindical e de respeito ao meio ambiente. Além disso, não só o preço final não deve ser inferior ao praticado nas Lojas de Comércio Justo, como o produto deve ser facilmente reconhecido, possivelmente separado dos outros e acompanhado de material informativo. Ao revendedor se pede o empenho de adotar um código de conduta na escolha dos fornecedores e de destinar uma parte do lucro obtido das vendas “alternativas” em projetos de cooperação ou promoção do Comércio Justo. Voltando ao debate, o Andres, representante da Espanica, é claramente contra a venda de produtos na grande distribuição. Ressalta que nesse contexto, se fala muito de consumidores, mas a preocupação da Espanica é com os produtores. Acredita que estes podem e devem participar no capital das organizações de comércio justo. Contra-argumenta que um supermercado, onde 1% dos seus produtos é do comércio justo, oferece outros 99% de produtos comprados dos produtores a preços injustos. Além disso, afirma que um selo de garantia pode desmobilizar o consumidor para as lutas políticas, não o levando a refletir sobre as condições comerciais. Por último, a Espanica entende o Comércio Justo como um movimento alternativo, logo deve procurar alternativas comerciais às dominantes, apostando em outras formas de alcançar os consumidores. Confirmando a postura negativa à venda de produtos de Comércio Justo em supermercados, Esther Vivas73 (2007, p.) The Ecologist 31 no artigo “Comércio Justo en el super?” informa que: El comercio justo es utilizado por los supermercados y grandes superficies como un instrumento de marketing empresarial y de lavado de imagen. Vendiendo una ínfima parte de sus productos de comercio justo pretenden justificar una práctica comercial totalmente injusta: precarización de la mano de obra, sometimiento del pequeño agricultor, explotación del médio ambiente, promoción de un modelo de consumo insostenible, competencia desleal con el comercio local, etc. A autora ainda afirma que diante da pergunta se existem supermercados bons e maus é importante ressaltar que o modelo de produção e comercialização de todos eles parte de uma lógica de mercado que prioriza a maximização dos seus benefícios em detrimento aos direitos sociais e ambientais. Ester diz que a lógica de funcionamento de todos é a mesma, embora 73 Esther Vivas é também autora, junto a Xavier Montagut, do livro “Supermercados, no gracias”. 80 alguns tenham uma melhor estratégia de “lavagem” de imagem que outros. E considera que diante desse cenário é fundamental uma prática de comércio justo que rechace ser um instrumento de marketing empresarial a serviço das multinacionais e das grandes superfícies. Finaliza dizendo que é necessário um comércio justo transformador e alternativo que leve em consideração todos os atores da cadeia comercial, que trabalhe por uma perspectiva global Norte-Sul, Norte-Norte e Sul-Sul, defendendo o direito dos povos e a soberania alimentar. Na mesma linha de argumentação, Xavier Montagut (2008) informa que na Espanha apenas cinco empresas e duas centrais de compra controlam 75% da distribuição de alimentos. A chamada Grande Distribuição Alimentar (GDA) está se transformando em única porta de acesso de produtores e consumidores, configurando uma situação de oligopólio. O resultado é que a GDA utiliza essa situação para impor condições drásticas a seus fornecedores, como: preços baixíssimos; contratos abusivos, onde imperam as chamadas margens ocultas; prazos de pagamento extremamente longos; demanda de produtos padronizados conforme as necessidades comerciais e não conforme a qualidade. Portanto, somente algumas grandes agroindústrias podem suportar tais condições, ficando o pequeno agricultor e/ou transformador fora do mercado e levado a falência. Agora, supondo que as condições impostas pelas empresas da grande distribuição aos produtores de comércio justo sejam melhores, ainda assim continuarão propiciando a monocultura, a dependência dos produtores à exportação e a concentração de plantações e terras de cultivo em poucas mãos. Percebe-se nitidamente que este tipo de comércio justo não colabora com a resistência dos mercados locais, nem com a diversificação de culturas agrícolas, o que é imprescindível para garantir a soberania alimentar. Além do mais, Carraro et al (2006) demonstram a clara preocupação com a sobrevivência das Lojas de Comércio Justo pela perda parcial de consumidores que optariam pela conveniência na acessibilidade e comodidade oferecida pelos supermercados, e reconhecem as grandes superfícies como: Um canal de caráter estritamente alternativo e excludente, não complementar. Tudo nos leva a crer que no médio prazo a sustentabilidade econômica das lojas [de Comércio Justo] estaria ainda em situação desfavorável, o que originaria uma deslocação total e concentração da distribuição nas grandes superfícies. O que queremos é aumentar as vendas e a notoriedade do Comércio Justo a qualquer preço? Parece desconhecer-se ou ignora-se o que tem acontecido ao pequeno comércio em todos os setores a partir do surgimento e proliferação das grandes superfícies. 81 Ressalta-se que além da preocupação com os produtores e com as Lojas de Comércio Justo é preciso pensar no respeito que se deve ao consumidor, que representa o universo maior desse conjunto, a própria sociedade, ou singularizando, o ser humano para quem são direcionados os produtos. O jornalista Frank Mazoyer (2008, p.34) afirma que o supermercado é uma instituição onipresente em nossa sociedade, e é fruto dos primeiros estudos psicológicos sobre o comportamento do consumidor “da criação de produtos até a sua apresentação, tudo é feito para manipular os sentidos e sentimentos, a fim de favorecer a compra impulsiva e o consumismo. Mazoyer completa sua análise dizendo que o supermercado é “uma imensidão de escolhas, prateleiras a perder de vista, uma avalanche de luz e cores. Um conjunto de elementos que subjugam o consumidor, fazem-no perder suas referências e ao final, favorecem a compra por impulso”. Por fim, o universo do Comércio Justo tem que se preocupar com sua identidade, considerando todos os agentes envolvidos no processo, desde o produtor até o consumidor. A discussão da distribuição vai muito além de dizer sim ou não aos supermercados. É preciso entender as dinâmicas que entremeiam essa questão e descobrir a melhor forma de levar a justiça a todos os envolvidos. De um lado os produtores pedem sempre mais encomendas, de outro, isso não é possível sem se pensar em novas formas de atingir o mercado. Uma das soluções mais contundentes com os valores do movimento é fortalecer a rede de Lojas de Comércio Justo. Existem outros meios de alargar o mercado? Isso é o que precisa ser discutido e estudado para encontrar a estratégia mais adequada de garantir mais pedidos aos produtores, sem esquecer do respeito que se deve ao ser humano no seu papel de consumidor. 2.5 - As Certificadoras: da criação do primeiro selo à dominação A preocupação demonstrada por Pompermaier et all (2007), de garantir aos consumidores o cumprimento dos critérios do comércio justo através da certificação dos produtos, vem acompanhada de uma estratégia de abrir mercado aos produtos do comércio justo nos canais de comercialização convencionais: Toda a proposta do Comércio Justo e Solidário se rege na afirmação que os produtos comercializados respondem a uma longa lista de critérios. Quem garante para o consumidor final que estes critérios são efetivamente respeitados? Como pode uma Loja do Mundo de uma cidadezinha da Alemanha, da França ou da Itália garantir para os seus clientes que os inúmeros produtos originários de dezenas de países espalhados nos 5 continentes são efetivamente justos e solidários. A partir da necessidade de 82 oferecer garantia para os consumidores nascem em vários países iniciativas de certificação. Com o crescimento do CJS no mundo e a articulação em rede dos diferentes atores surge a necessidade de unificar e padronizar regras e critérios internacionais. (POMPERMAIER et all 2007, p.23). Não é à toa que o alastramento de selos de certificação ocorreu após o sucesso conquistado, como já dito, pelo primeiro produto certificado, que foi o café, introduzido nas prateleiras de supermercados. Cabe lembrar que até os anos oitenta do século passado, os produtos “justos e solidários” eram aqueles que se compravam nas Lojas de Comércio Justo, ou seja, o lugar da compra “certificava” o produto (GUADAGNUCCI; GAVELLI, 2004). Contudo, desde o nascimento do primeiro selo de certificação de comércio justo em 1988, o Max Havelaar, houve um contínuo multiplicar-se de organizações certificadoras especialmente na Europa. O selo Max Havelaar se tornou o símbolo do comércio justo na Holanda, Bélgica, Dinamarca, França, Suíça e Noruega. Em 1992, surgiu o selo TransFair Internacional presente na Áustria, Alemanha, Luxemburgo e Itália. Depois os Estados Unidos, Canadá, Japão e México ganharam os selos TransFair nacionais. Já na Suécia e Finlândia foi lançado o selo Rattvisermarkt, e no Reino Unido e Irlanda o Fair Trade Mark. Muitos selos, certa confusão. O selo do comércio justo deve servir ao reconhecimento do produto e com isso permitir aos consumidores o exercício de uma compra consciente. Porém, o excesso de utilização dos selos de certificação misturado a marcas e etiquetas em vez de simplificar a mensagem do Comércio Justo, acaba por gerar dúvidas nos consumidores. Guadagnucci; Gavelli (2004) informam que especialmente nos produtos alimentares é possível encontrar vários tipos de símbolos. Por exemplo, em uma embalagem de café é possível ver a marca de garantia TransFair, a marca da Central de Importação Dolce & Solidale, mas também uma dupla etiqueta: a Esselunga Bio, que identifica uma linha de produtos de uma cadeia de distribuição, e a Altromercato , marca da organização de Comércio Justo (nesse caso a CTM) que fechou acordo com a empresa representante dos supermercados. Para organizar a profusão de selos nasce, em 1997, a FLO, instituição responsável pela coordenação internacional dos dezessete selos de garantia. Em 2003, a FLO introduziu um selo único internacional “Fairtrade”. Ainda assim é possível perceber um excesso de selos e marcas. Apesar disso, somente poucos produtos podem usufruir da certificação. Até então, a maioria dos produtos certificados foram alimentícios, por representarem a maior fatia de comercialização do comércio justo. Isso devido ao espaço conquistado nos canais de 83 distribuição convencional, onde a certificação é imprescindível para o reconhecimento dos produtos do comércio justo. Cabe enfatizar que a certificação é um processo difícil e demorado, pois existe uma grande variedade de produtos para serem certificados, a partir de critérios complexos que são relacionados aos direitos humanos, a questões trabalhistas, culturais, econômicas e ambientais (POMPERMAIER et al, 2007). Além do mais, certificar custa caro. Isso porque a certificação é um processo demorado e complexo, só podendo ser sustentada por grupos de produtores que dispõem de grandes volumes de produtos74. Isso acaba por excluir as pequenas organizações de produtores do processo75, por não terem condições financeiras de certificar seus produtos. Stefano Ponte, em seu artigo “Stardards, Trade and Equity: Lessons from Specialty Coffee Industry” (2002, p.30), afirma que: Fair trade certification is available only to small farmer groups, organizations and cooperatives. The process usually takes six to twelve months to be carried out – longer if organic certification is also sought. FT certification requires setting up formal organizational structures, auditing, and mechanisms of transparency and accountability. Therefore, its cost depend on whether farmers in a certain area are already organized, and on what it takes for an organization to achieve “FT status”. O autor informa que as organizações que pretendem certificar os seus produtos devem alcançar o “Status do Comércio Justo”. Portanto, fica claro que só as organizações mais estruturadas e consolidadas podem cumprir com as exigências do comércio justo. Ou seja, os reais beneficiados da certificação do comércio justo são, dentre os pequenos, os maiores. Ilustra bem essa afirmação o caso de dois grupos de cafeicultores brasileiros: a FACI (Federação de Associações Comunitárias Rurais de Iúna e Irupi) do Espírito Santo; e a COOCARAM (Cooperativas dos Produtores Rurais Organizados para Ajuda Mútua) de Rondônia. Ambas as organizações foram precursoras do selo FLO no Brasil, no ano de 1997. A FACI76 nasceu em 1994, com a finalidade de reunir agricultores já organizados em associações77 em uma entidade mais forte e representativa da Agricultura Familiar, a fim de solucionar problemas comuns. Em 1996, uma comissão da FACI participou de um evento 74 A intricada questão da demanda de escala aos pequenos produtores será discutida no Capítulo III. Recorda-se que as pequenas organizações de produtores, ideologicamente, deveriam ser as priorizadas pelo Comércio Justo. 76 Informações coletadas na apresentação oral e em Power Point de Jaçaí Fernandez, representante da FACI, no Seminário Internacional de Comércio Justo e Solidário, realizado em São Paulo, em março de 2007. 77 A FACI reúne 32 Associações Comunitárias Rurais, tendo um público de cerca de 1.000 famílias de agricultores rurais. 70% dos integrantes são homens e 30% mulheres. Cerca de 60% são pequenos proprietários e 40% estão divididos entre meeiros, parceiros, entre outros. 75 84 sobre Mercado e Certificações e conheceu o comércio justo, apresentado pela FLO Internacional. Logo em 1997, foi a pioneira em obter o selo Fair Trade para o café arábica. Até o ano 2000, a FACI se organizou para enviar as primeiras 5 amostras de café para o comércio justo da Alemanha. O café foi rejeitado, pois não gostaram do sabor do café. Consideraram o gosto muito ácido e adstringente, não havendo, dessa forma, a comercialização. Apesar da frustração da FACI, esse fato deu um novo impulso para melhorar a qualidade do café. Foi com recursos do Pronaf78 que foram montados centros de melhoramento da qualidade do café, com a aquisição de despolpadores, terreiros de cimento, secadores, etc. Após esse passo, houve um investimento em capacitação dos agricultores familiares com formação em cursos específicos79 e viagens de intercâmbio de experiências. A vitória ocorreu em 2004, quando foram enviadas 4 amostras de café para o comércio justo sendo todas aprovadas, pois haviam atingido o nível de qualidade exigido. Como resultado fecharam 5 contratos80, cada um equivalendo a 1 container de 320 sacas de café de 60 kg. Três anos depois, em 2006, a quantidade foi duplicada tendo sido enviados 10 containeres. Com o Prêmio Social81 oferecido pelo Comércio Justo, a FACI já conseguiu realizar o projeto de mudas de frutas e árvores nativas, a construção de fossas sépticas, a reforma da escola rural, os despolpadores comunitários, a construção de sedes próprias para as associações comunitárias e o projeto de inclusão digital. Figura 5: Instalações da FACI DESPOLPADOR 78 MAQUINÁRIO Programa Nacional de Agricultura Familiar do Governo Federal. Cursos de Capacitação de Liderança, de degustação de Café, de pós-colheita do café. 80 Dois com os Estados Unidos, dois com a Alemanha e um com a Suíça. 81 O Prêmio Social é um prêmio adicional ao valor final do preço justo para ser investido nos grupos de produtores (ASTI, 2007). 79 85 SALA DE DEGUSTAÇÃO SALA DE INFORMÁTICA Fotos retiradas de apresentação em Power point de Jaçaí Fernandez No caso de Rondônia82, foi a Diocese de Ji-Paraná83 que incentivou o associativismo e a cafeicultura orgânica dos agricultores familiares. A Articulação Central das Associações Rurais de Ajuda Mútua (ACARAM) foi a precursora da Cooperativa dos Produtores Rurais Organizados para a Ajuda Mútua (COOCARAM). A ACARAM nasceu em 1989, e no ano de 1993 exportou 1,8 toneladas de café, do tipo Robusta, em grãos para a Europa com o selo Max Havelaar. Porém, devido a problemas internos, o processo de exportação para o comércio justo foi interrompido sendo retomado somente em 2003. Atualmente a COOCARAM reúne 18 associações com cerca de 2.000 agricultores familiares. A baixa qualidade do café também foi um problema enfrentado pela COOCARAM, pois o produto não tinha cotação no mercado pelo número de defeitos apresentados. Foi então que a COOCARAM passou a produzir café orgânico, do tipo 8, contando com o apoio do Comércio Justo. Com a melhoria da qualidade do café houve um adicional de 40% em relação ao preço fixado pelo mercado local, o que garantiu a melhoria de renda para os agricultores familiares (BINSZTOK; MACEDO, 2007). Como conseqüência da redução do preço do café no mercado internacional, em 2006, a COOCARAM encerrou suas exportações para a Max Havelaar e inverteu a estratégia de privilegiar exportações se tornando parceira da multinacional Cacique, que é destinada a atender ao mercado interno. De acordo com Mascarenhas (2007), a empresa Cacique se registrou na FLO apenas visando à compra do café da ACARAM. Na negociação a multinacional paga U$140 dólares para cada saca de café, obedecendo aos preços estipulados pelo comércio justo. De acordo com Binsztok; Macedo (2007) a empresa alega não obter lucro com a transação, porém lideranças da cooperativa dizem que o negócio é uma “jogada 82 Experiência estudada em Mascarenhas (2007) e Binsztok e Macedo (2007). Liderada pelo bispo Dom Antônio Passamai e preocupada com o desmatamento, com a contaminação da água e dos solos por agrotóxicos, e pelas doenças provenientes das condições insalubres das comunidades. 83 86 de marketing”, que cria para a empresa uma imagem ligada à Agricultura Familiar, às práticas da cafeicultura orgânica e ao comércio justo. Isso demonstra a clara fragilidade dessa parceria, pois existe desconfiança dos representantes da cooperativa em relação aos propósitos da empresa. Relatadas as experiências, fica claro o porquê da afirmação de que a certificação do comércio justo favorece as maiores organizações dos pequenos produtores. Ainda é preciso explicar que a ansiedade dos grupos para certificarem seus produtos ocorre porque a utilização de selos no mercado serve para especificar características de determinados produtos ou de grupos de produtos. Para Gilmar Laforga (2003, p.125) “os benefícios da presença de um selo identificador são, entre outros, melhorar a diferenciação do produto no ponto de venda, proporcionar confiança ao consumidor e oferecer-lhe uma garantia de conformidade”. Além do mais, ocorre o que afirmam Goodman; Goodman (2001, p.111) “the function of label text is not only to enable consumers to learn about and interact with the imprinted material and symbolics qualities of these products, but also, not surprisingly, to entice consumers into make a purchase”. Logo se o selo induz os consumidores a realizarem uma compra, ele interessa aos produtores porque estes querem vender seus produtos. Ana Asti (2007, p.32) se referindo a Ponte (2002) afirma que: A própria ação de definir os padrões confere poder aqueles que os controlam, definem e administram. O poder é conferido principalmente porque, buscando resolver os problemas de assimetria de informação, as certificações acabam gerando problemas de assimetria de acesso, excluindo atores menos preparados do processo. Forma-se assim uma ferramenta de cunho político, podendo beneficiar um processo ou grupo, frente a outros, influenciando a agregação de valor na cadeia produtiva, excluindo e incluindo atores. Entendida como um instrumento de diminuição de custos de transação através da diminuição da assimetria de informação, a certificação possui outra função mais estratégica, a de coordenação do valor das cadeias produtivas. Por isso, no comércio justo a certificação é tema de maior importância, de acordo com Asti (2007, p.31) “a estratégia de qualidade passa a gerar um novo mercado, o mercado da regulamentação privada, baseado em sistemas de certificação que definem as regras e os prérequisitos da qualidade”. Segundo a autora, com a presença do órgão certificador se estabelece uma nova relação de poder político no nicho de mercado e na cadeia produtiva. Na verdade, mais que uma nova relação de poder, ocorre uma forma de dominação, pois o órgão certificador ao conferir valor agregado ao produto, através da legitimidade do selo, passa a exercer uma grande influência no processo comercial. Aos produtores resta obedecer aos critérios e regras estabelecidos pelas certificadoras. 87 2.5.1 - A criação do primeiro selo de produto indígena84. Os povos indígenas do Rio Negro (AM) foram precursores no lançamento do primeiro selo de identificação de origem cultural, geográfica e de comércio justo, emitido e monitorado por uma organização indígena: o selo “Produto Indígena do Rio Negro”. A iniciativa de criação do selo de origem foi uma iniciativa da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), que o lançou na ocasião do IV Encontro da Rede de Produtores Indígenas do Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira (AM), em abril de 2009. Estavam presentes no lançamento do selo 45 representantes de 22 organizações e grupos de produtores indígenas da região. Figura 6: Selo Produto Indígena do Rio Negro Fonte: Pinheiro (2009) O selo objetiva identificar produtos, feitos pelos povos indígenas da região, carregados de valor cultural, pois produzidos a partir de conhecimentos e práticas ancestrais. Isso agrega à produção um forte valor imaterial. Além do mais, o selo identifica produtos de grupos que adotam boas práticas de comercialização. A Foirn será responsável pelo monitoramento da aplicação do selo, que será concedido apenas para os produtos que adotarem no mínimo quatro critérios pré-estabelecidos e acordados no âmbito da rede de produtores indígenas: a produção artesanal segundo métodos tradicionais; a produção por indígenas; a produção na região do Rio Negro; e a comercialização respeitando os critérios de comércio justo estabelecidos e acordados entre artesãos e os pontos de venda. 84 Informações coletadas no artigo “Povos Indigenas do Rio Negro lançam selo pioneiro” de Gustavo Tosello Pinheiro, 15/04/09, disponível em http://www.socioambiental.org 88 Foi o I Encontro de Produtores Indígenas do Rio Negro, em 2006, que deu inicio a um debate sobre os efeitos da denominação de uma marca específica para produtos realizados por diversos povos indígenas da região. Na verdade, já havia o exemplo do povo Baniwa que havia registrado a marca ArteBaniwa para identificar a sua produção de cestaria, como autodefesa e reação à tentativa de registro da marca por designers que pretendiam utilizá-la para fins particulares. Além dessa experiência, os Baniwa identificaram a jiquitaia, que é uma farinha de pimentas produzida pelas índias, com a marca Pimenta Baniwa. Assim, nasceu a idéia da formação de uma rede de produtores, que foi instituída oficialmente no encontro do ano seguinte. No encontro dos produtores em 2008 foram estudadas as diversas modalidades de certificações para identificar e diferenciar produtos de origem geográfica e modos de produção específicos. Os produtores concluíram que deveriam buscar uma forma de certificação que proporcionasse a diferenciação dos produtos indígenas da região do Rio Negro. Porém, constataram que inexistia uma certificação acessível e adequada ao contexto da região. Cabe enfatizar que a região compreende um território de 11 milhões de hectares e que neles estão situadas 750 comunidades de 22 povos indígenas. A criação do selo “Produto Indígena do Rio Negro” significa um modelo adequado de certificação aos produtores organizados em rede e que já vendiam seus produtos na Wariró, a Casa de Produtos Indígenas do Rio Negro. A Wariró é um centro de comercialização dos produtos indígenas da região desenvolvida pela Foirn e de acordo com Pinheiro (2009) é uma bem sucedida experiência de comércio justo. Para a criação do selo contaram com a assessoria do Instituto Socioambiental (ISA) que já estudava caminhos para a proteção do conhecimento tradicional associado e a repartição de benefícios para desenvolver a primeira iniciativa de auto-certificação para produtos indígenas. A idéia é fazer com que o mercado reconheça a origem cultural e geográfica, o processo artesanal e o modelo de comercialização dos produtos85 indígenas da região. 2.6- O Consumidor do Comércio Justo O movimento do comércio justo tem duas dimensões: de um lado busca a abertura de canais de comercialização do Norte para mercadorias de produtores marginalizados do Sul; de 85 Os produtos indígenas do Rio Negro podem ser encontrados em São Gabriel da Cachoeira, na sede da Wariró que funciona como entreposto comercial e centro cultural; em Manaus, na Galeria Amazônica – iniciativa voltada à valorização da arte amazônica localizada em frente ao Teatro Amazonas, fruto de parceira do povo Waimiri-Atroari com o ISA. Peças como a cestaria de arumã ArteBaniwa dos índios Baniwa e o Kumurõ, banco ritual Tukano, podem ser encontradas nas principais cidades do Brasil na rede de móveis e decoração Tok&Stok. 89 outro lado, incentiva uma consciência reflexiva, crítica e ética nos consumidores do Norte (CARRARO et al, 2006). Portanto, o comércio justo só se realiza se houver esses dois extremos que se relacionem, ou seja, é preciso ter quem produza as mercadorias de acordo com certos princípios, mas também quem as comprem de acordo com certa visão de mundo. É o consumidor que faz girar a economia neste circuíto e que gera demanda para que o movimento do comércio justo cresça e ganhe escala. Portanto, o tema do consumidor não pode ser minimizado neste trabalho. Não se pode assegurar um comércio justo e solidário sem a presença de consumidores conscientes, responsáveis e solidários, que reconheçam o verdadeiro valor dos produtos e sejam capazes de defender seus direitos e fazer respeitar o meio ambiente e a preservação da natureza. (FRETEL; SIMONCELLI-BOURQUE, 2003, p.49). O consumidor no comércio justo difere substancialmente do consumidor convencional da teoria econômica, cuja motivação individualista e egoísta é maximizar utilidades de acordo com suas restrições orçamentárias. Aqui o consumidor foge desse padrão. O consumidor responsável do comércio justo é aquele cidadão informado, que pratica um consumo consciente, considerando razões políticas e ambientais. Por causa das suas escolhas levarem em conta esses aspectos, seu consumo é crítico e responsável. Para o Instituto Akatu86, um instituto exclusivamente de consumo consciente, há três maneiras de consumir dentro desse padrão: • Consumir diferente: considerando o consumo como um instrumento de bem estar e não fim em si mesmo; • Consumir solidariamente: buscando os impactos positivos do consumo para o bem estar da sociedade e do meio ambiente; • Consumir sustentavelmente: deixando um mundo melhor para as próximas gerações. Francesco Gesualdi, no seu “Manuale per um consumo responsabile” (2004), nos explica que as empresas têm condutas inadequadas e prejudiciais porque sabem que os consumidores convencionais são egoístas, despreocupados e que não farão nenhum tipo de questionamento ao comprar seus produtos. Afirma que as empresas estariam muito mais atentas aos seus comportamentos se tivessem que dar satisfação aos consumidores, se estes antes de comprar quisessem saber em quais condições sociais e ambientais foram produzidas 86 Informações encontradas no site www.akatu.org.br 90 as mercadorias, e que, os consumidores, estivessem dispostos a comprá-las somente se a produção obedecesse a certos princípios. Contudo, este não é o comportamento do consumidor padrão da sociedade capitalista, cujos esforços de propaganda e publicidade buscam induzir gastos em função do objetivo de acumulação de capital, pouco se importando se a natureza está sendo degradada e os produtores diretos explorados. Abraçando um ideal diverso de mundo, o autor prega a importância do consumo crítico, que consiste em realizar compras escolhendo os produtos não somente baseando-se na qualidade e no preço, mas também na sua história, no percurso que a mercadoria realizou desde o processo produtivo até as prateleiras dos mercados. Gesualdi (2004, p.68) afirma que o “consumo critico equivale a una rivoluzione silenziosa”, porque se questionarmos os critérios utilizados pelas empresas a cada compra seria como se estivéssemos votando. Votaríamos premiando as empresas com comportamentos adequados e punindo as demais. E, no final das contas as empresas se ajustariam ao posicionamento desse consumidor crítico, instaurando entre elas uma nova forma de concorrência, não mais baseada nas características estéticas e econômicas dos produtos, mas sim nas escolhas sociais e ambientais. Dentro dos marcos do capitalismo isso poderia ser entendido como uma reforma nos padrões de consumo. As organizações de comércio justo pretendem esse novo tipo de comportamento, conscientizando consumidores para a realização de compras justas e solidárias. A maneira de conscientizar consumidores, com lemas como “comprando tal produto você estará ajudando um produtor desfavorecido em um determinado lugar do planeta”, que difundem uma certa forma de filantropia através da lógica da caridade, já está praticamente superada pelo comércio justo. Com o passar do tempo e a experiência adquirida, as organizações de comércio justo perceberam que “os consumidores, sejam eles europeus, norte-americanos ou japoneses, adquirem os produtos justos e solidários somente se eles gostam: o aspecto caritativo praticamente desapareceu”87 (Guadagnucci; Gavelli, 2004, p.30). Significa dizer que a qualidade das mercadorias produzidas dentro da lógica do comércio justo evoluiu alcançando o gosto do consumidor, que compra tanto porque faz uma escolha política como também porque reconhece qualidade no produto. 87 Traduzido pela autora a partir de “I consumatori del Nord, siano essi, europei, nordamericani o giapponesi, acquistano i prodotti equi e solidali solo se piacciono: l aspetto caritativo è in gran parte scomparso” 91 Isso deu um novo alento ao comércio justo, pois os importadores e seus parceiros produtores passaram a investir muito na inovação e na qualidade dos produtos, deixando definitivamente para o passado o chá mofado e os produtos mal acabados. Ao mesmo tempo, significa a exigência de um comportamento mais profissional da parte dos produtores e uma adaptação dos produtos aos gostos e preferências dos consumidores do Norte. Essa adequação dos produtos aos gostos do consumidor, contudo, pode fazer com que haja prejuízo na identidade dos produtos88, e se apresentar como uma das contradições do movimento. Muitas vezes a adaptação exigida aos produtores é tão grande que a parceria se torna inviável. Esse é um dos dilemas do movimento: o de deixar desprovidos os grupos de produtores mais frágeis e mais arraigados às suas raízes. Nos textos, relatórios e documentos pesquisados sobre o comércio justo pouco se fala sobre o consumidor. As organizações de consumidores não têm uma ligação direta com as organizações de comércio justo. Fala-se muito em conscientizar o consumidor para que ele faça da compra um ato político, escolhendo pagar um preço superior ao de mercado por uma causa justa. Contudo, de acordo com pesquisa de Carraro et al (2006), 80% dos consumidores de comércio justo consideravam-se desinformados, o que demonstra que a atividade relacionada à informação não é eficaz. Carraro et al (idem) conclui que a maioria das Lojas de Comércio Justo estão longe de ser um espaço para a informação dos consumidores. Asti (2007) pondera sobre isso informando que “o trabalho de conscientização do consumidor vem sendo realizado lentamente, pois os próprios movimentos sociais também precisam se legitimar na sociedade civil e se consolidar financeiramente”. Sampaio; Flores (2002, p.23) consideram que “o consumidor deve se envolver, aderir e ser conscientizado. Deve-se formar um consumidor esclarecido. Deve-se estudar qual a percepção que esse cidadão (...) tem dos pequenos produtores, de seus produtos e de suas origens”. Canclini (2005) considera o consumo como aspecto de um sentimento de pertencimento em um contexto de uma sociedade organizada de modo diverso da atual. Esse consumidor bem informado e consciente consome não só bens materiais como também bens simbólicos, e adota um comportamento diferente do tradicional consumidor de superficialidades, manietado pela publicidade capitalista. Dessa maneira, afirmando identidades, esse novo consumidor estaria influenciando na construção de uma nova sociedade à qual ele deseja pertencer. Com essa atitude, o consumo se vincula 88 Conforme detalhado no item 1.5.1 Identidade Cultural: uma estratégia de valorização do produto do Comércio Justo. 92 inseparavelmente a uma forma de cidadania, cujo substrato são processos e práticas culturais. Rompe-se com o individualismo típico do consumidor egoísta da teoria econômica convencional e abre-se um estilo de consumo semelhante a um movimento social, que produz identidade coletiva a quem dele participa. A limitação para o crescimento dessa atitude de consumo está nas restrições que os meios de comunicação fazem, uma vez que são patrocinados por produtores que funcionam dentro de uma lógica diversa desta que se preocupa com as pessoas e o planeta. Entretanto, a expansão de meios alternativos de comunicação social, a internet inclusive, e a disseminação de vastas redes de intercâmbio fazem com que cada vez mais consumidores queiram ser também cidadãos, no sentido aqui empregado. Canclini afirma que consumir é participar de um contexto de disputas no que diz respeito ao que é produzido na sociedade. Crescentemente o cidadão se afirma pelo seu padrão de consumo e a ostentação é vista como um comportamento ultrapassado, que depõe contra a pessoa. Provavelmente num futuro próximo parecerá ridículo utilizar, por exemplo, bolas de futebol e tênis de marcas famosas costurados com a exploração do trabalho infantil. 2.7- Organizações internacionais formam a rede do Comércio Justo Com o crescimento do movimento do Comércio Justo, muitas iniciativas de ONGs e associações foram se consolidando e conquistando perfis específicos: algumas eram especialistas em importação, outras em certificação, outras em venda direta ao público, e tinham ainda aquelas que se caracterizavam pelo acompanhamento aos produtores e às organizações ligadas ao comércio justo. Definidas as características comuns, esses grupos buscaram se unir em plataformas específicas para harmonizar suas ações e interesses, e desta forma fortalecer e expandir o movimento. Foi a partir de meados dos anos 70 que as organizações de comércio justo começaram a se reunir informalmente em conferências a cada dois anos. Com o fortalecimento dessas iniciativas surgiu a necessidade de criar plataformas para que fossem reconhecidas formalmente. Assim, já no final da década de 80 surgem duas das maiores organizações de Comércio Justo: a EFTA (Associação Européia de Comércio Justo) em 1987; e a IFAT (Associação Internacional de Comércio Justo) em 1989. A EFTA é uma associação que reúne as 11 maiores Centrais de Importação do Comércio Justo na Europa. Já a IFAT, transformada 93 em WFTO89, é uma rede global das organizações de Comércio Justo de 70 países, voltada a melhorar a vida dos pequenos produtores através do comércio, promovendo um fórum de intercâmbio de informações e idéias (WFTO, 2009). Desde os primórdios do movimento, a venda de produtos de comércio justo se realiza nas Worldshops, as Lojas de Comércio Justo. Como já informado, tais lojas buscam associar aos produtos informações sobre a produção e as condições de vida dos produtores. O primeiro Encontro das várias lojas existentes na Europa ocorreu em 1984 e foi o primeiro passo para a articulação dos voluntários que trabalham nas Lojas de Comércio Justo. A partir dessa articulação se estabelece em 1994 a NEWS! A rede de lojas do Comércio Justo. A NEWS! se tornou uma das principais organizações do movimento coordenando campanhas européias e promovendo o intercâmbio de informações e experiências no âmbito do desenvolvimento de vendas e do trabalho de conscientização. Outra organização de significativa importância é a FLO, a Fairtrade Labbeling Organization. Criada em 1997 para coordenar 17 iniciativas de certificadoras, a FLO cumpre um papel decisivo no encontro dos produtos com o mercado. Ela trouxe, em 2003, a novidade da introdução de um selo único internacional para os produtos de comércio justo. Atualmente, a FLO é responsável por fixar padrões internacionais para os produtos de comércio justo, certificar a produção, monitorar o comércio de acordo com esses padrões e finalmente etiquetar os produtos (WFTO, 2009). Unidas as quatro grandes organizações do comércio justo na Europa, que juntas reúnem quase todas as organizações que atuam no movimento, se forma a plataforma FINE: FLO, IFAT, NEWS! e EFTA, cujo nome representa justamente a união de todas as iniciais. A plataforma FINE funciona fisicamente em um escritório situado em Bruxelas, na Bélgica, com a finalidade de Promoção e Defesa Pública para influenciar os políticos europeus. O escritório é apoiado, administrado e financiado pelas quatro organizações que o compõem, as quais serão descritas mais profundamente neste mesmo tópico. Além das instituições de comércio justo européias, existe a Fair Trade Federation (FTF), situada em Washington. A FTF é uma associação internacional formada por varejistas, 89 A IFAT foi transformada em Organização Mundial do Comércio Justo - World Fair Trade Organization (WFTO) em 15 de outubro de 2008 por 91% de decisão majoritária dos seus membros mundiais. 94 atacadistas e produtores de comércio justo espalhados por 14 países90, mas com grande foco nos Estados Unidos e Canadá. A sua história começa no final dos anos de 1970, quando as iniciativas individuais de organizações de comércio alternativo passaram a se reunir anualmente em conferências, porém, a sua fundação oficial ocorreu em 1994 (FTF, 2008). De acordo com DAWS (2008) até o início de 2008, a FTF era composta por quase 300 organizações. Tabela 6: Principais Organizações Internacionais de Comércio Justo Organização Sede Fundação Membros – 1997 FLO – Fairtrade Bonn Alemanha Labbeling Organizations International N°de Membros Organizações nacionais 20 de certificação, e redes de produtores 3 WFTO- World Culemborg – 1989 Fair Trade Holanda Organization Antes IFAT – The International Fair Trade Association Organização de >300 produtores, Centrais de Importação, Organizações de suporte ao Comércio Justo, e outras redes internacionais Mainz – 1994 NEWS! – The Network of Alemanha European World Shops Associações nacionais 13 de Lojas de Comércio Justo EFTA - European Schin op 1987 Fair Trade Geul – Association Holanda Organizações Importadoras Europa:15 Am. do Norte e Pacífico: 5 África, Ásia e América Latina: 3 África: 20 Ásia: 12 Europa: 14 America Latina: 13 Am. do Norte e Pacífico: 5 Europa: 12 Europa: 9 Organizações >200 A maioria Importadoras, nos Estados Organizações de Unidos e produtores, Canadá. Organizações de suporte Outros ao Comércio Justo, e Países: 14 outras redes internacionais Fonte: Adaptada da Tabela 3 do Relatório “Fair Trade 2007: New Facts and Figures from an ongoing success story” (DAWS, 2008) FTF – Fair Trade Federation 90 Washington - EUA 11 Países 1994 Principalmente os países do pacífico, quais sejam: Nova Zelândia, Austrália, Japão e América do Norte. 95 Segue um detalhamento de cada rede internacional de organizações de Comércio Justo, suas funções e o entrelaçamento entre elas: 1) WFTO91: Organização Mundial de Comércio Justo - World Fair Trade Organization A WFTO é a representação global de mais de 350 organizações comprometidas em ser 100% do comércio justo. Vale relembrar que a WFTO, até outubro de 2008, era a IFAT – International Fair Trade Association. A organização se reconhece como a autêntica voz do comércio justo, sendo a guardiã dos seus valores. Ela opera em 70 países dos 5 continentes, com a finalidade de criar acesso ao mercado através de campanhas, assessorias, marketing, acompanhamentos e fiscalização. Mais de 65% dos seus membros são de países do Sul, divididos entre associações e cooperativas de produtores, companhias de marketing e exportação, importadoras, varejistas, organizações de suporte, além de redes nacionais e regionais de Comércio Justo. É a única rede internacional que reúne membros com características tão diferentes entre si, envolvidos desde a produção até a venda dos produtos ao consumidor final, mas com mesmo peso em relação ao direito ao voto. De acordo com a WFTO, as organizações que a constituem se diferenciam por serem completamente comprometidas com o comércio justo, buscando erradicar a pobreza através do desenvolvimento econômico sustentável, do pioneirismo social e das políticas e práticas ambientais. Além disso, tendem a priorizar o contínuo reinvestimento em grupos de produtores marginalizados. As atividades das organizações estão centradas em três áreas de trabalho, quais sejam: desenvolvimento de mercado; monitoramento do comércio justo; e assistência jurídica. Uma das mais importantes características da WFTO é o incentivo à cooperação entre seus membros e também com outras organizações92. O resultado das parcerias é a divisão de experiências, participação em seminários, onde retornam feedback aos parceiros comerciais. Uma facilidade que a WFTO oferece aos compradores interessados é dispor de um site na internet como uma extensiva lista de produtores e seus produtos. 91 Informações coletadas no relatório“Fair Trade 2007: New Facts and Figures from an ongoing success story” (DAWS, 2008) e no site www.wfto.com , em 25/05/09. 92 Incluindo Consultoras de Negócios, Agência de Ajuda Humanitária, Empresas de Microcrédito e outras Organizações de Suporte ao Comércio Justo. 96 Para que a WFTO seja reconhecida como uma organização onde se pratica 100% os princípios do comércio justo ela dispõe de um Sistema de Monitoramento93, que tem um perfil acessível e participativo, e consiste em três etapas: 1. Auto-avaliação das suas atividades em relação aos princípios do comércio justo; 2. Revisão mútua entre parceiros comerciais; 3. Auditoria externa. Somente a última etapa é que encarece o sistema, pois a verificação externa tem um custo elevado e ocorre ou através de sorteio ou medindo a prioridade dos pedidos. Superadas as três etapas, o membro se torna apto a solicitar a utilização da marca FTO94 (Fair Trade Organization), que para a WFTO é o símbolo de uma verdadeira organização de comércio justo. Vale esclarecer que a marca FTO não certifica produtos de comércio custo, não podendo ser anexada em um produto como selo, mas apenas organizações. A WFTO se define como uma advogada que não apenas condena as injustiças do sistema de comércio internacional, mas que vai além, por promover uma verdadeira prática de mudança. É a partir da sua pequena secretaria, localizada na cidade de Culemborg, na Holanda, que a WFTO trabalha promovendo o fortalecimento de organizações em quase todo o mundo, com exceção somente da América do Norte e da Costa do Pacifico, a partir das seguintes redes regionais: • Na África: A COFTA (The Cooperation for Fair Trade in Africa), nascida em 2004, se compõe por mais de 70 organizações, sendo a maioria de grupos produtores de 20 países africanos. • Na América Latina: Existe a IFAT – LA (Associación Latinoamericana de Comércio Justo) onde estão reunidos os membros da WFTO. • Na Ásia: A AFTF (The Asia Fair Trade Forum) foi criada em 2001 e é constituída por 90 membros de 12 dos países asiáticos mais pobres. Sua secretaria encontra-se na cidade de Manilha, nas Filipinas. • Na Europa: A IFAT – Europa se iniciou em 2007. Parece curioso, mas a Europa foi a última região a se organizar dentro da WFTO como uma rede continental. 93 O Sistema de Monitoramento sofre constantes melhoramentos e adaptações para que retribua às expectativas de seus membros. 94 Marca lançada em 2004, no Fórum Social de Mumbai, Índia. 97 A concertação entre as diversas redes ocorre a cada dois anos quando ocorre a Conferência Mundial do WFTO. A última ocorreu em maio na cidade de Kathmandu, no Nepal. Enfim, a WFTO engloba no seu universo 110 milhões de artesãos, agricultores, produtores e grupos de suporte, inseridos em cooperativas, redes, marcas e negócios. 2) EFTA95: A Associação Européia de Comércio Justo – The European Fair Trade Association Na EFTA encontram-se reunidas 11 das mais antigas e importantes importadoras do comércio justo de nove países96 europeus. A missão da EFTA é dar suporte aos seus associados a fim de encorajá-los a cooperar e a coordenar seus trabalhos. Isso facilita a troca de informações e o trabalho em rede e proporciona uma determinada divisão de trabalho. Um dos melhores resultados dessa cooperação é o programa de “Atendimento ao Parceiro”, que é um sistema no qual os associados dividem entre si todo trabalho relacionado ao contato e às negociações com os seus parceiros produtores do Sul. Isso inclui da coleta de informações, controle do processo de desenvolvimento dos parceiros do Sul, coleta e direcionamento dos produtos relacionados às informações, inclusive organizando importações conjuntas entre os membros da EFTA. Vale ressaltar que essa estratégia de trabalho faz com que associados e produtores economizem tempo e dinheiro, harmonizando interesses e ajudando a evitar uma desnecessária duplicação de trabalho. Além disso, a EFTA também elabora e desenvolve projetos conjuntos, através de encontros regulares entre seus membros e da circulação de informações entre eles, dispondo de uma base de dados dos seus associados. A EFTA tem uma pequena secretaria no sul da Holanda, mas também um escritório em Bruxelas, na Bélgica, que é responsável pela execução dos projetos co-financiados pela Comissão Européia. Um desses projetos é o “Fair Procura”, iniciado em 2004 e concluído em 2007. Foi desenvolvido por quarto membros da EFTA: Fair Trade Organisatie, na Holanda; CTM, na Itália; Oxfam Wereldwinkels, na Bélgica; e IDEAS, na Espanha. O objetivo geral do projeto 95 96 Informações encontradas no site www.european-fair-trade-association.org, em 22/05/09. Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, França, Itália, Holanda, Reino Unido e Suíça. 98 era incentivar autoridades públicas e instituições européias, nacionais, regionais e locais, a aumentar suas contribuições para o desenvolvimento sustentável de compras públicas sustentáveis, ou seja, através do incentivo às políticas e práticas de Comércio Justo (EFTA, 2006). Dando seqüência aos objetivos desse projeto iniciou-se, em dezembro de 2007, um novo chamado “Public AfFAIRs: Mobilising action for Fair Trade Public Procurement”, que deve ser finalizado em novembro de 2010. 3) NEWS! : A Rede Européia de Lojas de Comércio Justo – The Network of European World Shops A News! foi estabelecida formalmente em 1994 depois de 10 anos de encontros de articulação entre voluntários de Lojas de Comércio Justo. No final de 2007 a NEWS! era uma rede composta por 13 associações nacionais de Lojas de Comércio Justo, representando cerca de 2060 lojas em 12 países. A Suíça tem duas associações participantes. Nos últimos anos a NEWS! perdeu dois membros importantes: a francesa Fedération Artisans du Monde e a italiana CTM Altromercato, que preferiram integrar-se mais ativamente na IFAT-Europe, organização regional da WFTO. O mesmo aconteceu com a austríaca ARGE Weltläden e com a espanhola Coordinadora Estatal de Comercio Justo, no início de 2008 (DAWS, 2008). A partir desse acontecimento começaram as discussões sobre o que fazia mais sentido para o futuro da NEWS!. Continuar a caminhar com os próprios passos ou integrar-se completamente na IFAT – Europe. Por enquanto a NEWS! continua a facilitar o trabalho em rede e a cooperação entre as várias lojas componentes através da circulação de informações por NEWSletter, website, workshops, e pela organização da conferência bienal de Lojas de Comércio Justo Européias. Ademais a NEWS! coordena, com outras redes européias, campanhas como a realizada entre maio de 2005 e julho de 2007, intitulada “Stand Up for Their Rights!” com a finalidade de combater o trabalho infantil, que contou com a participação de lojas de comércio justo de 11 países Europeus. Em 1996, a NEWS! criou o dia das Lojas de Comércio Justo Européias, como um dia para fazer campanha sobre um tema especifico em toda a Europa. O então IFAT abraçou esta idéia ampliando-a e criando o dia mundial do comércio justo, que 99 envolve todos os atores do comércio justo do globo. O primeiro Dia Mundial do Comércio Justo97 se realizou em 4 de maio de 2002, e até hoje se realiza anualmente no segundo sábado de maio. “BIG BANG!! A Wake Up Call for the planet” foi o nome da última edição do evento, organizada pela WFTO e ocorrida em maio de 2009. 4) FLO International98: Federação Internacional de Certificadoras de Comércio Justo – Fairtrade Labelling Organizations International A FLO é organização que coordena internacionalmente a certificação de produtos FairTrade. Sua missão é “conectar consumidores e produtores através de um selo que promove condições comerciais justas. Assim os produtores marginalizados pelo sistema convencional de comércio podem combater a pobreza, fortalecer suas posições e tomar o controle de suas próprias vidas”99. A federação nasceu em 1997 para conciliar interesses e harmonizar ações de 17 certificadoras de Comércio Justo. Um passo importante para a consolidação da FLO foi a adoção de um selo único para todas as iniciativas de certificação nacionais, em 2002. Gradualmente, essas certificadoras foram substituindo seus próprios selos pelo selo FLO, restando apenas os Estados Unidos e o Canadá com os próprios selos TransFair. Figura 7: Selo FLO Atualmente, a federação é composta por 23 organizações100 que produzem ou promovem produtos com o selo de certificação FAIRTRADE. Este selo é uma marca comercial da FLO que certifica produtos que cumprem os critérios sociais, econômicos e ambientais do Comércio Justo. Dez anos depois do nascimento da FLO, em 2007, três redes 97 Esse evento possui um site especifico: http://www.worldfairtradeday09.org/. Informações disponíveis em www.fairtrade.net 99 Tradução da autora. 100 São 20 iniciativas nacionais de certificação e 3 redes de organizações de produtores. 98 100 de grupos produtores conquistaram o direito de se associarem à FLO e têm o dever de defenderem os interesses das suas organizações de produtores tendo o mesmo peso das certificadoras, são elas: African Fairtrade Network (AFN), a Coordinadora Latinoamericana y del Caribe de Comercio Justo (CLAC) e a Network of Asian Producers (NAP). Do seu escritório situado na cidade de Bonn, na Alemanha, a FLO se enuncia com dever de: • Definir os padrões do Comércio Justo: O papel principal da FLO é desenvolver e rever padrões, que são aplicados aos seguintes atores do Comércio Justo: produtores e companhias que comercializam produtos, como importadoras, exportadores e certificadoras. • Dar suporte aos produtores de Comércio Justo: A FLO ajuda produtores a ganhar a certificação e a desenvolver oportunidades de negócios. Isso se realiza através dos escritórios locais que efetuam treinamentos, guias para a certificação e facilitam o relacionamento com compradores. • Coordenar a estratégia global de Comércio Justo: É papel da FLO validar como, junto com seus membros, melhor o impacto do seu trabalho e se tornar mais efetiva no futuro. • Promover justiça no Comércio: Junto com outras organizações internacionais de Comércio Justo, como WFTO, NEWS e EFTA, a FLO participa de campanhas sobre justiça no comércio em debates sobre comércio e desenvolvimento. Em relação à definição de padrões do Comércio Justo, os objetivos da FLO são: 1. Assegurar que os produtores recebam pelo menos o Preço Mínimo pelas suas mercadorias; 2. Providenciar o Prêmio adicional que possa ser investido em projetos que melhorem o desenvolvimento social, econômico e ambiental da comunidade; 3. Dispor de pré-financiamento para os produtores que solicitarem; 4. Facilitar parcerias comerciais de longo prazo e proporcionar um maior controle da produção no processo comercial; 101 5. Deixar claro os mínimos e progressivos critérios para assegurar que as condições de produção e comércio de todos os produtos certificados sejam socialmente, economicamente e ambientalmente responsáveis. Os padrões do Comércio Justo estabelecidos pela FLO estão de acordo com os requerimentos do Código de Boas Práticas para a Implementação de Padrões Sociais e Ambientais da ISEAL101. Isso significa que os padrões estão estabelecidos através de consultas com os maiores investidores do sistema de Comércio Justo. Em 2004, foi criada a FLO-CERT, que faz a inspeção e certifica os produtores, enquanto a FLO determina padrões e oferece suporte para que os produtores e comerciantes possam se enquadrar. Figura 8: Esquema de Oganização da FLO e da FLO-CERT Fonte: Instituto FairTrade Brasil Pela averiguação da obediência dos critérios do Comércio Justo, a FLO-CERT pode assegurar que os produtores estão seguindo os padrões sociais e ambientais e que estão recebendo o Preço Mínimo102 e o Prêmio Social. Deste modo, os consumidores podem ter a segurança de que o selo internacional Fairtrade é usado apenas em produtos, vindos de produtores e comerciantes certificados que cumprem com as exigências dos critérios do Comércio Justo. E, a fim de garantir a credibilidade do selo, o sistema de certificação do 101 ISEAL é a International Social and Environmental Accreditation and Labelling Alliance: www.isealalliance.org 102 Cabe lembrar que o Preço Mínimo é o preço assegurado pelo comprador do comércio justo ao produtor quando o preço de mercado do produto esteja menor que o preço considerado limite para a sua justa remuneração. 102 Fairtrade opera seguindo as determinações do ISO 65103. Devido a isso Renard (2004) afirma que o movimento de certificação coordenado pela FLO, que a confere a função de assegurar a garantia de qualidade dos produtos do Comércio Justo, faz com que ela detenha um grande poder, tanto comercial, quanto político, no contexto do movimento internacional. A certificação da FLO apresentou um crescimento significativo nos últimos quatro anos, quando as vendas triplicaram e produtos de centenas de organizações de produtores foram certificados. Hoje existem 872 organizações comerciais certificadas em 58 países em desenvolvimento, totalizando 632 organizações de produtores, que representam cerca de 1,5 milhões de agricultores e trabalhadores. Contando com as suas famílias e dependentes, a FLO estima que 7.5 milhões de pessoas diretamente beneficiadas pelo Comércio Justo. O gráfico abaixo demonstra o crescimento do número de organizações certificadas: Gráfico 1: O CRESCIMENTO DAS ORGANIZAÇOES COM PRODUTOS CERTIFICADOS Fonte: www.fairtrade.net Além do crescimento do número de organizações certificadas, houve um crescimento nas vendas de produtos certificados de 40% ao ano de 2004 a 2007, tendo alcançado € 2.3 bilhões de euros em 2007, conforme o gráfico: 103 ISO 65 é a norma internacional de qualidade para certificar companhias. 103 Gráfico 2: VENDAS EM MILHÕES DE EUROS Fonte: www.fairtrade.net Os produtos certificados pela FLO totalizam 18 itens: banana, cacau, café, algodão em pluma, frutas frescas, pimenta e temperos, flores e plantas, mel, castanhas e sementes oleaginosas, quinua, compotas de frutas, sucos, arroz, bolas esportivas, açúcar de cana, chá e uvas de vinho. A Certificação Fairtrade e seu sistema de preços mínimos foram elaborados para produtos que se caracterizam como commodities, basicamente os alimentares, que tem um mercado oficial e preços de referência. Tecnicamente é difícil adaptar esse modelo para produtos artesanais, que têm processos e custos de produção muito variados. Contudo, os produtos artesanais representam a maior fatia do Comércio Justo, não em termos econômicos, mas em número de produtos. São as Centrais de Exportação que dão a garantia para os cerca de seis mil produtos que estão fora da certificação FLO e que são vendidos nas Lojas de Comércio Justo. Grande parte dos produtos certificados FLO pode ser encontrada na grande distribuição, isso gera grande tensão entre os vários componentes do movimento do Comércio Justo104. Jacquiau (2007, p.2), no artigo “Ambigüidades do comércio equitativo” publicado no jornal Le Monde diplomatique, informa que: A rede McDonald’s, cujas práticas sociais violentas são notórias, oferece café equitativo “logotisado” Max Havelaar. Da mesma maneira que a Starbucks, líder mundial do expresso bar, com seus 7.500 pontos de venda divididos em 34 países, que a escritora Naomi Klein qualifica de “precursora na moderna arte do horário (de trabalho) flexível”. A Accor, cuja greve de camareiras deu no que falar durente longos meses, oferece café Max Havelaar no bar dos seus hotéis. A Nestlé, empresa mais boicotada pelos consumidores britânicos, também reivindica sua parceria com a Max Havelaar. 104 Conforme foi abordado nesse capítulo no item 2.4 - Distribuição em Supermercados: a faca de dois gumes. 104 Para Jacquiau (2007), sob o impulso dos “businessmen do charity-coffee”, o comércio equitativo transformou-se em comércio do equitativo. O autor cita o padre Frans van der Hoff, co-fundador do selo de comércio justo, dizendo da sua preocupação com relação aos rumos que tomava o movimento a partir dos anos de 1990, o padre ainda afirma que a dimensão política do movimento aos poucos foi apagada. Discordando da inserção de produtos do Comércio Justo nas grandes redes multinacionais e de outras práticas o grupo de organizações que faz parte do Espacio Comercio Justo, escreveu um manifesto contra o selo FLO de Comércio Justo105. Figura 9: Símbolo do manifesto contra o selo FLO Fonte: site http://espaciocomerciojusto.org “Uma mudança mais ampla das práticas do comércio internacional só é possível se as transações que prevalecem do comércio justo atingirem um nível suficiente para que seus novos atores sejam reconhecidos e respeitados”, é o que diz o presidente da Max Havelaar França, Jean-Pierre Doussin, em resposta ao artigo de Jacquiau. Doussin conclui afirmando que “O aumento constante das vendas de produtos certificados e o impacto constatado por estudos conduzidos nos países envolvidos nos levam a pensar que estamos no bom caminho”. A FLO alega que é preciso incorporar as práticas do Comércio Justo às práticas das empresas que fazem parte do comércio convencional para que o escopo do movimento, de acabar com a injustiça, seja alcançado (ASTI, 2007). Assim, não obstante aos posicionamentos contrários, a FLO continua licenciando empresas do mercado convencional, que não pertencem ao movimento. 105 O documento está disponível no site http://espaciocomerciojusto.org, consultado em 29/05/09. 105 a) A FLO no Brasil No Brasil a FLO inaugurou o Instituto Fairtrade-Brasil para liderar o processo de licenciar o Selo Internacional Fairtrade no mercado brasileiro. Segundo informações do próprio instituto106 para obter a licença é necessário: • • • Obter certificação Fairtrade para comerciante. (Com a FLO-CERT) Assinar contrato de licença com o Instituto Fairtrade-Brasil. (FLO até junho 2008) Investir anualmente de R$ 4.600 a R$ 7.200 na certificação, além de pagar uma taxa de licença trimestral de R$ 875 ou de 1% das vendas (o que for maior). A alta taxa de certificação limita a participação dos grupos que desejam se associar. Quando foi implantado o sistema de certificação no Comércio Justo mundial, eram os importadores e as certificadoras nacionais que arcavam com os custos de certificação e auditorias externas. Porém, com o significativo crescimento do número de grupos produtores interessados em obter a certificação da FLO e com necessidade de enquadrar seu sistema de critérios em indicadores ISO, na busca por legitimidade, a FLO vem aplicando taxas cada vez mais altas aos grupos de produção. Segundo Asti (2007), a maior exigência dos produtores não está em reduzir os altos custos das taxas, mas sim entendê-las a partir da busca por transparência de como tais taxas são definidas. Foi a partir do ano de 2005 que a FLO propôs uma iniciativa nacional buscando a construção de um mercado doméstico para os produtos de Comércio Justo. Para a implementação da iniciativa nacional da FLO no Brasil, esta procurou criar parcerias com instituições ligadas ao movimento como o Faces do Brasil, o SEBRAE e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). De acordo com Mascarenhas (2007), as parcerias não se concretizaram porque o modelo de Comércio Justo empregado pela FLO entra em choque com as propostas mais alternativas e independentes do movimento brasileiro. O modelo FLO compreende certificação de terceira parte, elevados custos para o produtor, exclusão dos produtores mais desprovidos de capital, além de envolver alianças com grandes empresas e inclusão de certificação de grandes fazendas107. A estratégia da FLO para a atração de produtores estava centrada no desenvolvimento em âmbito nacional de novos canais de comercialização, reduzindo a dependência e a 106 Apresentação em Power Point intitulada “Comércio Justo e Certificado Fairtrade” por Verônica Rúbio, representante do Instituto Fairtrade Brasil. 107 As chamadas plantations são caracterizadas por ser um tipo de sistema agrícola baseado em uma monocultura voltada para a exportação, utilizando grandes latifúndios e mão de obra barata. 106 exclusão de grupos produtores provocadas pela relação de Comércio Justo Norte-Sul. “O objetivo da FLO é criar uma iniciativa nacional, comercializando os produtos em redes de supermercados e, paulatinamente, expandir o leque desses produtos sob seu selo” afirma Mascarenhas (2007, p.155). No entanto, esse objetivo encontrou resistências por parte dos atores do movimento brasileiro, porque a FLO, ao pautar-se na certificação terceira parte e na integração ao mercado via grandes canais de distribuição, se afastou da corrente mais alternativa do movimento, convergente com o modelo WFTO e com os princípios da Economia Solidária (MASCARENHAS, 2007). A proposta de uma iniciativa nacional da FLO no Brasil não encontrou solo fértil porque os atores do movimento de Comércio Justo brasileiro já estavam articulados na construção de um Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário. Atualmente, no Brasil existem 19 grupos produtores certificados pela FLO. Dez grupos produzem café, cinco produzem sucos de fruta, três produzem frutas frescas e apenas um grupo coleta a castanha do Pará108. Desse universo apenas dois grupos são da região amazônica: A Cooperativa dos Produtores Rurais Organizados para Ajuda Mútua, de JiParaná Rondônia, que produz o café certificado; e a CAEX - Cooperativa Agroextrativista de Xapuri Ltda, do Acre, que produz Castanha do Pará. Existem no Brasil preços mínimos para os sucos concentrados de laranja, maracujá, limão, lima, goiaba, tangerina, manga, abacaxi e maracujá. Além de outros produtos como a Castanha do Pará, banana, mel, algodão, cacau, amendoim, castanha de cajú, açúcar de cana, coco fresco e café. Os preços mínimos para a soja, o açaí e o guaraná ainda estão sendo desenvolvidos (FLO, 2009). Tabela 7: Produtores Certificados por produtos Café Caratinga, Minas Gerais. Coop. Regio. Indus. e Com. de Produtores Agrícolas do Povo que Luta Laijinha, Minas Gerais. Cooperativa dos Cafeicultores da Região de Lajinha - Coocafe Venda Nova. Espírito Santo Cooperativa das Montanhas do Espírito Santo - PRONOVA Leroyville, Paraná Cooperativa Agroindustrial Solidária de Lerroville – COASOL Nova Rezende, Minas Gerais. Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Sampaio Santana da Vargem, Minas Gerais. UNIÃO DE PEQUENOS AGRICULTORES DE SANTANA DA VARGEM Nova Resende, Minas Gerais Coopervitae - Coop Agrícola dos Produtores Orgânicos de Nova 108 A Castanha do Pará foi internacionalmente rebatizada como Castanha do Brasil. 107 Resende e Região Poço Fundo, Minas Gerais. Cooperativa dos Agricultores Familiares de Poço Fundo e Regi Iúna, Espirito Santo. Coop. dos Agricultores Familiares do Território do Caparão – COOFACI Ji-Paraná, Rondônia Cooperativa dos Produtores Rurais Organizados para Ajuda Mutua Castanha da Amazônia Xapuri,Acre CAEX - Cooperativa Agroextrativista de Xapuri Ltda Sucos Montenegro, Rio Grande do Sul ECOCITRUS Itápolis, Sao Paulo Coop. dos Agropecuaristas Solidarios de Itapolis - COAGROSOL Rio Real, Bahia CENTRAL DE ASSOCIAÇÕES DO LITORAL NORTE CEALNOR Paraná. ASSOCIAÇÃO DOS CITRICULTORES DO PARANÁ ACIPAR Chapecó, Santa Catarina APACO / CCA Frutas Frescas: manga, laranja, limão, coco fresco Petrolina, Pernambuco Associação Dos Pequenos Produtores Rurais Do Núcleo VI Coribe, Bahia Associação dos Produtores do Perímetro Irrigado do Formoso Itápolis, Sao Paulo Coop. dos Agropecuaristas Solidários de Itapolis - COAGROSOL Fonte: Instituto Fair Trade Brasil 108 CAPÍTULO III Os nós do mercado e a realização da mercadoria 3.1 - A mercadoria no Comércio Justo: uma alternativa ao fetichismo? Uma das propostas do comércio justo é dar visibilidade ao produtor, valorizando suas identidades e as maneiras peculiares pelas quais sua mercadoria é produzida. A visibilidade do processo concreto que deu origem ao produto exposto nas prateleiras das Lojas de Comércio Justo e outras redes de comercialização, quando efetivada, subverte a lógica da produção de mercadoria no regime capitalista, na medida em que a substância do valor baseiase no trabalho abstrato. Ao distinguir o produtor no processo de produção de mercadorias, e ao buscar fazer de suas condições específicas de produção um apelo à escolha do consumidor consciente, a quem interessa conhecer o percurso da mercadoria, estabelece-se uma relação social, entre sujeitos não alienados, diversa da relação entre coisas que se verifica no capitalismo. O protagonismo do produtor retira da mercadoria a dominação e a mistificação de que ela se reveste no capitalismo. O objetivo desse tópico é discutir as vicissitudes desse projeto de acordo com as práticas do fair trade. No capitalismo os esforços concretos dos produtores são dissolvidos em trabalho abstrato, este a própria substância do valor, é o que informa a análise marxiana. No mercado, mas somente na realidade histórica do capitalismo, o vínculo entre produtores e consumidores, mediado pelo valor, apresenta-se como uma relação entre coisas. Reduzindose os produtos, e o trabalho real, concreto e específico que eles encerram, em trabalho humano abstrato, desconsidera-se quem produziu e como foi produzida a mercadoria. Daí decorre uma sociabilidade alienada, referenciada na mercadoria, regida pelo capital - que se move pelo afã de produzir sempre mais valor através da mais-valia - e indiferente às necessidades do produtor. Assim, no capitalismo, a mercadoria é produto do trabalho, mas não do trabalho real e concreto que a gerou, mas sim do trabalho abstrato, que desconsidera quem produziu e como. Portanto, não interessa o produtor real, nas suas dimensões culturais que lhe conferem identidade. Trata-se, de acordo com essa interpretação mecanicista que transforma produtores e consumidores em autômatos, de resumir toda força de trabalho em uma substância social comum. 109 Contudo, pontos de vista baseados em observações empíricas contestam essa visão do mercado como um mecanismo pairando acima da vida social e das realidades culturais de produtores e consumidores. Nessa linha, artigo de Abramovay (2004) desenvolve interessante análise sobre mercados e interação humana. Vistos como construção social, o autor afirma que os “mercados só podem ser compreendidos como espaços reais de confronto entre atores, cuja forma depende exatamente da força, da organização, do poder e dos recursos de que dispõe cada parte” (ibidem, p.58). Com relação ao comércio justo, pode-se argüir que o poder está primeiro com os importadores, os distribuidores e os certificadores, e então as redes de lojas de varejo, algumas das quais também importadoras, depois os consumidores do Norte abastado e os consumidores conscientes de todo mundo, que fazem suas escolhas, já que, conforme Sampaio e Prada (2003, p.46), “comprar é também uma escolha política”. Por último, nessa hierarquia de poderes, vêm os produtores do Sul, conduzidos por esse movimento de interesses onde só com muita boa vontade poderiam ser considerados atores. Eis aqui, pois, um aspecto de dominação, um dos elementos do fetichismo da mercadoria, embora não exatamente a dominação impessoal que embasa o fetichismo em Marx. Os argumentos de Abramovay, na linha de uma sociologia econômica que afirma serem os mercados estruturas sociais construídas por atores, e não mecanismos abstratos, abonam uma das motivações que sustentam o comércio justo, que propõe reconhecer e dar visibilidade ao produtor, assim como supõe um consumidor consciente, capaz de realizar escolhas que levem em conta valores éticos e culturais. O axioma de que todos os produtos se reduzem ou se igualam ao trabalho humano abstrato é assim relativizado como uma objetividade do modo capitalista de produção, pela afirmação de que “todo o mercado tende a funcionar sob a forma de nichos que supõem relações específicas e localizadas entre seus componentes” (idem, p.56). Entretanto, para além dessa visão interacionista sobre os mercados em geral, não é questão pacífica se o comércio justo é movimento social, com foco em ações políticas, ou se corresponde a um nicho de mercado, com grandes potencialidades comerciais, para onde conseqüentemente afluem grandes atores. Como movimento, em vez de nicho, a lógica principal do comércio justo é atribuir identidades e estabelecer solidariedades entre compradores e vendedores, aparte de um mercado onde, pela definição consagrada, 110 predomina individualismo e egoísmo. Como movimento, o comércio justo está imbuído de um objetivo maior, não se reduzindo ele mesmo num fim (ASTI, 2007). Essa idéia de movimento transformador confere com o que prega Lisboa (2004). Trabalhando com o tema da Economia Solidária, onde no Brasil se enquadra o Comércio Justo, o autor percebe o mercado “não abstrata e miticamente, mas como uma construção humana com papel historicamente civilizador que assume peculiaridades conforme época e lugar” (idem, p. 20). Defendendo um papel histórico para a Economia Solidária, Lisboa afirma que “assim como a ascensão do capitalismo modificou o funcionamento dos mercados, fazendo surgir a hegemonia do princípio das trocas individualistas e competitivas (onde um ganha e outros perdem), o advento da ES também está a modificar, mais uma vez, o mercado, reinstaurando as trocas cooperativas, complementares e sinérgicas onde todos ganham” (ibidem). Antes de debater até que ponto o comércio justo consegue se afirmar como a contracorrente proposta por algumas de suas tendências, vale a pena se estender um pouco mais sobre os mercados e a mercadoria. Uma primeira consideração a fazer é a de que a mercadoria e os mercados são realidades anteriores ao modo de produção capitalista, isto é, têm servido para satisfazer necessidades humanas em outros contextos históricos. Le Goff (1997, p.25) se refere à cidade como uma sociedade abundante, onde se realiza uma “festa da troca”, mostrando como, na Idade Média, a cidade era “um lugar de produção e de trocas em que se mesclam o artesanato e o comércio alimentados por uma economia monetária”. O que é próprio ao modo de produção capitalista é a economia de mercado, que funciona na chamada sociedade de mercado, cujas origens, como argumenta Polanyi (2000), está na Revolução Industrial, cujo berço, na primeira metade do século XIX, foi a Inglaterra. Até então, o sistema econômico era imerso no sistema social, que com suas tradições e normas regulava o mercado, inclusive quanto à vigência do que então se considerava preços justos, e não o inverso. Em outras palavras, na sociedade em que vivemos, inaugurada com a Revolução Industrial, "ao invés da economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico" (Polanyi, 2000, apud Lisboa, 2000). O comércio, afirma Hunt (1982, p.35), “existiu ao longo de toda a era feudal”, remontando às cruzadas que, a partir do século XI lhe deram força. Assim como grandes feiras comerciais floresceram do século XII ao século XIV com os árabes e os vikings 111 (ibidem). É só quando o mercado e a busca do lucro substituem as tradições feudais como princípios organizadores do sistema econômico e social que surge o sistema capitalista, que passa a controlar o processo de produção e cada vez mais a própria vida social. Daí a instituição do mercado auto-regulado pela lei da oferta e procura, que leva em conta apenas as mercadorias, ou coisas, e não as pessoas que a produziram. Isso considerado, a grande novidade do comércio justo seria não só reeditar uma forma de mercado socialmente controlada, mas também de considerar e fazer justiça aos produtores do Sul, que mais que apenas realizar valores de troca querem reproduzir suas vidas culturais e materiais. Vale dizer que o mercado, essa instituição onde o comércio justo aninha-se, de acordo a versão de nicho, ou contesta, na forma auto-regulada, na versão de movimento, precede e pode transcender a realidade histórica do capitalismo, podendo-se assim pensá-lo como algo a ser construído e estruturado conforme éticas e práxis diferentes das que despersonalizam as relações entre produtores e consumidores. Ou seja, é válido imaginar “mercados como produtos da interação social”, o que é muito diferente do mercado no capitalismo, proclamado no singular, como “um mecanismo abstrato, acima da realidade e da vida social dos atores” (ABRAMOVAY, 2004, p.59). Portanto, enquanto nicho, o comércio justo propõe uma construção social teoricamente viável, e, ademais, politicamente avançada, enquanto movimento social. Em outras palavras, de acordo com a leitura de Lisboa sobre Polanyi, “advogar o primado da sociedade sobre a economia como condição da sobrevivência da humanidade representa o fim da sociedade de mercado, o que ‘não significa, de forma alguma, a ausência de mercados" (LISBOA, 2000, p.8). Os princípios do comércio justo na versão de movimento condizem com essa forma de mercado transcendente à ordem capitalista, onde se verifica o encontro de produtores e consumidores exercendo livremente suas opções, o que é diferente da condição de meros agentes econômicos encapsulados na férrea lei da oferta e procura. O que distingue o modo capitalista de produção não é a aparência de que (conforme diz Marx logo no início do capítulo sobre a mercadoria em O Capital) ele se constitua em um “imenso arsenal de mercadorias” (MARX, 2001). A especificidade do capitalismo está na forma como se processa a produção de mercadorias nesse regime. Ou seja, o trabalhador trabalha sob controle do capitalista, significando que o seu trabalho não lhe pertence. Além disso, o produto do trabalho é propriedade do capitalista, e não do produtor imediato, do trabalhador. Esse regime de produção, que Polanyi compara a um moinho satânico, “que 112 triturou os homens transformando-os em massa” (POLANYI, 2000, p.51), retira do produtor direto qualquer autonomia. Por outro lado, o comércio justo propõe conferir ao produtor alguma capacidade de gestão sobre o que produzir e de que forma. Assim como propõe garantir a ele algum grau de determinação dos preços a serem estabelecidos por seus produtos no mercado. O capitalista, para realizar a produção, compra tanto a força do trabalho como os meios de produção. No modo capitalista, não basta produzir mercadorias, se requer também a produção de mais-valia. Não basta produzir valor, importa produzir valor adicional, maisvalia. Nesse sentido o comércio justo se propõe como uma alternativa - não tanto na escala e limites de um nicho, mas como movimento - à lógica dominante na produção de mercadorias. Ou seja, se na sociedade de mercado o objetivo é produzir mais valor e acumular ganhos monetários, o comércio justo teoricamente subverte essa lógica ao trabalhar o preço a ser pago ao produtor conforme critérios que interessam à reprodução cultural e material da sua própria vida. Para tanto o comércio justo faz valer conceitos como os de preço justo e preço mínimo. Vale acrescentar que o consumidor consciente estaria disposto a pagar um prêmio ao produtor, na forma de um acréscimo de preço, justificado como recurso para a melhoria de vida nas comunidades onde se realiza a produção. No comércio justo, pelo menos discursivamente, o produtor, a partir das suas comunidades e organizado em associações e cooperativas, é dono do seu tempo e do resultado do seu trabalho. Portanto, nessa condição ele foge da alienação típica do modo capitalista. Em que medida isto se confirma na comercialização do seu produto, analisando as práticas efetivas, e até que ponto o produtor realmente comparece como ator nas intermediações desse processo, essas questões estão no cerne da discussão desse tópico. Se o mercado como construção social é algo factível, vale a pena apontar contradições que frustram a idéia do produtor como sujeito nos nichos de mercado criados pelo comércio justo. O confronto entre discurso e práticas é relevante porque o comércio justo representa algo viável dentro de um ideal de mundo novo, e é preciso cuidar para que suas práticas não se deteriorem em função de relações de poder desequilibradas dentro do nicho. Por outro lado, como movimento, o comércio justo representa uma expectativa porque comparece como um instrumento de superação de uma sociedade iníqua que combina crescente abundância com pobreza cada vez mais disseminada. Isso, formulado de outra maneira, corresponde à tese de Galeano, segundo a qual o desenvolvimento produz o 113 subdesenvolvimento, lógica perversa que tem tudo a ver com o funcionamento do mercado capitalista. O próprio Galeano reporta uma fala de um coordenador da Aliança para o Progresso, datada de 1968, que dizia “hoje, falar de preço justo é um conceito medieval. Estamos em plena época do livre comércio” (GALEANO, 1997). Lisboa (2000) corrobora a tese ao afirmar: “a superação da pobreza reside no fortalecimento da autonomia culturaleconômica das comunidades (empowerment) ditas carentes e na melhora do uso comunal dos comuns recursos naturais, ao contrário da proposta do paradigma econômico vigente de atrelar a sobrevivência dos pobres ao crescimento da economia industrial”. Contudo, nas hostes do comércio justo, há uma luta interna entre os que buscam de fato revelar o sujeito homem por trás da mercadoria e os que aderem a pragmatismos mercadológicos, deixando de lado éticas que estão na própria razão de ser do movimento. Ou seja, diferentes tendências concorrem entre si dentro do movimento original, que arrisca se tornar um simples nicho de mercado, muito do resultado desse embate dependendo do discernimento do consumidor consciente. A mercadoria no comércio justo: uma alternativa ao fetichismo? é levantada em função de práticas contraditórias que supõem que, mesmo no comércio justo, a mercadoria continue a exercer seu fetiche, faz sentido voltar à mercadoria em Marx. A despeito de soluções de marketing afeitas ao mercado maior, ou ao campo no sentido que Bourdieu dá à palavra, onde se insere o nicho, a mercadoria no comércio justo quase sempre foge da condição mistificadora de encobrir o produtor por trás dela. Isso porque a própria identidade do produtor representa um apelo de vendas. Contudo, casos há em que o produtor é deliberadamente omitido em função de uma marca com mais apelo comercial. E não se pode também afirmar a ausência de dominação no ambiente do comércio justo, onde, entretanto, é possível distinguir bem os atores nas relações de poder a que se submete o produtor. Não se trata, pois, daquela dominação impessoal típica exercida pelas relações econômicas sobre os agentes da sociedade capitalista, conforme a formulação marxista, mas, de todo modo, no ambiente do comércio justo, sob a aparência de igualdade entre os que dele participam, há de fato uma essência de desigualdade. O comércio justo, pressupondo relações diretas, pretende revelar e evidenciar o trabalho humano por trás da mercadoria. Propõe valorizar o trabalho humano e o fazer reconhecido através das mercadorias produzidas, com a colocação de selos de origem, etiquetas e rótulos que informam como se dá o processo de produção. Porém, apesar da 114 eficiente organização voltada à materialização de um discurso bem definido, ocorrem fatos contraditórios à lógica discursiva do comércio justo, fatos estes mais coerentes com as práticas comerciais tradicionais. Como exemplo, podemos citar a substituição de logomarcas das cooperativas dos produtores por marcas européias mais conhecidas e por isso consideradas mais fortes no mercado109. Essa prática faz com que haja prejuízo de um dos conceitos básicos do comércio justo, que é a valorização do produtor e das suas origens. Essa mistificação rompe a relação de pertencimento da mercadoria para com um lugar, fundamental para a permanência do produtor ali, onde ele produz, com a sua tipicidade e seus valores de territorialidade. Além disso, para alcançar o consumidor, muitas empresas e centrais de importação deixam para trás um dos princípios que compõem a razão de ser de uma das ideologias - no sentido gramsciano de concepção de mundo - que caracterizam o comércio justo: a transparência. Informações sobre a origem dos produtos e suas respectivas organizações de produtores dão lugar a sofisticadas embalagens com motivos étnicos estilizados e a selos próprios. Devido ao crescimento da demanda acima da capacidade de operação das certificadoras e das distribuidoras especializadas, muitos selos são criados e apostos a produtos cuja origem não é bem identificada, seja por distribuidoras, seja por grandes redes de varejo, para que esse novo nicho de mercado seja usufruído. Cada vez mais, parece ocorrer uma diminuição de informações sobre a destinação dos lucros, fazendo com que a relação mais direta possível entre produtor e consumidor, caracterizada como a lógica “oficial” do comércio justo, esteja perigosamente ameaçada. Acrescenta-se a isso o fato de que “muitos movimentos investiram demais em marketing, em lojas, em administração, em desenvolvimento de marcas e agora não estão conseguindo pagar as próprias contas, acabando por tomar atitudes contraditórias com os próprios princípios do comércio ético e solidários para poder equilibrar o caixa, como cobrar auditorias dos produtores (...) entre outras práticas”, (SAMPAIO; PRADA, 2003 p.48). Como se sabe, na análise do fetichismo, pode-se considerar dois aspectos: o da mistificação e o da dominação. No primeiro as relações entre os homens adquirem uma forma fantástica de uma relação de coisas entre si; no segundo aspecto, o movimento social toma a forma de um movimento de coisas que conduz os homens. O fetichismo da mercadoria surge 109 É o caso da empresa francesa AlterEco, cuja estratégia comercial é vender os produtos do Comércio Justo em grandes redes de varejo usando a sua própria marca. A AlterEco é registrada na FLO, é membro do WFTO e faz parte da plataforma francesa de Comércio Justo. 115 na situação em que a economia política burguesa desistoriciza o valor, que é uma realidade histórica específica, considerando a forma impessoal das relações sociais capitalistas como um estado de coisa natural (GERAS, 1977, p.268-269). A rigor, as práticas contraditórias do Comércio Justo não se enquadram nestas definições. O que não exclui a necessidade de desnaturalizar as relações de dominação que ocorrem dentro de um ambiente que estabelece uma hierarquia de poderes, onde dificilmente o produtor territorializado no Sul do mundo tem o poder de agência, no sentido que Giddens (1989) dá à palavra, de ser um ator capaz de influenciar o mundo social. As contradições do comércio justo não excluem o risco de perda da identidade dos produtos, na medida em que os interesses econômicos que controlam o comércio justo impõem a forma típica impessoal do capitalismo. Isso sim, ocorrendo, significaria uma sentença de morte, ao fazer com que a forma idealista do fair trade recaísse na mera condição de ser apenas um nicho dentro do campo do comércio internacional. Até que ponto isso é uma tendência ou se ocorre apenas como episódios isolados dentro de uma rede que aparentemente luta para se preservar segundo seus ideais de origem é uma questão que o tempo vai responder. Buscando uma resposta ponderada à questão, podemos dizer que o comércio justo por princípio busca promover a transparência e o controle social sobre os mercados que ele delimita, ma non troppo, como diriam os italianos, considerando-se as práticas. Assim como Lisboa (2004) em suas considerações sobre a Economia Solidária, podemos dizer que também no Comércio Justo, na prática, algum grau de fetiche sempre há. Na estreita fronteira que separa movimento social de nicho de mercado, o comércio justo se equilibra. Nesse contexto, qualquer esforço para incluir produtos da Amazônia na rede do comércio justo irá requerer planejamento para um eficaz trabalho de qualificação de produtos e de produtores. Enquanto comércio que é, o problema central será sempre o da realização da mercadoria, o que deve implicar inclusive certos esforços de marketing, melhor dizer estudos para a realização de vendas em um mercado de consumidores especiais, porque bem informados ideologicamente. Nessa ótica, pode significar uma estratégia interessante para inserir com sucesso mercadorias nesse mercado peculiar enfatizar a identidade territorial dos produtos, sua origem amazônica. A imagem do caboclo produtor ou do índio, no seu lugar de trabalho acrescenta um determinado valor aos produtos. Assim, é parte dessa estratégia comunicar ao mundo a luta de movimentos que buscam garantir territórios, onde se produz 116 com qualidade em relação cordial com a natureza. O consumidor consciente irá valorizar tanto o produto como o percurso alternativo de sua produção, em uma periferia que tradicionalmente exporta commodities, isso sim um mercado que conjuga no mesmo processo desenvolvimento e subdesenvolvimento. Uma opção pelo comércio justo como movimento, portanto. 3.2 – Destrinchando o Preço Justo? O movimento do Comércio Justo nasceu com o escopo de fazer justiça no comércio, através do pagamento aos produtores de um preço justo pelos seus produtos. Porém, até hoje não existe uma definição clara do que consiste o preço justo ou mesmo uma formulação difundida entre os produtores do que seja isso. Preço Justo, como assim? No comércio justo o preço justo pressupõe uma cifra que garanta a satisfação das necessidades de reprodução material e cultural dos produtores, ou seja, que garanta direitos a eles, como acesso a uma alimentação saudável, habitação, saúde, educação e lazer. A questão do preço justo está tão entranhada no conceito de comércio justo que, seja qual for a organização que trabalhe sob seus critérios, esta acaba contemplando em seus estatutos o respeito ao preço justo como uma das principais normas para a efetivação da compra. Para a WFTO (World Fair Trade Organization), no V princípio do movimento110, o preço justo é aquele que nos contextos regionais e locais foi definido através de diálogo e participação. Além dos custos de produção ele deve permitir uma produção socialmente justa e ambientalmente correta. Isso promove pagamento justo ao produtor levando em consideração a igualdade entre o trabalho de homens e mulheres. Importadores garantem pagamento imediato a seus parceiros e sempre que possível ajudam produtores a pré-financiar a produção. (WFTO, 2009) Essa é uma definição um tanto vaga, na qual o preço justo é decidido através do diálogo com os produtores. Já a Transfair USA, que é membro da FLO International, o define de forma ainda mais reduzida, dizendo que “o preço justo significa que os agricultores podem alimentar as suas famílias e que as crianças podem ir à escola em vez de trabalhar nos campos”. Na verdade, o preço justo deve permitir uma melhor distribuição de valor nas cadeias produtivas, onde os critérios para a formação de preços sejam estabelecidos através de acordos. 110 Conforme o elenco de princípios informados no I Capítulo, especificamente no tópico Princípios Norteadores. 117 Razeto (2007), no artigo “Aportes a la Reflexión sobre ‘precio justo’”, considera que existem dois enfoques em relação à formação de preços: o economicista e o ético111. A abordagem economicista considera que os preços dos bens e serviços, bem como o dos fatores produtivos, são estabelecidos pelo mercado de forma automática, independente da vontade das pessoas, se baseando em leis objetivas como as da oferta e da procura, da eficiência e da competência. Nesse enfoque, os produtores para incrementar suas vendas devem aumentar sua eficiência e tornarem-se mais competitivos. A abordagem ética considera que o mercado, da maneira em que é constituído, é injusto, pois castiga sempre os mais pobres, favorecendo o detentor de dinheiro e capital, e prejudicando constantemente trabalhadores e consumidores. Por isso, essa abordagem se preocupa em introduzir a ética na fixação dos preços, para que eles sejam justos, através de transações dentro de um comércio solidário (idem). Para a determinação dos preços justos se lança mão de uma série de critérios e normas como os custos de produção, a necessidade de pagamentos dignos, a criação de estímulos que favoreçam os mais fracos, entre outros. De acordo com Razeto (2007) o enfoque economicista é consistentemente racionalista, enquanto o enfoque ético é marcadamente voluntarista. O primeiro considera que o preço é algo inerente ao produto e que tem um valor de mercado. Já o enfoque ético considera que o preço do produto pode ser modificado pela decisão do sujeito que fixa o preço. O autor propõe um terceiro enfoque, chamado de teoria econômica compreensiva, na perspectiva de uma teoria capaz de fundamentar a proposta de uma economia de solidariedade. Este enfoque considera a economia como um processo socialmente construído e o mercado como um sistema de relações sociais no qual os participantes tomam decisões de acordo com suas concepções éticas, seus valores, seus conhecimentos sociais, e suas opções culturais e espirituais. De acordo com essa abordagem os preços se formam dentro de uma relação entre sujeitos e são estabelecidos no momento em que ambos os participantes, de uma relação de compra e venda, chegam a um acordo de preço conveniente para todos. Assim, no Comércio Justo prima-se pela definição de uma cifra que leve em consideração os aspectos morais relacionados aos aspectos econômicos, e que não seja simplesmente um resultado de um cálculo de custo e preço. Deste modo, o preço justo não é 111 Chamado por ele na sua língua, a espanhola, de eticista. 118 definido pelas forças de mercado, mas sim pela consideração das necessidades dos produtores que obedecem aos critérios do Comércio Justo (ASTI, 2007). Esse modo diferenciado de definir preços possui um caráter mais distributivo que concentrador (VOITURIEZ at al, 2002 apud ASTI, 2007). Aqui não é um sujeito individual que decide a que preço comprar ou vender um produto, mas tudo se define e se estabelece por uma negociação. Na verdade, o preço justo tem o papel de redistribuir valor nas cadeias produtivas, onde os critérios para a formação de preços sejam estabelecidos através de acordos (ASTI, 2007). È como considera Paul Singer (s/d, p.1) A justiça ou injustiça nos preços consiste no montante de renda que eles determinam para cada agente. Não tem sentido falar de preços mais ou menos justos, a não ser em função das rendas que eles determinam para diferentes agentes. A justiça que almejamos está na relativa igualdade de ganhos dos vários agentes que participam do mercado. Tal distribuição que caracterizaria uma igualdade de ganhos das várias partes envolvidas na cadeia produtiva, no Comércio Justo não é alcançada através de fórmulas prontas. Mas sim através de negociações que nem sempre são fáceis. Um exemplo é o que acontece com o guaraná dos Sateré-Mawé112, relatado por Maurizio Fraboni113, assessor técnico do projeto Guaraná. Os Sateré-Mawé têm como parceiro comercial a gigante importadora italiana de Comércio Justo CTM Altromercato. Para Maurizio, na CTM, por exemplo, apesar de ser um grande parceiro, a máquina é complicada porque deve ser negociado o preço sem se negociar a quantidade, sem negociar o marketing, sem negociar a cooperação, sendo que cada coisa tem que ser discutida com uma pessoa encarregada diferente. Enfim, para ele, acaba sendo mais fácil tratar com um parceiro empresarial de comércio “não justo” tradicional, mas com quem é possível negociar definindo juntos uma estratégia, já que tendo poder de negócio é possível fechar um bom acordo. Ainda Maurizio considera que: no Comércio Justo temos muitos direitos, mas não temos a possibilidade de montar uma estratégia bem feita, porque a máquina é ‘irracional’, extremamente burocrática, porque é o produtor que decide o preço. Porém na maioria das vezes o produtor não tem conhecimento nenhum do comércio lá fora, do que ele pode negociar. 112 113 Projeto que será detalhado no último capítulo. Depoimento recolhido em trecho de entrevista semi estruturada transcrita, no segundo semestre de 2007. 119 Geralmente ocorre que, depois de um longo processo, os produtores cheguem à definição de um preço adequado. Informam finalmente à CTM e em seguida eles esperam que na CTM se reúna uma comissão, que por sua vez acaba chegando à conclusão de que o preço proposto é justo, mas é caro, e assim todo o processo deve ser recomeçado. “Não temos que ter medo de fazer uma negociação, dentro de padrões, mas afinal de contas é mercado. É grande o peso ideológico por trás, o que acaba sendo um empecilho, porque essa ideologia, no caso guaraná é inadequada à realidade” afirma Maurizio. Os Sateré Mawé e a equipe do projeto não podem trabalhar com a CTM uma estratégia de promoção do produto. De acordo com Maurizio, a CTM vende o guaraná dos Sateré, sem informar que ele é considerado o melhor do mundo e ainda assim conseguem vender a um preço baixo para favorecer nichos de consumidores. De acordo com Maurizio, é indispensável informar aos consumidores sobre a legitimidade do guaraná dos Sateré-Mawé, para entenderem a verdadeira diferença entre esse guaraná e aqueles vendidos nas farmácias, que tem uma qualidade muito inferior. Portanto, nas negociações referentes a definições de preços justos para produtos, devese levar em consideração não apenas os critérios relacionados às garantias de direitos mínimos dos produtores, mas sim a possibilidade da valorização do produto em si, prestando ao consumidor todas as informações sobre ele, para que ocorra um verdadeiro incremento nas vendas. Os produtores ao mesmo tempo em que buscam melhorar suas produções, desejam também que, aliada a essa melhoria, seja desenvolvida uma estratégia de marketing que garanta ao produto uma justa agregação de valor. Não é simplesmente o pagamento de um preço superior ao do mercado por pura solidariedade. Aqui voltamos ao ponto que foi discutido no tópico “Os produtores”, no capítulo anterior: os produtores não querem ser vistos como “coitadinhos”, mas lutam para que o valor do seu produto seja reconhecido, seja porque é biológico, tem uma forte raiz cultural, um modo tradicional e único de se produzir, entre outros aspectos. Há que se considerar que a questão de definição de preço para o pequeno produtor é difícil até mesmo quando se trata de estabelecê-lo para o mercado convencional. O Sebrae, dentro do leque de cursos que dispõe, oferece o curso “Formação de Preços”. A micro produtora de biojóias114 Maria Cardoso, de Abaetetuba115 (PA), afirma que já havia feito 114 As biojóias são caracterizadas pela união de metais preciosos a outros elementos naturais como sementes, madrepérolas, cascas de madeira, entre outros. 120 quatro vezes esse curso e que até então não sabia como definir o preço para seus produtos com propriedade, já que cada peça é única, implicando um tempo de trabalho especifico e insumos diferenciados. Paul Singer, no artigo “O Preço Justo no Comércio Justo”, nos oferece reflexões de como poderia ser formado um preço justo. De uma forma simplificada, o autor nos explica que “o ganho de cada agente resulta da diferença entre os preços que paga ao vendedor e os que cobra do comprador”. Ele decide livremente abstrair outros fatores que interferem no ganho dos agentes, como a produtividade de cada um, a tecnologia que emprega, etc., supondo que estes sejam fixos, sendo os preços os únicos fatores variáveis. Considerando implicitamente a teoria marxista de que o valor é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário, Singer supõe que todos os agentes sejam ao mesmo tempo produtores e consumidores e que, deste modo, os preços seriam justos se fossem proporcionais ao número de horas de trabalho que cada um consumiu. Mas, ainda há que se considerar os insumos produzidos por outros agentes. Então os preços para serem justos deveriam resultar da soma de horas trabalhadas pelo produtor final e das horas trabalhadas pelos produtores dos demais insumos requeridos pelo produtor final. Nesse intrincado processo de formação de preços, difícil será o produtor, que em geral não entende de economia avançada, acompanhar o raciocínio. Contudo, Singer ainda considera que este é um modelo simplificado de definição de preços justos e que ademais é preciso incluir o custo de capital116, considerando que ele é qualitativamente diferente do custo de trabalho. Ele lembra que dentro dos valores da Economia Solidária só o trabalho produz valor, portanto se poderia argumentar que o custo de capital não deveria ser cobrado. Mas, como o próprio Singer (s/d, p.3) afirma: Suponhamos que queiramos desenvolver uma metodologia de determinação de preços justos para um sistema nacional de comércio justo e solidário, abrangendo dezenas de milhares de empreendimentos de economia solidária (EES), a grande maioria sendo desprovida de capital próprio. Esta é provavelmente a situação da economia solidária no Brasil de hoje. Estes EES ou alugam o maquinário e instalações ou os estão adquirindo através de financiamento a juros. De uma forma ou de outra essa massa de EES tem um custo de capital nada desprezível, que dificilmente pode ser ignorado quando do cálculo dos preços 115 Em depoimento espontâneo em 2008. Sendo o sistema capitalista, é preciso distinguir o custo de capital de depreciação. O capitalista não cobra somente pela depreciação, porque deste modo não teria lucro, que deve ser proporcional ao valor do capital. 116 121 Além disso, Singer defende que é preciso considerar no cálculo de preços justos os custos que incidem em proporções diferentes sobre o valor produzido pelas horas de trabalho. O processo pode envolver outros custos como os royalties pelo uso de patente ou marcas, ou mesmo a contratação de profissionais especializados como consultores financeiros, jurídicos, de marketing, entre outros. Aqui retomamos com uma declaração de Maurizio, do projeto guaraná: Por exemplo, a questão do marketing: o movimento Comércio Justo não faz marketing dos produtos, mas sim do próprio Comércio Justo. Porém os produtores precisam explicar o que fazem, como produzem, qual o significado do produto, como atuam em prol da preservação da Amazônia e as ações sociais desenvolvidas por eles. Não é somente pagar aqueles 50% a mais para tornar a vida deles mais digna, é valorizar a questão da ecologia, da questão do banco genético do guaraná, da preservação da Amazônia que significa, dentro desse contexto, fazer uma barreira à chegada das multinacionais com clones das plantas, com os transgênicos, que acabam por destruir todo o potencial de produção das comunidades e também os mercados que elas atingiriam. Ou seja, Maurizio fala de custos que não estão sendo considerados para a definição do preço justo, e que Singer acima afirmou não poderem ser ignorados. Mas, aqui encontramos uma nova dificuldade: como fazer com que o preço, levando em consideração essa gama de aspectos, ainda seja competitivo no mercado? Voituriez at al (2002 apud, ASTI, 2007) afirma que no preço justo está inserida a questão da redistribuição de valor para os pequenos produtores, que acaba reduzindo riscos e incertezas e aumentando as possibilidades de aquisição de financiamentos, desenvolvendo assim sua capacidade tecnológica e de produtividade, o que conseqüentemente faz com que haja a tendência de o preço justo ser maior que o de mercado. Apesar dos produtos de Comércio Justo tenderem a ter preços mais elevados, cada vez mais se consegue um equilíbrio que faz com que esses produtos se tornem mais competitivos. Se a princípio as pequenas organizações de Comércio Justo sofriam para encontrar meios de reduzir custos, provendo os produtores de uma melhor remuneração, e não onerando o consumidor final, atualmente as importadoras cresceram e se tornaram mais eficientes, estabelecendo parcerias e realizando importações conjuntas. Aliado a isso houve o crescimento da economia de escala, com um significativo melhoramento da produção, que dotam os produtos de grande qualidade, como a produção orgânica e biológica. Tudo isso faz com que o preço ao consumidor final não esteja fora da realidade do mercado. Nesse caso o preço justo pressupõe um preço mais próximo do seu valor real, ou seja, significa que o 122 consumidor de um produto do comércio justo não encontra preços distorcidos pela especulação, por intermediários desnecessários, ou por outros fatores inflacionários. Bem, certamente ao fim desse tópico não parece claro que o preço justo no Comércio Justo tenha sido destrinchado. Essa discussão é por demais complexa e inconclusiva, inclusive para economistas que lidam com o tema. O que dizer então para o produtor que não reúne informações e conhecimentos para cálculos tão extensos e detalhados. Trata-se, em suma, de uma discussão essencialmente teórica. No sentido de faciliar a interlocução entre as partes, é possível que mais ético e racional seja considerar a formação do preço justo com dois componentes básicos. A necessidade de reprodução do produtor, o que inclui suas condições de vida e a possibilidade dele agregar novas tecnologias e melhorar a qualidade do seu produto, e a possibilidade de realização da mercadoria no mercado, porque afinal de contas não faz sentido produzir para a mercadoria mofar nos estoques ou prateleiras. Se um dos pilares do comércio justo é a ética, um atributo importante no processo de formação de preços é o controle disso por parte do produtor. Felizmente as práticas, mesmo aquelas que enfrentam muitas burocracias, são menos intrincadas que essas discussões teóricas, ainda que o resultado do diálogo entre produtor e comprador (aqui entendido como as organizações do Comércio Justo que realizam as importações), que efetivamente define o preço a ser praticado, encerre toda uma possibilidade de interpretações e cálculos. Conforme Guadagnucci; Gavelli (2004), para o Comércio Justo nos dias de hoje, o preço justo varia de produto a produto. Apenas alguns produtos com selo FLO dispõem de um preço base, que faz referência às condições de vida locais dos produtores. Em todos os outros casos, que perfazem a maioria dos produtos, os preços são acordados entre os importadore e os produtores, e nem sempre as condições solicitadas pelos produtores são acatadas. Ocorre muitas vezes de os importadores realizarem compensações, que afinal recaem sobre alguns produtores, que acabam por receber menos por seus produtos, para ajudar outros, especialmente produtores latino-americanos, que enfrentam custos superiores e condições de produção adversas. Isso coloca, conforme a expressão dos autores, uma possibilidade de as importadoras “pilotarem” os preços. Enfim, mais do que racionalidade, vigora no Comércio Justo o voluntarismo na formulação dos preços. 123 3.3 – O papel do Estado: conectando o consumo à produção familiar As atuais políticas públicas direcionadas ao desenvolvimento da pequena produção brasileira afirmam o papel do Estado como provedor de bens públicos relacionados às necessidades da população. Devido ao poder de controlar o mercado das compras públicas, o Estado é um sujeito capaz de elaborar sistemas socioeconômicos que correspondam ao fortalecimento da agricultura familiar e que garantam a segurança alimentar e nutricional da sociedade. A elaboração destes sistemas e a implementação de políticas públicas podem estar perfeitamente em sintonia com os princípios da Economia Solidária e do Comércio Justo, se primarem pela união de justiça social, preservação ambiental e desenvolvimento econômico. No Brasil, dentre os programas desenvolvidos pelo Governo, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) executado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) merece destaque. Existem outros Ministérios executando Programas de apoio à produção e consumo no País, como o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), através do PRONAF, e o Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal (MMA). Além é claro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), através da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), conforme foi detalhado no primeiro capítulo e que juntamente com o MDA e outros parceiros desenvolve o Programa de Promoção do Comércio Justo e do Consumo Consciente: feiras em rede de economia solidária e agricultura familiar no Brasil, o qual será detalhado iniciamente, pois é o mais específico para o desenvolvimento do Comércio Justo. Optou-se aqui por abordar logo em seguida, exclusivamente o PAA, coordenado pelo MDS, porque em termos de compras públicas é esse o programa que tem gerado mais frutos para a Agricultura Familiar. O apoio à realização de Feiras em Rede faz parte das atividades previstas na Ação de Promoção do Consumo Responsável e Comércio Justo que compõem o Programa Economia Solidária em Desenvolvimento tem o apoio do Ministério do Trabalho e Emprego/Secretaria Nacional de Economia Solidária (MTE/SENAES), Ministério do Desenvolvimento Agrário/Secretaria de Desenvolvimento Territorial – Secretaria de Agricultura Familiar (MDA/SDT/SAF). Além de outros parceiros, como o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), Fundação L’Hermitage/Instituto Marista de Solidariedade (IMS) e a Fundação Banco do Brasil – FBB (BRASIL, 2007). 124 De acordo com o Termo de Referência “Feiras em Rede de Economia Solidária e Agricultura Familiar no Brasil” (2007, p.2), as Feiras em Rede têm por objetivo promover e estimular o consumo de bens e serviços produzidos pelos empreendimentos de economia solidária e agricultura familiar, tendo em vista a capacidade que possuem estes empreendimentos em gerar trabalho e renda e ao mesmo tempo distribuírem de forma justa a riqueza que geram. Além disso, o documento considera que estes empreendimentos participam ativamente na construção de uma nova dinâmica para o desenvolvimento econômico e social do país. Ainda o Termo de Referência considera que as Feiras em Rede constituem-se em processos organizativos do movimento de economia solidária, realizadas de forma participativa, coletiva e autogestionária, desde a concepção do projeto até a avaliação dos resultados, e integram cinco dimensões estratégicas: 1. A dimensão econômica traduz-se em ser um espaço de comercialização, tanto para consumidores diretos como entre empreendimentos e no fechamento de acordos de negócios para além do evento. Com isso, contribuem, por um lado, para ampliar os canais de comercialização e estimular a fidelidade do consumo dos produtos da Economia Solidária e Agricultura Familiar, e, por outro, resgatar a relação personalizada entre produtores/as e consumidores/as; 2. Na dimensão de fortalecimento da organização dos empreendimentos da Economia Solidária e Agricultura Familiar, estes eventos contribuem na organização por ramos de atividade, por redes de colaboração solidária, por cadeias e sistemas produtivos, e entre estes, na perspectiva de fortalecer a organicidade política e econômica da Economia Solidária e Agricultura Familiar em sua base territorial; 3. Já a dimensão da divulgação traduz-se na ampliação do conhecimento do conceito de Economia Solidária (seus princípios, valores, plataforma, produtos, serviços e localização para futuros negócios) para um público cada vez mais amplo no âmbito de realização dos eventos. Os eventos têm uma identidade visual nacional que favorece a divulgação, bem como fortalecimento da Campanha: Economia Solidária: outra economia acontece; 4. A dimensão de formação concretiza-se tanto na realização de oficinas, plenárias, reuniões e seminários com as diversas temáticas técnicas e políticas, quanto na própria preparação e execução das feiras, em rede, com forte protagonismo dos atores envolvidos: empreendimentos solidários e agricultura familiar, entidades de assessoria e gestores públicos; 125 5. A dimensão ambiental manifesta-se na preocupação com relação aos impactos do evento durante a sua organização e realização, que perpassa o uso de materiais não descartáveis, existência de sistemas de coleta e reciclagem, fechamento de ciclos de uso de água, a minimização do uso de embalagens, produtos químicos entre outros; Tais dimensões estratégicas desdobram-se em doze características específicas, conforme, segue: 1. Protagonismo dos empreendimentos na construção, divulgação, execução e avaliação da Feira; 2. Espaço de exposição e comercialização de produtos e serviços dos empreendimentos de economia solidária e da agricultura familiar; 3. Espaço para rodada de negócios entre os expositores e os diversos compradores; 4. Espaço de formação e informação aos participantes dos empreendimentos por meio de oficinas temáticas; 5. Espaço de estímulo e divulgação do Consumo Responsável dos produtos e serviços em exposição; 6. Exemplo de inclusão efetiva de responsabilidade ambiental em todas as dimensões da feira; 7. Espaço de publicização e divulgação das ações das várias instituições (governamentais ou não) e grupos da economia solidária; 8. Espaço de difusão conceitual e filosófica da economia solidária para o público em geral; 9. Espaço para a realização de atividades artísticas e culturais por atores oriundos dos movimentos organizados de cultura popular e regional, economia solidária e agricultura familiar; 10. Espaço de realização de atividades de trocas solidárias com o uso de moedas sociais; 11. Espaço de fomento e divulgação da organização de cadeias produtivas e redes de economia solidária e agricultura familiar; 12. Espaço de lazer e integração dos expositores e visitantes. Existem várias modalidades de execução das Feiras em Rede, como as Feiras Regionais ou Territoriais, as Feiras Estaduais, as Feiras Nacionais de Economia Solidária, as Feiras Internacionais de Economia Solidária, as Feiras Setoriais de Integração Produção Consumo, e as Feiras Permanentes ou Itinerantes. 126 Agora, em relação ao Programa de Aquisição de Alimentos, o seu Grupo Gestor é coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e composto ainda pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Ministério da Fazenda e Ministério da Educação e é responsável pela implementação do Programa, cujas diretrizes são estabelecidas e publicadas em Resoluções. O MDS tem como missão promover o desenvolvimento social e combater a fome visando à inclusão e a promoção da cidadania, garantindo a segurança alimentar e nutricional, uma renda mínima de cidadania e assistência integral às famílias117. Dentro do MDS, a Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN), é a responsável pela implementação de políticas de Segurança Alimentar e Nutricional que estão ligadas ao conjunto de estratégias Fome Zero118. Foi a partir do primeiro mandato do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, que o governo federal tem investido em políticas pública s para garantir, prioritariamente, aos mais pobres: o acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer as outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis. (www.mds.gov.br, extraído em 10/06/09). Para cumprir esse objetivo, o instrumento de articulação entre governo e sociedade civil na proposição de diretrizes para as ações na área da alimentação e nutrição foi restabelecido: o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Além do mais, foi aprovada a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), em 2006, reconhecendo o acesso à alimentação como direito do cidadão e responsabilidade do Estado, e criando o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Na proposta do SISAN, as políticas de estímulo ao crescimento da produção agroalimentar devem estar associadas à promoção de formas socialmente eqüitativas e ambientalmente sustentáveis de ocupação do espaço agrário, valorização das culturas 117 Informações disponíveis no site www.mds.gov.br. O FOME ZERO é uma estratégia impulsionada pelo governo federal para assegurar o direito humano à alimentação adequada às pessoas com dificuldades de acesso aos alimentos. Tal estratégia se insere na promoção da segurança alimentar e nutricional buscando a inclusão social e a conquista da cidadania da população mais vulnerável à fome. Informações do site: www.fomezero.gov.br. 118 127 alimentares locais e regionais, enfrentamento da pobreza rural, e estímulo ao desenvolvimento local e regional. A idéia consiste em reverter às tendências de consumo alimentar que remetem a problemas e riscos associados a um padrão alimentar inadequado e promover práticas alimentares saudáveis através de um modelo de consumo responsável. O papel da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN) é oferecer, programas, ações e serviços públicos em parceria com os Estados, Municípios e Sociedade Civil. Dentre os programas ligados à SESAN, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) é aquele que tem provocado um bom impacto na vida dos agricultores familiares, inclusive aqueles envolvidos na Economia Solidária e no Comércio Justo e Solidário. Para ultrapassar a burocracia dos processos licitatórios, muitos municípios utilizaram o PAA para comprar produtos da agricultura familiar. De acordo com Mattei (2007 apud TRICHES; FROEHLICH, 2009), com o PAA criou-se um marco jurídico que possibilitava uma maior presença do Estado no apoio aos processos de comercialização da produção dos agricultores familiares, contribuindo para a sua sustentabilidade, para a distribuição a grupos e pessoas em insegurança alimentar e para a contribuição na formação de estoques estratégicos de alimentos no país. O PAA foi criado em julho de 2003 e tem por finalidade incentivar a agricultura familiar, compreendendo ações vinculadas à distribuição de alimentos de produtos agropecuários para pessoas em situação de insegurança alimentar e a formação de estoques estratégicos. O Programa adquire alimentos, com isenção de licitação, por preços de referência que não podem ser superiores nem inferiores aos praticados nos mercados regionais, até o limite de R$ 3.500,00 ao ano por agricultor familiar que se enquadre no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF119. De acordo com o documento “PAA 5 anos: Balanços e Perspectivas” (2008) dentro do PAA o caráter estruturante de processos e de sistemas locais se configura: • Na capacidade de promover a criação e organização de mercados locais e regionais (institucional, regulados, cooperativos e alternativos) com a dinamização das economias locais; 119 O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF é um programa do Governo Federal, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), através da Secretaria da Agricultura Familiar (SAF) criado em 1995, com o intuito de atender de forma diferenciada os mini e pequenos produtores rurais que desenvolvem suas atividades mediante emprego direto de sua força de trabalho e de sua família. 128 • Na promoção, agricultores(as) fortalecimento familiares e das empoderamento organizações da das rede organizações dos socioassistencial (beneficiários); • Na regulação e estabilização dos preços no mercado local e regional; • No estímulo à organização e à integração de sistemas locais de produção, comercialização e consumo do mesmo modo que valoriza a transição e/ou a adoção de sistemas de produção agroecológicos; • No favorecimento da integração entre programas, ações e projetos; • No estímulo da integração campo e cidade, entre agricultores(as) e consumidores. Os alimentos adquiridos pelo Programa são destinados às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional, atendidas por programas sociais locais e demais cidadãos em situação de risco alimentar, como indígenas, quilombolas, acampados da reforma agrária e atingidos por barragens. Opera com as modalidades de Compra Direta e Compra Antecipada Especial (operacionalizadas pela CONAB120, mediante convênios com o MDS), visando à formação de estoques estratégicos de Segurança Alimentar e Nutricional; Compra Direta Local (operacionalizada inicialmente via Governos Estaduais e via Prefeituras Municipais desde 2005, ambos em convênios com o MDS), visando potencializar a capacidades local de integrar produção alimentar e abastecimento alimentar da rede de proteção social. Até 2007, o PAA beneficiou cerca de 114.914 agricultores familiares e assentados, com um investimento de R$ 402,19 milhões, alcançando até o mês de setembro cerca de 6 milhões de pessoas em 1.698 municípios, conforme os quadros a seguir: 120 A Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) é uma agência governamental responsável pela coordenação de políticas públicas para a agricultura e o abastecimento, objetiva atender a demanda da população por alimentos básicos. Faz parte do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). 129 Gráfico 3: Número de agricultores familiares no PAA Fonte: GASTEL, 2008 Gráfico 4: Execução financeira anual do PAA. Fonte: GASTEL, 2008 Gráfico 5: Número de pessoas que receberam alimentos do PAA 130 Fonte: GASTEL, 2008 Dentro do PAA existe a modalidade Formação de Estoques que foi criada para propiciar aos agricultores familiares instrumentos de apoio à comercialização de seus produtos. É operada por meio de organizações, formadas por, no mínimo, 80% dos sócios/filiados agricultores familiares enquadrados no Pronaf. Esse instrumento disponibiliza recursos financeiros, a partir da emissão da Cédula de Produto Rural – CPR Estoque, para que os grupos adquiram a produção de agricultores familiares sócios/filiados e formem estoques para posterior comercialização, em condições mais favoráveis, seja pelo beneficiamento e agregação de valor ao produto, seja por sua disponibilização em momentos mais oportunos em termos de preços. O limite de recursos por organização é de R$ 1,5 milhão. Além do mais, o MDS atuou também no fomento de programas governamentais (Estados e Municípios) de produção e comercialização de alimentos, voltados à: a) produção, a exemplo de hortas e lavouras comunitárias, viveiros e pomares; b) comercialização, via mercados públicos e feiras livres para à venda direta dos produtos agroalimentares, “in natura" e beneficiados/processados, oriundos de empreendimentos cooperativos/comunitários/familiares. Em dezembro de 2005, o MDS por meio de Convênio com a FINEP, publicou uma Chamada Pública de Projetos para municípios, instituições de ensino superior e organizações não governamentais para a seleção de propostas e empreendimentos cooperativos solidários de produção e comercialização de alimentos em regiões metropolitanas. Em 2004 e 2005, 131 destinou R$ 20 milhões para implantação de projetos, sendo formalizados 77 convênios com municípios, beneficiando 113 mil famílias, englobando 1.280 hortas; 52 empreendimentos cooperativos de beneficiamento/processamento; e 11 feiras livres. Para a Chamada Pública de Projetos, foram destinados R$ 1,7 milhões. Mascarenhas (2007) afirma que o PRONAF e a CONAB por serem instrumentos baseados em políticas públicas são menos maleáveis às mudanças de governo. O autor considera também que programas mais recentes, como os desenvolvidos pela SENAES e algumas ações de outros Ministérios, mesmo que permaneçam em Governos futuros podem ter os seus objetivos sacrificados pelo contingenciamento de verbas. Daí a importância do “controle social” exercido pela sociedade civil organizada, tanto na formulação de políticas públicas como na participação da promoção de mecanismos que garantam a continuidade dos programas sociais. No âmbito do movimento do Comércio Justo brasileiro a reunião de diversos atores, de outros movimentos sociais e do governo, na luta pela promulgação do texto normativo que institucionalizaria o Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS) significa, em termos governamentais, a garantia de continuidade dos esforços referentes à implantação e viabilização desse sistema no país. 3.4 - O Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário: A institucionalização do movimento no país No Brasil, há alguns anos vem sendo construído por diversos atores da sociedade civil o Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário (SNCJS). Esse sistema significa a possibilidade de desatar o nó do mercado representado pela dificuldade do escoamento das produções dos grupos de pequenos produtores. A elaboração deste sistema foi de caráter participativo e pretende ser uma resposta ao principal problema apontado pelos Empreendimentos Econômicos e Solidários brasileiros (EES), no Atlas de Economia Solidária, que é a dificuldade de comercialização. A parcela significativa de 64% do total de 22.000 EES, reconhecidos e mapeados através do SIES, apontou a comercialização como a maior dificuldade a ser superada para que os empreendimentos se consolidem. O movimento do comércio justo apresenta possibilidades concretas para solucionar os problemas relativos às dificuldades de comercialização dos Empreendimentos Econômicos e Solidários. De forma que o comércio justo significa o acesso a canais de comercialização 132 alternativos, tanto nacionais como internacionais. A abertura desses canais para os EES poderia garantir-lhes a sustentabilidade financeira, bem como a melhoria das suas capacidades organizacionais. Retomando um pouco a história, o movimento do comércio justo no Brasil ganhou força a partir da formação e consolidação da plataforma FACES121 do Brasil122. Foi a construção democrática123 da “Carta de Valores, Princípios e Critérios do Comércio Justo e Solidário Brasileiro”, que incitou a realização de um seminário, em abril de 2006, organizado por três redes ligadas ao Comércio Justo: FACES, ECOJUS124 e FBES125. Essa ação envolveu diversos atores do movimento no Brasil, e na ocasião houve um consenso da sociedade civil brasileira pela criação de um sistema público para o comércio justo (ZERBINI, 2008). Tal sistema deveria ser reconhecido pelo governo como política social de desenvolvimento, e deveria ser regulamentado a partir do reconhecimento dos seus valores, princípios e critérios. Subitamente o governo brasileiro acolheu essa demanda através da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e da Secretaria da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Essas instâncias formalizaram, em audiência pública, a criação do Grupo de Trabalho Interministerial. Esse GT Interministerial foi formado por instituições tanto da sociedade civil como da governamental, e tinha como missão formular e promulgar uma normativa pública de regulamentação do Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário – SNCJS (ZERBINI, 2008). O Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário é um sistema ordenado de parâmetros126, incluindo conceitos, princípios, critérios, atores, instâncias de controle e gestão, organizados para promover relações comerciais de base justa e solidária, articulando e integrando os Empreendimentos Econômicos Solidários de todo o território brasileiro (BRASIL, 2006; FACES, s/d; ZERBINI & GOMES, 2008). O Sistema Nacional está formatado em um documento que reúne mecanismos de regulação e de fomento, com a 121 Fórum de Articulação do Comércio Justo e Solidário. Conforme foi demonstrado no item 1.2.1 123 Conforme Zerbini (2008) no processo de construção da carta foram envolvidos mais de 300 atores nacionais em 5 consultas públicas e mais de 30 empreendimentos em projetos de pesquisa e avaliação participativa. 124 Associação Brasileira de Empreendimentos de Comércio Justo e Solidário. 125 Fórum Brasileiro de Economia Solidária. 126 Tais parâmetros estão baseados nos princípios reunidos na “Carta de Valores, Princípios e Critérios do Comércio Justo e Solidário Brasileiro”, elencados no item 1.4 deste trabalho. 122 133 intenção de se transformar em uma política pública a partir da promulgação de uma lei que deverá institucionalizá-lo. Os objetivos do Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário que estão instituídos no Termo de Referência são: 1. Difundir o Comércio Justo e Solidário como um fluxo comercial diferenciado, por meio da articulação e integração dos Empreendimentos Econômicos e Solidários e demais agentes que participam do SNCJS; 2. Promover o estabelecimento de uma identidade nacional para o conceito e para o exercício das práticas de Comércio Justo e Solidário no Brasil; 3. Divulgar produtos, processos, serviços e organizações que respeitam as normas definidas no âmbito do SNCJS; 4. Favorecer a prática do preço justo para quem produz comercializa e consome os produtos e serviços do Comércio Justo e Solidário; 5. Reconhecer diferentes mecanismos de garantia de credibilidade, adequados às diferentes realidades sociais, territoriais e organizacionais, para a avaliação da conformidade de produtos, processos, serviços e organização do Comércio Justo e Solidário. 6. Subsidiar os Empreendimentos Econômicos e Solidários e demais participantes com uma base nacional, estadual e territorial de informações em economia solidária e em temas afins à comercialização; 7. Contribuir nos esforços públicos e privados, de promoção de ações de melhoria às condições de comercialização dos Empreendimentos Econômicos e Solidários, por meio de Bases de Serviço de Comercialização. De acordo com a cartilha “O Comércio Justo e Solidário no Brasil”127, elaborada pelo FACES, os critérios que norteiam o documento estão divididos em dois grupos: os organizacionais e os relacionais. Os chamados critérios organizacionais são aqueles que regulam as atividades internas de cada instituição participante. Já os critérios relacionais pressupõem justamente a regulação da relação entre os diversos atores, ou seja, entre o produtor, comerciante e consumidor. Os critérios organizacionais são: 127 Existe a versão impressa da Cartilha, mas também se encontra disponível on-line no site www.facesdobrasil.org.br. 134 • ser uma organização coletiva, de caráter supra-familiar, singular ou complexa, cujos participantes ou sócios são trabalhadores do meio urbano e rural; • ter uma administração transparente e democrática, cumprir o seu estatuto e/ou regimento interno, no que se refere às tomadas de decisão no gerenciamento de recursos e na definição de suas políticas; • que os participantes ou sócios dessas organizações, exerçam coletivamente a gestão das atividades econômicas e dos seus resultados; • ser uma organização permanente, considerando tanto os empreendimentos que estão em funcionamento quanto aqueles que estão em processo de implantação, desde que o grupo esteja constituído e as atividades econômicas definidas; • prevalecer a existência real e a vida regular da organização ao seu registro legal; • realizar atividade de natureza econômica, podendo esta ser permanente ou principal, porém devendo ser a “razão de ser” da organização; • respeitar as atividades de produção, fabricação ou execução de produtos/serviços que devem ser realizados sobre todos os requisitos de segurança e salubridade para aqueles que os desenvolvam; • não tolerar a exploração do trabalho infantil com menores de 16 anos em qualquer atividade relacionada ao empreendimento, desde que seja como forma de aprendizado, que freqüente a educação formal e que tenham garantido o acesso ao lazer; • estimular ampla e eqüitativa participação das mulheres em todos os níveis e atividades do processo produtivo e comercial; • garantir a não discriminação baseada em raça, religião, posição política, procedência social, naturalidade, escolha sexual, geracional, estado civil e/ou portadores (as) de necessidades especiais; • respeitar a legislação ambiental vigente, contribuindo, na sua área de atuação, para a preservação e recuperação do meio ambiente; • reduzir o uso de insumos não renováveis, bem como a geração de resíduos de processos, facilitar práticas de reutilização e reciclagem; • não utilizar material que contenha Organismos Geneticamente Modificados (OGM) – transgênicos – para a composição ou fabricação de produtos do Comércio Justo e Solidário; 135 • não utilizar agrotóxicos das classes toxicológicas - “I- extremamente tóxico” e “II- altamente tóxico”, e classe ambiental “I- Produto Altamente Perigoso” de acordo com sistema AGROFIT do Ministério de Agricultura, Portaria 02/92 do Ministério de Saúde, e Portaria Normativa IBAMA N° 84, de 15 de outubro de 1996, manter registro dos agrotóxicos comprados e utilizados pelo empreendimento ou por seus associados; • estimular a produção de base agroecológica e orgânica, bem como, a utilização de materiais biodegradáveis nos processos produtivos; • EES/CJS que vendem para consumidores finais devem ter no mínimo 51% da sua carteira de produtos e/ou serviços provenientes de EES. Já os critérios relacionais são: • que na composição dos preços prevaleçam relações de transparência, equilíbrio e respeito entre as partes; • que os EES/CJS recebam um preço justo pelos seus produtos e/ou serviços, que contabilize de forma equilibrada os custos de cada etapa do processo produtivo, de distribuição e comercialização, garantindo uma valorização digna da força de trabalho empregada nos mesmos; • que a venda sob consignação seja praticada somente de comum acordo entre os EES/CJS envolvidos; • que o EES/CJS comprador não pratique esquema de “jóias” ou “luvas” para acesso a mercados; • que se construam relações de longo prazo entre EES fornecedor e EES comprador; • que o EES/CJS comprador, dentro do seu estabelecimento comercial ou na internet, indique informações sobre os produtos, seu processo produtivo, quem os produziu e sobre o Comércio Justo e Solidário; • que o EES/CJS comprador não explore a imagem e conhecimento de comunidades tradicionais para fins de publicidade, sem a devida e expressa autorização das mesmas; • que na venda para o consumidor final os EES-CJS não pratiquem “dumping”, ou seja, não praticar preços abaixo do custo real, para competir ou atingir a participação de outros participantes no comércio justo e solidário. 136 Até então foram elencados objetivos e critérios do Sistema Nacional de Comércio Justo, mas é extremamente necessário esclarecer quem são os seus componentes. Portanto, existem duas categorias principais de participantes, que devem ser orientadas por relações comerciais de base justa e solidária, cada uma com determinados atributos e funções, são elas: - Os Empreendimentos Econômicos e Solidários (EES) de produção, comercialização e consumo, que são as organizações coletivas ou os empreendimentos que participam ou que querem participar de relações de Comércio Justo e Solidário. Podem ser associações, cooperativas, empresas autogestionárias, grupos de produção, clubes de troca, redes, centrais e complexos cooperativos. - Os Parceiros Colaboradores que são entidades e redes nacionais de apoio ao tema, parceiros comerciais e organismos de avaliação de conformidade. Ambas as tipologias têm papéis distintos e definidos e devem registrar-se ou habilitarse para fazer parte do Sistema Nacional de Comércio Justo. Os EES são os atores políticos de toda a proposta, ou seja, os construtores da proposta, já os Parceiros Colaboradores são aqueles que apóiam o Comércio Justo brasileiro. Para a efetivação da participação no Sistema Nacional os EES devem habilitar-se na categoria de “Selo Organizacional”. Este selo configura-se como um atestado de confiança e identidade, pois identificam os EES como praticantes dos princípios e critérios organizacionais do comércio justo e os identificam como incentivadores de uma nova economia, que respeita o ambiente e o ser humano. A partir da habilitação, os EES de produção, comercialização e consumo solidários, ganham o direito de utilizar o selo em materiais de divulgação e comunicação como folders, panfletos, websites, catálogos, entre outros. Também existe o “Selo de Produto/ou Serviço” que pressupõe que todos os atores econômicos das cadeias de produção, comercialização ou serviço, cumprem os critérios relacionais e organizacionais. Este selo pode ser inserido no rótulo ou embalagem dos produtos e serviços destes sujeitos. Para ter o direito da utilização de cada tipologia de selo é preciso cumprir determinados procedimentos. Para acompanhar e operacionalizar tais procedimentos foi criada uma Comissão Gestora Nacional do Sistema Nacional de Comércio Justo. Essa Comissão é uma instância nacional de natureza tripartite, composta por representantes do 137 Governo Federal, das organizações de produtores, comerciantes e consumidores, e por entidades de apoio e fomento do comércio justo, com a finalidade de: 1. Propor objetivos, diretrizes, metodologia e gestão do Sistema do Comércio Justo e Solidário; 2. Aprovar a habilitação dos participantes definidos nas duas categorias no sistema; 3. Fornecer aos Organismos de Avaliação da conformidade (OAC) as listas dos participantes habilitados; 4. Constituir espaço de diálogo das representações dos diversos atores institucionais e sociais envolvidos no Comercio Justo e Solidário; 5. Subsidiar o desenvolvimento e aperfeiçoamento de instrumentos de controle e qualidade do sistema Comércio Justo e Solidário; 6. Reconhecer a permanência dos organismos da avaliação da conformidade, por meio dos organismos de acreditação; 7. Acompanhar a análise de resultados e disseminação das informações. Segundo a Cartilha do Faces (2008), para se habilitar na categoria de Selo Organizacional o EES deverá preencher, espontaneamente, um formulário especifico. A Comissão Gestora Nacional tem o dever de tornar pública a solicitação, dando um prazo para manifestações de terceiros sobre o pedido e a entidade que o fez. Superado esse período, a Comissão avaliará o formulário e as possíveis manifestações que tenham ocorrido, aprovando ou reprovando a habilitação. Somente se aprovada, a organização terá o direito de utilizar o Selo Organizacional. Já a obtenção do Selo de Produto compreende um percurso mais complexo. Não basta aderir voluntariamente, como no caso do outro selo, mas é preciso que exista um sistema de avaliação de conformidade128 em todas as etapas da cadeia produtiva. Para obter o direito os EES devem procurar um organismo de avaliação de conformidade ou se engajarem na construção de um sistema participativo de garantia na sua comunidade, território ou região. A cartilha ainda informa que é um desafio colocar essa idéia em prática da maneira mais inclusiva e solidária possível, pois ainda não existem experiências concretas desse tipo no Brasil. 128 Avaliação da Conformidade é um processo sistematizado, a partir da aplicação individual ou combinada de instrumentos e metodologias (requerimentos específicos), com o objetivo de propiciar, direta ou indiretamente, adequado grau de confiança aos usuários e consumidores, em produtos processos, serviços ou organizações. 138 O Sistema Nacional de Comércio Justo prevê três129 formas de mecanismos de avaliação de conformidade para a categoria de Selo de Produto, que são: • Certificação por Auditoria Externa: é a verificação da conformidade, com o uso de ferramentas disponibilizadas e os padrões definidos pela International Organisation for Standardisation (ISO), onde os EES passam por um período de conversão, para providenciar os registros demandados, cumprir os requerimentos e seguir os critérios estabelecidos na relação comercial reconhecidos pelo SNCJS. Portanto, nesse mecanismo o organismo certificador realiza o procedimento de avaliação de conformidade que significa uma inspeção externa feita nas organizações e instalações, cabendo, de forma centralizada a decisão final sobre a certificação pelo organismo certificador. Dessa forma, conforme estabelece os procedimentos exigidos pela ISO, existe a separação entre as funções de inspeção e certificação. Um exemplo é a certificação do selo FLO. • Sistemas Participativos de Garantias (SPGs): consistem em um conjunto de atividades desenvolvidas em determinada estrutura organizativa, regida por princípios, normas de organização e de funcionamento, visando assegurar a garantia de que um produto, processo ou serviço, foi submetido a uma avaliação participativa da conformidade. Os SPGs têm como características principais o Controle Social, a Participação e a Responsabilidade Solidária. • Declaração de EES-CJS Comprador ou de Fornecedor: é a garantia passada diretamente pelo produtor e seu EES fornecedor ao consumidor na forma de relacionamentos interpessoais. O parágrafo primeiro do artigo terceiro da Lei 10.831/2003 reconhece a existência desse mecanismo de garantia da qualidade permitindo que os produtores possam se enquadrar sem modificação do seu padrão produtivo e comercial. Para a promoção do Sistema Nacional de Comércio Justo a partir de 2007, o FACES em parceria com a SENAES, executaram um projeto sob a gestão da Fundação Banco do Brasil. O projeto objetivava promover o SNCJS através de ações de difusão, de pesquisa e de articulação da base social para sua construção e consolidação. Foram envolvidos neste processo mais de dois mil trabalhadores em 25 oficinas formativas e 129 Conforme estabelecido no Termo de Referência do Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário. 139 visitas a campo, além da realização de 5 seminários regionais e 1 nacional. Para que todas essas ações fossem cumpridas criaram-se coordenações nacionais130. A FASE – PA foi a responsável pelo projeto na região Norte e ajudou a selecionar as experiências envolvidas nas ações de pesquisa e formação, a partir de alguns critérios gerais. Como as demais coordenações, a FASE – PA priorizou os casos em que as organizações se identificassem com a proposta da Economia Solidária e ou do Comércio Justo, e que envolvessem toda cadeia comercial, incluindo produtores, comerciantes e consumidores. Foram cinco as experiências, que contribuíram para o projeto, selecionadas na Região Norte, são elas: • COFRUTA – Cooperativa dos fruticultores de Abaetetuba: são 137 sócios que produzem polpa de frutas, principalmente de acerola, taperebá, cupuaçu e açaí, para o mercado local e regional. Produzem também sementes secas e fermentadas de cupuaçu; • COPPALJ – Cooperativa dos Pequenos Produtores Extrativistas do Lago do Junco LTDA: reúne 147 sócios divididos em oito cantinas comunitárias. Os trabalhadores são associados e recebem várias capacitações. Os produtos são destinados ao mercado externo, tendo uma mínima participação no mercado nacional; • ACS Amazônia – Associação de Certificação Socioparticipativa da Amazônia: tem a missão de garantir um processo de certificação diferenciado que envolva instituições, comunidades e consumidores, proporcionando a melhoria da qualidade de vida, a auto-suficiência, a soberania alimentar e a equidade social, através da valorização cultural e das relações socioambientais dos povos da Amazônia; • SAPOPEMA131 – Sociedade Amigos dos Povos da Floresta: seu principal produto é o Guaraná orgânico e certificado. A Sapopema é um instrumento econômico, voltado para a produção, comercialização e mútua cooperação de comunidades indígenas e caboclas da Amazônia que constroem seu próprio desenvolvimento. • COOMFAMA – Cooperativa Mista da Agricultura Familiar de Marabá: conta com 76 sócios produtores da Agricultura Familiar e possui uma loja onde expõe e vende seus produtos. 130 Região Sudeste – Instituto Kairós; Região Sul – DESER (Departamento de Estudos Sócio-Econômicos e Rurais; Região Norte – FASE – PA; Região Nordeste – Visão Mundial; e, Região Centro Oeste – Rede Cerrado. 131 Será tratada com mais profundidade no último capítulo, quando será exposto o projeto Guaraná dos Sateré Mawé. 140 Ainda em setembro de 2008, a FACES do Brasil, a UNICAFES, a ECOJUS e o FBES enviaram documento132 solicitando audiência pública com o Ministro do Trabalho e Emprego Carlos Lupi, a fim de esclarecer encaminhamentos sobre a promulgação do texto normativo do Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário. Esclareceram que o texto normativo foi entregue em fevereiro daquele mesmo ano à CONJUR (Consultoria Jurídica) daquele Ministério, para análise e encaminhamento para promulgação. O documento que solicita a audiência informa que: o momento atual do comércio justo mundial – cada vez mais atento ao potencial do mercado consumidor de países como Brasil, México, Índia e África do Sul - é extremamente perigoso aos processos nacionais como o de nosso país. Sistemas internacionais de certificação, empresas e grandes redes de supermercado vêm sinalizando a intenção de iniciar processos privados para comercialização de produtos de comércio justo, sem qualquer perspectiva de diálogo e respeito aos processos, conceitos e realidades nacionais e, principalmente, aos grupos produtivos de base solidária de nosso país que são a razão de todo este processo. Até janeiro de 2009, na ocasião do Fórum Social Mundial, Fabíola Zerbini, secretária executiva do FACES, informou que a efetiva promulgação do texto normativo ainda não havia ocorrido e que até aquele momento o movimento social e as entidades da sociedade civil envolvidas não haviam recebido nenhuma justificativa e nem mesmo haviam sido contatados formalmente pelos representantes do Governo Federal. 3.5 – Os produtos amazônicos- dificuldades e possibilidades É difícil explicar a escassa oferta de produtos amazônicos em uma megalópole como São Paulo, onde existe uma variada oferta de produtos alimentícios do mundo inteiro. Talvez isso se explique pela baixa capacidade de transformação dos produtos na Amazônia, especialmente dos alimentares. Outra explicação é o desconhecimento dos sabores amazônicos, pois é difícil consumir o que não se conhece. Porém, isso representa um círculo, já que é impossível conhecer o que não é ofertado, e nesse caso não existe oferta porque não há demanda, e conseqüentemente não há demanda porque os produtos são desconhecidos, já que não foram ofertados. De uns tempos para cá, um produto amazônico que conquistou o mercado foi o açaí. Ele ficou conhecido e difundido, por suas capacidades energéticas, tanto no Brasil como no exterior. Subitamente academias e lanchonetes passaram a vender açaí com grande sucesso. Criaram-se até pontos de vendas específicos só de açaí. O produto ganhou fama e passou a ser 132 O referido documento encontra-se disponível no site http://www.fbes.org.br. 141 muito consumido, em outras regiões do país, porém a cultura típica do consumo de açaí não foi preservada. Na Amazônia consome-se o açaí puro, geralmente misturado à farinha de mandioca ou de tapioca, durante ou logo após as principais refeições, e por isso é reconhecido mais como “sonífero” por facilitar a tradicional sesta do que como estimulante. No sudeste a oferta deste alimento vem acompanhada de pedaços de frutas variadas, granola e cereais, mel, cabendo ao cliente a combinação que mais lhe convém. Neste caso o açaí, alimento natural e orgânico, consumido no resto do Brasil continua a ser coletado pelos ribeirinhos, mas é processado pela grande indústria cabendo a ela, como a qualquer empresa capitalista, a maior parte dos lucros. Apesar de garantir uma oportunidade de melhoria de renda para as populações tradicionais, tudo poderia ser bem diferente se as próprias comunidades tivessem a capacidade e principalmente os meios necessários para processar o açaí. Apesar das dificuldades encontradas pelas organizações de agricultores familiares locais, algumas conseguem se destacar. É o caso da COFRUTA, do município de Abaetetuba – PA, que, como foi dito, foi uma das experiências selecionadas para o Projeto de Promoção do Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário e que merece aqui uma descrição. A COFRUTA133 (Cooperativa de Agricultores de Abaetetuba) foi inaugurada em março de 2002 e atualmente possui 137 sócios. Vem sendo incubada pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade Federal do Pará, desde 2007. A incubação representou um significativo auxilio para a estruturação da cooperativa e para a formação de seus membros. No âmbito da comercialização, a cooperativa deu um grande salto a partir da aprovação do projeto no Programa Aquisição de Alimentos (PAA) 2007/2008, na modalidade de Formação de Estoques. Neste processo, a COFRUTA forneceu 57 toneladas de polpa de açaí, 44 toneladas de polpa de cupuaçu, e 13 toneladas de polpa de maracujá. Para o ano de 2009, dentro do PAA, a previsão é de 8 toneladas de polpa de açaí, 27 de cupuaçu, 11 de maracujá e 12 de abacaxi. Além de fornecer 25.000 litros de xaropes, divididos entre cupuaçu e maracujá. Em 2009, pela primeira vez a COFRUTA fará uma venda para uma organização que trabalha com o comércio justo. Exportará 24 toneladas de açaí orgânico, pasteurizado e congelado para a Cooperativa italiana Sin Fronteras. A articulação para essa parceria foi feita 133 Informações coletadas em entrevistas com o Presidente da COFRUTA Josenildo Costa, com a Secretária Adalgisa F. Silva e com o Tesoureiro Raimundo Brito de Abreu. 142 pela ONG italiana UCODEP134 (Unità e Cooperazione per lo Sviluppo dei Popoli), que no Estado do Pará, a partir do segundo semestre de 2008, passou a executar novos projetos voltados para reforçar a capacidade produtiva, agroindustrial e comercial de grupos de produtores de frutas amazônicas. A COFRUTA recebeu um pedido de 48 toneladas de geléias, em 2007, da empresa de comércio justo francesa Alter ECO. Essa empresa ofereceria os potes e comercializaria os produtos com a sua própria marca. A cooperativa não teve condições de fechar negócio porque a Alter ECO exigia um prazo de 15 dias para a entrega, e a COFRUTA não tinha os equipamentos necessários para a produção e estocagem. Essa dificuldade apresentada pela COFRUTA é a mesma de muitos outros grupos de produtores da Amazônia que conhecem as técnicas de produção, mas que não dispõem da tecnologia necessária para cumprir com as exigências de determinadas demandas. A parceria entre entidades de formação e apoio a empresas e grupos produtores vem se mostrando de extrema importância para o desenvolvimento dos produtos. No caso da COFRUTA, uma recente parceria entre uma empresa americana e a Universidade Federal do Pará (UFPA) 135 , permitiu a criação de uma tecnologia para a produção de tinta de açaí em forma de pó. De acordo com o presidente da COFRUTA, a forma como a empresa vai utilizar esse pó ainda é um mistério, mas já houve a criação de uma patente para que somente a COFRUTA produza o pó durante cinco anos e forneça a cada safra136 100 quilos de pigmentos. Uma pesquisa137 realizada pela Alter ECO em 2004, sobre o mercado de comércio justo brasileiro revelou que apesar da necessidade de explicação e difusão dos princípios do comércio justo na sociedade brasileira, o nicho do comércio justo possui um grande potencial no Brasil. A pesquisa apontou que o consumo alimentar das grandes regiões metropolitanas é diversificado e exigente, e muito orientado para os produtos tradicionais brasileiros. Por isso, os produtos tradicionais138 de qualidade, provindos da agricultura familiar, certamente encontrariam mercado. Constatou-se na pesquisa que a inscrição “Indústria Brasileira” estava 134 Mais informações podem ser encontradas no site da ONG www.ucodep.org Faculdade de Engenharia de Alimentos, através do professor Hever Rogger. 136 Cada safra dura 100 dias, a cada dia se colherá 200 rasas de 14 quilos de açaí que equivale a 1 quilo de pigmento. 137 Alter ECO Comércio Justo – No Caminho de um “Comércio Justo Sul – Sul”, desenvolvida por Solen Penchèvre e Julie Sacca. 138 Arroz, feijão, café, suco, açúcar, geléias, guaraná, farinha de mandioca, entre outros. 135 143 impressa nos produtos e que era um verdadeiro argumento de venda. Na visão estrangeira de quem elaborou a pesquisa: Os brasileiros estão orgulhosos da riqueza e da qualidade dos recursos do país deles e possuem um autêntico sentido do patriotismo, do futebol, da feijoada... Sem dúvida, eles gostariam que os produtores e os produtos de os “terroirs” deles, amazônicos e bahianos sejam valorizados e em particular, que o melhor do Brasil não seja reservado aos gringos e que chegue diretamente para eles (ALTER ECO, 2005) Por fim, a pesquisa da Alter ECO concluiu que o mercado brasileiro (sul e sudeste) parece potencialmente receptivo ao estabelecimento de uma rede nacional de comércio justo que valorize os pequenos produtores, desde que seus produtos tenham alta qualidade, que sejam saudáveis e que sejam produzidos com critérios sociais e ambientais Para a inserção dos produtos amazônicos nos mercados nacional e internacional existe um mecanismo legal que facilitaria muito: o Registro de Indicação Geográfica. Este instrumento de competitividade, que garante a propriedade intelectual e a qualidade de determinados bens e serviços, é concedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial139 (INPI). De acordo com Morais (2009) os especialistas que participaram da oficina “Registro de Indicação Geográfica – Indicação de Procedência e Denominação de Origem” organizada pelo Museu Paraense Emílio Goeldi140 (MPEG), em 2008, consideram que a Amazônia é detentora de uma incrível variedade de produtos característicos, com um enorme potencial de conquistar os consumidores. Entre os produtos que compõem a cesta regional indicados estão desde os alimentícios como a farinha de mandioca, o açaí, o jambú e o tucupi, até os artesanais como os brinquedos de miriti. O Registro de Indicação Geográfica protege a propriedade intelectual e incentiva a qualificação e inovação dos produtos. Esses critérios são fundamentais para a conquista de novos e exigentes mercados. Segundo, Morais (2009, p.4) “a vantagem de mercados exigentes é que eles também estão dispostos a pagar o preço de produtos especiais, de origem longínqua, mas cujo cultivo e produção garantem a manutenção de valores ambientalmente 139 O INPI é uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, responsável por registros de marcas, concessão de patentes, averbação de contratos de transferência de tecnologia e de franquia empresarial, e por registros de programas de computador, desenho industrial e indicações geográficas, de acordo com a Lei da Propriedade Industrial (Lei n.º 9.279/96) e a Lei de Software (Lei nº 9.609/98). 140 Através do Núcleo de Inovação e Transferência de Tecnologia (NITT). 144 sustentáveis”. Há que se considerar que os problemas relacionados com a qualidade e a sanidade de muitos produtos amazônicos são os principais entraves para a conquista de mercados nacionais e internacionais, conforme informa o tecnologista Raul Pedreira do INPI (apud MORAIS, 2009) “As indicações geográficas servem como excelente instrumento para a exportação principalmente para a União Européia, que tem normas sanitárias extremamente rígidas”. A Amazônia, com sua rica biodiversidade, dispõe de muitos produtos que poderiam ser certificados. Contudo, conseguir o Registro de Indicação Geográfica não é tão simples quanto parece. Não é por acaso que no Brasil existem apenas quatro produtos certificados: o vinho do Vale dos Vinhedos (RS); o café de cerrado mineiro; a carne bovina dos pampas gaúchos; e a cachaça de Parati (RJ). O Registro pode ser de procedência, que valoriza a reputação entre esses produtos e seus locais de origem, ou de origem141, que qualifica o meio geográfico no qual foi produzido. Porém para conseguir o registro é necessário o interesse da organização coletiva dos produtores da região, sem contar que as dificuldades sanitárias podem inviabilizar o processo. Constata-se então, que é necessário ter a disponibilidade de certa tecnologia organizacional e também de instrumentos de trabalho, o que para os grupos de pequenos produtores amazônicos é quase impossível sem a ajuda de organizações de apoio sejam elas governamentais ou não. Mais uma vez é apresentada a necessidade de uma rede de organizações para viabilizar processos de melhorias e de regulamentação de produtos Amazônicos. Explica o pesquisador da Embrapa Jorge Tonieto (apud MORAIS, 2009) que para alcançar o Registro de Indicação Geográfica o produto precisa ter uma identidade própria, ser produzido em ambientes ecologicamente distintos, que se traduzem em alta qualidade ecológica e sanitária. Para o pesquisador além de identidade, o produto deve ter um gosto diferente e uma maneira de produzir exclusiva, e é esse caráter de distinção e o seu local de origem que podem agregar valor aos produtos, como a Castanha do Pará e o Açaí, e distinguilos de meras commodities. 141 Para a socióloga Carla Belas (apud MORAIS, 2009) a indicação de origem é a mais adequada para os produtos da Amazônia, já que a indicação de procedência apenas informa que o produto vem de uma determinada área, enquanto na indicação de origem são considerados também os fatores humanos e culturais relacionados à produção. 145 O chef culinário Alex Atala142 (apud MORAIS, 2009) considera que a Amazônia é um dos poucos lugares do mundo que ainda pode fornecer novos ingredientes, destacando entre as delícias da região o tucupi, verduras como o jambú e a chicória, frutas como o taperebá, o muruci e o bacuri, sem contar com os já famosos como o cupuaçu, o açaí e a farinha de tapioca. O chef lança mão de recursos novos como a priprioca143, utilizando seu aroma com grande sucesso em sobremesa. Em entrevista à revista Época (20/05/05) Alex Atala reclama por não conseguir comprar jambu, tucupi e filé de filhote em São Paulo. Diz que é mais fácil encontrar açafrão iraniano. Afirma que sempre perguntam por que ele não monta uma estrutura para trazer esses ingredientes para o Sudeste. ''Meu papel não é esse'', desabafa. ''Não sou atacadista. Meu papel é divulgar''. Passados quase quatro anos dessa entrevista ele volta a reclamar no Jornal “Destaque Amazônico” (Janeiro de 2009) 144 dizendo que a lei de mercado da oferta e demanda ainda é o principal entrave para a comercialização de produtos da região. Ele afirma “Nós, chefs, podemos gerar demanda, mas ainda somos incapazes de gerar a oferta desses produtos. É preciso maior incentivo para a produção, extração e comércio dos ingredientes amazônicos” e considera que “a certificação geográfica desses produtos pode gerar diretamente benefícios socioeconômicos, bem como ser grande alavanca na conservação de nossas florestas”. Se faltam ofertas de produtos amazônicos para os brasileiros, os europeus, especialmente os franceses, podem gozar de uma série de produtos que por aqui ainda são desconhecidos. Trata-se de sabonete de guaraná dos índios Sateré Mawé, chiclete dinamizante de guaraná e acerola, geléias de graviola, taperebá, açaí e cupuaçu, açaí em cápsulas para revitalização e regeneração, pó da planta amazônica unha de gato para estimulação do sistema imunitário, a muirapuama145 em pó e cápsulas como tônico neuromuscular e estimulante sexual, complexo restruturante de guaraná e acerola, óleo alimentar de castanha do Pará, complexos anti-envelhecimento feito de um mix de plantas amazônicas e francesas, além de 142 Alex Atala é um chef de cozinha brasileiro, eleito chef do ano pelo Guia Quatro Rodas 2006, cujo restaurante D.O.M. figura entre os 50 melhores do mundo segundo a prestigiada revista britânica "Restaurant". Alex é conhecido defensor da culinária regional, como retratado em seu livro "Por uma Gastronomia Brasileira", colocando a culinária amazônica, especificamente a paraense, como base de alguns de seus melhores pratos (Wikipédia, 18/06/09). 143 A priprioca é uma planta aromática amazônica muito usada na fabricação de perfumes artesanais e mais recentemente na indústria de cosméticos, que teve seu valor revelado para a utilização na alta gastronomia. 144 Informativo do Museu Paraense Emílio Goeldi. 145 A Muirapuama (Ptychopetalum Olacoides Bentham) é utilizada como tônico herbal tanto para homens como para mulheres, suas propriedades vasodilatadoras melhoram o desempenho sexual. Conhecida como "madeira potente" a erva é encontrada nas margens do Rio Negro. 146 inúmeros cosméticos que têm como base os óleos da copaíba e andiroba, isso para citar só algumas ofertas146. Figura 10: Produtos amazônicos da Guayapi tropical Fonte: www.guayapi.com A responsável por todas essas ofertas é a sociedade francesa Guayapi tropical. A Guayapi importa exclusivamente matérias primas, especialmente do Brasil e do Sirilanka, as transformam na França e as distribui em forma de produtos para o mundo inteiro. Utiliza plantas selvagens em complementos e produtos alimentares, e também em cosméticos. É observando os conhecimentos das populações locais que formula suas receitas, respeitando as pessoas e o ecossistema (www.guayapi.com). Foi a Guayapi Tropical que legalizou o Guaraná na França, através de lobbing para que o Guaraná fosse reconhecido como integrador alimentar, pois antes ele era conhecido como substância dopante. A empresa faz parte da plataforma francesa do comércio justo, e tem desenvolvido projetos com os índios Sateré Mawé147. O trabalho da Guayapi tropical é respaldado pela garantia dos vários selos de certificação148 que possui, de produtos orgânicos, biológicos e sociais. 146 Ver lista de ofertas completas no site da Guayapi Tropical www.guayapi.com Esta relação será aprofundada no próximo capítulo, no projeto Guaraná dos Sateré Mawé. 148 Ver selos de certificação no site da Guayapi Tropical www.guayapi.com 147 147 Figura 11: Alguns selos da Guayapi Tropical Fonte: www.guayapi.com Em relação aos artesanatos, o Brasil já dispõe de algumas lojas de comércio justo com uma boa variedade de ofertas. A loja de comércio justo Mundaréu, de São Paulo, disponibiliza a venda de cestaria do grupo Tucumarte, da comunidade de Urucureá, de Santarém-PA. O Ponto Solidário do Espaço Cultural Yázigi oferece o artesanato dos índios da etnia Apalai149 do Amapá. Porém, de acordo com nossas pesquisas de campo, realizadas no âmbito do Proesq150 “Comércio Justo e Turismo Responsável: Oportunidades Solidárias e Sustentáveis para a Amazônia”, as relações comerciais mantidas por essas organizações não se caracterizam devidamente como comércio justo, conceito este pouco conhecido pelos grupos fornecedores de artesanato. Conforme constata pesquisa de campo de Soares151 (2007, p.12): Após aplicação do formulário II e de entrevistas com o Presidente da Associação Sr. Tadeu Waiana Apalai e também com a pessoa responsável pela comercialização do artesanato Sr. Carlos Alberto da Silva Ferreira, constatei que ambos nunca haviam ouvido falar sobre comércio justo e solidário, não possuem leitura nem sobre os princípios ou qualquer elemento que remeta a esse tipo de comercialização. Inclusive ambos disseram não saber sobre as informações disponibilizadas no site do Ponto Solidário referentes ao artesanato Apalai ou mesmo sobre a Associação. Apesar de possuir na sede da associação computador e internet, disseram que nunca visitaram o referido site. Se de um lado alguns grupos de produtores da Amazônia vendem artesanatos para lojas de comércio justo desconhecendo o conceito e os parâmetros das relações comerciais inerentes ao comércio justo, por outro lado existem grupos produtores que adotam o conceito 149 Os Apalai são cerca de dois mil índios que vivem no Parque do Tumucumaque, entre os Estados do Amapá e do Pará. O artesanato Apalai é conhecido pelo uso da semente de mará-mará. Esta semente é utilizada na confecção de colares, bolsas e pulseiras, sendo essa produção uma tarefa das mulheres. Elas também se dedicam a fabricação de potes e vasos em cerâmica. Já os homens produzem cestaria com talos de arumã, bancos, bordunas, arcos e flechas de madeira. Penas e peles de animais abatidos para consumo próprio compõem enfeites de parede, originalmente utilizados como peças de cerimoniais. 150 Projeto Especial de Qualificação dentro do Plano Nacional de Qualificação - PNQ, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). 151 148 de comércio justo e o estabelecem no relacionamento com atores do comércio convencional. É o caso dos índios Baniwa. Os Baniwa desenvolvem, em parceria com a OIBI (Organização Indígena da Bacia do Içana), com a FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) e apoiados pelo ISA (Instituto Socioambiental), o projeto Arte Baniwa (FOIRN; ISA, 2000). O projeto consiste na produção e comercialização da cestaria baniwa de arumã152. O artesanato Baniwa é comercializado no âmbito do projeto de desenvolvimento de alternativas econômicas sustentáveis para a região do Alto Rio Negro, desde 1997. O projeto objetiva a “produção sustentável e comercialização por encomendas, de forma autogerida, da tradicional cestaria Baniwa de arumã, em nichos de mercado que remunerem seu valor cultural e ambiental agregado, como parte de um programa mais amplo de consolidação de direitos indígenas coletivos” (BRESLER; OLIVEIRA, 2001 apud MARTINS; UNTERSTELL, S/D, p.1). Para o desenvolvimento do projeto foi imprescindível a articulação de uma parceria comercial que transcendesse a exclusiva relação compra-venda. De acordo com Martins, Unterstell (S/D, p.9) “o projeto demandava um parceiro interessado em divulgar o simbolismo agregado aos produtos, e não apenas os objetos em si; essa proposta conflitava com o conceito de negócio da cadeia varejista, que prescinde da identificação dos produtores”. Isso foi conquistado com a parceria da empresa de decoração Tok&Stok, após um longo e delicado processo de negociação (idem). A partir do ano 2000, a Tok&Stok passou a ocupar o papel de principal comprador do artesanato Baniwa, seguindo de perto a evolução dos produtos e da gestão da OIBI. “A empresa flexibilizou seus procedimentos internos relativos a prazos, quantidade de compras, etiqueta própria da associação produtora, entre outros itens que integravam o seu Manual de Fornecedores” (ibidem). Natalie Unsterstell, colaboradora do ISA, em entrevista153 afirma que “a Tok&Stok permitiu que os Baniwa conseguissem manter relações comerciais justas”, completando “é 152 Os objetivos centrais do projeto são: (1) valorizar o patrimônio cultural; (2) animar a produção de objetos de arumã, como forma de reciclagem e disseminação de uma tradição cultural milenar; identificar nichos duradoures de mercado, compatíveis com a capacidade de produção das comunidades; gerar renda para os produtores indígenas e suas associações; (5) contribuir para o uso sustentável dos recursos naturais; e (6) capacitar a FOIRN e associações filiadas no gerenciamento de projetos (FOIRN, ISA, 2000). 153 Entrevista realizada na sede do ISA em Manaus, no decorrer da pesquisa de campo, no segundo semestre de 2007. Obs. Fala transcrita. 149 mais uma questão dela (a Tok&Stok) permitir que gente desenvolva o comércio justo, do que ela praticar um preço diferente”, e conclui “a gente é que pratica o comércio justo”. Enfim, no caso do projeto Arte Baniwa, foi o esforço dos próprios Baniwa e das instituições parceiras que permitiu esse avanço em termos de gestão, onde a organização conhece e reconhece plenamente seus direitos e valores culturais. Devido a isso é que foi possível estabelecer um tipo diferente de relação comercial, onde o próprio grupo de produtores, mesmo negociando com parceiros convencionais, tem como prioridade a comercialização justa, ou seja, realizada conforme os critérios do comércio justo. Um fruto desse processo é o selo “Produto Indígena do Rio Negro”, que foi abordado no item 2.5.1. Outra iniciativa que merece destaque é o projeto Cacau Orgânico na Transamazônica, dirigido pela Fundação Viver, Produzir, Preservar (FVPP)154. A cultura do cacau (Theobroma cacao L.) é viável em sistemas agroflorestais, que protege os recursos naturais, recupera áreas alteradas e fixa o produtor na terra, garantindo sustentabilidade às famílias de produtores assentados ao longo da Rodovia Transamazônica, no estado do Pará. Entre as organizações de agricultores filiados à FVPP cresceu o interesse para a produção e comercialização de cacau orgânico e certificado, como meio de consolidar uma economia agropecuária e florestal sustentável alicerçada na produção familiar. A intenção é substituir o sistema tradicional de produção por um sistema orgânico e certificado. Para a certificação e venda coletiva foram fundadas sete cooperativas em sete municípios da região, totalizando 150 sócios produtores, que em 2007 comercializaram 80 toneladas de cacau em fase de conversão, ou seja, que ainda não receberam o selo orgânico. Em fevereiro de 2008, quatro dessas cooperativas receberam o Selo de Certificação Orgânica155, concedido pelo IMO156 Control do Brasil, e já realizaram vendas coletivas do cacau orgânico para o mercado externo, principalmente para a Europa. 154 A Fundação Viver Produzir e Preservar, é uma organização sem fins lucrativos, situada na Região da Transamazônica. Foi fundada em 1991 pela iniciativa das organizações camponesas, movimentos pastorais e populares urbanos e de educadores da Rodovia Transamazônica e do Rio Xingu, mas sua atuação enquanto movimento social organizado ocorre desde a primeira metade da década de 80 do século passado, após o abandono do projeto de colonização da região pelo governo federal. A FVPP congrega 113 organizações em 19 municípios do Oeste Paraense. Informações coletadas no site www.fvpp.org.br, em 10/07/09. 155 Além do cacau, foram certificados outros produtos da agricultura familiar como o café, o cupuaçu e o açaí. 156 A empresa IMO (Instituto de Mercado Ecológico) Control do Brasil se dedica exclusivamente aos serviços de inspeção e certificação de sistemas de controle de qualidade ambiental e social, com ênfase para a agricultura orgânica. É credenciada pela IFOAM e possui certificado ISO 65, que garantem o acesso aos maiores mercados consumidores: Europa, EUA e Japão. 150 Representantes das cooperativas, juntamente com a equipe do projeto, participam ativamente de feiras regionais157, nacionais e internacionais visando à divulgação dos produtos e sua inserção em circuito do comércio justo e solidário. Além disso, buscam estreitar laços com as instituições parceiras do projeto para consolidar o movimento cooperativo do cacau orgânico, conquistando mercados, para aumentar a renda agrícola e a qualidade de vida dos agricultores. O negócio tem gerado um lucro de cerca de noventa centavos por quilo (R$ 0,90/kg) em relação ao preço do mercado local. Esse lucro é destinado aos produtores, e não mais aos atravessadores, o que fortalece a economia local. Já é possível verificar a transformação positiva que o projeto tem gerado. Houve melhora no aspecto sanitário das lavouras e consequentemente uma produção de melhor qualidade, atendendo às exigências da certificadora. Os parceiros do projeto são a CEPLAC (Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira), que assessora trabalhos referentes a pesquisas e extensão rural; o DED158 (Serviço Alemão de Cooperação Técnica e Social), em conjunto com a SAGRI (Secretaria de Agricultura do Estado do Pará) e com o SEBRAE, assessoram a parte de certificação, comercialização e inserção dos produtos no comércio justo e solidário. Apesar das potencialidades dos produtos amazônicos, e da dimensão da região, são raros os produtos inseridos nas redes de comércio justo. O cacau e o açaí orgânico são produtos da fruticultura que estão dando os primeiros passos nessa direção. Produtos beneficiados são praticamente inexistentes dentro do circuito, como produtos comésticos ou remédios fitoterápicos. Importante ressaltar que existem inúmeros empecilhos que impedem a valorização dos verdadeiros produtos naturais. A maior dificuldade ainda está na falta de uma legislação nacional que reconheça as especificidades de vários produtos de manejo e que permita a sua comercialização, apesar de existirem várias instituições governamentais que incentivam esse tipo de produção. Durante o trabalho de pesquisa, foi possível constatar que o trabalho de assessoria de instituições governamentais e não governamentais é imprescindível para a organização dos 157 Uma caravana de 12 produtores de cacau orgânico filiados a seis cooperativas da região participaram da última edição do Frutal Amazônia e o Flor Pará, ocorrido em Belém, de 25 a 28 de junho de 2009. Os produtores tiveram a oportunidade de comercializar, em estande próprio, os produtos derivados do cacau que são fabricados artesanalmente. 158 O DED é uma instituição alemã de cooperação internacional, fundada em 1963, cujo objetivo principal é apoiar, em parceria com outras entidades, as pessoas dos países em desenvolvimento. A ação ocorre, principalmente, através do envio de profissionais qualificados (cooperantes) para a África, Ásia e América Latina (http://brasil.ded.de). 151 produtores, melhoramento dos produtos e para a inserção destes nos mercados. É o que conclui Norberto at al (2004, p.611) «é muito difícil uma organização de pequenos produtores se inserir nos fluxos internacionais do comércio justo sem o apoio de um arranjo institucional capaz de dar suporte ao processo de inserção ». Na Amazônia, os produtos comercializados no comércio justo internacional são resultados de projetos que obrigatoriamente envolvem atores internacionais, através de assessores técnicos, chamados de cooperantes, que passam a viver e trabalhar no local onde os projetos são executados. 3.6 – Uma rede de Comércio Justo na Amazônia? As redes, nessa e em outras denominações que igualmente caracterizam formas de cooperação e ação conjunta, ganham espaço na sociedade. Com objetivos políticos, vigoram associações dos mais diferentes tipos. São fóruns, coletivos, coalizões, parcerias, redes que se articulam dentro de redes, movimento de movimentos, como se designa o Fórum Social Mundial. A interatividade, movida por razões contra-hegemônicas é um poderoso motor de transformações e abre oportunidades históricas, ao mobilizar um tipo de globalização alternativa (SANTOS, 2005). Compartilhando desse contexto, o comércio justo é também um movimento que segue princípios éticos e que se articula em escala global. Sociedade e economia se estruturam em rede em virtude das possibilidades abertas pelas novas tecnologias de comunicação e pelas crescentes facilidades de as pessoas viajarem e se encontrarem para deliberar conjuntamente. Isso de fato tornou o mundo menor. Cada vez mais se acentua a compressão do tempo e do espaço (HARVEY, 1993), um conceito que explica o nítido encolhimento do mundo, através das inovações e facilidades do transporte e da comunicação. A internet, interconectando e permitindo trocas de informações em escala mundial, é a ferramenta fundamental através da qual se promove um novo modo de desenvolvimento, que Castells (1999) chama informacional. Seja para construir um mundo melhor ou para acumular capital, para todos os efeitos, na “Era da Informação ... as funções e processos sociais organizam-se cada vez mais em torno de redes” (CAPRA, 2002, p. 267). Em se tratando de redes, especialmente da consolidação de uma rede de comércio justo na Amazônia, não podemos deixar de refletir sobre a teoria de Mark Granovetter, um 152 dos pioneiros da Nova Sociologia Econômica159. De acordo com Raud-Mattedi (2005), o trabalho de Granovetter está centrado em identificar as formas de inserção social das ações econômicas e a influência destas relações sociais nos resultados econômicos. O teórico é um dos representantes do enfoque estrutural do mercado, visto como constituído de redes interpessoais (idem). Ele tem como tese a imbricação social160 que pressupõe que a “ação econômica é socialmente situada”, onde as ações dos indivíduos estão imbricadas em sistemas concretos contínuos de relações sociais: em redes sociais. Granovetter (1985) no artigo “Economic Actions and Social Structure: The problem of embeddedness” afirma que os atores sociais pertencem a redes de relações interpessoais, estando suas ações condicionadas por este pertencimento. Deste modo, o mercado não é espaço de um livre jogo de forças abstratas (oferta e procura), mas sim um conjunto de ações intimamente ligadas dentro de redes de relações sociais. Nessa perspectiva “as redes sociais facilitam a circulação de informações e asseguram a confiança ao limitar os comportamentos oportunistas” (RAUD-MATTEDI, 2005, p.65). Neste mesmo artigo, Granovetter esclarece o papel das relações pessoais concretas e das redes dessas relações no desenvolvimento da confiança, afirmando que num contexto onde indivíduos que se conhecem161 as relações econômicas são facilitadas. Ainda para Granovetter a atividade econômica nos países em desenvolvimento se encontra freada pela falta de confiança existente na sociedade. Raud-Mattedi (2005, p. 69) argumenta que “na análise estrutural, a confiança não é dada a priori pelas regras jurídicas ou morais mais gerais, mas se enraíza nas redes de relações interpessoais”. Nessas circunstâncias e com o objetivo de estimular alternativas produtivas e a comercialização da produção de pequenos produtores rurais e urbanos nos mercados nacional e internacional, também na Amazônia as associações e cooperativas de produtores precisam se articular mais entre si, com seus parceiros e com instâncias do Estado, para criarem um ambiente de confiança, superando assim os isolamentos que ainda reduzem suas possibilidades de realização. Para esse fim, além do uso da internet, dos encontros presenciais e das formas organizacionais que caracterizam as redes em geral, a formação de uma rede do comércio justo na Amazônia 159 A Nova Sociologia Econômica teria o mérito de analisar sociologicamente o mercado (núcleo da própria ciência econômica) considerando-o como uma “estrutura social” (Swedberg, 1994, apud Raud-Mattedi, 2005). 160 Ele se apóia na noção de Polanyi que afima que a economia é composta por instituições econômicas e também por instituições não econômicas (idem). 161 Ou cuja reputação é conhecida indiretamente através de um terceiro. 153 precisa explicitar e assumir um projeto aglutinador de pessoas, instituições públicas e entidades sociais. Quais são os conteúdos desse projeto? Esse é um bom tema para um debate construtivo e a rede deve mesmo nascer de uma discussão alargada capaz de envolver os principais interessados. Mas, para começar, podemos dizer que a proposta da Rede vem para associar produtores artesanais da Amazônia no objetivo de comercializar seus produtos de modo a gerar renda e desenvolvimento nas comunidades produtoras. O que se coloca é a possibilidade de organizações e grupos de pessoas se comunicarem intensamente para somar recursos e capacidades em torno do objetivo comum de produzir de acordo com certas éticas. Afinal de contas, dentro do comércio justo um dos primeiros passos para se efetivar uma exportação é a certificação, e para um grupo de produtores conseguir o selo é necessário que tenha um conjunto de competências: A organização deve ser capaz de compor um produto que cative o público alvo, de comunicar num idioma estrangeiro, de fazer contato com muitas organizações no exterior, ter acesso a web etc. A maior parte das organizações de produtores não possui essas competências. Por isso, a inserção de um maior número de pequenos produtores nesse segmento de mercado depende da articulação de um arranjo institucional que lhes dê apoio. (NORBERTO et al 2004, p.610). Essa articulação de um arranjo institucional é o que consideramos como rede. Para que a rede alcance resultados efetivos é necessário uma linha prática de ação. A rede do comércio justo significa a aglutinação de associações e cooperativas com atuação na Amazônia a fim de criar um contexto de troca de informações e apoios mútuos. Ademais de estabelecer interações entre os produtores locais, a rede deve objetivar articular estes a outras entidades e instituições que atuam nacional e internacionalmente no campo comércio justo. No contexto deste amplo e crescente mercado, a rede pode buscar, como motivo prático de sua existência, uma ação concertada entre entidades atuantes nesse campo de atividade para afirmar marcas de identidade de grupos produtivos regionais. Essa ação concertada pode vir a representar um objetivo específico do projeto da rede. Um resultado importante a ser perseguido pela rede é fazer com que, mediante efetivos intercâmbios em torno desta motivação prática, projetos empreendidos em remotos locais da Amazônia repercutam globalmente, abrindo possibilidades de colaborações e solidariedades. Assim, a rede do comércio justo e solidário representa tanto uma via de afirmação de identidades culturais produtivas como uma via de participação das associações e cooperativas 154 de produtores amazônicos no intenso movimento de solidariedade que articula globalmente centenas de movimentos sociais. Esse grande conjunto de movimentos, que o Fórum Social Mundial (FSM) reúne, se articula em torno da utopia crítica “um outro mundo é possível”. Irmanados, os movimentos lutam contra a exclusão, as desigualdades e a destruição da natureza, produzidas pela globalização neoliberal (SANTOS, 2005). Trata-se de uma globalização contra-hegemônica, que, como se vê, é apenas um lado da moeda. De outra parte, o poder de transformar a natureza em mercadorias aumenta em escala e rapidez crescentes. Na Amazônia, o meio-ambiente e as comunidades locais não são fatores relevantes à geração imediata de lucros e se os destrói indiferentemente dos seus significados e possibilidades futuras. Empresas, interligadas em cadeias produtivas globais, potencializam seus resultados segundo a velha e ainda funcional lógica das relações centroperiferia, dentro da qual a Amazônia continua a cumprir o papel de fornecedora de commodities. A característica de uma região que não produz para si, mas para fora, se afirma nas exportações crescentes de soja, alumínio, madeiras e ferro-gusa, não obstante os problemas ambientais e sociais (PEIXOTO, 2007). De forma que alianças estratégicas se fazem nos planos local e global para construir soluções sustentáveis ou para produzir riquezas, sem se importar com a degradação social e ambiental, tendo em vista, portanto, objetivos bem diferentes. Significa que a Rede precisa assumir um posicionamento político que, enquanto proposta, a situa ao lado de tantas outras redes e fóruns mundiais, temáticos, regionais e locais que compõem a grande Rede Global de Movimentos Sociais, que se reúne paralelamente ao Fórum Social Mundial (SANTOS, 2005). Um dos eixos integradores do Fórum Social Mundial (FSM) está na “convicção da possibilidade de outro mundo, mais justo e mais solidário, e na vontade política de lutar por ele” (idem, p.40). De forma que a rede significa antes de tudo uma atitude política. Contudo, qualquer rede para existir efetivamente precisa criar também uma agenda concreta, em torno da qual as entidades parceiras possam articular suas ações no dia-a-dia. A rede precisa iniciar-se com um projeto capaz de aglutinar parceiros. O que presenciamos na última edição do Fórum Social Mundial, ocorrida em janeiro de 2009, em Belém, foi uma grande Feira de Economia Solidária dentro do Fórum global de Economia Solidária, com uma vasta variedade de produtos e uma grande diversidade de assuntos sendo discutidos. 155 No entanto, as atividades relacionadas ao comércio justo estavam fora da programação do Fórum de Economia Solidária. Apesar de a Amazônia estar sediando pela primeira vez o FSM, somente o projeto Guaraná dos Sateré Mawê esteve presente nas discussões sobre comércio justo. Além do mais, 99% dos participantes das discussões eram estrangeiros, não tendo ocorrido sequer um debate em língua portuguesa. A Amazônia precisa ter voz, e a Amazônia brasileira fala português. Portanto, é imprescindível a formação de uma rede de comércio justo na Amazônia, para que além de voz, ela possa ter vez. 156 CAPÍTULO IV Experiências na Amazônia – A relação entre Turismo Comunitário e Comércio Justo 4.1 - O Turismo Comunitário e o Comércio Justo: de onde vem essa relação? Atualmente, o termo turismo é utilizado com demasiada facilidade. Na maioria das vezes, o turismo é considerado uma atividade geradora de divisas, de empregos e capaz de proporcionar o tão almejado bem estar social. Especialmente, em períodos de campanhas eleitorais, é comum a difusão da promessa, por aspirantes a cargos, de promoção da atividade turística, o que acaba gerando o mito, que manipula dados e pessoas, de que o aumento do turismo leva ao desenvolvimento socioeconômico. Certo é que o turismo está atrelado a números pujantes, pois segundo a OMT (Organização Mundial do Turismo) da ONU, a atividade gera anualmente cerca de US$4 trilhões, o que corresponde a 10% do PIB mundial, e emprega, direta e indiretamente, 200 milhões de pessoas. Fato é que o desenvolvimento do turismo sempre esteve pautado no molde econômico. Tanto é que alguns dos considerados como os principais teóricos do setor priorizam este aspecto, em detrimento de outros. É o caso de Beni (2000, p.65), que tem uma visão essencialmente economicista: O Turismo move-se na esfera do econômico. (...) Se o aspecto social, que de um certo modo o configura, tem fundamental importância para o sujeito da ação e pelos fins sociais que o motivam, desde o momento em que o turista está obrigado a submeter-se à situação econômica, (...), o fenômeno há de ser considerado nesta classe de modelo. O modelo de turismo adotado por governos neoliberais e pelos grandes empreendedores, que objetiva a acumulação de lucros e divisas, não trouxe e provavelmente não trará os benefícios prometidos e pregados em tantos discursos políticos e teóricos. O turismo, nesses moldes, acaba por não gerar emprego e renda para todos. Além do mais, cabe frisar que, ao mesmo tempo em que o turismo é capaz de melhorar os lugares, ao criar infraestruturas e oportunidades de trabalho aos residentes, além de prazer aos visitantes, gera também riscos, perigos e impactos. Segundo Salvati (2002, p.1), 157 com a ausência de um planejamento integrado, a exploração comercial do turismo mundial vem contribuindo, desde os anos 50, para o desequilíbrio ecológico, para a desagregação social e para a perda de valores culturais das comunidades anfitriãs, além de danos ao patrimônio histórico. Os impactos negativos do turismo referentes aos aspectos econômicos, sócio-culturais e ambientais são demostrados no seguinte quadro: Quadro 2: Impactos Negativos do Turismo Aspectos econômicos Não há uma redistribuição da renda Ganham os operadores comerciais em turística detrimento as populações locais Fuga da renda A maior parte do dinheiro gasto pelos turistas volta para os países emissores, pelos seguintes motivos: - Permissão para os estrangeiros de enviar lucros para o exterior; - Isenções fiscais para investidores estrangeiros sobre as rendas geradas pelo turismo; - Subsídios dos governos locais para investimentos externos de implantação de estruturas receptivas. Geralmente a oferta de subsídio ocorre com a diminuição de investimento na área social e de agricultura familiar; - Importação intensiva de gêneros de consumo não produzidos localmente. Inflação e aumento do custo de vida Nas localidades que se tornam destinos turísticos o custo de vida aumenta de forma generalizada, aumentando o preço dos bens de primeira necessidade e o valor dos imóveis. Pouca confiabilidade dos mercados - Os países receptores ficam fortemente emissores dependentes de mercados que não podem controlar; - Eventuais momentos de recessão nos países emissores ou crises cambiais podem afetar brutalmente o fluxo de turistas; - Problemas políticos ou sanitários e a forma como são divulgados pela imprensa internacional podem também afetar gravemente o fluxo turístico. Reduzido efeito multiplicador da despesa O subdesenvolvimento do local de destino, turística as diferentes prioridades da população local, os diferentes hábitos de consumo dos turistas e/ou o interesse dos operadores comerciais, não permitem um efeito multiplicador da renda no território local. Aspectos sócio-culturais Ausência de participação popular As populações locais não participam do 158 planejamento e das decisões relativas a gestão dos recursos. Conflitos fundiários - Grilagem das áreas de interesse turístico (principalmente nos litorais); - Invasão de áreas de populações tradicionais. Abandono das atividades tradicionais Abandono da agricultura e de outras atividades tradicionais e êxodo rural a procura de emprego nos centros turísticos. Dependência de tipo colonial Os investidores se apossam dos recursos naturais, exploram a mão de obra local e exportam os lucros Fortalecimento de regimes autoritários Em muitos países as empresas que investem em turismo estabelecem parcerias com governos autoritários; - Nestes contextos existem menos problemas trabalhistas e ambientais. Conflitos gerados pelo comportamento dos Transgressão; turismo sexual; uso de turistas drogas, fotografias, mercantilização da cultura. Aspectos ambientais Alteração de áreas naturais para Deflorestamento, alteração de construção de infra-estruturas ecossistemas, assoreamento de rios, desertificação, alteração da paisagem natural. Impactos diretos das atividades turísticas - Aumento da produção de lixo; - Poluição de mares e rios; - Consumo excessivo de água; - Desperdiço energético; Superação da capacidade de carga do local. Fonte: Renzo Garrone (2004) Justamente contra os malefícios gerados pelo turismo tradicional é que se propõe uma alternativa de turismo centrado no trabalho de comunidades e de grupos solidários. Nesse sentido, estamos de acordo com a professora Luzia Neide Coriolano, da Universidade Federal do Ceará, para quem, mais do que apenas enfatizar as potencialidades econômicas da atividade, é preciso considerar o problema da distribuição dos benefícios: importa a forma de realizá-lo, ou seja, a definição do que se quer alcançar, se a acumulação de lucros na mão de grandes empresas ou oportunidades para um maior número de pessoas, com maior distribuição de benefícios. Os resultados do turismo podem estar dirigidos apenas ao mercado, com acumulação de lucros ou incluindo grupos e comunidades, com valorização de pessoas e do patrimônio natural e cultural”. Coriolano (2006, p.1) 159 É baseado nesta nova forma, mais humana e politicamente considerada de abordar o turismo, que pretendemos encontrar no Turismo Comunitário162 as respostas para uma alternativa de desenvolvimento na Amazônia. Essa alternativa deveria ser capaz de possibilitar às comunidades da região o desabrochar de suas potencialidades, garantido suas necessidades básicas, tais quais o trabalho, a saúde e a educação. Justiça social, equidade, respeito e a participação democrática de todos os atores do território, no processo de planejamento e decisão, caracterizam o Turismo Responsável e garantem que a comunidade se beneficie com os resultados. Conforme Somoza (2006), para a prática do Turismo Responsável um critério fundamental é a consciência: estar consciente de si e das próprias ações, mesmo quando são mediadas pelo ato de comprar, seja uma passagem, um presente ou um quarto para dormir. Turismo Responsável é também estar consciente da realidade dos lugares de destino, no que diz respeito a questões sociais, culturais, econômicas e ambientais. Enfim, a prática da modalidade implica uma escolha pensada e, portanto, diferente da visão convencional. Ainda Somoza sintetiza de maneira muito clara que o turismo responsável é um modo de viajar com ética e consciência, buscando nos lugares de destino um encontro com as pessoas e a natureza, com respeito, disponibilidade e tolerância. O conceito de Turismo Responsável adotado pela AITR163 (Associação Italiana Turismo Responsável) é164: O turismo responsável é o turismo atuado segundo os princípios de justiça social e econômica e com pleno respeito ao meio ambiente e às culturas. O turismo responsável reconhece a centralidade das comunidades locais e o seu direito de serem protagonistas no desenvolvimento de um turismo sustentável e socialmente responsável do próprio território. Opera favorecendo a positiva interação entre a indústria do turismo, comunidades locais e viajantes. A Itália foi um dos países precursores e um dos maiores incentivadores dessa nova forma de abordar o turismo. Desde os anos 80, o terceiro setor, mais precisamente as 162 Também chamado de Turismo Responsável de base comunitária. A Associação Italiana Turismo Responsável é uma associação sem fins lucrativos que atua para promover, qualificar, divulgar, pesquisar, atualizar e tutelar os conteúdos culturais e as ações práticas relativas à expressão “turismo responsável”. Promove a cultura e as práticas de Turismo Responsável e favorece o conhecimento, a coordenação e sinergia entre os associados. 164 Traduzido pela autora a partir de “Il turismo responsabile è il turismo attuato secondo i principi di giustizia sociale ed econômica e nel pieno rispetto dell’ambiente e delle culture. Il turismo responsabile riconosce la centralità della comunità locale ospitante e il suo diritto a essere protagonista nello sviluppo di un turismo sostenibile e socialmente responsabile del proprio territorio. Opera favorendo la positiva interazione tra industria del turismo, comunitá locali e viaggiatori”. 163 160 organizações promotoras de comércio justo, promovem viagens de conhecimento e solidariedade com as comunidades do Sul do mundo. Foi em 23 de novembro de 1997, que em Verona, onze associações empenhadas no setor do turismo, escreveram um documento denominado Turismo Responsabile: Carta d’Identità per Viaggi Sostenibili. O objetivo do documento era promover um modo de fazer turismo que fosse ético na distribuição dos lucros, que respeitasse as comunidades locais e que tivesse baixo impacto ambiental. A intenção da Carta era evidenciar os pontos imprescindíveis através dos quais fosse possível realizar uma viagem com tais características. As onze associações que compuseram a Carta formaram em maio de 1998 a Associação Italiana Turismo Responsável (AITR) para a difusão e a realização dos princípios que compõem o documento. Atualmente, a AITR é formada por 86 associações não lucrativas com o objetivo de trabalhar para o reconhecimento da centralidade das comunidades locais receptoras e do direito delas serem protagonistas do desenvolvimento turístico. De acordo com Somoza (2007), as ONGs associadas à AITR estão atuando em mais de vinte projetos na África, na Ásia e na América Latina, financiados com recursos italianos, europeus e da OMT (Organização Mundial do Turismo). Além disso, os operadores turísticos associados à AITR oferecem em seus catálogos mais duzentas ofertas de viagens, exclusivamente, de turismo responsável. Os projetos executados pelos vários sócios da AITR são direcionados a apoiar processos de desenvolvimento autônomo e a integrar comunidades marginais no circuíto do turismo responsável. Um desses projetos é a rede amazônica de Manaus – Silves – Barreirinha, que reúne os ribeirinhos de Silves e os índios Sateré-Mawé. Este projeto nasceu dos projetos geridos pelas Ongs ASPAC, ICEI e WWF. É evidente a profunda ligação existente entre Turismo Responsável e Comércio Justo. Na Itália é a associação Ram que, desde 1993, insere o turismo responsável nas Lojas de Comércio Justo. Ainda no ano 2000, a Ram iniciou o “Progetto sportelli di turismo responsabile” dentro das Lojas de Comércio Justo, apoiadas pela AITR e pela associação de lojas de comércio justo italianas “Assoboteghe”. Os representantes das lojas interessadas seguiram um curso de formação e depois começaram a desenvolver a atividade dentro das lojas. Desse projeto surgiram mais de vinte pequenas agências de turismo responsável dentro das lojas espalhadas pela Itália. Paralelamente, outras organizações de Comércio Justo começaram a promover viagens responsáveis aos lugares de proveniência dos produtos de Comércio Justo, 161 programando visitas às cooperativas de produtores locais. Não restam dúvidas de que as atividades relacionadas ao Turismo Responsável podem ganhar novas dimensões se aproveitar a experiência já acumulada pelo movimento do Comércio Justo. 4.2 – A rede Turisol165: articulando o turismo comunitário no Brasil A Rede Brasileira de Turismo Solidário e Comunitário TURISOL articula organizações e experiências que consolidam uma proposta de turismo comunitário no Brasil. O turismo comunitário ou solidário se baseia nos princípios da Economia Solidária e pretende ser uma alternativa ao turismo convencional, pois critica o mito do turismo como gerador de emprego e renda e denuncia as políticas centradas na atração de investimentos que não levam em consideração a participação e o envolvimento das comunidades locais. A rede reúne 13 projetos, abrangendo 8 Estados brasileiros e 61 municípios. A rede nasceu informalmente em 2003 com o objetivo de incentivar a reflexão sobre os efeitos do turismo e de consolidar os empreendimentos de turismo solidário do Brasil. O grupo de interlocução sobre o tema foi formado por uma iniciativa da Embaixada da França no Brasil que iniciou, em fevereiro daquele mesmo ano, um programa de cooperação no setor de Economia Solidária. Para fomentar uma discussão sobre o turismo solidário no Brasil, a Embaixada reuniu em Brasília, julho de 2003, representantes de diversos projetos que já estavam em andamento, representantes do Poder Público e de entidades de apoio. A partir dessa reunião 7 projetos166 foram convidados a representarem o país no Fórum Internacional de Turismo Solidário (FITS), ocorrido em setembro de 2003, em Marseille/França. 165 Informações coletadas no site http://turisol.wordpress.com , e na apresentação de Ana Gabriela Fontoura no Fórum Global de Turismo, no Fórum Social Mundial 2009. 166 Os sete projetos brasileiros fora: Prainha do Canto Verde (Ceará); Acolhida na Colônia (Santa Catarina); Ecoporé (Rondônia); Palmatur (Ceará); Parque Regional do Pantanal (Mato Grosso do Sul); Pousada Aldeia dos Lagos (Amazonas); e Bordados da Caatinga (Piauí). 162 Esses encontros geraram grande entusiasmo e interesse nos participantes de continuar a comunicação, trocando experiências e contribuindo para o fortalecimento do turismo comunitário no Brasil e assim se formou a rede. Entretanto, até 2007 nenhuma das organizações participantes pôde assumir a coordenação da rede, pois estavam dedicadas à execução dos seus próprios projetos. Foi com o apoio da Ashoka Empreendedores Sociais e Fundação Artemísia, que as organizações Projeto Bagagem, Acolhida na Colônia, Prainha do Canto Verde, Fundação Casa Grande, Instituto Terramar, Grãos de Luz e Griô e Ministério do Meio Ambiente realizaram, em novembro de 2007, um Encontro de Turismo Comunitário para retomar a consolidação da Rede Brasileira de Turismo Solidário e Comunitário. Paralelamente, o Ministério do Turismo (MTUR) se sensibilizou com a questão e organizou uma reunião em outubro de 2007 para discutir uma proposta de formação de uma rede brasileira de turismo comunitário. Participaram da reunião os projetos: Acolhida na Colônia, Projeto Bagagem e Fundação Casa Grande; além do Instituto Virtual do Turismo da UFRJ, e dos Ministérios do Meio Ambiente (MMA) e de Desenvolvimento Agrário (MDA). Percebendo que a rede já existia, o Ministério do Turismo, em vez de apoiar a criação de uma nova rede, lançou um edital em junho de 2008 para a chamada de projetos de Turismo Comunitário. A partir desse edital, alguns membros da Turisol se articularam e fizeram a incrição organizada da rede, configurando assim o plano de trabalho da Turisol. As principais linhas de atuação da Turisol são: 1. Formação e Capacitação: Promove a realização dos Encontros de Formação, Encontro Nacional e participação em eventos nacionais e internacionais sobre Turismo Comunitário 2. Produção de Conhecimento: Envolve a produção de materiais didáticos sobre os temas trabalhados nos encontros de formação e sobre metodologias de sucesso testadas e implantadas pelos membros da rede. Publicações e vídeos são os produtos dessa linha. 3. Impactos em Políticas Públicas: Envolve o diálogo com os Ministérios e Secretarias, reuniões, sugestões, elaboração de editais, participação em rede em editais, para o fortalecimento do Turismo Comunitário e a criação de políticas, programas e ações governamentais por um turismo justo. 4. Promoção e Comercialização: Envolve o fortalecimento dos destinos da rede por meio da criação de produtos promocionais e estratégias de comercialização conjuntas do turismo comunitário. 163 Da Amazônia, compõem a rede os seguintes projetos: a Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural (ASPAC) – Silves (AM); o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá – Tefé (AM); e o Projeto Saúde e Alegria em Santerém, Belterra e Aveiro (PA). Todos os projetos da rede seguem princípios de turismo comunitário, no entanto não existe ainda uma carta que unifique os princípios seguidos pelas várias organizações. Uma tentativa de união desses princípios pode ser encontrada no site da Turisol (http://turisol.wordpress.com). Assim como nos princípios, as organizações ainda não definiram um conceito único para o Turismo Comunitário. Uma das definições mais abrangentes é a do projeto bagagem, que entede Turismo Comunitário como: a atividade turística desenvolvida com base nos princípios da transparência, conservação e participação, onde a principal atração é o modo de vida da população local. O objetivo é beneficiar prioritariamente os moradores, que são gestores e proprietários dos empreendimentos turísticos, valorizar a cultura e contribuir com a preservação do meio ambiente. Trata-se de uma alternativa de renda que complementa atividades tradicionais já praticadas e seu processo de planejamento e implementação deve acontecer com a liderança e intensa participação da população, fortalecendo as associações e cooperativas locais e viabilizando projetos comunitários. O Projeto Bagagem167 é uma ONG que promove roteiros turísticos interligando os projetos de turismo comunitário. Oferece dois roteiros na Amazônia o: “Amazônia Ribeirinha” desenvolvido em parceria com o Projeto Saúde e Alegria; e o “Gurupá Terra das Águas” desenvolvido com o Instituto Gurupá e a Casa Familiar Rural de Gurupá. Ambos os roteiros são realizados em 7 dias e as atividades são realizadas nas comunidades locais. No caso do “Amazônia Ribeirinha” a hospedagem é realizada em redes no barco do Projeto Saúde e Alegria. No “Gurupá Terra das Águas” o turista pode se hospedar no barco ou na comunidade. 4.3 - O turismo na Amazônia: a necessidade de uma inversão de prioridades. As iniciativas de turismo responsável pretendem o envolvimento e a participação das populações locais nas dinâmicas do desenvolvimento econômico e social, promovendo assim a organização comunitária e fortalecendo os processos de descentralização e valorização do território. Baseado nos princípios da economia solidária, o turismo de base comunitária se apresenta como alternativa aos projetos de turismo convencional, ou seja, como uma 167 Mais informações no site www.projetobagagem.org 164 oportunidade importante de atividade integrada à valorização de práticas sustentáveis de uso dos recursos naturais. O turismo comunitário promove a interculturalidade, e esse é um dos seus aspectos mais interessantes. No entanto, na Amazônia ainda persistem os “grandes projetos”, inclusive para o setor do turismo. Tais projetos se apoiam na lógica de que o turismo convencional é um grande vetor de desenvolvimento. Um exemplo é o projeto “Parque Amazônia”, cuja a intenção era atrair investidores internacionais, por isso foi contratada a empresa de consultoria norte americana Morris Architects para elaborar o projeto. Até agora foram investidas grandes quantias de recursos públicos, que gerou emprego e renda somente para os dependentes dessa empresa estrangeira. O parque abrangeria uma área de 19.000 acres às margens do Rio Guamá, onde existem florestas primárias e secundárias preservadas em 68% da área do local. Em suas primeiras fases, o projeto previa aparelhos de recreação e aventura, pesquisa e educação, da mesma forma que espaço para entretenimento cultural, áreas para "shopping" e zoológico. Além disso, previa a construção de hospedarias ecológicas, hotéis ecológicos e "resorts" integrados, planejados para trazer o hóspede mais “próximo do ambiente que o rodeia”. Todavia, na área destinada ao projeto168 não existe sequer uma comunidade amazônica. Mais uma vez o homem é esquecido, parecendo que a Amazônia só é composta por florestas e animais. Provavelmente, se executado o projeto, atores se vestirão de índios, ou os próprios índios serão contratados para se auto-representarem. Atualmente o projeto está parado por uma série de razões que vão desde problemas burocráticos, da fase de sua elaboração, até um novo modo de conceber o turismo da atual gestão da Paratur (Companhia Paraense de Turismo). Um exemplo de Turismo Comunitário no Estado é o Projeto Saúde & Alegria169 que atua, desde 1987, em comunidades extrativistas dos rios Amazonas, Tapajós e Arapiuns, nos municípios de Santarém, Belterra e Aveiro, abrangendo uma área territorial de 44.025 Km² e um total de 292.650 habitantes. A sua missão é “apoiar processos de desenvolvimento integrado e sustentável, geridos pela própria população, que possam contribuir de maneira demonstrativa no aprimoramento de políticas públicas, na melhoria da qualidade de vida e no 168 169 Que é a área de desapropriação da fazenda Pirelli, nos arredores de Belém. Não foi realizada pesquisa de campo na área do Projeto Saúde & Alegria. 165 exercício da cidadania” (POMPERMAIER at al, 2007). É nesse contexto que nasce a ação de ecoturismo de base comunitária dentro do programa “Economia da floresta”. Foi a partir da recepção de parceiros e financiadores do projeto que se observou a necessidade de facilitar e mediar a interação entre visitantes e comunidades. Em 2001, graças a uma parceria com o Projeto Bagagem170, foi organizado o primeiro roteiro chamado “Amazônia Ribeirinha”. Nesse roteiro, grupos de no máximo 15 pessoas viajariam, a partir de Santarém, navegando pelos rios Tapajós e Arapiuns e visitando seis comunidades, para conhecer essa particular realidade amazônica. Atualmente, o PSA oferece vários roteiros e também organiza viagens sob medida, contribuindo para a melhoria das condições de vida das comunidades. De acordo com Márcio Halla, que foi coordenador de Economia da Floresta do projeto Saúde & Alegria, “o aspecto central do desenvolvimento regional no campo do Ecoturismo de Base Comunitária, no momento atual, deve estar centrado no planejamento e aprimoramento da capacidade de auto-gestão” (HALLA, 2008, p. 3). Acreditando nisso é que consideramos a prática do ecoturismo comunitário como uma alternativa de desenvolvimento da Amazônia. O artigo 5 do Código Mundial de Ética do Turismo afirma o turismo como “atividade benéfica para os países e para as comunidades de destino” e afirma que “As populações e comunidades locais devem estar associadas às atividades turísticas e participar equitativamente nos benefícios econômicos, sociais e culturais que geram, e sobretudo na criação de emprego direto ou indireto resultante” (OMT, 1999). Porém, é preciso estabelecer critérios e cuidados para que as comunidades não corram o risco de “se tornarem objetos de consumo, de se moldarem ao mercado, de perderem a naturalidade e se comportarem como exóticos para atender às expectativas dos visitantes, de enfim terem a sua identidade mercantilizada (FIGUEIREDO, 2002, p. 53). Portanto, a prática do turismo comunitário requer que as comunidades receptoras tenham consciência das diversas possibilidades desse processo, para que possam atuar como agentes ativos da sua própria inserção nesse campo. A Amazônia, em virtude de sua rica biodiversidade, das suas várias culturas e da sua pujante natureza, composta de exuberantes rios e florestas, se apresenta como um destino 170 Projeto Bagagem: Associação sem fins lucrativos que busca fortalecer o turismo comunitário no Brasil, através da promoção de convivência de turistas com as comunidades receptoras por meio de atividades recreativas que valorizam o meio de vida local. Atualmente, dispõe de dois roteiros na Amazônia Paraense. Um com o Projeto Saúde & Alegria e outro com a Fase de Gurupá. 166 muito atrativo para a prática do ecoturismo. Contudo, a região sofre com o avanço de frentes capitalistas que produzem a degradação das suas populações tradicionais e a destruição da natureza. No bojo dessa contradição, ampliar as possibilidades do turismo comunitário significa contribuir para viabilizar uma alternativa virtuosa de desenvolvimento, capaz de valorizar o protagonismo local, a afirmação de lideranças comunitárias e do próprio espírito de solidariedade. Assim, o turismo comunitário significa também uma das bases para a estruturação de uma economia da floresta. 4.4 – Dois casos que envolvem quatro experiências na Amazônia Nesse tópico apresentaremos dois projetos bem sucedidos na região: um de turismo comunitário e outro de comércio justo. Tais projetos demonstram claramente a ligação do Turismo Comunitário e do Comércio Justo, especialmente quando se trata de uma região como a Amazônia. Do projeto de turismo comunitário nasceu uma experiência modelo de organização de produtores que atuam com os princípios da Economia Solidária. Do projeto de comércio justo nasce uma pousada que pretende ser referência de ecoturismo indígena comunitário. Os projetos se encontram e é possível perceber um círculo virtuoso, onde é tangível a cooperação, a solidariedade e a troca de experiências. I - A Pousada Aldeia dos Lagos e a Avive: novas dinâmicas para o município de Silves AM A partir da visita de campo realizada em agosto de 2007, em Silves (AM), para conhecer a experiência de turismo de base comunitária da pousada Aldeia dos Lagos, foi possível identificar aspectos determinantes para o sucesso de uma iniciativa de organização comunitária na efetivação de um projeto de turismo integrado aos interesses dos locais. O estudo de caso foi construído a partir das informações colhidas durante a pesquisa de campo. Para a pesquisa utilizamos o método da história oral, através da realização de entrevistas semi-estruturadas com atores locais determinantes, que vivenciaram o processo histórico e que atuam nos projetos até hoje. A partir das informações colhidas pôde-se perceber o preponderante papel da Igreja Católica para o fortalecimento das comunidades, tanto no próprio município quanto em outras regiões da Amazônia. Nos anos sessenta houve um esvaziamento das zonas rurais, com grande migração para os centros urbanos. Isso foi resultado da desestruturação do tradicional 167 sistema de aviamento171, o que repercutiu no aumento da pobreza, que foi evidenciada por processos de injustiças sociais. A Igreja Católica buscou desenvolver ações para melhorar as condições de vida das populações ribeirinhas, para garantir a sua permanência no lugar de origem. Deu início, então, às Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, na perspectiva da reestruturação social dos assentamentos rurais da região. Com a estruturação política e social de vários setores sociais, através das CEBs e do Movimento de Educação de Base (MEB), muitos grupos populares se fortaleceram e os assentamentos passaram a ser conhecidos como “comunidades”. Reconhece-se então, como pano de fundo, toda uma formação dos grupos comunitários baseada em princípios éticos e morais. O respeito a esses princípios foi um fator determinante para a consolidação das associações e cooperativas em Silves. Vicente Neves, atual coordenador da Pousada Aldeia dos Lagos, relata que: todas essas coisas que acontecem até hoje estão muito relacionadas à questão religiosa. A gente começou o trabalho de base nas Comunidades Eclesiais de Base. Foi um período interessante da minha vida porque eu acho que a gente tem que ter uma formação na vida da gente, que nesse caso foi uma formação interessante. Apesar de não ser uma formação que a gente foi formado pra ganhar dinheiro, pra empreender e tudo mais, foi uma formação que eu não me arrependo. Em Silves, foi possível conhecer a ASPAC – Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural, responsável por todo o projeto de preservação dos lagos e pela Pousada Aldeia dos Lagos. Conhecemos também a AVIVE – Associação Viva Verde da Amazônia, que é constituída por mulheres produtoras de óleos e essências da floresta, que trabalham na produção de velas repelentes, incensos e sabonetes aromáticos. Interessante constatar que também na Avive, as participantes tiveram uma formação relacionada aos projetos da Igreja Católica. Bárbara Bschmal, alemã aromaterapeuta, associada precursora da constituição da Avive afirma: As senhoras da Avive, grande parte foi formada na Pastoral da Terra, foi muito bom. A gente tem algumas cartilhas que ensinam até a fazer sabão de breu, ou seja, sabão a base de sebo e com a resina de breu. Tem uma receita fantástica. Interessante isto, não? Por quê que eles ensinaram, né? Eu acho 171 De acordo com Aramburu (s/d) “O aviamento, termo cunhado na Amazônia, é um sistema de adiantamento de mercadorias a crédito. Começou a ser usado na região na época colonial, mas foi no ciclo da borracha que se consolidou como sistema de comercialização e se constituiu em senha de identidade da sociedade amazônica”. 168 muito bacana [e completa]. E que não explorou. A Igreja foi uma empresa social. Ela utilizou os conhecimentos em beneficio dos próprios praticantes locais, enquanto as empresas de hoje, elas vêm, aplicam uma ou outra coisa, mas o grande ganho é pra elas e a Igreja fazia isto sem ganho pra ela. As duas experiências estudadas estão bem consolidadas. A Aspac é ligada ao turismo de base comunitária e a Avive apresenta grande potencial de inserção dos seus produtos na rede de comércio justo e solidário. Analisando essas realidades, foi possível identificar os aspectos principais para a consolidação de experiências similares. Constatou-se que iniciativas desse gênero são capazes de transformar a realidade de todo um território, antes suscetível ao atraso e ao abandono. A pesquisa de campo em Silves foi divida em duas partes: uma referente à experiência da Aspac, desde os seus aspectos gerais até a estruturação do programa de ecoturismo de base comunitária; outra referente à Avive, como consolidação de um grupo de mulheres com produtos de qualidade e bem desenvolvidos aptos a serem inseridos no circuito do comércio justo. Porém, consideramos necessário partir da contextualização do município de Silves para entender como as dinâmicas dos dois projetos se inserem e modificam o perfil do território. a) Contextualizando Silves (AM) O município de Silves é um dos mais antigos núcleos de colonização do Estado do Amazonas. Origina-se em 1663, a partir de uma missão da Ordem das Mercês com a concentração das tribos indígenas locais. Está localizado no nordeste do Estado do Amazonas, na região do Baixo Amazonas, a leste da capital Manaus, de onde dista 330 km por rodovia ou 250 km por via fluvial. O acesso por rodovia é realizado pela AM -10, que liga Manaus à Itacoatiara até o Km 178 da via. Depois é preciso percorrer outra estrada por mais 72 km, a maior parte de terra, para finalmente alcançar Silves. Para o visitante independente, o modo mais cômodo de chegar a Silves é de ônibus até Itacoatiara, com duração de quatro horas, de onde se pega um expresso (pequena embarcação coberta com capacidade para cerca de 50 passageiros) e por volta de 50 minutos se alcança o porto de Silves. A população de Silves foi estimada em 8.771 habitantes, no ano de 2004. O município depende, principalmente no que se refere a produtos e serviços, de Manaus e de Itacoatiara. O acesso à internet via rádio é precário, podendo ser interferido com qualquer mudança 169 climática. Para sua subsistência, a população depende quase que exclusivamente da pesca e sofre uma grande pressão sobre este recurso. Sua área territorial total é de 3.747,279 km² (www.wikipedia.org), o que faz do município um dos menores do Estado. A sede do município está localizada em uma ilha fluvial banhada pelas águas do rio Urubu e do lago Saracá, com topografia particular, pois existem desníveis acentuados entre a orla e o centro da ilha. Dos pontos mais altos da cidade, com 46 metros de altitude, é possível gozar de uma vista particular da paisagem amazônica. O rio Urubu forma o lago do Canaçarí, um dos maiores da região, cujas águas na época da cheia (de janeiro a junho) ultrapassam os limites do lago unindo-o ao rio Amazonas. No período de seca (de julho a dezembro) o lago divide-se em dezenas de pequenos lagos conectados até atingir o rio Amazonas. b) O cenário do turismo no município Com uma geografia particular e cenários exuberantes, o turismo ecológico se consolidou em Silves como uma importante alternativa de renda. Com a presença de dois empreendimentos turísticos, a Guanavenas Pousada Hotel de Selva e a Pousada Aldeia dos Lagos, o turismo em Silves garante trabalho a uma parte dos moradores da cidade. O Guanavenas Pousada, tipologia de hotel de selva, foi inaugurado em 1980 e é dotado de uma grande estrutura física com todas as facilidades de um hotel de luxo como: piscinas, sala de jogos, campos de recreação, entre outros. Recebe cerca de 1.800 hóspedes por ano, sendo a maior parte estrangeiros. O hotel é cercado como uma fortaleza, por lagos, igarapés e floresta, não promovendo a interação com a população local, utilizando raramente os seus serviços. A falta de integração com a comunidade local perfaz a principal diferença da Pousada Aldeia dos Lagos. A Pousada Aldeia dos Lagos, que está localizada no outro extremo da ilha, nasceu para realizar o turismo de base comunitária. Oferece roteiros em que os visitantes possam interagir com as comunidades, enriquecendo-se culturalmente. Prima por utilizar os serviços oferecidos pelas comunidades locais. Assim, busca-se contribuir para o comércio local garantindo uma maior geração de renda para a população local. A pousada foi inaugurada em 1994, sendo criada e gerida pela ASPAC - Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural. A Aspac merece destaque nesse trabalho por ter unido à luta pela preservação 170 ambiental a um empreendimento turístico. Tal empreendimento significou uma alternativa de renda para a comunidade e garantiu a transformação da realidade silvense. Figura 12: Cidade de Silves Foto: Kércia Figueiredo c) A ASPAC: histórico e parcerias A Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural – ASPAC é uma entidade jurídica de direito privado sem fins lucrativos, com autonomia financeira e administrativa, que foi fundada no município de Silves (AM), em 19 de março de 1993 (PINTO, 2004). Nasceu a partir de um movimento de defesa ao meio ambiente, desde os anos oitenta, junto com as comunidades ribeirinhas, principalmente, no que se refere à conservação de áreas aquáticas e de várzea, contra a invasão dos grandes barcos pesqueiros (idem). Como afirma Vicente Neves, que participou desde o início dessa luta: Nesse processo é que começa os primeiros trabalhos de ecologia, sem o pessoal saber o que exatamente estavam fazendo, essa parte ecológica que, na verdade, não era nem tanto moda por aqui. Que no final das contas tudo atualmente é questão de sustentabilidade, é sustentável, é não sei o que e tal. Então, nós começamos esse trabalho sem ter muita consciência, consciência de... nessa questão de sustentabilidade, de ecologia, essa coisa. Era mais uma questão de pele mesmo, de fome, de sobrevivência mesmo, não tinha tantas ideologias. O pessoal aceitaram realmente a começar a fazer o trabalho de preservação por causa que eles viram que realmente não tinha peixe. Dessa forma, pode-se notar que todo o discurso de defesa ao meio ambiente não aconteceu com escopo puramente ideológico, mas sim por uma questão de necessidade, já que a fonte de subsistência das populações tradicionais estava desaparecendo. De fato os peixes estavam acabando. A Aspac, a partir de sua legalização, garantiu a aprovação de importantes leis municipais para regulamentar as atividades pesqueiras e determinar o fechamento de 171 lagos estratégicos, como áreas permanentes de preservação. O resultado foi a fiscalização permanente dos lagos pelos próprios ribeirinhos. Além do mais, a pesca predatória e de grande porte foi banida da região. Enfim, a constituição da Aspac significou uma estratégia de garantir o controle da gestão do território pelas comunidades ribeirinhas, além de garantir a conservação dos recursos naturais da várzea. Em 2002, um conjunto de organizações, formado pela WWF, pela Universidade Federal do Amazonas, e pelo Governo Federal, realizou pesquisas nas quais constataram que em cinco dias da semana os moradores locais comiam peixe. As pequisas apontaram que a atividade da pesca representa cerca de 45% da economia local, principalmente para as comunidades rurais. Mesmo sendo para a subsistência e não para a comercialização, na contabilização do final do mês, a economia representava 45% da renda das famílias. Portanto, sem a pesca haveria um enorme desequilíbrio. Foi através do movimento172 de preservação dos lagos e dos comitês de defesa da pesca comunitária, que os ribeirinhos se articularam com parceiros nacionais e internacionais para a viabilização de um projeto de gestão territorial de base local, a fim de garantir a sustentabilidade dos grupos sociais envolvidos. Como resultado da luta da ASPAC, foi implantado na região um sistema de proteção de lagos de várzeas amazônicas. São três os tipos de áreas de manejo de lagos: 1. Lagos de Procriação – Lagos Santuários, totalmente protegidos, onde ocorre a reprodução dos peixes; 2. Lagos de Manutenção – Lagos onde é permitida somente a pesca artesanal de subsistência, garantindo a alimentação e renda da comunidade; 172 Segue a lista de parceiros envolvidos no processo: Igreja Católica, através da Comissão Pastoral da Terra (CPT); Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Silves; Prefeitura Municipal de Silves, através da Secretaria de Meio Ambiente; WWF Brasil, Fundo Mundial da Natureza – Viabilizou grandes financiamentos através de doações dos Governos a Áustria e Suécia; IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental na Amazônia) de SantarémPA – transferiu informações e técnicas para gestão dos recursos das várzeas de Silves, através do seu Programa de Manejo de Várzea; GTA (Grupo de Trabalho da Amazônia) – capacitou o pessoal local para assumirem funções administrativas, de recepção e de gestão da infra-estrutura turística; IPA (Instituto de Permacultura da Amazônia) - transferência de tecnologia para a produção experimental de produtos agrícolas; AVIVE (Associação Viva Verde da Amazônia); Associação Profissional dos Pescadores do Município de Silves; Viverde – Agencia de turismo de Manaus; COOPTUR – Cooperativa de Trabalho em Turismo da Amazônia; IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) – A ASPAC é um dos representantes da região norte no Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA); SEBRAE; PPG7 (Programa Piloto para a Proteção de Florestas Tropicais do Brasil). A região de Silves foi escolhida, junto com o projeto várzea de Santarém, como área piloto para implantação de um sistema de monitoramento e controle dos recursos naturais da várzea dentro do Pró-Várzea - Projeto de Manejo dos Recursos Naturais da Várzea. 172 3. Áreas de Exploração Pesqueira – Demais rios, igarapés e lagos, onde é permitida a pesca comercial, salvaguardando restrições de leis federais, estaduais e municipais. No ano de 1993, a aprovação de uma lei municipal garantiu este sistema de manejo com a criação de uma área de proteção dos lagos de preservação. Enfim, a ASPAC pretende garantir a conservação e manejo dos recursos naturais de várzea consolidando um programa de preservação dos lagos, um programa de turismo ecológico junto às comunidades e a implantação de um sistema produtivo agro-ecológico integrado para os produtores da região. Figura 13: Mapa da região de Silves Foto retirada do site www.ibama.gov.br/provarzea, em 12/07/09. Para viabilizar a implantação da estrutura receptora de turismo de base comunitária e da conservação dos lagos, a Aspac contou com importantes recursos financeiros garantidos graças aos seus parceiros. Com isso, a associação pôde evoluir no seu processo de gestão. Segundo Pinto (2004) até o ano de 2004, estes investimentos totalizaram cerca de US$ 738.000,00 (Setecentos e trinta e oito mil dólares), divididos como segue: • • • • US$ 270.000,00 – Construção da estrutura de turismo de base comunitária – SIDA – WWF; US$ 29.600,00 – Projeto de Reforma da estrutura de turismo –WWF; US$ 150.000,00 – Projeto de Fortalecimento de Manejo dos Lagos – PD/A – PPG7. US$ 288.718,00 – Após término do PD/A, foi apoiado pelo Pró-Várzea - programa também vinculado ao PPG7. 173 d) A ASPAC e a experiência de turismo comunitário A ASPAC inaugurou, em 1997, a pousada Aldeia dos Lagos, cujos resultados econômicos permitiriam as comunidades de se manterem de forma sustentável, garantindo a estruturação e a manutenção de um sistema de proteção e conservação dos lagos e dos recursos pesqueiros. Um evento importante foi a conferência Rio 92, quando se reforçou a preocupação com a questão ambiental. Foi um momento de difusão do trabalho realizado pelo pelas comunidades ribeirinhas em Silves, que fazia do município um destino ecologico, social e politicamente correto. Foi a partir de então que vários grupos de visitantes, principalmente de italianos, passaram a conhecer o município, ficando hospedados inicialmente nas próprias comunidades. Assim, nasceu a idéia de montar uma pequena estrutura para recepcionar os visitantes, com a finalidade de fortalecer a comunidade, de preservar o meio ambiente e acima de tudo de ser uma alternativa econômica viável. Figura 14: Pousada Aldeia dos Lagos Foto: Kércia Figueiredo Para garantir a construção da pousada, a Aspac se articulou localmente para sensibilizar o Poder Público Municipal a ceder uma área, e ao mesmo tempo viabilizar o acesso a esta, para que a própria comunidade construísse ali a estrutura de turismo. No âmbito internacional, a associação buscava apoio através de parcerias para garantir os recursos econômicos, para a obra e também o início do seu funcionamento. Naquela época, o pesquisador em recursos pesqueiros da CPT (Comissão Pastoral da Terra), Tibério Aloggio, filiado ao WWF Itália, elaborou o projeto da estrutura turística para obter financiamento via 174 WWF. O projeto foi aprovado, e com recursos do governo da Áustria, em dezembro de 1994, numa área de cinco hectares cedida pelo poder público local, iniciou-se a construção da Pousada Aldeia dos Lagos. A obra foi concluída com a ajuda do mutirão dos comunitários, resultando em dois blocos de seis quartos cada um, administração, cozinha e restaurante. A pousada recebeu seus primeiros hóspedes em julho de 1997. Figura 15: Bloco de quartos da pousada Foto: Kércia Figueiredo No ano seguinte, o WWF – Brasil, com apoio financeiro do WWF – Suécia, deu início a um programa de desenvolvimento e formação comunitária para a educação ambiental, o ecoturismo e a conservação. Desse modo, foi implantado o PEC – Programa de Ecoturismo do WWF- Brasil, que capacitou alguns membros da Aspac. Os cursos abordavam temas como a capacidade de carga, impacto de visitação, monitoramento de trilha e introdução em interpretação ambiental. Na mesma época, o Sebrae ofereceu cursos em cozinha regional, atendimento ao turista e administração contábil (fluxo de caixa). Nos primeiros tempos de funcionamento existia uma equipe de funcionários permanentes, que era viabilizada através de recursos dos projetos. Já no ano 2000, com o encerramento dos financiamentos, a equipe fixa foi demitida e nesse momento foi criada a COOPTUR – Cooperativa de Trabalho em Turismo da Amazônia – cujos membros, 36 pessoas, foram capacitados em administração e passaram a ser remunerados por hora de trabalho. A cada grupo de turistas recebidos, faz-se o rodízio de trabalhadores para envolver o máximo de cooperados possível. Constatou-se que sem o suporte dos financiamentos até então recebidos, a atividade de turismo seria inviável e que em três meses podia-se decretar falência. Como afirma Vicente 175 Neves, coordenador da pousada, “o problema é que o WWF, em princípio acostumou muito mal. Entendeu? Parece que tudo era as mil maravilhas, mas não era verdade. Na hora da sustentabilidade, vamos ver se a gente é sustentável, é que foi a dificuldade” e também “no estudo de viabilidade econômica do Aldeia dos Lagos foi constatado que o empreendimento não era viável economicamente”173. Nesse momento de crise, os líderes da ASPAC perceberam que o negócio ainda não era sustentável devido à falta de um trabalho com a base, ou seja, com as comunidades envolvidas e, sendo assim, com os próprios membros da associação. No começo, esse trabalho com as comunidades foi feito, mas depois passaram cerca de três anos sem que houvesse uma continuação, uma preocupação com isso. Foi então que perceberam que voltar às origens era urgente, pois só assim poderiam se fortalecer como associação, garantindo a sustentabilidade das importantes atividades iniciadas. Em 2001, retomaram com muita força de vontade esse trabalho e, segundo eles, a partir desse momento começaram a “caminhar com as próprias pernas”. Atualmente, a atividade do turismo envolve 5 comunidades174 localizadas em pontos estratégicos, são elas: São João da Enseada, Santa Luzia do Sanabani, Santa Fé, Cristo Rei do Arebá, Baixa Funda e Pampolha. Os grupos de turistas optam por um ou mais roteiros propostos nas comunidades. Entre os roteiros tem os que incluem o pernoite na comunidade, o que aumenta ainda mais a interação com os nativos. Cada comunidade tem a sua especialidade seja ela o alojamento, refeições, incursões na mata, pescaria noturna, passeio nos lagos, entre outras. Para melhorar seus serviços e atender às demandas das comunidades envolvidas, a Aspac realiza o Encontro de Turismo anual, quando é feita a avaliação do ano e definidas as estratégias para o desenvolvimento do setor. No Encontro, também são discutidos pontos estratégicos como preços, reclamações, passeios e finalmente como incrementar o número de visitantes. O principal problema do empreendimento sempre foi e ainda é a sazonalidade. De julho até dezembro é o período da alta estação, no qual a pousada realmente funciona. Porém, a renda obtida dos cerca de 270 turistas que se hospedam anualmente, ficando em média três ou quatro dias, deve garantir os custos fixos e operacionais do ano inteiro. Os grupos são 173 174 Estudo realizado pela Universidade Federal do Amazonas. Roteiro de passeios nos anexos desse trabalho. 176 pequenos, por volta de oito a dez visitantes, grande parte deles italianos, devido a ligações da Aspac com profissionais de ONGs italianas que propõem o “turismo solidário”. Assim, o turista pode conviver com a comunidade local, vivenciando intensamente a cultura local e conhecendo a natureza a partir do ponto de vista daqueles que ali vivem. Os nativos mostram a natureza de forma não espetacularizada, mas como parte de um modo de vida que deve ser respeitado e valorizado. Além do mais, o turismo comunitário em Silves gera renda para as comunidades tradicionais, pois todo o trabalho de recepção é organizado pelos próprios moradores locais: eles mesmos são os guias, recepcionistas, cozinheiros, administradores, motoristas, arrumadeiras, entre outros. Nacionalmente, as vendas de pacotes são realizadas, na sua maioria, pela Viverde, agência especializada em ecoturismo no estado do Amazonas, ou diretamente pela Aspac. Fica claro que na Pousada Aldeia dos Lagos se pratica o turismo responsável de base comunitária. Como considera Vicente “o produto é bom, não é ruim, é bem aceito, enfim. O problema é que dos italianos que viajam, apenas 3% fazem a opção do turismo responsável”. Com essa freqüência de turistas, muitas vezes a atividade não gera lucro, quando tem, este é direcionado para o trabalho de preservação dos lagos: objetivo principal do projeto. O ideal seria que esta iniciativa inovadora garantisse o financiamento das atividades de conservação e de expansão comunitária, destinando 20% do lucro para o fundo de conservação e 10% do lucro para o fundo de reposição e expansão comunitária. Segundo o documento "Diretrizes para uma Política Nacional de Ecoturismo" (1994), publicado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e pelo Ministério do Meio Ambiente, em parceria com a EMBRATUR e o IBAMA, o ecoturismo é “um segmento da atividade turística que utiliza, de forma sustentável, o patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência ambientalista através da interpretação do ambiente, promovendo o bem-estar das populações”. Logo, o turismo que se pratica em Silves vai além da definição de ecoturismo, pois centraliza as populações tradicionais e suas relações com o meio ambiente, priorizando a atividade do turismo como fonte para a sustentação da população local e dos seus recursos naturais e culturais. Mais uma vez fica evidente que se pratica ali o que conceituamos de turismo responsável, pois é realizado seguindo princípios de justiça social e econômica e no pleno respeito do ambiente e das culturas. Além disso, reconhece a centralidade da comunidade 177 local que recebe o visitante e o seu direito de ser protagonista no desenvolvimento turístico sustentável e socialmente responsável. Na visita à pousada Aldeia dos Lagos, percebeu-se nitidamente a diferença entre dois grupos de visitantes: um com a proposta de fazer ecoturismo e outro que, por opção, escolheu o destino para a prática do turismo responsável. O primeiro grupo, organizado pela agência de turismo italiana “Aventure nel mondo”, se deslumbrava com tudo o que, seja na natureza como na comunidade, parecia exótico. Buscava incessantemente ver o maior número de animais possíveis, com máquinas fotográficas a captar mínimos movimentos. O grupo apresentava um grau de exigência de qualidade no serviço de acordo com o padrão do turismo convencional. Importante esclarecer que, apesar de a pousada possuir uma boa infraestrutura, com quartos climatizados, com frigobar e chuveiro elétrico, impecavelmente limpos, muitas vezes soluções para eventuais problemas que ocorressem eram improvisadas e alguns serviços, por serem realizados pelos próprios comunitários, podiam fugir dos padrões internacionais de recepção, o que acabava por gerar impaciência e frustrações em quem não havia sido preparado para usufruir de uma realidade local particular. Já o segundo grupo, mais preparado e consciente dos critérios do turismo responsável, buscava uma interação com a comunidade da forma mais natural possível, se adaptando facilmente aos imprevistos e possuía uma notável calma ao lidar com os programas. Transmitia a sensação de que o tempo não era a principal circunstância para se viver ao máximo o período no local. Figura 16: Turistas italianos em visita à casa de farinha de comunidade Foto: Kércia Figueiredo 178 II- A AVIVE – fruto da organização social e comunitária da ASPAC A Associação Vida Verde da Amazônia – AVIVE foi fundada em 17 de abril de 1999, na cidade de Silves – AM. É uma sociedade civil sem fins lucrativos, de caráter técnicocientífico, apartidária, constituída por pessoas físicas com interesse na divulgação, proteção e vigilância de ervas medicinais e plantas aromáticas da Amazônia. A associação nasceu a partir de um curso promovido pela Aspac, realizado em janeiro de 1999, na pousada Aldeia dos Lagos. O curso tinha como tema as plantas aromáticas e as ervas medicinais e foi ministrado pelo professor Moacir Biondo, da Universidade Federal do Amazonas. Naquela ocasião, o público-alvo eram pessoas da comunidade, com conhecimentos sobre plantas e ervas ou que tivessem o desejo de trabalhar nessa área. O resultado do curso foi muito positivo, pois foi essencialmente prático, o que motivou os participantes a irem além. Bárbara Bschmal, aromaterapeuta alemã que chegou em Silves para a última fase de um projeto da Aspac, no Aldeia dos Lagos, foi uma das precursoras desse processo. Ela diz: No final do curso, que foi muito prático, algumas senhoras sentaram comigo e perguntaram ‘puxa! Por que só um curso? Não dá pra fazer mais? E como a gente poderia fazer pra trabalhar?’ E, eu acho que assim, nas conversas, surgiu a idéia de se fazer uma instituição local que trabalhasse com plantas medicinais, que valorizasse o conhecimento das pessoas que sabem como utilizar essas plantas, que são as mulheres. As parteiras têm um grande conhecimento. Tem até homens mateiros que sabem. Foi nesse contexto que Avive foi criada por um grupo de mulheres e atualmente conta com 46 sócias ativas e 04 sócias beneméritas entre professoras, enfermeiras, donas de casa, parteiras, curandeiras/curandeiros, mateiros, que contribuem nos trabalhos. Segundo Bárbara: O que nós queríamos era um grupo de trabalho. E, a idéia era fazer remédios caseiros para a população local. Pelo menos para que ela tenha acesso. Pra não esquecer que a avó ou a bisavó fazia um xarope pra cuidar da tosse do bebê, enquanto hoje a mãe leva no posto de saúde e pega antibiótico, injeção e isto ou aquilo, enfim. Então, era essa a intenção nossa. A idéia era a de fundar uma associação e elaborar uma proposta de um projeto comunitário para o desenvolvimento de uma linha de produtos naturais feitos com óleos essenciais regionais. Estes seriam produzidos e manipulados pelas sócias da associação e pelas demais mulheres da comunidade, proporcionando a elas a oportunidade de aplicar seus conhecimentos tradicionais de etnomedicina e etnobotânica. Em março de 1999, foi iniciada uma pesquisa sobre plantas aromáticas na região, com recursos do WWF-Brasil. Tal pesquisa revelou que existiu uma usina destiladora de óleo 179 essencial de Pau-rosa, de propriedade inglesa, no início do século 20, na Ilha Sarça, SilvesAM. Logo após, outra usina, de propriedade do Sr. Américo Esteves, funcionou durante 40 anos, proporcionando empregos para os moradores de Silves durante muito tempo, mesmo quando a exploração da árvore de Pau-rosa já havia se tornado ilegal. O resultado foi que no final dos anos 70 este recurso natural se esgotou, sendo então os trabalhadores dispensados e a usina transferida para o município de São Sebastião do Uatumã, onde ainda funciona. A parceria com o WWF impulsionou as primeiras atividades da Avive. A proposta era a de produzir uma quantidade razoável de óleo de Pau-rosa para aromatizar sabonetes, que seriam oferecidos em hotéis de selva como atrativo. Essa idéia de acordo com Bárbara “em termos de planos de negócios, é uma coisa extremamente viável. Se você pensa num mercado (...). Se todos os hotéis e pousadas de selva, como o hotel Tropical, pegassem pros seus serviços (...). Eu acho que nossas senhoras aqui estariam eternamente ocupadas em produzir apenas este tipo de sabonete”. A Avive tem como missão a “defesa, preservação e recuperação do meio ambiente, dos bens e valores culturais, em busca da melhoria da qualidade de vida humana, com especial atenção para as mulheres, no âmbito do bioma Floresta Amazônica”. Seu objetivo principal é “a promoção de uma alternativa econômica de forma demonstrativa para as mulheres da comunidade de Silves-AM, via extração sustentável de óleos essenciais da várzea e produção de óleos essenciais com envolvimento comunitário, utilizando-se de tecnologia branda de baixo impacto, integrando ações de conservação ambiental”. As atividades mais relevantes contam com parceiros importantes e são: • Recuperação de áreas degradadas e matas ciliares O trabalho inclui a coleta de sementes e a produção de mudas no viveiro da Avive. Atualmente, o viveiro tem capacidade de produzir 50.000 mudas por ano, de 28 espécies diferentes de árvores nativas da floresta Amazônica, entre as quais também espécies raras e endêmicas. Grande parte das mudas de árvores são plantadas em terras de pequenos agricultores e proprietários de terra da região. Desde 1999, já foram produzidas 8.873 mudas e metade foram plantadas em conjunto e comum acordo com os proprietários de terras, especialmente em áreas degradadas. O viveiro da Avive recebe em média mais de 300 visitantes por ano, entre eles turistas brasileiros e 180 estrangeiros, alunos e professores das escolas locais e pesquisadores de diversas instituições. • Capacitação das mulheres da Avive com participação da comunidade em geral Em parceria com o SEBRAE/ AM, e com o suporte técnico e financeiro do WWFBrasil, a Avive organizou e realizou oficinas, palestras e seminários sobre atividades de relevante interesse para as mulheres da associação e para a população da região. Eis alguns cursos realizados: agricultura natural, cerâmica, produção de incensos, rappel, informática básica, inglês básico, formação de preços, vendas, associativismo, entre outros. • Produção de cosméticos naturais e óleos essenciais amazônicos A Avive tem, desenvolvido com apoio técnico e financeiro do WWF – Brasil, uma linha básica de sabonetes à base vegetal, para introdução no mercado de hotelaria de selva e ecoturismo no estado do Amazonas. A Avive extraiu, em micro-escala, óleos esseciais para demonstração. Os óleos foram extraídos de galhos e folhas das árvores de Puxuri, Pau rosa, Louro Nhamuhy e Preciosa, que já são de uso popular tradicional para fins cosméticos e medicinais. Figura 17: Sede da Avive e associadas Foto: Kércia Figueiredo a) Os principais produtos produzidos pela AVIVE são: 181 • Sabonete Natural - As mulheres da Avive já estão preparadas profissionalmente para produzir até 10.000 sabonetes/mês, usando uma base glicerinada pronta, apenas adicionando essências e corantes 100 % naturais como, por exemplo, óleo essencial de Pau Rosa para perfumar e extrato vegetal de Crajirú, Urucum e sumo de folha de mamão para obter colorações vermelho escuro, laranja e verde dos sabonetes. Os sabonetes de 70 grs. em forma oval com o logo da AVIVE são comercializados em lojas e os de 10 grs., formato redondo serão destinadas para o uso em hotéis. Também foram criadas embalagens especiais para presente e ocasiões especiais (casamento, brindes, etc.) sempre usando materiais naturais e/ou reciclados nas embalagens. Figura 18: Sabonetes expostos nas prateleiras da loja da Avive Foto: Kércia Figueiredo • Incenso ou Mistura Aromática para Ambientes - As mulheres criaram uma primeira mistura aromática para defumação, que recebeu o nome Uirapuru, e que tem como base diversos breus regionais e pós de madeiras como Preciosa e Pau Rosa (de folhas e galhos), além do pó de puxuri (das sementes) e da priprioca (dos rizomas). A capacidade de produção deste tipo de incenso está aumentando. É um produto bastante procurado pelos turistas estrangeiros que visitam os hotéis locais. Está sendo desenvolvida outra mistura a base de ervas amazônicas como sacacinha e patchuli, entre outras. A Avive comercializa o incenso em saquinhos de 20 grs e a granel. Exportam a mistura inclusive para Alemanha (o produto é isento de registro no Ministério da Saúde). b) Produção e comercialização: dificuldades, critérios e estratégias Atualmente, a Avive produz pouco em relação à sua capacidade de produção, pois não conseguiu ainda registrar-se na Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, vinculada ao Ministério da Saúde. Essa é a sua principal dificuldade. Na verdade, ocorre que a Anvisa 182 adota critérios de exigências que limitam os pequenos produtores de comercializarem seus produtos, acabando por beneficiar as grandes empresas detentoras do capital. A Avive, mesmo tendo tido importantes apoios financeiros, ainda hoje não conseguiu ter a sua “sonhada” casa de produção, com todos os requisitos exigidos pela Anvisa como: determinados tipos de prensas, bancadas, iluminação especial, entre outros. Conforme relata a senhora Conceição Almeida, coordenadora de produção da Avive: Durante a gente não ter essa casa de produção, nós não vamos poder comercializar, por causa que nós temos que ter o registro da Anvisa (...) Enquanto isso a gente vende em feiras, pequenos pedidos. A nossa capacidade com as fôrmas que nós temos, com a casa que nós temos, é de até cinco mil sabonetes por mês. A gente não produz. Inclusive a gente perde muito, porque a gente não pode exportar. E dá como exemplo: A rede Pão de Açúcar tem um contrato de vendas com a gente, mas o sabonete, eles tão muito interessados, mas não pode ir, por causa do registro (da Anvisa), que a gente não tem. Portanto, a associação, apesar de estar desenvolvendo um trabalho inovador, com respeito aos critérios sociais, ambientais e de higiene e saúde, se limita a comercializar somente as velas repelentes e os incensos aromáticos, produtos estes dispensados do registro da Anvisa. O sabonete, apesar de ter cumprido todos os testes e exames dermatológicos necessários está impedido para a comercialização. Bárbara Bschmal afirma que, apesar do Governo Federal estar adotando medidas e programas que beneficiam as comunidades tradicionais, ainda falta uma consideração especial para que o sistema adotado para certificações e registros não descaracterize os produtos e que passe a valorizar a produção artesanal, ela considera175: Eu entendo que as pessoas falam ‘tem que atender aos critérios internacionais’, mas eu não sei, eu continuo falando... Eu aceito: hoje nós temos que estar andando dentro dos critérios, concordo plenamente. Eu só penso que antigamente se fazia óleo de Andiroba no quintal. Eu tenho fotos assim, que as pessoas lá no Amapá trabalhavam ao ar livre, cercado de porcos, de patos, de galinha. Aquele óleo não oxidava, aquele óleo não estragava: ele tava perfeito. Ninguém usava luva e proteção pra cabelo, o óleo servia e tinha aquele cheiro marcante da Andiroba mesmo e era medicinal. Hoje, as grandes empresas reclamam da qualidade dos óleos que são entregues. Se você compra um óleo de uma empresa grande, no sul do país, não tem cheiro de Andiroba. Tem cheiro de óleo de cozinha. Não tem cheiro nenhum. Eles tiram, eles limpam, eles fazem um monte de processos que eles dizem que são necessários pra qualidade, pra o padrão de qualidade do comprador lá fora. 175 Destaque em negrito da autora da dissertação. 183 Então, nossa política (e você vai ver isso depois no nosso site): nós batalhamos para que na produção artesanal as mulheres tenham tido treinamento de boas práticas de fabricação, saibam sobre higiene. Tudo isso a gente acredita que é possível. É possível produzir um produto artesanal com qualidade, porque se você não acredita que isso é possível, você desvaloriza a mão de obra do pequeno. Porque, aí, são só as grandes indústrias que têm dinheiro pra ter aquelas fábricas. Conforme já foi colocado anteriormente, com a constituição da Avive e a parceria do WWF, a intenção inicial era produzir sabonetes aromatizados para a colocação nos empreendimentos hoteleiros de ecoturismo e de selva. Porém, também os hotéis só compram o sabonete se estiver impresso na embalagem a autorização da Anvisa. Isso demonstra que tudo é interligado. Hoje a renda das mulheres que trabalham apenas na produção de sabonetes é muito pequena, pois somente dois empreendimentos turísticos, a Pousada Aldeia dos Lagos e o Hotel de Mamirauá, compram os sabonetes, porque eles adotam uma política comercial alternativa, uma política de valorização comunitária. Esse tipo de comercialização não apresenta nenhum perigo, pois os produtos passam por um controle de qualidade, conforme as exigências de avaliações químicas, microbiológicas e dermatológicas. Bárbara garante “O nosso sabonete tem uma qualidade dentro dos padrões, ou seja, ele pode ser comercializado e utilizado com tranqüilidade, porém não é certificado pela Anvisa, pelo Ministério da Saúde”. Além disso, o sabonete é comercializado na loja da Avive em Silves. Um dos critérios mais importantes da Avive é não se tornar mero fornecedor de matérias primas para empresas da Zona Franca Verde de Manaus, ou de qualquer outro lugar. Os membros da associação não devem ser apenas coletores de sementes e resinas. Eles determinam que o beneficiamento seja feito por eles mesmos, garantindo o seu crescimento no mercado. Optam por não depender de empresas que manipulam a produção, que determinam preços, geralmente bem acima da média, que exigem exclusividade, mas que têm a obrigação de estar sempre inserindo produtos novos no mercado, como é o caso da Natura, não garantindo assim uma continuidade de longo prazo nas compras. Para a comercialização dos seus produtos a Avive criou a COPRONAT, Cooperativa de Produtos Naturais da Amazônia, fundada em 2003. A Copronat conta com 36 (trinta e seis) cooperados e sendo 6 (seis) homens. A cooperativa foi criada para a venda dos produtos e para a remuneração dos cooperados que trabalham na confecção dos produtos. Na cooperativa, a inovação é a presença masculina, conforme explica a Sra. Conceição: 184 A gente achou que era uma discriminação não ter os homens, até mesmo porque a gente viu que na Avive a gente precisava do trabalho masculino. Muitas coisas, a gente não podia fazer, como ir pra saída de campo, colher matéria prima. Era muito pesado pra nós. Então, foi daí que a gente montou a cooperativa e pensamos em abrir mão pros homens também. O trabalho masculino se tornou necessário na cadeia produtiva da Avive. Em seguida, houve a presença masculina também na parte administrativa. Outras dificuldades que a Avive apresenta para o incremento da sua comercialização, são a falta de internet, pois em Silves o acesso é precário, e a falta de uma transportadora para o escoamento da produção, já que utilizam apenas os serviços dos Correios. Além do mais, ainda estão lutando pela legalização de uma área, pertencente verbalmente à Avive, onde foram plantadas mais ou menos 2.000 mudas de Pau Rosa, para que seja implantada uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável/Unidade de Conservação. Essa é uma área de terra firme no município de Silves, para que ali se fiscalize o corte não controlado de madeiras, inclusive de Pau-rosa. A legalização dessa área permitiria novas alternativas econômicas para as comunidades no entorno. Em 1999, a Avive apresentou um requerimento, solicitando a concessão do uso de terras devolutas. O processo já passou pelas instâncias técnicas, jurídicas e financeiras. Em junho do ano 2000, foi realizada uma vistoria para determinação dos limites geográficos da reserva no total de 2.000 ha. Até hoje aguardam a conclusão do processo. c) A Avive e o Comércio Justo e Solidário No folder de apresentação da Avive, na parte referente aos critérios de comercialização, está escrito “Praticamos os critérios do Mercado Justo – um comércio que combina o social com o econômico”. E, também “O preço justo em vigor ajuda diretamente a melhorar as condições de vida e trabalho de mulheres e homens que trabalham na coleta e produção”. Na conversa com as coordenadoras executivas da Avive, Franciane S. Canto e Joyce R. Almeida, perguntei se a Avive vendia para a rede do comércio justo e elas me informaram que sim, pois havia um alemão, que se dizia comprador da rede de comércio justo e solidário. Isto atinou minha curiosidade e ao longo da conversa fui perguntando, de acordo com os princípios que regulamentam o comércio justo, de que forma acontecia a negociação. Com as respostas, fui percebendo que os critérios não estavam sendo respeitados nas negociações e 185 que elas mesmas os desconheciam. Conforme afirma a Sra. Conceição, uma das principais lideranças locais, “do comércio justo e solidário eu ouvi uma colega falando numa feira, que eu tava lá, e é pouca coisa, não tenho muita informação”. Bárbara Bschmal explica que também as associadas da Avive não conhecem bem os princípios para negociar. Disse que uma vez convidaram uma representante da associação para participar de um seminário em Manaus, organizado pelo FACES (Fórum de Articulação do Comércio Solidário), mas foi somente aquela vez, não houve uma continuidade. Nessa ocasião, a representante da associação que participou do seminário não soube repassar exatamente o seria aquela “novidade”. Ao falar sobre aquele alemão, Bárbara explicou-me que ele tem um instituto e que vende para uma rede de lojas chamada “One World”, que faz parte do mercado justo. Acrecentou que ele faz um bom trabalho, pois divulga os projetos nessas lojas, porém Bárbara faz a seguinte consideração: Eu acho que não é só culpa dele, é culpa nossa também. Nós não soubemos negociar. No início ele comprava, nós entregávamos a mercadoria, ele pagava. O preço, ele acertou o preço que nós colocamos, certo? Eles até fizeram acho que um pequeno reajuste, ele continua pagando. Porém, o que eu não tolero é que ele vive reclamando que o preço é alto pelo produto que é. Por causa da concorrência. Mas, a situação nossa é diferente de um outro concorrente, que talvez não tenham os custos que nós temos. Então, o quê que ficou agora? Por exemplo, ele junta a mercadoria dele em Belém. Aí ele coloca o pedido, nós já falamos, nós precisamos do pedido no mínimo seis semanas antes da entrega porque, às vezes, temos uma programação e depende pra onde temos que mandar precisamos de um prazo no mínimo de duas semanas. Ele fala, não, vocês mandam pra Belém, porque lá ele junta num container que vai via rodoviária para Santos onde é colocado dentro de outras coisas e vai ser enviado pra Alemanha via navio. Mas desta vez, elas colocaram via correio normal em Silves, levou quase três semanas pra chegar em Belém, mas isto nós não podíamos calcular. Nós não podemos toda vez viajar pra Manaus porque ele fala ‘não, isso é impossível porque de Manaus pra Belém em quatro dias chega, correio normal’. Pode até chegar, mas nós temos que viajar pra Manaus, pernoitar lá, isso tem todo um custo. A gente vai gastar no mínimo duzentos reais para ir lá e voltar e levar. Aí, ele falou ‘por quê que não colocaram por Sedex?’ Sedex pra Belém dessa mercadoria custa no mínimo duzentos e poucos reais, ele não ia pagar. Então, tá na hora. O que nós vamos fazer é sentar, fazer uma proposta como nós queremos. Percebe-se nitidamente que existe falta de conhecimento a respeito dos critérios que contituem o comércio justo. Elas têm todo o potencial para introduzir seus produtos na rede, mas não o fazem da maneira adequada por pura falta de informação. Outro apspecto é que a Sra. Conceição informa que as mulheres da Avive se tornaram referência para as mulheres do município : Foi importante tanto pra aquelas mulheres que estão na Avive como as que estão fora, porque o grupo foi um exemplo pra muitas mulheres, tanto do interior que moram, que 186 trabalham nas zonas rurais, como daqui de alguns lugares. Elas tomam a gente como exemplo. E esse exemplo, a gente tem que dar mesmo, né? Então, quem é sócio da Avive tem que ter um bom caráter, não pode dar mal exemplo. É assim. O reconhecimento do papel da mulher é um dos critérios fundamentais do comércio justo e a Avive revolucionou, de certa forma, a consideração do trabalho feminino em Silves. Ainda a Sra. Conceição informa que “tinha muitas que apanhavam muito dos maridos. Só viviam mesmo em casa, dedicadas pro marido e pros filhos. Hoje em dia não dão nem satisfação, quase, pros maridos. Elas vão saindo, vão trabalhando” e completa “Eles todos agora já entendem (os maridos). Olha o meu marido: ele tá fazendo o almoço, antes ele não fazia. Agora não, ele já entende, ele já vende na loja, ele já me ajuda”. Enfim, pelas práticas observadas foi possível constatar que a Avive constitui um grupo de mulheres produtoras que vive cotidianamente os princípios básicos da Economia Solidária, quais são: solidariedade, autogestão, atividade econômica e cooperação. Deste modo, estaria apta a se caracterizar como um Empreendimento Econômico e Solidário (EES) e a fazer parte do processo de formação e consolidação do Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário, dando a este uma importante contribuição. No entanto, a Avive encontra-se excluída do processo, pelo simples fato de estar localizada no interior da Amazônia. Não que tenha sido uma opção pensada pela parte de quem dirige o processo nacional, e nem mesmo pelas dirigentes da Avive, mas porque o acesso a informação é quebrado pela distância física e virtual, que significa estar na “longínqua” Amazônia. Escolheu-se apresentar aqui o caso da Avive, porque é um exemplo do que pode ocorrer com inúmeros grupos situados na Amazônia, esse pedaço de Brasil que muitas vezes parece estar mais perto da Europa. Não é por acaso que vários grupos de produtores ganham impulso para a sua consolidação quando da presença de cooperantes de ONGs européias. Tais profissionais vêm para desenvolver algum projeto específico e aqui chegando acabam descobrindo a potencialidade não apenas de produtos, mas principalmente das pessoas que detém conhecimentos tradicionais a cerca deles. Portanto, a Avive nasce de um projeto consolidado de turismo responsável de base comunitária, a Aspac e a Pousada Aldeia dos Lagos, cujo público é ainda majoritariamente europeu. Como conseqüência do distanciamento físico do centro do país e já com contatos estabelecidos no mercado externo, a comercialização muitas vezes inicia-se por vias internacionais, para só posteriormente alcançar o mercado regional e nacional. Um caso 187 ilustrativo é o do Guaraná dos Sateré Mawé que há mais de dez anos é exportado para o circuito de comércio justo europeu. Quando informado176 sobre toda a mobilização que ocorria no comércio justo nacional um de seus representantes se surpreendeu. Vamos então, no próximo item, apresentar o projeto Guaraná dos Sateré-Mawé. A finalidade é entender como na Amazônia um projeto consolidado de comércio justo, como é o caso do guaraná, pode incentivar o desenvolvimento de um turismo responsável de base comunitária e gerar uma sinergia entre os atores que trabalham com os temas. III - O Projeto Guaraná Sateré Mawé e a Pousada Vintequilos: a união de Comércio Justo e Turismo Responsável. a) Os filhos do waraná. Desde 1995, o povo Sateré-Mawé da terra indígena Andirá–Marau, no estado do Amazonas, desenvolve o projeto do Guaraná Nativo. O Guaraná177, que na língua indígena é Waraná e significa “o início de todo o conhecimento”, é cultivado há centenas de anos na Amazônia Brasileira, na região próxima ao Rio Tapajós e ao Rio Madeira, que corresponde à terra ancestral dos índios Sateré-Mawé, sendo eles os guardiões do maior banco genético de guaraná do mundo. Os Sateré-Mawé178, chamados regionalmente de “Mawés” (LORENZ, 1992), foram os primeiros povos indígenas a conseguir a demarcação de suas terras no ano de 1982 e o reconhecimento total como Área Indígena em 1986179 (FRABONI, 2002). Eles vivem em uma área de 800.000 hectares, na bacia dos rios Andirá e Maraú, denominada por eles de “saterémawé eco ga’apypiatv waraná mimotypoot sése” traduzido em português por “santuário ecológico e cultural do guaraná dos Sateré-Mawé”. Atualmente com uma população de 9.000 pessoas, distribuídas em 66 aldeias, são representados pelo Conselho Geral da Tribo SateréMawé (CGTSM), que foi constituído final dos anos oitenta como organização política e econômica da população indígena Sateré-Mawé (POMPERMAIER et al, 2007). Para tratar sobre qualquer etnia indígena, especialmente da relação entre os Sateré e o guaraná, é necessário mergulhar em uma viagem antropológica a fim de entender porque eles 176 Em pesquisa de campo no segundo semestre de 2007, os representantes do Projeto Guaraná tinham apenas entrado em contato com o movimento brasileiro através de um encontro realizado pelo Slow Food (2007), e ainda desconheciam completamente a iniciativa de um Sistema Nacional de Comércio Justo. 177 O Guaraná foi classificado pelo botânico alemão Christian Franz Paullini como Paullinia cupana, variedade Sorbilis. 178 O nome Sateré significa "lagarta de fogo", em referência ao clã mais importante que compõem esta sociedade, aquele que indica tradicionalmente a linha sucessória dos chefes políticos. O segundo nome Mawé quer dizer "papagaio inteligente e curioso" não sendo uma designação relativa ao clã (LORENZ, 2007). 179 O reconhecimento compreendeu o território onde a organização política tradicional, sob a autoridade dos tuchauas, governava as relações sociais fundamentais. 188 se vêem como inventores da cultura dessa planta. Essa auto-imagem é justificada no plano ideológico por meio do mito da sua origem, segundo o qual seriam os Filhos do Guaraná. A primeira descrição do guaraná e sua importância para os Sateré-Mawé é do padre João Felipe Betendorf no se relato de viagem na Amazônia, de 1669, ele dizia que "têm os Andirazes em seus matos uma frutinha que chamam guaraná, a qual secam e depois pisam, fazendo dela umas bolas, que estimam como os brancos o seu ouro, e desfeitas com uma pedrinha, com que as vão roçando, e em uma cuia de água bebida, dá tão grandes forças, que indo os índios à caça, um dia até o outro não têm fome, além do que faz urinar, tira febres e dores de cabeça e cãibras" (LORENZ, 2007). Cabe frisar que os Andirazes, aos quais se referiu o Padre Betendorf eram os selvagens que viviam ao longo do rio Andirá, conhecidos hoje como os Sateré –Mawé. Para a lenda do guaraná existem várias versões. A mais conhecida, que será descrita a seguir, foi recolhida por Nunes Pereira em 1939 e publicada no seu livro “Os índios Maués” (1954) e também no livro de Sônia Lorenz “Sateré-Mawé: os filhos do Guaraná” (1992). Essa versão contada pela tradição oral dos índios Sateré-Mawé, diz que o guaraná nasceu dos olhos de um menino. Antigamente, existiam três irmãos: Okumáató (Icatareté), Ikuamã (amã) e Onhiamuaçabê (Tupana), que era mulher solteira e cobiçada por todos os animais da floresta, causando ciúmes aos irmãos que a queriam sempre como companhia, por causa dos conhecimentos que possuía sobre plantas medicinais. A lenda diz que, certo dia, uma cobrinha ficou à espreita no caminho de Onhiamuaçabê e a tocou levemente em uma das pernas, engravidando-a. A mitologia indígena afirma que para uma mulher engravidar bastava que fosse tocada por homem, animal ou planta que a desejasse como esposa. Desse contato nasceu um curumim bonito e forte. Na idade de entender as coisas, o curumim ouviu da mãe que, ao senti-lo no ventre, ela plantou para ele uma castanheira no Noçoquém (lugar sagrado onde ficavam todos os animais e plantas úteis), mas que seus irmãos tomaram o terreno e a expulsaram por causa da gravidez. Ele, então, certo dia, decidiu comer as castanhas. O lugar, no entanto, estava sob a guarda da cutia, da arara e do periquito, que denunciou o ato aos irmãos Okumáató e Ikuamã. No dia seguinte, quando o pequeno voltou a Noçoquém, os guardas o esperavam para matá-lo. Pressentindo a morte do filho, Onhiamuçabê correu para defendê-lo, mas o curumim já havia sido decapitado. 189 Desesperada a mãe, sobre o cadáver da criança jurou dar continuidade à sua existência. Arrancou-lhe o olho esquerdo e o plantou na terra. O fruto desse olho não prestou: era o guaraná-rana (guaraná falso). Em seguida, arrancou-lhe o olho direito e deste nasceu o verdadeiro guaraná. E como o sentisse vivo ainda, exclamou: “tu, meu filho, serás a maior força da natureza; farás o bem a todos os homens e os curarás e livrarás das doenças”. E a planta do guaraná foi crescendo, crescendo... Passado algum tempo, Onhiamuçabê foi atraída, diversas vezes, por ruídos na sepultura do filho, que a cada vez de lá saía um animal. Assim nasceu o macaco cuatá, o cachorro, o porco-do-mato e o tamanduá bandeira. Novamente atraída pelos ruídos foi à sepultura do filho, e viu sair uma criança que foi o primeiro Sateré-Mawé. Era o filho dela que renascera. E assim os Sateré Mawé se consideram filhos do guaraná. Quando eles descobriram e domesticaram a planta silvestre do guaraná, tipo de trepadeira enroscada nos galhos de imensas árvores amazônicas, ninguém sabe. Mas suas histórias contam que o guaraná é filho de uma índia que dominava o segredo das plantas medicinais e sabia preparar os remédios da floresta. Em suma, é fruto da saúde que livra os homens das moléstias, curando-os e mantendo o equilíbrio da vida no delicado ambiente da floresta. Nele está presente a idéia da eterna transformação da vida, em que desaparecem as fronteiras entre os homens, animais e plantas e denota a perfeita integração do índio com a natureza. Os Sateré-Mawés são os guardiões do guaraná, pois foram eles que domesticaram a planta. Transformaram a trepadeira silvestre em arbusto cultivável, introduzindo seu plantio e beneficiamento. Eles que inventaram as técnicas de transplante, colheita, torrefação e transformação artesanal das sementes. Foram os próprios Sateré que elaboraram as formas ritualísticas da utilização saudável do guaraná. Por isso defendem, com todos os meios possíveis, as terras sagradas do jardim encantado de Noçoquém, as quais constituem a terra do guaraná nativo (FRABONI, 2002). 190 b) O guaraná Figura 19: Cacho de Guaraná Foto extraída do site www.slowfoodbrasil.com Como já foi dito, o guaraná é cultivado há centenas de anos pelos Sateré-Mawé. Porém, conforme explicado no texto “A fortaleza do Guaraná”180, não se trata de uma forma clássica de cultivo, mas sim de um sistema descrito como “semi-domesticação”. Nesse sistema eles coletam as sementes que caem das árvores de guaraná na floresta, platando-as em clareiras onde são regadas pelas chuva, precisando de cuidados mínimos. Na floresta, o guaraná pode crescer até 12 metros e suas flores brancas crescem ao longo de cachos em forma de espiga de milho. Quando amadurecem, no lugar das flores vão brotando as frutas vermelhas, com uma leve abertura reveladora da semente preta na polpa branca, que a faz parecer tanto com o olho do lendário curumim do jardim de Noçoquém. Subitamente as frutas são colhidas, antes de amadurecerem. Em seguida, a polpa das frutas maduras são removidas e as sementes são torradas por três dias em fornos de barro tradicionais. Depois, as sementes são descascadas, trituradas com o pilão e moldadas em bastões que pesam entre 100 gramas a 2 quilos. Os bastões são embalados em sacos de algodão e colocados nos fumeiros, onde são defumados com madeira aromática, como a de Murici, para perder a umidade e deste modo evitar os fungos. O guaraná tem grande significado cultural para os Sateré-Mawé, pois toda vez que eles se reúnem para decidir alguma coisa que interesse a todos, circula entre eles o Çapó181, que é 180 181 Texto disponível no site do Slow Food: www.slowfoodbrasil.com, em 22/05/09. O çapó, guaraná em bastão ralado na água, é a bebida cotidiana, ritual e religiosa, consumida por adultos e crianças em grandes quantidades. O preparo e consumo do çapó seguem uma série de práticas que somadas resultam em uma sessão ritual. O çapó é a bebida que os Sateré-Mawé utilizam durante seus resguardos. As mulheres durante a menstruação, 191 o guaraná em bastão ralado na água. O consumo do guaraná nessas ocasiões serve para que os presentes entrem em comunhão com a sabedoria do menino que foi o primeiro Sateré, cujos olhos separam o verdadeiro do falso, inspirando a cada um belas palavras de sabedoria. Dessa forma, o guaraná os ajuda a formar frases dotadas de sentido, cria harmonia entre os presentes e ajuda a governar a vida em sociedade (FRABONI, 2002). A importância social do guaraná também está ligada ao período do fábrico, termo regional também utilizado pelos Sateré-Mawé para indicar as várias etapas do beneficiamento do guaraná. Nesse período a vida social se intensifica. O fábrico potencializa ao máximo a maneira de ser desta sociedade, trazendo para a vida social cotidiana toda uma gama de fenômenos que se encontram ocultos ou obscuros em outras épocas do ano. É um período que se renova a cada ano com a chegada da colheita do guaraná, permitindo aos Sateré-Mawé comungarem com sua gênese mítica, revigorando-se etnicamente. (LORENZ, 2009, p.7) Apesar de todo o significado cultural do guaraná, com o passar do tempo ele foi deixando de ser cultivado e no início dos anos de 1990, o guaraná produzido pelos SateréMawé era pouquíssimo. Até aquela época ele era apenas vendido para atravessadores locais e valia tão pouco que a maioria das plantações encontravam-se abandonadas (POMPERMAIER at al, 2007). Apesar disso, o guaraná continua sendo o principal produto da economia dos Sateré-Mawé, já que dos seus produtos é o que obtém o maior preço no mercado. De acordo com Lorenz (2009) “é possível pensar que a vocação para o comércio demostrada pelos Sateré-Mawé se explique pela importância do guaraná na sua organização social e econômica”. O comércio do guaraná sempre foi intenso na região de Maués (AM). No século XVIII os Mawés já exportavam guaraná para fora do território brasileiro (FRABONI, 2002). Nomes retirados da cultura indígena como Sateré, Mawé, Andirá, Pajé, Tuchaua, Çapó, são todos nomes de marcas registradas de guaraná produzido não pelos Sateré-Mawé, mas com a utilização da sua tecnologia de base, geralmente produzidos naqueles que eram seus antigos territórios (idem). Existem dois tipos de guaraná: o de excelente qualidade produzido pelos SateréMawé, e o guaraná da Luzéia, de qualidade inferior, porque produzido sem os conhecimentos gravidez, pós-parto e luto e os homens na Festa da Tocandeira, no luto e quando acompanham suas mulheres durante o resguardo do pós-parto. (LORENZ, 2009). 192 e o apuro das práticas tradicionais dos índios. O guaraná da Luzéia é beneficiado pelos civilizados na região de Maués. Mas, é o guaraná beneficiado pelos Sateré-Mawé, também chamado de guaraná das terras, guaraná das terras altas e guaraná do Marau, que é o mais procurado. Contudo, é o guaraná da Luzéia, que é produzido em larga escala (LORENZ, 2009), pois é a base dos refrigerantes. O guaraná é usado na indústria farmacêutica e na fabricação de refrigerantes, xaropes e sucos, em pó e bastões. “Farás o bem a todos os homens e os curarás e livrarás das doenças”, é essa frase lendária, que Onhiamuaçabê disse chorando ao seu pequeno curumim morto, que liga a mitologia à grande procura pelas propriedades medicinais do guaraná. São atribuídas ao guaraná, entre outras, as seguintes propriedades: estimulante, afrodisíaco, ação tônica cardiovascular, combate de cólicas, nevralgias e enxaquecas e ação diurética e febrífuga. O guaraná contém: cafeína, proteína, açúcares, amido, tanino, potássio, fósforo, ferro, cálcio, tiamina e vitamina A. O teor da cafeína na semente do guaraná pode variar de 2,0 a 5,0 % (do peso seco), maiores que os do café (1 a 2%), mate (1%) e cacau (0,7%) (www.ceplac.gov.br/radar/guarana.htm, em 06/07/09). Popularmente182, é atribuído ao guaraná um número muito maior de propriedades medicinais, conforme enumeradas nos folders distribuídos em inúmeras casas de guaraná em Manaus e em sites de internet. Retoma-se a lendária frase “farás o bem a todos os homens”, para mostrar que é universalidade nela impregnada, que considera não só os Sateré-Mawé como beneficiários do guaraná, mas sim todas as pessoas, que permitiu a difusão do guaraná e a sua comercialização. Portanto, o projeto de comercialização do guaraná no mercado internacional através do comércio justo só foi possível graças à abertura do povo Sateré Mawé à difusão, com respeito às suas raízes, do seu bem mais precioso: o waraná. c) O projeto Guaraná e o Comércio Justo O Conselho Geral da Tribo dos Sateré-Mawé (CGTSM), com a parceria e apoio de várias ONGs italianas como a ACRA, o ICEI e a Cooperativa Chico Mendes, desde 1995, vem implementando o “Projeto Guaraná”. O objetivo do projeto é contribuir para a segurança 182 Referimos-nos aqui não à tradição indígena, mas sim à cultura popular, por mais que muitos dos que a compõem sejam descendentes indígenas. 193 da terra indígena através da recuperação do cultivo e da introdução do manejo do guaraná nativo com mudas coletadas na floresta, garantindo assim melhoria do produto (POMPERMAIER et al, 2007). Para o processo de transformação e exportação do guaraná, que é sujeito a rigorosas normas fito-sanitárias, além de um processo fiscal e comercial complexo e burocrático, foi necessário a constituição da empresa SAPOPEMA Ltda (Sociedade dos Povos para o Ecodesenvolvimento da Amazônia). A SAPOPEMA une o capital social de três sujeitos: o CGTSM; a Cooperativa Agrofrut de Urucará; e a Agrorisa de Manaus. Além disso, a ACOPIAMA183 (Associação de Consultoria e Pesquisa Indigenista da Amazônia) assessora todas as atividades relativas ao projeto. A relação com o comércio justo começa com o missionário italiano Augusto Gianola que ajudou a transformar o Centro de Treinamento Rural de Urucarà na Cooperativa Agrofrut, e passou a realizar as primeiras exportações para a importadora de Comércio Justo italiana “Comercio Alternativo”, em 1996. Paralelamente, o CGTSM negociava com a importadora italiana “CTM Altromercato”. Foi então que decidiram unir os grupos para não serem vitimados pela concorrência dos parceiros e também para que juntos se fortalecessem e pudessem criar um instrumento de transformação, beneficiamento de produtos e gerar uma produção de escala para, dessa forma, atingir um mercado que sozinhos não poderiam atingir. A idéia não era só fazer industrialização e beneficiamento, mas, principalmente, criar um sujeito promotor de um desenvolvimento alternativo Amazônia – uma economia baseada no desenvolvimento local, no incentivo à agricultura familiar e na valorização da preservação. Os primeiros tempos do projeto Guaraná não foram livres de dificuldades. Quando o índio Obadias, então coordenador do CGTSM, falava com os índios a respeito do projeto, ele era visto como um atravessador (FRABONI, 2004). No início, os produtores queriam ter o pagamento na hora da entrega do guaraná. Fazê-los entender que no comércio justo eles recebem a metade vários meses antes da entrega e a outra metade somente quando a mercadoria chega na Europa, não foi fácil. Alguns índios, visto que o guaraná seria destinado aos brancos, acabavam não o colocando no fumeiro, processo essencial para a qualidade do 183 A ACOPIAMA nasceu em meados dos anos 90 a partir do trabalho voluntário de estudantes da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) apoiando o movimento indígena. São oito pessoas que atualmente são professores e pesquisadores que continuam trabalhando com o assunto. 194 guaraná, para não perder umidade e consequentemente peso. Mas, quando o CGTSM se recusava a comprar esse guaraná gerava grande decepção. O guaraná precisava ter um alto padrão de qualidade e estar dentro dos padrões higiênico-sanitários exigidos pelos parceiros do exterior. De grande contribuição foi o envio de dois técnicos, do curso de formação para cooperantes, pela importadora CTM. Eles foram fazer estágio na reserva e a partir de então o CGTSM passou a distribuir sacos de juta natural numerados. Assim, o CGTSM pode fornecer o percurso de cada quilo de guaraná exportado, desde o nome da aldeia de proveniência, passando pelo nome do produtor e a característica do guaranazal. Além disso, os produtores que inicialmente eram representados no CGTSM através da autoridade de suas aldeias, passaram a ser sócios participantes do CGTSM com uma ficha especifica de adesão, e agora eles são mais do que sócios, eles constituíram o Consórcio dos Produtores. Para a comercialização adotaram dois critérios: o primeiro foi trabalhar somente com a rede do comércio justo, e o segundo foi de ter mais de um parceiro para comercialização dos produtos. Segundo Maurizio Fraboni184, assessor técnico do projeto, é evidente que quando se trata de um único parceiro importador que por sua vez tem ligação com inúmeros grupos de produtores existe uma relação de poder onde quem compra é quem manda e os produtores obedecem, mesmo que seja comércio justo, mesmo que o grupo obedeça a todos os critérios. “Sociologicamente o poder depende da quantidade de relações que tu tens”, ressalta Maurizio. Por outro lado, consideram que não é interessante trabalhar com muitos parceiros porque isso demandaria muito empenho acabando por gerar mais custos que benefícios, além do grande trabalho para harmonizar as políticas comerciais e a apresentação do projeto. Segundo Maurizio, escolher trabalhar somente com o comércio justo não foi uma questão de se alcançar um melhor preço, mas sim de fazer parte de uma rede de economia diferente. O projeto tem dois parceiros importadores que se complementam muito bem: a CTM Altromercato na Itália e a Guayapi tropical na França. A CTM é um parceiro economicamente forte, muito integrado no núcleo histórico do comércio justo, sendo um dos maiores importadores europeus. Exportar para a CTM é muito importante para o CGTSM, seja pelo seu circuito de lojas, cerca de 250 na Itália, seja por ser parceira na Alemanha da GEPA (The Fair Trade Company), que por sua vez pertence ao EFTA (European Fair Trade 184 Informações coletadas em entrevista semi estruturada, ocorrida em Manaus no segundo semestre de 2007. 195 Association). Esse é um tipo de mercado mais protegido, que permite ter um preço mais alto, além de garantir a utilização do guaraná em produtos mais industrializados como, por exemplo, o Guaranito. O Guaranito185 é uma bebida produzida na Itália, que utiliza o extrato do guaraná, e por difundi-lo acaba fazendo um marketing político, pois propaga o projeto guaraná. Já a Guayapi tropical é especializada em produtos de floresta úmida (Amazônia e Sirilanka). Conforme já foi dito no item produtos amazônicos, foram os seus representantes que fazendo lobbying garantiram, que na França, o guaraná fosse reconhecido como integrador alimentar, pois antes era conhecido como substância dopante. Segundo Fraboni, esse parceiro é complementar ao parceiro italiano porque tem uma maior capacidade de promover o produto e a cultura especifica dos Sateré-Mawé. Sobre a colaboração dos parceiros importadores existem várias intervenções pontuais. Uma delas é uma assessoria do importador francês sobre a certificação de produtos da biodiversidade. Já a CTM comprou um moinho e também forneceu orientação tecnológica para a produção do extrato de guaraná. Para o projeto guaraná, o impacto do comércio justo foi fundamental. Reportando-nos novamente à história, em meados dos anos 90 os índios tinham pouca produção. Eles jogavam o produto na beira do rio para o atravessador, e a qualidade já não era aquela tradicional, porque o guaraná era vendido a preços muito baixos. Além disso, era forte a dependência da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), pois eles ainda dependiam muito do assistencialismo político. A própria organização do CGTSM era praticamente controlada pela Funai, pois era um funcionário índio que estava na direção. Ainda Maurizio considera que o verdadeiro desafio do movimento é a conquista da autonomia. O projeto apostou nisso, o CGTSM apostou. Ele considera que “a autonomia econômica é a base da autonomia política. Não adianta ir lutar pelos direitos se não se tem as duas pernas pra se sustentar”. Esse é um desafio que ainda a ser vencido, apesar de os produtores estarem mais conscientes e terem orgulho de produzirem e manterem a sua própria associação. Através do projeto ocorre a revitalização da produção para a auto-sustentação do grupo. Maurizio afirma que o projeto do guaraná foi construído com princípios que vão além daqueles do comércio justo, porque, segundo ele “a cultura do comércio justo é muito economicista, onde prega que o importante é a dignidade do produtor de receber o ‘certo’, 185 Folder disponível nos anexos da dissertação. 196 mas não existe o ‘certo’”. O dinheiro vale para a própria organização dos Sateré, para os projetos sociais, para fortalecer os próprios produtores, fazendo com que suas organizações cresçam para transformar e exportar os próprios produtos. Os projetos mais importantes apoiados pelo Projeto Guaraná são: 1° projeto: Coleta diferenciada de lixo- cada vez mais entra lixo não orgânico dentro da área indígena, tanto pela aquisição de produtos com a renda gerada pelas aposentadorias e quanto também pela renda do guaraná. Dinheiro significa consumo, o que se traduz em lixo que precisa ser retirado. São sacos de plástico, garrafas pet, latas de alumínio, objetos que demoram décadas para se decompor. Mas, também são pilhas, baterias, restos de construção de amianto, materiais danosos à saúde. Através de um convênio entre o CGTSM e a Associação das Mulheres Sateré-Mawé (AMISM), que a provia do financiamento necessário, foi possível estruturar uma coleta diferenciada do lixo nas 70 aldeias da reserva. Assim, foi possível retirar o lixo e enviá-lo para os lixões de municípios vizinhos como Maués e Parintins. Objetiva-se no futuro reciclá-lo e não de queimá-lo, pois a queima não resolve o problema da poluição. Agora existe um barco próprio para a retirada do lixo e a AMISM trabalha para sensibilizar o Poder Público Local a investir em programas de reciclagem. Cabe frisar que é a primeira experiência do gênero na Amazônia. 2° projeto: Abelha Nativa – Uma lenda dos Sateré-Mawé diz que quando a divindade máxima Anumaré Hit foi para o céu para transformar-se no sol, ele convidou sua irmã Uniawamoni. Porém, ela decidiu ficar na Terra transformada em uma abelha para poder ajudar os índios Sateré-Mawé a cuidar das florestas sagradas de guaraná. As abelhas nativas polinizam o guaraná e são responsáveis por 80% da polinização da floresta. Elas são pequenas e sem ferrão, e são chamadas de abelhas canudo. Elas produzem o mel jandaíra feito de flores de guaraná. A renda do guaraná financia a formação de uma equipe técnica indígena e a difusão de cultivo das abelhas nas aldeias e nos guaranazais. A intenção do CGTSM é substituir gradualmente os meleiros186 em apicultores. As abelhas polinizam o guaraná e favorecem a sua diferenciação genética, o que contribui a dar a ele um alto valor de mercado. 3° Projeto: Criação de galinha caipira- O CGTSM trabalha para a sustentação da produção de auto-consumo, por isso financia o projeto de criação de galinha caipira, executado pela AMISM. O projeto pretende a substituição das últimas galinhas presenteadas pela FUNAI, 186 Os meleiros retiram o mel derrubando a árvore onde está a colméia e assim o cardume morre. 197 que são grandes, mas com alto índice de mortalidade, por galinhas caipiras, menores, mas bem adaptadas ao ambiente. Além disso, o projeto incentiva uma fase transitória de compra de alimentos no mercado externo, para a plantação de várias espécies cujas sementes ou frutos são alimentos para as galinhas e também para as pessoas. Por último, mas não menos importante, o projeto pretende um manejo da fauna e flora do entorno às aldeias, para que se viabilize uma cobertura integral e biológica das necessidades alimentares humanas, e também como pré-condição para o reconhecimento dos produtos a serem comercializados, como o artesanato. 4° Projeto: Produção de panelas e fornos de barro- A tradição de cozinhar em panelas de barro e de usar fornos de barro para torrar o guaraná já estava quase perdida. Restavam apenas algumas senhoras anciãs que dominavam a técnica de produção. Vale informar que o guaraná de melhor qualidade é o torrado nos fornos de barro, porque absorvem o calor por mais tempo e de maneira gradual. No entanto, os índios produtores começaram a substituir os fornos de barro pelos de ferro pela sua praticidade. O CGTSM decidiu financiar o projeto de recuperação das práticas tradicionais, também executado pela AMISM, por acreditar na qualidade alimentar e nutricional oferecida pela preparação da comida em panelas de barro. Por isso, aumentou também o preço pago pelo guaraná torrado em forno de barro. Isso criou um atrativo, e gradualmente os produtores passaram a substituir os fornos de ferro pelos de barro, produzidos pela AMISM. O impacto da crise econômica foi inevitável no projeto Guaraná. O preço do guaraná dos Sateré-Mawé caiu e passou a se equiparar com o preço pago pelo melhor guaraná produzido pelos caboclos dos municípios vizinhos. Os índios que vendem para o comércio justo já não recebem cinco vezes mais do que um produtor que vende para o comércio convencional. Essa realidade perdurou do início do projeto, no final dos anos de 1990, até o ano de 2004. Isso foi importante para que o projeto se fortalecesse e para que o guaraná ganhasse espaço nesse terreno novo que é o mercado internacional. Porém com a crise, o preço do guaraná despencou e as encomendas diminuíram. Isso repercutiu diretamente nos projetos sociais apoiados pelo projeto através da CGTSM. Alguns projetos sociais já haviam sido concluídos. No entanto, outros deveriam ser permanentes, como o da coleta diferenciada de lixo. Atualmente esse, que é um dos principais projetos, está parado por falta de recursos. Porém, o resultado ainda é visível, pois criou uma 198 sensibilização para o assunto e algumas aldeias, principalmente aquelas localizadas mais perto dos centros urbanos, passaram a autogerir o trabalho da coleta de lixo. Enfim, foi necessário vender informalmente somente 20 quilos de guaraná para uma loja de comércio justo italiana, em 1996, para que o projeto alavancasse. Em 2008, os Sateré venderam toda a safra que foi de 4,5 toneladas de guaraná. A meta do projeto é vender 40 toneladas de guaraná ao ano. Pelo salto de vendas que já foi dado, é possível acreditar que a meta um dia será alcançada. Para homenagear os primeiros 20 quilos de guaraná vendidos ao comércio justo foi inaugurado em 2007 o espaço de ecoturismo Aldeia Indígena Vintequilos IV- Aldeia Indígena Vintequilos – Vitrine do Projeto Guaraná O espaço de ecoturismo Aldeia Vintequilos foi idealizado para ser um espelho de tudo o que vem sendo realizado no âmbito do projeto Guaraná. A intenção é que seja um centro de excelência de equipamentos sustentáveis, por isso foi construído com os princípios da permacultura187. Para representar o projeto o espaço dipõe de guaranazal, de colméias de abelhas canudo para a produção do mel jandaíra, de trilha para conhecer a mãe do guaraná188, de quelônios, e de criação de galinhas caipiras. Figura 20: Entrada de Vintequilos Foto: Ageu Sateré189 A Aldeia Vintequilos é formada por uma casa de dois andares com 4 quartos grandes, com capacidade de hospedar 12 pessoas; por um anfiteatro; por um prédio de banheiros e 187 A permacultura é um método holístico para planejar, atualizar e manter sistemas de escala humana (jardins, vilas, aldeias e comunidades) ambientalmente sustentáveis, socialmente justos e financeiramente viáveis (Wikipédia, 13/07/09). 188 A mãe do guaraná é o guaraná em forma de trepadeira, como ele era antes de ser domesticado e transformado em arbusto pelos Índios Sateré-Mawé. 189 As fotos usadas nesse tópico foram feitas por Ageu Sateré, técnico indígena executor dos trabalhos de construção de Vintequilos e coordenador das equipes de trabalho. 199 serviços; dentre outros. É um espaço construído para receber os parceiros do projeto e também turistas responsáveis, sendo a porta de entrada do Santuário Ecológico do Guaraná. Vintequilos nasceu de um projeto que unia a Pousada Aldeia dos Lagos, através da ASPAC e o Projeto Guaraná, através do CGTSM. O projeto teve a duração de três anos190 e está dentro do "Programa integrado de desenvolvimento eco-sustentável de turismo responsável e de atividades produtivas voltado à diversificação e ao aumento das rendas das populações ribeirinhas e da etnia indígena Sateré-Mawé da região do Médio Amazonas". Este projeto foi financiado pela União Européia, através do ICEI191 (Istituto Cooperazione Economica Internazionale). O objetivo do projeto era criar condições sócio-econômicas necessárias para a proteção ambiental e cultural da população amazônica através de uma estratégia de desenvolvimento eco sustentável que ligasse o turismo e a produção, com a proteção ambiental e que empenhasse diretamente as comunidades locais no desenvolvimento, gerenciamento e usufruto destas atividades. Figura 21: Casa dos hóspedes Foto: Ageu Sateré O projeto “Amazônia Brasileira: Ecoturismo e Permacultura” foi considerado como um dos cinqüenta melhores projetos sociais desenvolvidos no Brasil pelas Organização das Nações Unidas (ONU). Através desse projeto, o ICEI pretende incentivar as dinâmicas de auto-desenvolvimento das populações locais através da valorização e fortalecimento dos 190 De 2003 a 2006. O ICEI é uma associação italiana sem fins de lucro, fundada em 1977, empenhada na solidariedade internacional, na cooperação ao desenvolvimento, na pesquisa e na formação. Mais informações sobre o projeto no site www.icei.it 191 200 numerosos recursos presentes na região, respeitando a vida cultural, social, política e econômica das populações. O projeto abrangeu a pesquisa e a aplicação de modelos ecocompatíveis, que possam representar reais alternativas para a sobrevivência física e cultural das populações, além da proteção ambiental. Figura 22: Anfiteatro Fotos: Ageu Sateré A interação entre Pousada Aldeia dos Lagos e Aldeia Indígena Vintequilos ocorre através da COOPTUR192 (Cooperativa de Trabalho Ecoturístico Ambiental da Amazônia) que deveria formar jovens índios para realizar todo o trabalho turístico relacionado à Vintequilos. Enquanto os índios não são formados, é a COOPTUR a responsável pela execução do trabalho. Além disso, estão elaborando um roteiro conjunto chamado Guaraná que abrange os dois destinos: Silves e Vintequilos. Em Silves, uma das trilhas ofertadas pela pousada Aldeia dos Lagos passa por um mirante que foi construído por índios Sateré-Mawé através da sua tecnologia. Vintequilos já recebeu o seu primeiro grupo de visitantes em 2008. Foram franceses enviados pela Guayapi tropical. Eram turistas responsáveis e parceiros indiretos do projeto, pois trabalhavam em lojas que vendem o guaraná. Espera-se proximamente um maior número de visitantes para que o espaço possa se tornar auto-suficiente. Para isso o ICEI iniciou um novo projeto, que será executado em três anos, chamado “Vintequilos: Fortalecimento Institucional, preservação ambiental, desenvolvimento de atividades produtivas e turismo sustentável nas comunidades tradicionais do Médio Rio Amazonas, Brasil”. 192 A COOPTUR é uma entidade sem fins lucrativos, que é fruto da ASPAC e baseia seus trabalhos no uso responsável dos recursos naturais da região e o desenvolvimento de alternativas econômicas de baixo impacto. Além disso, fomenta o Cooperativismo como forma de organização do micro-negócio, principalmente no gerenciamento das atividades de ecoturismo na região de Silves. 201 Esse projeto é a continuação do que foi finalizado em 2006 e que resultou na construção de Vintequilos. Objetiva a promoção de um modelo participativo de desenvolvimento no qual se integre preservação ambiental, atividade produtiva e turismo sustentável, em beneficio da região indígena do Andirá Maraú. Para que os objetivos do projeto sejam alcançados, os esforços estão centrados no fortalecimento do CGTSM, através da formação de alguns membros do Conselho. Tais membros futuramente desenvolveriam um papel de guia na auto-gestão das diversas atividades produtivas e na proteção dos recursos ambientais. Além do mais, o projeto pretende criar uma rádio comunitária que permita superar o isolamento das diversas aldeias, visto que a comunicação e a informação são instrumentos fundamentais para a construção de um sistema organizado e consciente. As intervenções e a tutela ambiental serão concretizadas através de um sistema de gestão e preservação dos recursos naturais: mapeamento da área, monitoramento, formação de agentes ambientais e reflorestamento de áreas degradadas. Todas essas ações visam favorecer o reconhecimento pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) da área indígena do Andirá Maraú como Santuário Ecológico e Cultural do Guaraná. Além das demais atividades de geração de renda, o projeto pretende consolidar a atividade de ecoturismo na região melhorando a eficiência e visibilidade do turismo comunitário nacional e internacionalmente. A intenção é integrar melhor as dinâmicas socioeconômicas e culturais das comunidades locais, identificando as áreas de maior interesse ambiental para a formação de roteiros turísticos. Paralelamente serão organizados cursos de formação para as pessoas que estão inseridas na oferta de diversos serviços turísticos, além da ampliação e adequação do espaço de ecoturismo Aldeia Indígena de Vintequilos. 202 CONSIDERAÇÕES FINAIS Dentro do atual contexto de mundo, onde o trabalho humano foi transformado em mercadoria que teve seu valor desvalorizado pelo “progresso técnico” (CHESNAIS, 1996), alternativas de desenvolvimento que valorizem o trabalho, como a que prega o Comércio Justo e o Turismo Comunitário, merecem ser consideradas e analisadas. Contudo, para tanto, é necessário que essas alternativas de desenvolvimento sejam informadas aos meios científico, político e produtivo, para que a atuação, na região amazônica, de organizações ou empresas que carreguem esses lemas possa ser distinguida e reconhecida como prática real e não apenas como discurso gerador de esperanças e frustrações, principalmente às comunidades produtoras. O comércio justo nasceu e cresceu baseado em relações Norte – Sul, mas agora ganha novas dimensões. Na América Latina a modalidade se aninha no movimento da economia solidária, que por sua vez abrange o turismo comunitário e ambos, a economia solidária e o turismo comunitário, adotam o comércio justo como forma ideal de comercialização dos produtos dos empreendimentos econômicos e solidários. A rede composta por esses empreendimentos cresce e engloba sujeitos dos três movimentos que lutam por ideais comuns, na busca por mercados locais e pela valorização de suas identidades. No Brasil, a configuração de um sistema nacional de comércio justo e solidário significa a consolidação de uma estreita colaboração entre esses movimentos, que os fazem parecer cada vez mais como um corpo só, dado a grande complementariedade. Como movimento político, o comércio justo se faz valer de uma série de princípios que coordenam as relações entre os parceiros. O discurso ideológico encerra ideais de igualdade, respeito aos direitos humanos, relações paritárias, transparência e pagamentos justos. É um movimento que se opõe à globalização neoliberal e busca fazer do mercado um lugar de relações paritárias, dando oportunidades aos produtores marginalizados do Sul através da inserção de seus produtos no mercado. Isso perfaz o conteúdo dos seus ideais. Contudo, no plano da prática, o comércio justo, visto que configura um subcampo dentro do campo maior do comércio internacional, funciona em terreno ambíguo, incorrendo por isso em certas contradições, na medida em que compete no mercado de acordo com regras já estabelecidas, mas com o objetivo de mudá-las, mesmo consciente de que age em uma zona limite entre dar oportunidades aos excluídos do sistema e favorecer uma nova forma de 203 neocolonialismo. E assim, caminha se equilibrando entre o seu ideal e as suas contradições reais. Propõe igualdade entre os povos e a preservação das culturas locais, mas não hesita em estabelecer padrões aos produtos, solicitando aos produtores modificações e adequações, de acordo com o gosto dos abastados clientes do Norte. Afinal, é preciso que as mercadorias se realizem no mercado. Nem ao pequeno produtor, nem ao importador e lojista interessa que os produtos mofem nas prateleiras. As incoerências entre ideal e prática ocorrem porque é imprescindível a realização da mercadoria no mercado, sua venda, sua transformação na forma dinheiro, e esse passo exige pragmatismo. É justamente o excesso de pragmatismo que estabelece dificuldades aos pequenos produtores. Essas dificuldades, tratadas aqui como “os nós do mercado”, dificultam o acesso e a expansão das vendas dos pequenos produtores e a própria existência do comércio justo na sua forma ideal. Portanto, em que pese a necessidade de atitudes práticas, é preciso manter vivos os ideais que fundaram o próprio movimento. O comércio justo balança entre nicho de mercado e movimento político. A primeira condição levando a pragmatismos e a segunda a discursos idealistas. Encontrar um equilíbrio entre essas duas condições é uma tarefa complexa. O movimento do comércio justo se fundamenta em posicionamentos políticos. Do lado do consumo, os indivíduos consumidores atuam como cidadãos do mundo, prestigiando essa forma de comércio como um ato político. Para isso, exigem transparência e coerência, mas também preços justos. De outro lado, o circuito de comercialização, formado por importadores, certificadores e lojas, ainda que constrangido a adotar atitudes práticas e competitivas, precisa também atuar de forma coerente com o discurso, inclusive no que diz respeito à transparência, revelando a face do produtor e as condições da produção no próprio produto. Isso é possível? Talvez, mas o setor precisa evoluir dentro desse debate. Além da questão da transparência, um ponto que necessita ser discutido é a abrangência das redes. Na Amazônia, a realidade do comércio justo e do turismo comunitário favorece a poucos grupos, cujos produtos são enviados ou divulgados no exterior. O guaraná dos Sateré-Mawé, considerado o mais autêntico do mundo, não pode ser usufruído em Belém, pois não há loja que o venda. Os sabonetes da Avive, passam pelo nosso porto, mas pelo mesmo motivo também não podemos comprá-los. O público amazônico que utiliza serviços turísticos desconhecem os roteiros turísticos oferecidos pela ASPAC, a associação de Silves, no estado do Amazonas, que leva em frente a Pousada Aldeia dos Lagos. Ou seja, são produtos amazônicos, que, por falta de 204 políticas públicas de incentivo à comercialização, ainda são destinados exclusivamente ao público externo. Uma rede que abrangesse o Comércio Justo e o Turismo Comunitário na Amazônia poderia mudar esse cenário. Na pesquisa empírica, os produtores entrevistados apontaram a necessidade de abertura do mercado para seus produtos. Em uma frase simples e direta, o Sr. Rosemiro Pereira, artesão ceramista de Icoaraci –PA, manifestou claramente esse desejo: “O comércio justo é um bom negócio porque, quando eu produzo, eu preciso ter quem venda pra mim, e além de tudo, tá valorizando o meu trabalho”. No entanto, apesar dos ideais do comércio justo serem inclusivos, a prática, como temos afirmado, tem demonstrado certa exclusão dos povos da Amazônia. O Norte do Brasil, uma periferia no Sul do planeta, ainda não tem um número expressivo de experiências significativas de comércio justo. Mesmo os projetos com resultados concretos de vendas na região estavam até recentemente excluídos da iniciativa pelo Sistema Nacional de Comércio Justo. Foi uma surpresa descobrir que, no segundo semestre de 2007, os representantes do Projeto Guaraná dos Sateré Mawé ainda não tinham conhecimento do que estava ocorrendo com o movimento do comércio justo no cenário nacional. A iniciativa do Sistema Nacional do Comércio Justo deve incluir na sua prática também a Amazônia. O que vinha vigorando até então eram os critérios e práticas estabelecidos pelo Norte do mundo, muitas vezes distantes das nossas possibilidades. Nesse caso, como no passado, a Amazônia continuava mais ligada às metrópoles estrangeiras que aos próprios centros nacionais. No Brasil e na Amazônia as práticas do comércio justo e do turismo comunitário ganham um interesse especial porque estão ligadas aos princípios do grande movimento da Economia Solidária. E a Amazônia tem um potencial muito grande para ser inserida fortemente nesse contexto. O valor da solidariedade está incorporado em muitas comunidades da Amazônia, contudo faltam ainda iniciativas de fomento e valorização dos produtos da região. É preciso que se construam projetos conjuntamente com os grupos de produtores envolvidos. Isso significa inverter a tipologia de aproximação dos projetos na região, pois, como considera Maués (1998, p.13), “até os dias de hoje, todas as políticas de colonização e exploração dos recursos naturais da Amazônia têm sido traçadas de acordo com interesses alienígenas e/ou das classes dominantes locais aliadas a esses interesses”. Portanto, é preciso construir projetos que valorizem as pessoas e os produtos da região, mas é preciso construir conjuntamente, respeitando os conhecimentos e as aspirações das comunidades locais. 205 Tanto no caso da pousada Aldeia dos Lagos como no projeto Guaraná dos Sateré Mawê, foram as organizações internacionais que possibilitaram, através de financiamentos e acompanhamentos técnicos, o inicio das atividades. As duas experiências, apesar de terem amadurecido com o decorrer do tempo e de unirem seus esforços em prol de suas comunidades, continuam se sustentando graças ao público estrangeiro. A maioria dos turistas que chegam à pousada ou que compram o guaraná dos Sateré é do exterior. Provavelmente será esse mesmo público que fará com que o espaço de ecoturismo Aldeia Vinte Quilos se torne sustentável. Porém, isso não é suficiente. É preciso articular estratégias para conquistar o consumidor local. E isso poderá se tornar realidade se houver um trabalho coletivo entre organizações, comunidades e governos para formar, além de comunidades preparadas para o mercado, consumidores conscientes. Enfim, apesar da distância entre ideal e prática, tanto nas experiências de comércio justo como nas de turismo comunitário, essa forma de comercializar produtos pode representar uma interessante alternativa para grupos produtores amazônicos. Aqui, muitas iniciativas de produção local realizadas por associações e cooperativas ainda estão excluídas das redes de comércio justo. No caso da agricultura familiar, a maior parte das associações alcança apenas o micro mercado local, e as raras experiências de turismo comunitário atraem ainda poucos turistas estrangeiros. Apesar das contradições, o comércio justo, mediante um esforço coletivo capaz de envolver grupos produtores e agentes fomentadores, pode possibilitar vias de escoamento da produção e o alargamento das possibilidades de comercialização, favorecendo a condição organizacional e produtiva dos grupos locais. 206 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVAY, Ricardo. Entre Deus e o diabo – mercados e interação humana nas ciências sociais. São Paulo: Revista Tempo Social, USP, v.16, n 2, 2004. ASTI, Ana. Comércio Justo e o Caso do Algodão: A cadeia produtiva têxtil brasileira. Dissertação de Mestrado: UFRRJ, 2007. ASTI Ana; FERRARI Glayson. Cancun 2003 - 5° Rodada de negociações ministeriais da Organização Mundial do Comércio: um olhar ético e solidário. In Comércio ético e solidário no Brasil. França (org). São Paulo: Fundação Fridrich Ebert/ILDES,2003. ARAMBURU, Mikel. Aviamento, modernidade e pós-modernidade no interior amazônico. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 25. ANPOCS. AVRIL, H. 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Edição nº 366, 20/05/2005. 212 Websites: www.bancomundial.org.br www.cartamaior.com.br www.claccomerciojusto.org www.cidac.pt www.ecologiae.com www.emater.pr.gov.br www.espaciocomerciojusto.org www.european-fair-trade-association.org www.facesdobrasil.org.br www.fbes.org.br www.fomezero.gov.br www.fvpp.org.br www.guayapi.com www.icei.it www.mds.gov.br http://mercadoetico.terra.com.br www.mercadojusto-la.org www.mte.gov.br www.maketradefair.com www.mundareu.org.br www.projetoterra.org.br www.ravinala.org www.relacc.org www.ucodep.org www.wfto.com 213 www.wikipedia.org www.worldfairtradeday09.org www.wwf.org.br 214 APÊNDICES 215 FORMULÁRIO I IDENTIFICAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS DE TURISMO RESPONSÁVEL DE BASE COMUNITÁRIA E/OU COMÉRCIO JUSTO Nome do empreendimento: Endereço: CEP: Município: UF: Telefone: e-mail: CNPJ (se legalizado): Pessoa de contato: Fone: celular: e-mail: Forma de organização: Grupo Informal ( ) Associação ( ) Cooperativa ( ) Famílias ( Pessoas jurídicas ( Outra: Número atual de participantes: Pessoas físicas ( ) ) ) Atividades econômicas do empreendimento: Extrativismo (pesca, exploração florestal) silvicultura, ( ) Agricultura, agropecuária, agroindústria Produção (indústria, confecções) artesanato, ( ) Prestação de serviços (alimentação, hospedagem, ( ) serviços gerais, transporte, turismo em geral) ( ) Outra: Ano de início do empreendimento: Comercializa seus produtos em uma rede de Comércio Justo: Local ( ) Regional ( ) Nacional ( ) sim ( ) não ( ) Internacional ( ) Qual: Realiza algum tipo de atividade de turismo: sim ( ) Hospedagem ( ) transporte ( ) alimentação ( ) não ( ) passeios ( ) 216 Descreva brevemente a atividade: Que público utiliza seus serviços Local ( ) Regional ( ) Esta atividade conta com parceiros Quais? Data Nacional ( ) sim ( ) Internacional ( ) não ( ) 217 FORMULÁRIO II IDENTIFICAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS DE COMÉRCIO JUSTO 1. DADOS CADASTRAIS DA INSTITUIÇÃO / ENTIDADE NOME: CNPJ: REPRESENTANTE LEGAL: DATA DA FUNDAÇÃO: Nº DE ASSOCIADOS: HOMENS ( ) / MULHERES ( TELEFONES: E-mail: ENDEREÇO: BREVE HISTÓRICO: ) PRINCIPAIS PROJETOS DESENVOLVIDOS: PARCEIROS: QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS DIFICULDADES QUE ENFRENTARAM? COMO AVALIA A ENTIDADE / INSTITUIÇÃO ATUALMENTE? REALIZARAM AÇÕES EDUCATIVAS/ FORMATIVAS? QUAIS? 2. DADOS SOBRE PRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO: PRODUTOS PRODUZIDOS E COMERCIALIZADOS: ALIMENTOS IN NATURA ( ) ALIMENTOS INDUSTRIALIZADOS ( ) ARTESANATO ( ) OUTROS ( ) QUAIS OS TRÊS PRINCIPAIS PRODUTOS (TIPOLOGIA) Unidade Quantidade Produzida Mensalmente Valor da Produção mensal (R$) Unidade Quantidade Produzida Mensalmente Valor da Produção mensal (R$) 1. 2. 3. QUAIS OS TRÊS PRINCIPAIS INSUMOS/MATÉRIAS-PRIMAS UTILIZADOS NA PRODUÇÃO 218 1. 2. 3. QUAL A FORMA DE PRODUÇÃO? INDIVIDUAL ( ) COLETIVA ( ) Nº DE ASSOCIADOS ENVOLVIDOS NA PRODUÇÃO: PARA QUEM VENDEM? TEM ENCOMENDAS REGULARES? QUAIS? QUAIS SÃO AS FORMAS DE PAGAMENTO? À VISTA ( ) - À PRAZO ( ) - RECEBIMENTO ADIANTADO ( ) RECEBEM REGULARMENTE? SIM ( ) – NÃO ( ) QUANTIDADE DE PRODUTOS COMERCIALIZADOS: FATURAMENTO MÉDIO/MENSAL: RECEBEU ALGUM TIPO DE FINANCIAMENTO? ( ) SIM ( ) NÃO TEVE ALGUM CONTATO COM A REDE DE COMERCIALIZAÇÃO DO COMÉRCIO JUSTO E SOLIDÁRIO? ( ) SIM ( ) NÃO ESPECIFIQUE: 3. PREOCUPAÇÕES SÓCIO-AMBIENTAIS NA EXTRAÇÃO DA MATÉRIA PRIMA QUE CRITÉRIOS ADOTAM? NA PRODUÇÃO ALIMENTAR USAM AGROTÓXICOS OU ADUBOS BIOLÓGICOS? SIM ( ) NÃO ( ) NO CASO DE PRODUÇÃO FAMILIAR, CRIANÇAS E ADOLESCENTES DA FAMÍLIA COLABORAM PARA A PRODUÇÃO? SIM ( ) NÃO ( ) AS CRIANÇAS ESTÃO REGULARMENTE MATRICULADAS NA ESCOLA? SIM ( ) NÃO ( ) EM CASO DE COLABORAÇÃO DA MULHER NA PRODUÇÃO, ESTA É REMUNERADA? SIM ( ) NÃO ( ) Data 219 FORMULÁRIO II IDENTIFICAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS DE COMÉRCIO JUSTO 1. DADOS CADASTRAIS DA INSTITUIÇÃO / ENTIDADE NOME: AVIVE – Associação Vida Verde da Amazônia / COPRONAT - Cooperativa de Produtos Naturais da Amazônia (36 cooperados: 6 homens) – Criada para a venda dos produtos e para a remuneração das cooperadas que trabalham na confecção dos produtos. Fundada em 2003. (Bárbara Bschmal – Presidente) CNPJ: 03242437/0001-20 REPRESENTANTE LEGAL: Franciane S. Canto; Joyce R. Almeida; Iete de A. Almeida – Coordenadoras Executivas. DATA DA FUNDAÇÃO: 17/04/1999 Nº DE ASSOCIADOS: HOMENS ( 0 ) / MULHERES ( 46 ) TELEFONES:(92) 3528-2161 (fax)/ E-mail: www.avive.org.br / [email protected] 3528-2259 ENDEREÇO: Rua 3, S/N – Ponta do Macário – B: Panorama. CEP:69114-000. Silves-AM BREVE HISTÓRICO: Importante: Fazem cadastro dos coletores. PRINCIPAIS PROJETOS DESENVOLVIDOS: 1- ProVárzea (2002-2005)- Projeto Comunitário de Produção Sustentável de Óleos Essenciais da Região de Várzea em Silves.(MMA; IBAMA; PPG7; PROJETP(Projetp Manejo dos Recursos Naturais da Várzea). Visa trabalhar com a descoberta de óleos essenciais através do conhecimento de novas plantas. Trabalho com manejo comunitário; e com a Titulação Legal de Terras para Comunidades (ex. Comunidade de São Pedro; Parananzinho); Projeto Comunitário de Produção Sustentável de Óleos Essenciais da Região de Várzea de Silves –AM (julho 2006-julho 2008) Visa trabalhar com a descoberta de óleos essenciais através do conhecimento de novas plantas. 2- Trabalho com manejo comunitário; e com a Titulação Legal de Terras para Comunidades (ex. Comunidade de São Pedro; Parananzinho 3- Projeto Florestal Não Madereiro da Fazenda 2000 (Madereira: Precious Woods Amazon) – Junho 2006 (semestral) com previsão de 2 anos; Trabalha com comunidades diferentes, do entorno da empresa com apoio da WWF (suporte técnico). PARCEIROS: WWF – Brasil; Sebrae –AM; Banco do Brasil; INPA; UFAM (Universidade Federal do Amazonas). QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS DIFICULDADES QUE ENFRENTARAM? A principal dificuldade é conseguir o alvará de funcionamento da Anvisa, pois é necessário ter uma estrutura com todos os requisitos que a Anvisa solicita. Ex. Bancadas; Prensas; Iluminação. Agora estão tentando o financiamento a fundo perdido do Banco do Brasil. 220 - A falta de Internet prejudica muito a comercialização; - Não existe transportadora, somente enviam encomendas pelos Correios. - A luta pela legalização de uma área pertencente verbalmente a Avive onde se encontram mais ou menos 2.000 mudas de Pau Rosa. COMO AVALIA A ENTIDADE / INSTITUIÇÃO ATUALMENTE? Hoje a Avive deu um passo bem grande através de algumas atividades realizadas nos projetos. Avaliam positivamente porque tem crescido em n° de Associados e Parceiros. REALIZARAM AÇÕES EDUCATIVAS/ FORMATIVAS? QUAIS? Sim. Cursos de Associativismo/Cooperativismo; Cursos de coletas de sementes; Produção de mudas; Extração de óleos Essenciais; Rapel para coleta de sementes; Manejo florestal. Comunidades: São Pedro, Parananzinho; Livramento, Aparecida, São Tomé, Maquara, Baixa Funda. Total: 115 famílias. 4. DADOS SOBRE PRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO: PRODUTOS PRODUZIDOS E COMERCIALIZADOS: ALIMENTOS IN NATURA ( ) ALIMENTOS INDUSTRIALIZADOS ( ) ARTESANATO (X) OUTROS (X) QUAIS OS TRÊS PRINCIPAIS PRODUTOS (TIPOLOGIA) Unidade Quantidade Produzida Mensalmente 1. Sabonetes R$ 4,00 2. Velas Repelentes e Aromáticas R$ 3,00 3. Óleos Essenciais Capacidade de 3.000 unidades Capacidade de 1.000 unidades Capacidade de 1.000 unidades de frascos de 10 e 5 ml R$ 15,00 (frasco de 10ml) QUAIS OS TRÊS PRINCIPAIS Unidade Quantidade INSUMOS/MATÉRIAS-PRIMAS UTILIZADOS NA Produzida PRODUÇÃO Mensalmente 1. Essência de Pau Rosa (Doação do Ibama 40 litros) – Apreensão da essência tirada da madeira e a Avive pretende extrair de folhas e galhos. 2. Essência de Breu (Para tirar 1 litro de óleo é necessário 50kg de resina Breu 1 litro ? 1 kg de resina 3. Glicerina 1 Kg 4. Parafina Saco de 25 Kg 300kg (capacidade de produção das comunidades) 150 kg trimestral (São Paulo) 1 saco a cada 2 meses (Manaus) QUAL A FORMA DE PRODUÇÃO? INDIVIDUAL ( ) COLETIVA ( X ) Nº DE ASSOCIADOS ENVOLVIDOS NA PRODUÇÃO: 20 pessoas Valor da Produção mensal (R$) R$ 1.000 R$ 1.600 R$ 500,00 Valor da Produção mensal (R$) 1 litro – R$ 200,00 1 Kg – R$ 3,00 1 Kg – R$ 5,00 25 kg – R$ 165,00 221 PARA QUEM VENDEM? Pão de Açúcar em São Paulo (Velas); Sr. Rainer (Alemão) Fair Trade (sabonetes e velas); Ecoshop (sabonetes) Manaus e outros clientes variados. TEM ENCOMENDAS REGULARES? QUAIS? Sim, acima citados. QUAIS SÃO AS FORMAS DE PAGAMENTO? À VISTA ( X ) - À PRAZO ( ) - RECEBIMENTO ADIANTADO ( Não ) RECEBEM REGULARMENTE? SIM ( X ) – NÃO ( ) QUANTIDADE DE PRODUTOS COMERCIALIZADOS: 36 produtos FATURAMENTO MÉDIO/MENSAL: Copronat – R$ 2.000,00 RECEBEU ALGUM TIPO DE FINANCIAMENTO? ( ) SIM ( X ) NÃO TEVE ALGUM CONTATO COM A REDE DE COMERCIALIZAÇÃO DO COMÉRCIO JUSTO E SOLIDÁRIO? (X) SIM ( ) NÃO ESPECIFIQUE: Recebendo uma premiação do Sebrae para a Cooperativa “TOP 100 de artesanato”, na rodada de negócios tinha uma empresa do CJS (Ética Comércio Solidário – Recife) interessada em conhecer a Avive. 5. PREOCUPAÇÕES SÓCIO-AMBIENTAIS NA EXTRAÇÃO DA MATÉRIA PRIMA QUE CRITÉRIOS ADOTAM? Tem que estar no tempo da colheita, prática do manejo florestal. Porém, para algumas matérias primas não existe o manejo, como o Breu, e estão tentando através de pesquisas descobrir uma forma de manejo. NA PRODUÇÃO ALIMENTAR USAM AGROTÓXICOS OU ADUBOS BIOLÓGICOS? SIM ( ) NÃO ( ) NO CASO DE PRODUÇÃO FAMILIAR, CRIANÇAS E ADOLESCENTES DA FAMÍLIA COLABORAM PARA A PRODUÇÃO? SIM ( ) NÃO ( X ) Somente para coleta de matéria prima. AS CRIANÇAS ESTÃO REGULARMENTE MATRICULADAS NA ESCOLA? SIM ( X ) NÃO ( ) EM CASO DE COLABORAÇÃO DA MULHER NA PRODUÇÃO, ESTA É REMUNERADA? SIM ( X ) NÃO ( ) Data 03/08/2007. 222 ANEXOS 223 224 225 Relação dos passeios oferecidos pela Aspac em conjunto com as comunidades, descrita por membros da ASPAC: 1. Ilha dos Pássaros (abril a setembro): Passeio em canoa motorizada observando garças, papagaios e outras aves se agasalharem para passar a noite nas ilhas, longe dos predadores. Duração:2 h; 2. Lagos de Preservação (o ano todo): Excursão aos lagos santuários de preservação. Ocasião propícia para observar a grande variedade de flora e fauna aquática. São comuns jacarés, peixes, aves e pequenos animais. Duração:3 h; 3. Igapó de terra firme (dezembro a setembro): Excursão com canoa motorizada no labirinto da floresta inundada, para conhecer as arvores frutíferas, as plantas ornamentais e a fauna, descobrindo os segredos da alimentação dos peixes. Além do mais, podendo mergulhar na água límpida e refrescante do Igapó. Duração. 4 h; 4. Igapó de Várzea I (setembro a janeiro): Passeio com canoa motorizada até os campos floridos da Várzea, conhecendo sua fauna e flora na época da seca, e caminhando na sombra de suas árvores centenárias. Duração: 3 h; 5. Igapó de Várzea II (março a agosto): Passeio de canoa motorizada pela trilha aquática, navegando entre as arvores centenárias da Várzea, observando a rica avi-fauna deste ecossistema na época das cheias. Duração: 3 h; 6. Rio Amazonas pelo Canaçari (fevereiro a setembro): Em canoas motorizadas atravessamos a grande várzea do lago Canaçari até o furo do Liberato, uma das portas de entrada ao Rio Amazonas. Observação das características do rio e ampla volta medindo a força de sua correnteza. Parada na Comunidade Santa Maria e caminhada através de pomares de Cacau até uma casa típica da comunidade. Além dos contatos diretos com os moradores ribeirinhos, conhecendo seus hábitos, experimenta-se varias frutas da região, o chocolate caseiro, seus derivados e sua matéria prima. Possibilidade de refeição na comunidade. Duração: 5 h; 7. Piquenique noturno com a Comunidade (o ano todo): Visita a Comunidade Santa Luzia. Chegando lá saímos em pequenas canoas a remo com guias da comunidade, podendo praticar a pesca com tarrafa, pequenas malhadeiras e zagaia, focando o peixe com lanternas. O peixe capturado é assado na brasa e consumido durante o piquenique nas margens do rio Sanabani junto a comunidade, uma replica dos tradicionais mutirões comunitários. Em torno da fogueira, historias e lendas amazônicas são contadas pelos ribeirinhos. Duração: 4h; 8. Dia de Intercâmbio Cultural (o ano todo): Visita à cidade de Silves e seus aspectos socioculturais. Sucessiva ida para uma comunidade, com a finalidade de conhecer os usos e costumes caboclos, sua produção e sobrevivência. Conversa comunitária, estrutura familiar, medicina natural. Na casa de farinha será servido um lanche a base de derivados de mandioca. A tarde pode ser combinado um encontro esportivo e a noite uma festa promovida pela comunidade com musica típica da região. Duração: o dia inteiro; 9. Light/Diurno (o ano todo): Passeio de reconhecimento geográfico em torno da Ilha de Silves com canoa motorizada. Poderemos avistar botos e golfinhos de água doce e outras curiosidades da região. De janeiro a julho será possível encontrar vitóriasrégias; 10. Light/Noturno (o ano todo): Saímos a tarde para uma pescaria e para observar a fauna na região dos lagos de preservação; 11. Bed & Breakfast no Anebá (o ano todo): Subindo o rio Urubu, passamos pelo lago Mirituba até o rio Anebá. Lá fazemos o reconhecimento do rio. À noite, jantar regional típico na comunidade. Pernoite nas casas dos ribeirinhos esticando nossa rede. No di seguinte, após café da manhã caminhamos por trilhas na área de cultivo regional (guaraná, cupuaçu) até a floresta. Retornando da floresta haverá um piquenique às margens do rio Anebá. Retorno para Silves. Duração: um dia e meio. 226 12. 13. 14. 15. Somente para grupos de no mínimo 6 (seis) pessoas; Trilha do Riacho: Grau de dificuldade: leve. Em canoa motorizada vamos até a casa de uma família ribeirinha. A trilha passa pelo pomar e o pasto da propriedade até entrar na mata nativa. Árvores centenárias de madeiras preciosas, caminhamos por uma trilha natural para observar a fauna e flora até um riacho refrescante com direito a um batizado na floresta amazônica. Duração: 5 h; Trilha do Ipê Roxo: Grau de dificuldade: leve. Com a canoa motorizada seguimos até a Comunidade Santa Luzia onde entramos direto na floresta com muitas arvores de lei e medicinais. Observação da fauna. Almoço na comunidade a combinar: Duração: 3 h; Trilha do Angelim: Grau de dificuldade: médio. Chegamos a esta trilha de canoa motorizada. Caminhada na floresta primária repleta de arvores de lei, medicinais e aromáticas. Nosso lanche será no final da trilha aos pés de um Angelim majestoso. Duração: 5 h; Trilha do Pau-Rosa: Grau de dificuldade: difícil. (fevereiro a setembro). Logo cedo subimos o rio Sanabi com canoa motorizada acompanhados pelo mateiro e os nossos guias. Levantamos o primeiro acampamento. Após um banho refrescante no rio, jantamos e nos recolhemos em nossas redes. Sono tranqüilo sem a perturbação dos mosquitos devido as águas ácidas do rio Sanabani. No próximo dia chegamos ao segundo acampamento no meio da floresta primária. Rica fauna e flora sob as densas copas de arvores centenárias. Camonhada forçada na trilha ao encontro do pau-rosa, árvore brasileira ameaçada de extinção, e um reconhecimento da fauna e flora desta região ainda não explorada. Uma aventura e tanto. Retornamos no terceiro dia para Silves. Duração: 3 (três) dias. Para grupos de no mínimo 5 e no máximo 10 pessoas. PINTO (2004)