OLHAR
INDIGESTO
Memórias dos parentes de agentes da repressão
revelam como os tentáculos da ditadura militar no
Brasil chegaram às relações familiares
texto DANIELE ALEXANDRE, GABRIEL MONTEIRO JESSICA MOTA
ilustrações RENAN MARCONDES
ERA SÁBADO de manhã e o encontro havia sido
na mulher de meia idade que prefere cancelar o en-
marcado para dali a algumas horas. Com a certeza da
contro para evitar um desconforto na família, mas dá
entrevista, os detalhes antecipados em conversas in-
indício das repercussões dessas histórias em si mes-
formais pairavam no ar. As constantes mudanças de
ma. “Minha intenção na época [do trabalho de con-
endereço. Amizades quase inexistentes na infância.
clusão de curso da faculdade de artes] era fazer uma
Os “tiras” que a acompanhavam no caminho para a
performance no ex-DOPS. Tinha em mente fazer
aula, e a sensação ruim diante da figura de um deles.
uma representação da liberdade em uma das celas,
Um telefonema anônimo pedindo para ela avisar ao
em argila em tamanho natural, com alguém filman-
“papaizinho” que sabiam da rotina dela.
do em tempo real. Depois começar a interrogá-la, e
G.* viveu a infância e a adolescência nos mesmos
golpeá-la, de forma que ao final da atuação a estátua
19 anos de atuação profissional do seu pai, um de-
se transformasse num amontoado de argila inerte no-
legado que trabalhou durante o período do regime
vamente”, revela, sobre o curso que fez já depois dos
militar brasileiro no Departamento de Ordem Polí-
40 anos.
tica e Social de São Paulo (DOPS), um dos órgãos
Espaços abertos (polítptico), 2010
Monotipia sobre papel Canson branco.
59 x 42 cm
repressores da ditadura.
O nervosismo e o medo de menina permanecem
A atitude de G.* prenunciou o receio de outros filhos de agentes da repressão em falar abertamente de
suas memórias. Outras duas famílias – a de Rubens
Tucunduva, que também foi delegado do DOPS, e a
de Direito não foi das melhores. “Não deixaram ela se
ferentes ao avô, por mais que seja um assunto difícil para
de Erasmo Dias, secretário de Segurança Pública do
matricular pelo fato de ser filha do cara que invadiu
a família. “Não sei se a gente consegue parar de digerir”.
Estado de São Paulo – não se alongam nas respostas.
a PUC. Mas ela não esperava”, conta sua filha Renata
Cristina Cardozo de Mello Tucunduva, 47 anos, a
Dias Pacheco, de 26 anos.
Sua mãe nunca foi exposta diretamente a esse conflito.
“Na minha percepção, nunca educaram minha mãe para
filha caçula de Rubens Tucunduva, diz que era “mui-
A jovem comenta a ingenuidade da mãe. “Foi uma
ela saber o que estava acontecendo. Acho que a infância
to pequena” para lembrar-se das impressões causa-
coisa que a chocou, ela tinha 18 anos. Foi humilhada
dela tem essa coisa meio vaga, esse clima, uma atmosfera
das pelo trabalho de seu pai. Mas conta que seus dois
verbalmente. Recebeu uma retaliação por uma coisa
meio violenta rondando, mas não era uma coisa declarada,
irmãos mais velhos também eram escoltados para a
que ela não fez”. E completa, “eu não quis nem prestar
uma coisa palpável”, opina.
escola e, em certas ocasiões, chegaram a não partici-
PUC”.
A neta de Paulo Bonchristiano conta que ao estudar so-
par do recreio por segurança. A caçula usa o termo
Renata, papiloscopista da Polícia Civil de São Pau-
bre a ditadura na escola, finalmente soube o que significa-
“traumático” para justificar a negativa dos irmãos em
lo, fala de modo explícito sobre o regime militar e da
va a sigla DOPS que acompanhava o título de delegado do
conceder entrevista. O homem que ao lado do delega-
carreira do avô. Para ela, o assunto na família ou com
avô. A primeira reação foi raiva. “Quem que é essa pessoa,
do Sérgio Paranhos Fleury comandou o cerco ao líder
os amigos não é nenhum tabu. “Nunca tive medo.
o que ele já fez? Achava que ele só era um cara meio engra-
da guerrilha armada Carlos Marighella, era para ela
Sempre defendi a minha posição, defendi meu avô e o
çado com umas historinhas de polícia”, conta.
simplesmente um pai herói.
que ele fez. Eu acho que na época faria a mesma coisa.
Depois da raiva, tanto Marília, como seus irmãos e sua
Não é à toa que eu segui essa carreira na Polícia Civil,
mãe, tentam montar o quebra-cabeça da figura afetiva de
que é uma coisa que tem a ver com o ramo dele”, diz
pai e avô, “tipão italiano, de abraçar, beijar, falar muito”,
com orgulho. “Como é engraçado que isso, através de
com a imagem de um delegado do DOPS. Hoje, mais adul-
gerações, influencie até eu, que sou neta”, acrescenta.
ta, ela não quer apontar o dedo para o avô e exigir ex-
Através de gerações
Márcia Dias, filha de Erasmo Dias, conhecido por
liderar o episódio da “invasão da PUC” em São Pau-
plicações, apesar de ainda sondar o assunto com ele. Em
lo, inicialmente se mostrou disposta a conversar. Nas
conversas mais francas, as anedotas da infância começam
entrevistas que Erasmo concedia, era comum citar
O quebra-cabeça
a se tornar diálogos mais concretos.
uma filha que tinha tentado se matricular na Pontifí-
Marília Reis, neta de Paulo Bonchristiano, delega-
“Já passou a fase de achar que ele era uma pessoa hor-
cia Universidade Católica de São Paulo, sem sucesso.
do aposentado do DOPS, gargalha com a possibili-
rível, já passou a fase de achar que as pessoas exageravam.
Quando indagada se foi ela essa filha, Márcia se limi-
dade de seguir a profissão do avô. “De jeito nenhum!
Chegou ao ponto em que ele é só um velhinho”, coloca.
tou a responder: “desisti da entrevista. Sou eu a filha
Isso nunca passou na minha cabeça ou de qualquer
“Ele deve ter feito coisas que eu reprovaria, mas eu nun-
que passou na PUC”.
um dos meus irmãos”. Com 23 anos, a estudante de
ca vou saber. Ele vai morrer sem me falar. Tenho certeza
arquitetura da USP fala abertamente das questões re-
disso.”
A recepção de Márcia no dia da matrícula no curso
Fora do círculo familiar, as questões diminuem por
Bonchristiano não ser um nome tão divulgado quanto o de
outros colegas de trabalho do delegado. “No primeiro ano
“Ele deve ter feito coisas que eu reprovaria,
mas eu nunca vou saber. Ele vai morrer sem
me falar. Tenho certeza disso”
Marília Reis, neta de Paulo Bonchristiano
de faculdade teve uma greve grande na USP. Na mesma
época veio uma reportagem sobre ele. Fiquei pensando se
o pessoal na universidade soubesse que eu sou neta dele”.
Mas e se soubessem? “Ia responder que sou. Mas sou outra
pessoa”.
* Preservamos o nome da fonte para não prejudicar sua relaçã com a
família.
Espaços abertos (polítptico), 2010
Monotipia sobre papel Canson branco.
59 x 42 cm
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Matéria Produzida - Instituto Vladimir Herzog