STEREOTYPE
Homem_Conhecia.p65
7
5/6/2006, 16:50
Homem_Conhecia.p65
8
5/6/2006, 16:50
SIM
Atriz. Encostou seu Uno Mille e pediu para o namorado esperar com o motor ligado. Ia só trocar de roupa.
20h25. Daria tempo. Descer a rua Cardeal Arco Verde.
Novo Sesc Pinheiros. Ela, eufórica, novo namorado, que
milagrosamente também gostava de teatro. Peça: Os Sete
Afluentes do Rio Ota. Ela já assistira. Ele, não. Tudo bem,
cinco horas de espetáculo. Mas é tão lindo, lindo, lindo,
ela veria várias vezes. Como se conheceram? No Frans
Café da Pompéia. Ela lia a revista Bravo!, ele chegou e
perguntou as horas. Coincidência, era ator também. De
escolas diferentes. Ela, da Escola de Artes Dramáticas
da USP, mais técnica, mais cerebral; ele, do Indac, mais
prático, mais fazer teatral. Outra coincidência, ambos
ensaiavam peça de criação coletiva, como Rio Ota. Ela
entrou correndo em casa, apertou o botão da secretária
eletrônica e, enquanto trocava de roupa, um arrepio: a
noite anterior, do ensaio, de como ele a beijou na coxia,
do amasso no proscênio na frente de todos, correndo
pelos corredores do teatro, até se deitarem na cabine de
luz e som e, em silêncio e no escuro, sem ninguém dar
conta... Será que estou apaixonada? Garota, garota, olha
bem! Olhou-se no espelho, virou de lado, olhou as per9
Homem_Conhecia.p65
9
5/6/2006, 16:50
nas, as costas, o cabelo. Preciso cortar dois dedos. Colocou um vestido bem florido. Nem prestara atenção nos
recados da secretária. Voltou pro carro feliz, correndo
sem olhar pros lados. Entrou e deu um beijão nele, que
nem retribuiu. Tá ruim o vestido? Então, percebeu dois
caras no banco de trás. Confusa. Pediram carona, são
seus amigos, o que estão fazendo, vão ao teatro também? “Vai, toca esta merda!” Ela se lembra bem, foi a
primeira frase dita, vai, toca esta merda! O namorado
pedia, com o olhar, que ela obedecesse. Ela, a tremer.
Colocou o cinto, engatou a primeira e tocou a merda.
Só depois se lembrou de abaixar o freio de mão. O cara
virou sua bolsa, olhou o conteúdo e reclamou que também não tinha nada, só um celular velho, duas notas de
10 e dois ingressos pro Sesc. “Você também não usa cartão?”, o cara perguntou e encostou um cano gelado na
sua nuca. O novo namorado também não carrega cartão? Ela teve uma reação surpreendente. Sorriu. Mais
uma coincidência. Os caronas comentaram o azar de
pegar um casal de coitados que não têm onde cair mortos. E aí ela temeu: não ter cartão vai dar no pior? Culpou-se por ter demorado diante do espelho, e por não
ter cartão, e por ter sorrido. Rodaram pelo bairro, enquanto um deles ligava do celular dela para os pais dele,
para negociar um resgate. Mas ninguém atendia. Até
acabar a bateria. “Mas que porra vocês fazem?” “Somos
atores”, ela disse. “E atores não são famosos, ricos?” “Somos atores de teatro, não dá dinheiro.” “E por que não
fazem TV?” “Porque gostamos de teatro”, ela respondeu. “Por isso é dura”, o outro comentou. “Mas faço o
que gosto”, ela retrucou, e agora queria sumir dali, von10
Homem_Conhecia.p65
10
5/6/2006, 16:50
tade de chorar. Não acreditava que discutia suas escolhas com dois monstros. Respirou e atuou, como uma
dedicada stanislavskiana, recolhendo informações: personagem controlada. Rodaram por horas, cruzaram com
o carro da Rota em silêncio, o que os fez milagrosamente desistir. Mandaram encostar o Fiat e sumiram
pela noite, enquanto o casal contava até cem. Bárbara
votou SIM no referendo da proibição de armas, apesar
de tremer toda vez que chega em casa de carro. Ela não
quer armas para se proteger, mas para evitar ser assaltada. E nunca mais colocou aquele vestido. Ah, sim, o
namoro não durou muito. O cara não tinha tanto a ver.
E o SIM perdeu de lavada.
11
Homem_Conhecia.p65
11
5/6/2006, 16:50
NÃO
O celular toca. Que saco! Que namorado ciumento. Por
que liga de hora em hora? Ele diz que é preocupação. É
nada, é controle, é inseguro, moleque, que droga, por
que se meter com esses caras, sua burra? São os piores,
sai fora! Tanto homem... Ela joga o celular no banco de
trás, desce do Classe A e nem entra na locadora, perdeu
a vontade de assistir a um DVD. Vou dar o pé, vai ser
difícil, o cara vai chorar, vai me infernizar, mas namorado ciumento não dá! Ele é legal. Mas não dá. O cara
tem que se tratar. É isso, vou ligar e marcar uma conversa. Ela volta pro carro. Nem deu tempo de fechar a porta, um cara enfia a mão, um soco doído no olho, que
absurdo, que violência, e nem deu pra reclamar, ela recebe outro murro, dessa vez no nariz, de um segundo
cara, que a enforca com o antebraço e a puxa pro banco
de trás. “Cala a boca, sua puta, senão você morre!” São
as últimas palavras de que ela lembra. Desmaiou. Não
sabe quanto tempo passou. Recobrou-se deitada no banco
de trás. O carro estava parado. Tinham arrancado sua
roupa. Um deles, em cima dela, estuprava-a. Ela se fingiu de morta. Não sentia nada. Só falta de ar. E vontade
de morrer. Queria desmaiar de novo, mas não conse12
Homem_Conhecia.p65
12
5/6/2006, 16:50
guia. “Gostosa, tesuda, mamãezinha...”, dizia o cara.
“Tesuda, mamãezinha, gostosa...”, repetia invertendo a
ordem dos elogios. Outros dois estavam fora do carro.
Fumavam. Era um breu. Um matagal. “Ela acordou. Está
fingindo!”, disse o cara. O terceiro pulou em cima dela,
deu uns tabefes e enfiou o cano do revólver na sua boca.
“Acorda, nenê! Como uma vagabunda como você não
tem celular?” Então, pediram telefones da família, e ela
não se lembrava, sempre foi ruim em números, deu
branco, os números estavam na memória do celular. E
apanhou mais. Ela disse que jogara o celular atrás. Mas
eles não encontravam. Colocaram-na pra fora do carro. Seguraram seu cabelo, entraram no carro e rodaram, começaram a puxá-la pelo cabelo. Quando ela caía,
eles paravam, mandavam levantar e repetiam. De repente, seu celular começou a tocar. Quem segurava seu
cabelo se assustou, apontou para trás: “Ele está aí!” Foi
a chance. Livre, ela se jogou no barranco e começou a
correr. Ainda ouviu dois tiros. Não olhou para trás. Parou de correr quando amanheceu. Não recuperou o carro. Casou-se com o namorado ciumento. Sente-se protegida. Helô votou NÃO à proibição ao comércio de
armas. E se reencontrar algum dos desgraçados que a
torturaram vai esvaziar o revólver que comprou na fuça
do cara. Sem dó.
13
Homem_Conhecia.p65
13
5/6/2006, 16:50
Download

O Homem que Conhecia as Mulheres