(In) disciplina: olhares plurais Escola e família em ação – professores e pais em interação Feliciano H. Veiga 1 Instituto de Educação a Universidade de Lisboa Resumo A problemática da indisciplina e da disciplina tem surgido como atual, quer na escola quer na família, e como importante em diferentes modelos teóricos e de investigação. O objetivo principal desta conferência é considerar especificidades do desempenho da autoridade, na escola e na família, destacando elementos que valorizem a prevenção da indisciplina e a intervenção nos comportamentos de transgressão dos alunos. Falar da dimensão longitudinal da transgressão, na família e na escola, implica considerar variáveis como: educação e valores, (des)humanização, percursos da ciência e da investigação. O problema de pesquisa aqui focado é o seguinte: Como se processa a autoridade na família e na escola, e como se diferenciam os alunos no desempenho académico, devido à forma como tal autoridade é exercida? Pode constatar-se que, ao longo da história, o maior erro da educação (e da ciência) foi “o autoritarismo” e, mais recentemente, “a permissividade” e a “inconsistência” no exercício do poder. São relevados conceitos centrados na relação interpessoal e ilustrados com textos declamados – “Ó pais que só pensais em trabalhar” e “O corcundinha” –, enquanto quadros vivenciais e motivadores da intervenção psico-educacional no envolvimento dos alunos na escola. Como implicações, são propostos conteúdos curriculares específicos na formação de professores (e de pais), que têm como objetivo a aquisição de conhecimentos e competências que possibilitem criar relações de acompanhamento aos alunos (e aos filhos), sobretudo aos que não gostam da escola. Palavras-chave: indisciplina; disciplina; comunicação; relação professor-pais; formação de professores; envolvimento dos pais. ______________ 1 Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, Grupo Psicologia da Educação. Alameda da Universidade, 1649-013, Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected] Artigo baseado na Conferência proferida no Agrupamento de Escolas Viseu Sul, no âmbito do projeto "ESCOLA E FAMÍLIA EM FORMAÇÃO/AÇÃO — PEFF/A", em 13 de março de 2015. As ideias apresentadas foram adaptadas do livro de F. H. Veiga (2007), Indisciplina e violência na escola: Práticas comunicacionais para professores e pais, bem como da Conferencia proferida na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, na Aula Inaugural do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, em 12 de fevereiro de 2014. Apoio: Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Importância e atualidade do tema O aumento dos comportamentos de indisciplina tem vindo a ocorrer em muitas escolas. Muitos professores, confrontados com tais comportamentos, sentem-se ansiosos antes de entrar na aula, durante a aula e depois das aulas. Alguns pais receiam pelo que 1 possa acontecer aos seus filhos. Alguns alunos sentem um clima de insegurança e medo nas escolas. Dada a existência de tais comportamentos, a escola e a família merecem ser consideradas, até porque o futuro do mundo, de quem mais depende é, em primeiro lugar dos pais e, depois, é dos professores. Um estudo realizado nos Estados Unidos da América refere que, em 15% das escolas das grandes cidades e em 8% de todas as escolas, ocorrem graves comportamentos de indisciplina. Outros autores observaram que, na GrãBretanha, a principal causa do stress dos professores, quer urbanos quer rurais, era o comportamento indisciplinado dos alunos. Outros referem que a maior causa do aborrecimento dos professores é a ação dos alunos com comportamentos indisciplinados. Também no nosso país os comportamentos de indisciplina nas escolas tem vindo a ser motivo de preocupação para professores e pais (Veiga, 2012). Poderemos perguntar: qual o maior fator da indisciplina escolar ou da violência juvenil? Para uns é a falta de valores (familiares, escolares e sociais), para outros a falta de perspetivas quanto ao futuro, para outros um sintoma de ruturas. Para outros – e esta ideia também corre infelizmente por aí – a culpa seria dos professores, ou seja, quem deveria responder pelos atos de indisciplina dos alunos seria o professor e não os alunos. Aos que defendem esta posição, pergunto: não é o aluno que comete o ato indisciplinado? Então, por que motivo atribuir a causa ao professor? O primeiro que deverá ser responsabilizado por um ato de indisciplina é, obviamente, quem o comete. De fato, será possível alguém mudar sem reconhecer que errou? Em turmas com muitos alunos, num sistema educativo que tem vindo a apresentar tantas dificuldades em conduzir os jovens ao prazer em aprender, à realização escolar e profissional, os comportamentos de indisciplina podem, até, ter um lado útil e positivo, sobretudo se encarados como um apelo à mudança de algo que não deveria existir. Num rápido percurso pela situação atual do mundo, dito moderno, deparamos com múltiplos países em guerra, com movimentos extremistas que insistem em espalhar o medo e o terror em locais mais imprevistos. Este estado de coisas tem vindo a fortalecer uma subcultura de pequenos adolescentes vagabundos, com os seus próprios dialetos e organização social. Estes grupos são, assim, como que o eco distante de uma família que perderam ou que nunca tiveram. Que soluções tem o mundo, dito moderno, para tal estado de coisas que envergonha a humanidade? Cabe perguntar: mas, afinal, que educação é essa que tem levado alunos a causar sofrimento a professores? No passado, os padrões sociais e 2 educativos baseavam-se na relação superior-inferior em que o primeiro mantinha o seu domínio por meio de ameaças, de castigos, prémios ou concessão de privilégios. Entendeu-se, mais tarde, que tais métodos não eram eficazes, nem muito menos preparavam as gerações futuras para a vida democrática. O desenvolvimento da pessoa e da moralidade social requereria novos métodos para a resolução dos conflitos. O aumento da consciencialização dos direitos dos alunos (Veiga, 1999) veio abalar os métodos tradicionais de disciplina em que muitos pais e alguns professores encontravam “segurança”, sem que, entretanto, tenham adquirido novas competências educacionais. Alguns pais mantêm-se presos aos métodos autoritários do passado. Ignoram ainda, ou nem se lembram que a relação autoritária inibe a troca de argumentos e a educação (Veiga, 2013). Nas escolas, passou-se do autoritarismo tradicional para uma permissividade elevada. Alguns pais e alguns professores encontram-se ainda num período de transição para uma educação baseada na compreensão e responsabilidade. O tempo de comunicação entre pais e filhos ou entre professores e alunos, aparece como escasso e não significativo. Reage-se ainda muito à ofensa com ofensa, à agressão com agressão e à indiferença com indiferença. Muitos alunos não aprendem, não porque não tenham capacidades para aprender, mas porque alguém os convenceu de que não tinham capacidades para aprender. Temos alunos que abandonam a escola convencidos de que “não têm cabeça” para a escola, não porque não tenham capacidades, mas porque alguém os foi levando a verem-se como sujeitos sem valor. Muitos destes alunos, assim excluídos, vão engrossar a marginalidade social. Outros alunos permanecem na escola, mas, com os seus atos de extrema indisciplina, impedem o funcionamento das aulas, danificam materiais e martirizam a vida dos professores. Se a escola não encontrar formas de atrair para si própria os alunos, teremos perante nós cada vez mais escolas a fechar, para se abrirem as portas das cadeias, sarcasticamente, como prova da nossa incapacidade de saber trabalhar... e amar. Ora, é na família que tudo começa (o poema, que peço para ser lido, com o título Ó pais que só pensais em trabalhar foi redigido num momento em que me encontrava mais pensativo acerca da função dos pais na sociedade dos nossos dias). Cada vez me convenço mais de que não basta a um aluno ter capacidades para aprender; tão importante, ou mais, é acreditar nas capacidades e no esforço para obter sucesso. Esta crença depende do tipo de autoridade e comunicação na família e, depois, na escola. 3 A desorientação internacional No recente livro de Adriana Moreira (2013), intitulado “Memórias do outono ocidental: um século sem bússola”, o professor, falando de um mundo sem norte, referese a um globalismo à deriva, que leva ao recuo dos direitos humanos. Explica a desorientação de órgãos internacionais, como a própria Organização das Nações Unidas, que atuam sem “conceito de coordenação estratégica” e fecham os olhos ao liberalismo e ao economicismo, que, destruindo o estado social, corrói a confiança entre as sociedades. Fala da “troca do valor das coisas pelo preço das coisas” (Nóvoa, 2014, p.16), adverte que “só há futuro se respeitarmos o eixo da roda que são as pessoas e os valores” (p.68) e apela à “vigilância ativa do humanismo” (p.378). Assim, falar de Escola-Família implica considerar variáveis importantes, que aqui ficam centradas em duas: “educação e valores”. Educação e valores Num estudo de 2014, intitulado “Literacia Social: os valores como Fundamento de Competência”, da Universidade Católica Portuguesa e do Instituto Luso para o Desenvolvimento Humano, os indivíduos com mais habilitações escolares e com mais rendimentos econômicos foram os que deram menos importância à solidariedade, à justiça e aos valores democráticos. Quanto mais avançamos nos níveis de instrução, do 1° ciclo ao ensino superior, a importância da justiça ou da solidariedade vai baixando progressivamente. Os mais instruídos e os mais ricos são aqueles que mais desvalorizam a justiça e a solidariedade. Quando questionados sobre a importância de ajudar os outros, 87% dos inquiridos com o 1° ciclo respondem afirmativamente; essa percentagem baixa para 83% quando os inquiridos têm o 2° ciclo; para 74% quando têm o 3° ciclo; para 59% quando têm bacharelado; e ficando o valor mais baixo na fatia dos licenciados, mestres ou doutorados, com 53%. A mesma pergunta cruzada com os níveis de rendimento revela que 86% dos inquiridos que ganham até 500 euros consideram muito importante ajudar os outros; essa percentagem decresce à medida que os rendimentos aumentam, chegando a 47% com o grupo dos que ganham mais de quatro mil euros por mês. Como é que isto é possível? A explicação passa pelo fato de os elevados rendimentos e os elevados níveis de instrução “serem contrários” àquilo que é a harmonia social e o desenvolvimento 4 pessoal, o que revela que é preciso mudar os currículos escolares, tão afastados que estão dos valores humanos. Poderíamos colocar aqui a descrição do facto de que a Alemanha, que já por 3 vezes neste século viu a dívida perdoada, assumiu em reunião do euro-grupo a manutenção da dívida da Grécia. Precisamos, de facto, de olhar para o lado, precisamos de uma Educação para a solidariedade. Diante do exposto, o que se pode pensar do que tem sido e do que quer ser a Educação, na sua dimensão de aplicação à escola e à família? Na derivação de uma ideia de George Shaw, prêmio Nobel de Literatura em 1925, “tem-se passado muito tempo a descrever as coisas como elas são e a dizer por quê, em vez de sonhar com coisas que não existem e perguntar por que não”. Se a Educação e o Ensino não enveredarem por um conceito de busca criativa do bem para todos, estarão condenadas a não serem “grandes”. Para isso, é preciso aceitar fazer muitas pequenas coisas: quem não for capaz de aceitar fazer pequenas coisas jamais verá perante si as coisas grandes. Fazê-las no âmbito da cooperação institucional da Educação pode ser uma boa forma. O estudo da motivação dos alunos pode ser o tema de um projeto, para o qual deixo aqui o desafio da participação do Agrupamento de Escolas Viseu Sul. Um projeto centrado na motivação dos alunos Trazemos aqui uma proposta. Dentro de vários outros possíveis projetos de interesse, é proposto um projeto intitulado “Motivação dos Alunos para o Desempenho Acadêmico” (MADA). Esse projeto foi recentemente estruturado no âmbito da coordenação do Grupo de Investigação Psicologia da Educação da Unidade de Investigação, Desenvolvimento e Formação (UIDEF) do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (IEUL), e tem por objetivo geral realizar pesquisas sobre a motivação, o rendimento e o comportamento escolar dos alunos. O estudo dos conceitos motivação dos alunos e desempenho acadêmico tem surgido como importante e atual, sobretudo nas teorias cognitivo-sociais, que destacam a escassez de investigações e a necessidade de aprofundamento das existentes. A motivação apresenta-se ligada ao envolvimento dos alunos na escola, conceito transdisciplinar que tem sido apontado como uma via de respostas aos problemas nas escolas dos nossos dias. Atendendo à natureza do tema a investigar e suas variáveis, este projeto pode organizar-se em 4 dimensões ou temas mais específicos: (1) Antecedentes da motivação 5 dos alunos para o desempenho acadêmico (MADA): fatores sociofamiliares, escolares e pessoais; (2) MADA: conceptualização e avaliação; (3) Consequentes da MADA: rendimento acadêmico, comportamento escolar, absentismo, abandono, e comportamentos de risco; e (4) Promoção da MADA: elaboração e avaliação de programas de intervenção. Uma boa notícia, quase de última hora, é a seguinte: este projeto foi submetido à FCT, para financiamento, e, sendo aprovado, terá a colaboração das vossas Escolas, com natural retorno de elementos informativos e formativos. Acão de pais e professores Entre as medidas propostas para prevenir a transgressão e a agressão na escola, destaca-se um conjunto de orientações específicas a pais e a professores. Interações pais-filhos Entrando nas linhas de orientação educativa aos pais ou encarregados de educação, destaco apelos como os seguintes: mostrem disponibilidade para a troca de opiniões com os vossos filhos; escutem os argumentos por eles apresentados; conheçam aquilo de que eles gostam; funcionem como fontes de apoio; conheçam os seus amigos; estejam ao seu lado nos momentos difíceis; saibam quando devem ceder; mostrem interesse em conhecer os seus professores e em colaborar com eles; participem na vida da escola; colaborem com a associação de pais; e falem com os vossos filhos acerca da maneira como correu o seu dia-a-dia. Perguntas muito simples — do tipo Como foi o teu dia na escola? Que disciplinas vais ter amanhã? — são importantes manifestações de interesse e podem diferenciar os alunos quanto ao ambiente familiar e, consequentemente, quanto à sua adaptação à escola. Em suma, tenham tempo para os vossos filhos, escutando-os, valorizando-os e, depois, deixando-os fazer escolhas, e voar! 6 Interações professor-alunos Deixem-me dizer-vos que a maior herança que um pai pode deixar a um filho e a maior marca que um professor pode deixar num aluno é levá-lo a acreditar que tem capacidades para ter sucesso, desde que naturalmente se esforce e trabalhe para obtê-lo. Existem, felizmente por essas nossas escolas, muitos professores que são autênticos peritos na arte de deixar marcas positivas naqueles alunos que por eles vão passando; outros professores têm um grande desejo de que também assim com eles venha a acontecer. Para além dos elementos de ativação psico-educacional dos alunos, a investigação em Psicologia da Educação permite derivar outras estratégias úteis aos professores, tais como: face a um comportamento de transgressão, procure manter-se calmo e seguro, até para modelar o comportamento do aluno; se detetar que um aluno é vítima de maus-tratos familiares, torne-se um seu amigo especial; ajude os alunos sobredotados a serem também solidários, amigos genuínos dos colegas, colocando as suas competências ao serviço dos que têm dificuldades; dê atenção aos tímidos e aos que são rejeitados pelos colegas; ponha os alunos a participar na aquisição e construção do conhecimento; seja flexível, mas também coerente; destaque o que o aluno tem de positivo, antes de repreender o comportamento menos correto; não faça críticas em público, mas apenas ao aluno em causa; reaja com sentido de humor, mostrando que sabe resolver problemas; dê especial ajuda aos alunos com precariedades de vida, sobretudo alimentares; mostre-se disponível para receber os pais dos alunos, procure-os para lhes falar das qualidades e das capacidades dos seus filhos. Atenda a que os comportamentos de indisciplina existem desde o aparecimento das situações de ensino, e não podem nem devem ser vistos como patológicos. Não entre em desânimo; alguns professores, sobretudo os mais novos, face à indisciplina dos alunos que não os deixam trabalhar, entram em estado de desânimo (crença de que já não se é capaz de resolver o problema); a esses professores, sugiro sobretudo que desabafem com os colegas (muitos têm problema idêntico). Não entenda a indisciplina como uma ofensa à sua pessoa; na verdade, alguns alunos elegem os professores que mais se parecem com as suas figuras parentais, e fazem perante eles o que não podem fazer perante os pais (que no fundo são as figuras mais amadas). Nas situações em que a indisciplina se alastrou à turma, uma boa estratégia será a intervenção centrada no líder do grupo indisciplinado, deixando que ele assuma algum 7 protagonismo positivo (colaborar com o professor em tarefas de que goste, superintender no comportamento dos colegas...); por efeito de onda, os seus pares passarão a imitá-lo no que faz de bem. Interações escola-famílias Seguem-se outras ideias, destacadas como importantes (Woolfolk, 2014), com vista à criação de laços significativos entre a escola e a família, com implicações positivas na diminuição da indisciplina, da violência e do bullying: estabelecer parcerias com as famílias; estimular o voluntariado (recrutar e organizar apoios e ajudas dos pais); estabelecer parcerias com a comunidade envolvente. Em complemento, propõe-se uma formação de professores, sobretudo dos diretores de turma e, também como muito importante, uma formação do pessoal técnico de ação educativa, centrada na aquisição de competências de relacionamento com os alunos perturbadores. Sugere-se a criação de grupos de apoio a escolas e a professores, vítimas da indisciplina e da violência. Lamenta-se a falta de uma rede de “Serviços de Psicologia e Orientação”, alargada a todo o país. Propõe-se a implementação da educação de pais, de que lamentavelmente ainda não se ouve falar, sobretudo daqueles cujos filhos mais provavelmente virão a levantar problemas nas escolas. Estamos certos de que a formação de pais acabará por constituir, mais tarde ou mais cedo, uma importante decisão sociopolítica: lembremo-nos de que a criança é o pai do adulto. O que foi dito conduz a um caminho que retoma obstáculos sociopolíticos, que se destacam em seguida. Elementos sociopolíticos Atribui-se à escola a função de ensinar e, também, a de educar. Porém, não lhe têm sido dadas as condições de realização. Sente-se que, em Portugal, alguns alunos mais carentes estão a abandonar a escolar quando, já na reforma republicana, proclamava-se “que ninguém fique de fora” da escolaridade a que tem direito. Ora, o berço onde se nasce diferencia ainda muito o percurso de vida que se tem, na escola e na vida. Embora o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) mostre que a fome e a pobreza têm diminuído no mundo, estamos a passar por momentos difíceis, em que a injustiça, a iniquidade, o desemprego e a fome fazem parte da realidade de muitas pessoas (Mendes, 2002). Na Europa, Portugal surge como um dos países em que 8 as desigualdades sociais são maiores, apesar de o poder ter sido sempre exercido por dois dos partidos com maior representação social. Perguntamos de novo: Que soluções existem no mundo, dito moderno, para tal estado de coisas que envergonha a humanidade? Embora tenham vindo a aumentar as preocupações da comunidade mundial por esses problemas, não é muito provável que tal situação se altere nos próximos anos. Então, onde está a solução? As respostas para tais problemas têm de ser encontradas na educação, talvez recorrendo a um dos mais importantes direitos humanos, o direito à indignação, para utilizar as palavras de Hessel (2011), no seu recente e famoso opúsculo intitulado “Indignai-vos”. Embora saibamos que muito se tem feito nos últimos anos, reconheça-se por isso o direito à indignação. O que nos leva aos versos de Hélia Correia (2012), quando, no seu recente livro premiado, intitulado “A Terceira Miséria”, diz: “De que armas dispomos / senão destas / que estão dentro do corpo: o pensamento …, do qual virá um início?”. É isso: precisamos de um início. Precisamos de escolas e de países que, educando, transmitam valores e previsibilidade. Urge passar do desamparo ao amparo, do desânimo ao ânimo, do ilógico ao psicológico, e do monetário ao humanitário. É isso: precisamos de um início. Sabe-se, pela Ciência e pela História, que quanto mais problemas econômicos e sociais tem um país, mais deverá melhorar a qualidade do ensino e da investigação, pois é daí que pode surgir o impulso necessário a um estado de desenvolvimento superior, com satisfação dos direitos das pessoas, de todos, na escola e na vida (Veiga, García, Neto, & Almeida, 2009). Diz-se que o homem vale, sobretudo, pela educação que possui (Veiga, 2012). Frase orientadora desses esparsos pensamentos — que nos foi conduzindo à metáfora da vela que ilumina, mas que, ardendo, se consome e transubstancia. De fato, homens houve que — grandemente escolarizados, letrados e diplomados -, ficaram na história como ditadores. E nós vimos atrás a relação entre escolaridade e humanização. Assim, à frase O homem vale, sobretudo, pela educação que possui urge acrescentar e que o leva a sentir-se como um cidadão do mundo. É por isso que “Instruir é construir” (Padre A. Vieira). Perante os horrores daquilo que aconteceu num campo de concentração nazi, o papa João Paulo II disse um dia: “Onde estavas tu, Deus, quando isto aconteceu?”. Faz anos, eu visitei um desses campos e, todo eu tremendo, pensei: os indivíduos que praticaram tais horrores estavam entre os mais escolarizados. Como é possível ter grandes conhecimentos escolares e, simultaneamente, ser monstro, com seguidores terríficos? 9 Antes de apresentar as ideias finais, e retomando o tema específico das transgressões na escola, quero relevar que, de facto, muitos professores sofrem imenso com o ambiente de extrema indisciplina que os não deixa trabalhar nem sentir felizes. Ideias finais Do que foi dito — e do meu ponto de vista, sabendo que um ponto de vista não é mais do que a vista através de um ponto —, o que temos que saber é que nada do que é humano nos pode ser estranho. O que temos que fazer é tomar como azimute a dignidade humana, em tudo o que temos em Educação. Há muito que “fazer”, mesmo sabendo que temos muito que esperar, pois, como disse Albert Camus, as grandes ideias vêm mansamente. Mas “o que hoje não sabemos, amanhã saberemos” (Garcia da Orta, 1563). O que hoje a Educação não faz, haverá de fazê-lo amanhã, prevemos. Pense-se não a partir do econômico, mas a partir do psicológico, do educacional, das pessoas, do social, do bem-comum. Há que humanizar, há que viver com valores. É preciso levar a Educação a todos os cidadãos. E mais, bem mais: é preciso que todos venham a ter trabalho. Perto de terminar, permitam-me fazer aqui um apelo: pais, sede, sejamos Pais; professores, sede, sejamos Professores; estudantes, sede, sejamos Estudantes; sociedades, sede Sociais. Leve-se daqui uma ideia de Padre António Vieira: “Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos apenas duramos”. Essas palavras conduzem-nos a Mandela, quando diz que “Um santo é um pecador que luta até ao fim” (Moreira, 2013, p. 41). Precisamos pensar criticamente! Pensar criticamente a formação dos professores (Guzzo et al., 2013) e dos pais (Veiga, 2013). E... sonhe-se! Do que pode vir a ser, / aurore / de tudo o bem de todos. Antes de terminar, vejo a necessidade de construir pontes, entre as escolas e as famílias. Se não mudamos o mundo, andamos cá a fazer o quê? (Catarina Albuquerque, in Jornal I, 20-2-2015). O mapa é magno, é o mundo, mas há que o fazer, porque quando o homem sonha, a obra nasce, se Deus quiser (Pessoa). Quando a Ciência e a Educação tiverem evoluído ao ponto de sabermos que nunca mais haverá guerras horrendas, quando tivermos ensino e trabalho para todos, então atingiremos o estado superior da Educação. Finalmente — e querendo terminar por aqui —, quando atingirmos o estado superior da Educação, então todas as pessoas, ao 10 acordarem pela manhã, sentirão uma vivência de atração centrípeta para o bem-comum. Enquanto isso não acontecer, continuará a justificar-se a nossa preocupação com a Educação nas escolas e nas famílias. Às perguntas que sinto em vós, aceitai que vos responda com uma narrativa que adaptei de leituras prévias (Ginott, 1995). No primeiro dia de aulas, o Presidente de uma Instituição Educativa convocou os professores e os pais e fez distribuir por eles uma folha onde se lia: Caro colega, Sou um sobrevivente de um campo de concentração. Os meus olhos chegaram a ver o que jamais algum homem deveria ter contemplado. Máquinas de guerra construídas por engenheiros sobredotados e eficientes; crianças envenenadas por médicos com muitos conhecimentos e talentos; recém-nascidos assassinados por enfermeiras muito entendidas; vi soldados de alta patente a matar e a queimar mulheres e crianças; muitos professores e alunos foram esperados às portas das escolas para serem fuzilados. Enquanto Hitler pretendia levar a cabo a chamada solução final – exterminar os seus opositores e as raças ditas inferiores – a história dos homens sobre a terra pareceu parar. O número de pessoas assassinadas foi mais de 6 milhões. Parece inacreditável! Mas... está gravado na história, a ferro e fogo! Por tanto, mostro-me suspicaz cada vez que se pergunta o que significa a educação para o homem. Quero, por tanto, fazer-vos a seguinte petição: pais, sede pais; professores, ajudem os vossos alunos, e os que vierem a ter, a tornarem-se seres mais humanos. Os vossos ensinamentos, a nossa comunicação não devem dirigir-se à produção de monstros de grande sabedoria, horrendos psicopatas, homens instruídos e educados como Eichman. Agora sim, vou terminar, lembrando que o futuro do mundo de quem mais depende é, em primeiro lugar, dos pais e depois dos professores, e pedindo que não nos esqueçamos de que o ensino e a educação são muito importantes, mas apenas quando deixam marcas duradouras, nos filhos e nos alunos, como seres genuinamente humanos. Referências Alarcão, I. (2001). Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: ArtMed, 2001. Albuquerque, C. (2015). Jornal I, 20-2-2015. Correia, H. (2012). A terceira miséria. Lisboa: Edição Relógio D’Água. 11 Ginott, H. G. (1995). Teacher and child: A book for parents and teacher. London: Macmillan Company. Guzzo, R. S. 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