Pulsional Revista de Psicanálise 82 82 Pulsional Revista de Psicanálise, anos XIV/XV, nos 152/153, 82-90 Os intrumentos que permitem vislumbrar o sexo feminino-mutante, realizando sobre ele operações* Tatiana Lionço P ropõe-se repensar os processos de subjetivação pelo relançamento da tentativa de deciframento do enigma da diferença entre os sexos, focalizando prioritariamente o sexo feminino. Inapreensível e mutante, o sexo feminino será buscado por uma via propriamente analítica: por um deslizamento que visa tecer redes de significações possíveis no encontro com campos estrangeiros, no caso, a arte. São interpelados a falar os “instrumentos ginecológicos para operar mulheres mutantes”, de Cronenberg, que indicam possíveis operações sobre o sexo feminino, tais como o fetiche e o objeto sublime. Palavras-chave: Diferença entre os sexos, feminilidade, fetiche, objeto sublime T he proposal here is to rethink the processes of subjectivity through an attempt to decipher the enigma of the difference between the sexes, focusing basically on the female sex. Incomprehensible and mutant, the female sex will be sought by using analytical devices: a slip that aims to weave networks of possible meanings in the encounter with other fields, art, in this case. Cronenberg’s ‘gynecological tools to operate on mutant women’ are asked to speak. They indicate possible operations on the female sex, such as the fetish and the sublime object. Key-words: difference between the sexes, femininity, fetish, sublime object * O presente artigo foi redigido como trabalho final de disciplina de pós-graduação em Psicologia Clínica na Universidade de Brasília, ministrada pelas Profas Dras Tania Rivera e Ana Vicentini de Azevedo. Foi apresentado oralmente no Fórum de Arte e Psicanálise, realizado em setembro de 2000 em Brasília. Os intrumentos que permitem vislumbrar o sexo feminino-mutante... arte nos oferece imagens que, tais como as figurações oníricas, não se deixam esgotar pelas palavras que as tentam apreender e enunciar. A possibilidade de dar sentido aos conteúdos dos sonhos, nos diz Freud, esbarra em um limite que é seu “umbigo”. Este umbigo é o que poderíamos denominar por “o insondável” nos sonhos, mas também é o cerne a partir do qual todo o sonho se organiza. Assim o é com a arte. Os objetos artísticos apresentam-nos uma estranha combinação entre abertura para inúmeros sentidos e fechamento quanto a uma possível significação última que pudesse dar conta de apreender aquilo de que trata a obra. O homem não teria, portanto, o dom da palavra final, senão o dom de poder sempre escorregar de uma palavra a outra na tentativa sempre relançada de buscar significações para aquilo que lhe escapa. O homem não domina a si mesmo, sendo irremediavelmente um desconhecedor daquilo que se produz nele. A psicanálise apresentou inegável contribuição à compreensão do homem, de um modo um tanto extravagante: descentrando-o de si, abriu a possibilidade para que ele pudesse se ver enquanto outro. A presença da arte será convocada aqui enquanto uma referência de exterioridade. Exterioridade ou alteridade, como aquilo que é tomado como não idêntico, desconhecido. No entanto, a psicanálise veio romper com a estaticidade das supostas polaridades, tais como identidade/ diferença, interioridade/exterioridade, si A 83 mesmo/outro, familiar/estranho. A arte, desta forma, é chamada para, de seu lugar de alteridade, desvelar algo passível de reconhecimento pela psicanálise, deixando ver estranhas significações que possam lançar luz a questões pertinentes e supostamente familiares a esta. Uma obra de arte será apresentada enquanto imagem, figuração que, submetida a um esforço de desdobramento em palavras, visa o relançamento da pergunta pelos modos de subjetivação tais como compreendidos pela psicanálise, no movimento de tecer novas configurações de sentido para esta problemática. Não se espera, contudo, que as imagens, tampouco as palavras a serem enunciadas, consigam apreender a questão por excelência que se inscreve no cerne da referida problemática, a saber, a questão da diferença entre os sexos, enigma que, acima de tudo, fundamenta toda possibilidade de subjetivação. Perguntemos, de início, às origens, como podemos saber algo sobre o sexual. Perguntemos às crianças, herdeiros que somos do movimento investigativo por elas inaugurado, para que possamos redesenhar nossas teorias sexuais. Veremos que as teorias elaboradas pelas crianças são sobretudo surpreendentes, explicitamente “equivocadas”. Mas poderíamos supô-las ingênuas? Freud dá a dica de que Essas teorias sexuais falsas (...) possuem uma característica muito curiosa: embora cometam equívocos grotescos, cada uma delas contém um fragmento de verdade. (1908: 195) 84 Há um saber nas teorias sexuais infantis, a despeito do aparente absurdo. Laplanche (1988) sugere que as teorias sexuais infantis são respostas a perguntas. São tentativas de dar sentido, por parte da criança, ao enigma com o qual veio a se confrontar na sua relação com o mundo dos adultos, esses seres já cindidos pelo inconsciente que transmitem questões que eles mesmos não sabem responder. No entanto, assim como estamos creditando às nossas origens um saber sobre o sexual que nos escaparia, as crianças também creditaram aos adultos o saber sobre o enigma da sexualidade, fazendolhes perguntas. Respostas foram e nos são dadas o tempo todo. Mas por mais “elucidativas” que sejam, não aplacam nossas (a nossa e a das crianças) curiosidades. Resta um desconforto e uma certa desconfiança frente ao que nos é apressadamente dito. Sobra a desconfiança de que o enigma não foi elucidado, mas bordeado. À obra de arte será depositada aqui a suposição de um saber, resguardando a constatação já realizada de que a mesma não poderia aplacar nossa sede de conhecimento, podendo, muito diferentemente, relançar-nos o enigma e incitar-nos novamente a elaborar possíveis significações a ele, sempre parciais e claudicantes. Já nos foi dito por Laplanche que “o domínio reservado dos adultos é a garantia do domínio reservado das crianças” (1988: 27). A reserva dos adultos permitiria à criança se reservar certa fantasmatização da sexualidade. A reserva do outro nos permitiria, então, manter a singu- Pulsional Revista de Psicanálise laridade dos desdobramentos que nossas questões percorrem. Este ponto insondável, o enigmático, seria propriamente a condição dos processos de subjetivação. Detenhamo-nos na teoria sexual infantil de que todos possuem um pênis, inclusive as mulheres. Freud (1908) parte da consideração do desenvolvimento do menino. Sendo o pênis a principal zona erógena e fonte maior de excitação e satisfação auto-erótica, o menino não poderia imaginar que existisse alguém desprovido deste precioso órgão. Freud chega a afirmar que a teoria de que todos possuiriam pênis seria um preconceito tão forte que impediria a percepção correta dos genitais das amiguinhas, as quais o menino vê desnudadas. Este preconceito falsearia a percepção dos genitais da menina, os quais seriam presumidos enquanto pênis pequenos, em vias de crescimento. As meninas possuiriam excitabilidade análoga à do pênis em seus clitóris, o que conferiria à sua sexualidade um caráter também masculino. Meninos e meninas seriam, ambos, fálicos? Sim. É o que Freud afirmara nos “Três ensaios...”, em 1905, e o que voltará a afirmar em 1923, na “Organização genital infantil”. Laplanche (1988), retomando o texto freudiano, reafirma que na organização genital infantil só há o reconhecimento do sexo masculino. O sexo feminino só pode ser designado em sua negatividade. A criança desde cedo reconheceria a diferença de gênero, a existência de homens e mulheres, mas faltaria a este Os instrumentos que permitem vislumbrar o sexo feminino-mutante... reconhecimento um certo fundamento lógico. Mesmo reconhecendo a diferença entre gêneros, a criança desconhece a diferença sexual. Este dito “sexo masculino” será o ancoradouro infantil a partir do qual estabelecerá um fundamento para justificar a diferença entre os sexos. A primazia do “sexo masculino”, no entanto, não aponta para a primazia do pênis, mas à primazia do falo. Ainda com Laplanche (idem), podemos dizer que o falo, diferentemente do pênis, teria um valor simbólico: permite vislumbrar o corpo humano enquanto marcado por presença ou ausência. O essencial do falo é que ele pode ser destacado, descolado. Laplanche e Pontalis (1996) sugerem que, sendo destacável, o falo é aquilo que se pode ter ou não, ser ou não, dar ou receber. Esta teoria sexual infantil vem apresentar a característica fundamental da fase fálica: a suposição de um único sexo, sendo a diferença entre os sexos percebida nos termos polarizados do fáliconão fálico, do fálico-castrado. A tese freudiana, portanto, é a de uma masculinidade originária da criança. Segundo André (1996), o autor da teoria sexual infantil de que “todos teriam pênis” é a criança, propriamente, o menino ou a menina da fase fálica. A teoria sexual de Freud teria persistido neste mesmo fundamento: o caráter fálico ou masculino da sexualidade. No entanto, a lógica fálica viria anular a alteridade, a diferença, reduzindo tudo ao mesmo. A lógica fálica não introduziria a diferença entre os sexos, mas tão-somente um úni- 85 co sexo, que faria a diferença. O sexo feminino permaneceria inapreensível, desconhecido, colocando-se como o enigma da diferença entre os sexos. INSTRUMENTOS GINECOLÓGICOS PARA OPERAR MULHERES MUTANTES Vejamos se a arte pode vir ao nosso auxílio. David Cronenberg apresenta, em seu filme Gêmeos, mórbida semelhança, os idênticos Beverly e Elliot, irmãos debruçados na carreira ginecológica. Os gêmeos desenvolvem um instrumento ginecológico inovador, o Retrator Mantle, cuja função é tornar mais acessíveis os órgãos sexuais femininos, para a realização de operações. Criado nos exercícios médicos em cadáveres, o instrumento não pode ser utilizado em mulheres vivas senão provocando-lhes dor. Beverly alega que esta incompatibilidade não é problema do instrumento, sendo que “o corpo da mulher é todo errado”. Russo (2000) nos indica que, no mesmo ano em que o filme de Cronenberg fora lançado, explode o caso do “Dr. James Burt”, que reestruturou cirurgicamente centenas de órgãos internos femininos sob a alegação de que seriam inadequados às relações sexuais. A relação entre os gêmeos é de indiferenciação: ambos são o mesmo e o outro, tornando-se na verdade um só. A aparição de um terceiro vem possibilitar a diferenciação entre os dois, que passam a encontrar um termo externo a partir do qual suas relações ganham sentido. Este outro que vem incidir a separação dos irmãos é uma mulher, Claire Niveau. Pulsional Revista de Psicanálise 86 Ela é uma atriz que, segundo Elliot, “finge o tempo todo, nunca se sabe quem é”. O útero da atriz apresenta uma anomalia, sendo trifurcado, passando esta mulher a ser reconhecida como mutante. Beverly, sob forte dependência de drogas, passa a desenvolver instrumentos ginecológicos que pudessem aproximálo do que se apresentava a ele em seu consultório: o sexo feminino. Os interiores estão deformados, o que o leva a criar os Instrumentos ginecológicos para operar mulheres mutantes. Por serem demasiado radicais, Beverly procura um artista que possa transformar seus desenhos de objetos em instrumentos cirúrgicos. O que sucede é que o artista realiza cópias do material, expondo-as em uma galeria como obras de arte. Estes mesmos instrumentos para operar mulheres mutantes serão posteriormente significados como instrumentos para separar gêmeos siameses. Estes instrumentos são nossa obra, a que se coloca à nossa disposição na presente reflexão. POSSÍVEIS OPERAÇÕES SOBRE O SEXO FEMININO Sabemos que frente à constatação da falta de pênis da mãe, ou melhor, diante da castração do outro, a percepção que se pode ter carrega a marca da ambigüidade: pode-se sempre tropeçar entre nada perceber e perceber nada (Laplanche, 1988). A criança, diante da nudez da mulher, pode não enxergar aquilo que esperava ver (o pipi dela é pequeno, ainda vai crescer, está escondido), ou, e aqui será indicado o que se entende pela castração enquanto tendo surtido seu efeito, a criança pode enxergar uma outra coisa, pode ver a ausência. André (1996) já nos indicara que na lógica fálica encontramos um sexo, o único sexo, o masculino, que é para todos o “mesmo” (tendo-o ou não). Agora cabe ressaltar que este autor aponta que a questão do sexo feminino surgiria sempre enquanto o “outro” sexo, remetendo àquilo a que estamos sujeitos, ao estranho, ao estrangeiro e exterior no próprio interior, indicando uma alteridade radical. A apresentação do sexo feminino se dá de forma paradoxal, posto que este sexo aparece já escapando. Aparece enquanto ausente, enquanto o que se dá a ver como a falta de uma outra coisa, falta do sexo supostamente já conhecido, esperado. A questão que urge por se fazer é: O que acontece quando esse perceber nada, esse acolhimento do outro sexo, se pôde pressentir? No filme de Cronenberg, Claire, a mulher mutante, advém o enigma a partir do qual se opera uma cisão entre os gêmeos, dividindo-os. Duas são as formas de entrar em relação com esta mulher, uma operada por Beverly e outra por Elliot. Os gêmeos idênticos se diferenciam pelos distintos modos de entrar em relação com a feminilidade desconhecida, com a mulher mutante que não se deixa apreender, veiculadora do enigmático. É assim no sonho de Beverly, em que esta mulher morde a carne que une os gêmeos xifópagos. Freud (1940[1938]) vem nos lembrar que, diante da castração, há um me- Os instrumentos que permitem vislumbrar o sexo feminino-mutante... canismo de defesa que opera negandoa, na forma específica da recusa (Verleugung). Rosolato (1999) sugere que o conceito freudiano de Verleugung poderia bem ser traduzido por desaprovação, indicando um movimento de não querer admitir alguma coisa. Ora, se não se pode admitir algo, se algo torna-se desaprovável, é porque este algo ao que se refere já está aí, é algo de que já se deu conta. Recusa da castração, portanto, implica num já reconhecimento da castração. A recusa e o reconhecimento da castração são duas disposições psíquicas diante da castração que, longe de anular uma à outra, são concomitantes, resultando no que Freud (1940[1938]) denominou de divisão do eu. Freud oferece a imagem da subjetivação como possibilidade de movimento, num vaivém entre recusa e reconhecimento da castração. A fenda resultante do conflito entre estas representações inconciliáveis é marca estruturante do humano, da qual não se pode escapar. Poderíamos dizer que as reações diante do sexo feminino inapreensível precipitam esta cisão? Cronenberg parece nos remeter a esta idéia. Os mesmos instrumentos que permitem operar mulheres mutantes são também os que podem realizar a separação de gêmeos siameses. Mas que instrumentos são estes? No filme, estes instrumentos apontam para a possibilidade de figuração do sexo feminino, sem, no entanto, apresentá-lo diretamente. Digamos que os instrumentos aludem ao sexo feminino, apresentam seu caráter mutante, trazem à baila a presença daquilo que não se 87 deixa apreender. Os instrumentos ginecológicos do filme de Cronenberg são o protótipo do modo possível de se apresentar o sexo feminino: não chegam a configurar sua imagem, mas tão-somente apontam para o sexo da mulher, sendo os instrumentos pelos quais se pode tocá-los, operando-os. A partir da compreensão do sexo feminino como representante do enigma da diferença entre os sexos, podemos aproximá-lo da noção de Coisa tal como exposta por Lacan (1997), no Seminário 7. A Coisa, das Ding, é aludida por ele como o ponto que resiste à significação, a marca do verdadeiro segredo, suposto objeto saciador já irrecuperável. Esta Coisa só pode ser apresentada como velada, podendo somente ser representada por alguma outra coisa. Este sexo, sempre outro e estrangeiro, não se deixa apreender, mas seu enigma sustenta a possibilidade de realização do que chamamos operações. O mais interessante nos instrumentos criados pelos gêmeos é que eles servem justamente para realizar operações no sexo feminino. Que operações se fazem possíveis sobre o sexo feminino? Entende-se aqui que Freud (1927) apresentanos o fetiche como resultado de uma operação possível sobre o sexo da mulher. A formação do fetiche seria uma formação de compromisso que articularia as duas forças psíquicas em conflito: reconhecimento da castração, acompanhada de sua recusa, ou, como nos sugere Rivera (2000), entre o reconhecimento da ausência de pênis da 88 mãe e a força da crença infantil em seu caráter fálico. Freud afirma que ... não se deve pensar que o fetichismo apresente um caso excepcional com referência à divisão do ego; trata-se simplesmente de um tema particularmente favorável para estudar a questão. (1940[1938]: 217) O objeto mais representativo do fetiche, para Freud (1927), seria o tapa-sexo, objeto este que, disposto no lugar da falta de pênis, pode ser significado como apontando a presença de alguma coisa, mas também como aquilo que está ali para encobrir a falta de pênis da mãe. É neste sentido que o fetiche é tanto um triunfo sobre a ameaça de castração (é um substituto de caráter fálico), quanto uma proteção contra a castração (sendo que um substituto é situado no lugar de uma coisa já ausente, perdida). Freud, ainda neste texto, afirma que “o horror da castração ergueu um monumento para si próprio na criação deste substituto” (1940[1938]: 157). O fetiche é uma operação que visa preencher este espaço vazio pressentido na visão do sexo feminino, numa tentativa regressiva de recuperar uma suposta garantia do sexo, cristalizando o dito sexo feminino num objeto que pudesse desmenti-lo, reassegurando ao fetichista que o sexo poderia ser sempre o mesmo, familiar, já conhecido. No entanto, este novo objeto, o fetiche, não é senão indicação daquilo que se quer por ele apresentar. Como nos indica Rivera (1997), o fetiche não substitui o pênis perdido, mas Pulsional Revista de Psicanálise tão-somente apresenta sua falta. O fetiche é uma operação possível sobre o sexo da mulher, constituindo-se pela cristalização do enigma da diferença entre os sexos, na forma de um impasse ou paradoxo. Mas podemos pensar, também, em outra operação possível sobre o sexo da mulher. Lacan (1997) nos indica uma outra forma de apresentar o inapreensível: com sua imagem do vaso, protótipo do objeto sublime. Diferentemente do fetiche, este objeto sublime é construído ao redor do que está ausente, bordeando e circunscrevendo este ponto sem forma, atribuindo-lhe contornos. Não pretende encobrir ou tampar o lugar vazio, mas sim apresentá-lo enquanto o que sustenta a constituição de uma forma, de uma possível figuração daquilo que é informe. A constituição do objeto sublime acolhe a impossibilidade de se apreender o vazio, percebido como sua condição de possibilidade. Rivera (2000) indica outro termo para designar isso que estamos denominando de uma outra possível operação: a feminilidade. A feminilidade seria a identificação ao próprio enigma encarnado pelo sexo da mulher, mas renunciando a toda cristalização possível nas tentativas de encontrar a solução do enigma. Esta operação consiste na tomada do enigma pelo movimento, transitando entre recusa e reconhecimento da ausência de pênis na mulher, derivando sentidos deste enigma, deste paradoxo. Estas duas operações possíveis sobre o sexo da mulher, que puderam ser deli- Os instrumentos que permitem vislumbrar o sexo feminino-mutante... neadas, carregam ambas a marca do irremediável desconhecimento sobre a diferença entre os sexos. Estas operações não nos tornam familiares e conhecedores do sexo da mulher, mas permitemnos construir sentidos a partir deste espaço de ignorância que nos funda. Podemos pensar o quanto as possíveis operações que podemos realizar sobre o sexo da mulher apresentam potencialidades diversas, indo do fechamento radical do enigma numa tentativa de neutralizálo, como no caso do fetiche que toma o enigma como um impasse, até o investimento na abertura que é o enigma, campo grávido de sentidos potenciais. Dito em outras palavras, as operações sobre o sexo da mulher circulam desde a cristalização, parada que torna o enigma estanque pelo paradoxo do fetiche, até um outro modo bastante distanciado deste primeiro, que é a possibilidade de deriva pulsional, errância que marca o movimento de encontro e desencontro, ilusão e desilusão em relação ao que representa o sexo feminino, representante deste objeto para sempre e desde sempre já perdido. Mas estas operações seriam limites, possibilidades últimas dentre muitas outras que se dispõem entre o espaço da distância que as interpõe. A repetição neurótica seria uma outra possível operação sobre o sexo da mulher, que acolheria elementos de cristalização e deriva, na insistência de dar cabo ao jogo de engano e desengano frente aos objetos de desejo eleitos para satisfação. O sexo feminino, caso pudesse ser definido por algum termo que acolhesse 89 seu sentido evanescente, o seria pela noção de mutação. O sexo feminino é mutante porque só se deixa ver enquanto já outra coisa, e é assim no fetiche e nas possibilidades de deriva pulsional. Mutante porque sempre outro, consentindo em deixar-se apreender somente pelas operações que vierem a ser realizadas sobre ele, no intuito de aproximá-lo de alguma outra coisa mais próxima de um certo reconhecimento. As obras de arte, tais como os instrumentos ginecológicos para operar mulheres mutantes, aludem a isso que está ausente, são um modo de apresentar aquilo que não se deixa apreender. O que podemos questionar é se os movimentos de fetichização ou derivação seriam dados pelo objeto. Acredita-se que alguns objetos podem veicular o enigma, podendo ou não serem obras de arte. Fica a cargo tanto do artista-criador quanto do fruidor da obra inaugurarem uma teia ao redor do objeto. Esta teia pode fechar a obra num casulo, tendo como ponto final o corte do fio que percorreu a obra, criando, sobre o objeto, uma redoma que supõe prender o enigma. Neste sentido o objeto está fechado, podendo servir apenas como fetiche, seja do artista, seja de qualquer um. Mas a teia também pode percorrer o objeto de modo a roçá-lo em diversos pontos, bem como traçando uma ligação entre o objeto e algo que está fora dele, avançando, andando com a obra alhures. A obra de arte, tal como o umbigo do sonho, é apenas um ponto, aquele que não se deixa apreender, mas que possibilita a criação de inúmeros sen- Pulsional Revista de Psicanálise 90 tidos ao redor dele. A partir da obra, para fora dela. Do enigma lançado pela obra, para o prazer de não elucidá-lo, relançando-o fora da obra. A obra, assim como o sexo feminino, nos dispõe um enigma indecifrável sobre o qual podemos realizar operações. REFERÊNCIAS ANDRÉ, J. As origens femininas da sexualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. IX. ____ (1908). Sobre as teorias sexuais das crianças. Op. cit. v. IX. ____ (1923). Organização genital infantil. Op. cit., v. XIX. ____ (1927). O fetichismo. Op. cit., v. XIX. ____ (1940[1938]). A divisão do eu no processo de defesa. Op. cit. v. XXIII LACAN, J. O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. LAPLANCHE, J. Problemáticas II – Castração/Simbolizações. São Paulo: Martins Fontes, 1988. ____ e PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1996. RIVERA, T. O fetiche, subversão do símbolo. Percurso Revista de Psicanálise, n. 19, 1997. ____ O analista, a mulher e o fetiche. Alter – Jornal de Estudos Psicodinâmicos, vol. XIX, n. 2, 2000. ROSOLATO, G. O negativo e seu léxico. In A força do desejo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. RUSSO, M. O grotesco feminino. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. Artigo recebido em agosto/2001 Versão aprovada em novembro/2001 PSICOWAY Profissionais e Instituições de saúde mental – www.psicoway.com.br Psicoterapia, Fonoaudiologia, Psicopedagogia, Terapia Ocupacional, Acompanhamento Terapêutico, Neurologia, Psiquiatria, Psicologia do Esporte. Profissionais qualificados com preços acessíveis. Convênios para profissionais. Informações Fonefax: (0xx11) 3172-5617 e-mail: [email protected]