Mãe e filha: da identificação à devastação
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Artigos
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Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 135, 5-13
Mãe e filha:
da identificação à devastação*
Denise Campos
O presente trabalho associa pesquisa clínica com reflexões teóricas acerca do
feminino e do chamado desejo de ser ter um filho. A definição do feminino como um
não-lugar, um vazio, é insatisfatória, tanto quanto a formulação que diz que não
existe um traço identificatório que “condense” a feminilidade. No trabalho com
pacientes com dificuldades de engravidar, o “ser mãe” parece trazer uma solução
para as incertezas da identidade. Evidentemente, a gravidez não resolve o
problema, pois mesmo exibindo um sinal visível de “feminilidade”, a mulher sabe
que o que está exibindo não é “dela”, não é ela, não é a feminilidade, posto que
ela também se sente mulher quando não está grávida. A gravidez dá visibilidade
ao útero, ao “órgão oco”, ao vazio. Frente a esse vazio, a mulher se depara com a
sua angústia. Se a criança (ou a demanda da criança) responde realmente a um
desejo, pode-se perguntar se tornar-se mulher é tornar-se mãe. Este movimento de
re-significação do desejo parece sempre acompanhado de um “retorno à mãe”, na
condensação de dois movimentos: a identificação à mãe-phallus e o ódio à mãemulher, como conseqüência de uma demanda de amor não correspondido.
Palavras-chave: Psicanálise, feminilidade, identificação, mãe-mulher
The present work, associates clinical research and theoretical reflection
about femenine and the so-called “desire to have a son”. The definition of
the femenine as a “no place”, a vacuum, is unsatisfactory as well as the
argument that says that there is not a indentifiable feature that
“condense” the femininity. Working with patients that have difficulty to
*
Texto apresentado e discutido no Encontro Sul-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise,
realizado em São Paulo, de 13 a 15 de novembro de 1999.
Pulsional Revista de Psicanálise
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impregnate, the fact of “being a mother” seems to bring a solution to
identity uncertainties. Evidently, pregnancy does not solve the problem,
because, even showing “femininity”visible sign, the woman knows that what
she is not “hers”, it not herself, it is not femininity, it isn’t her,
inasmuch, she feels a woman, when she is not pregnant. The pregnancy is a
visible sign of uterus, “the hollow organ”, the emptiness. Facing this
emptiness, the woman faces her anguish. If, the child (or the request of
having a child) really fulfils a desire, one may ask if becoming woman, is
becoming a mother. This movement of re-significance of the desire seems
always to be togher with a return to the mother in a condensation of two
movements: the identification with phallus mother and the hatry to
woman-mother, as a consequence non-correspondended love.
Key words: Psychoanalysis, femininity, identification, woman-mother
Eu estava olhando um quadro e pude
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observar três pessoas, e isto me chamou
a atenção. Perguntei: pai, mãe e filho? E
o pintor, poeta, psicanalista me explicara que eram sempre três e a terceira
figura que é a figura da mulher (que nesse momento passa a ser mulher, ou seja,
a mãe que torna mulher) tem sempre
uma forma não definida, mas representaria ou seria a vida, a morte, a viagem,
a esperança... Talvez a minha inquietude, ou talvez algo dessa mulher dentro
de mim, escuta e pergunta: Pai, Filho e
Espírito Santo? O pintor reage: — Não!
Mas não é exatamente nesta tríade que
encontramos o Sagrado, o Todo, sem a
mulher? Espírito Santo, algo inexplicável, seria a mulher? O que é a mulher?
A falta da mulher na tríade sagrada, a
ausência, o não falado e não dito. Mas
será que a ausência faz alguma coisa ser?
E a presença faria algo ser ou deixar de
ser? Parece que existe a necessidade de
uma referência para poder existir aquilo
que não se consegue dizer. Assim, o
poeta dizia: “Na mulher, apenas o dom
natural de recriar o homem não a faz
mulher...”2. Certamente a referência de
uma ausência também não a faz mulher.
A definição do feminino como um “nãolugar”, um vazio, leva, por exemplo,
André (1986) a afirmar que “o significante da identidade feminina não existe”.
Ora, a questão que considero importante, senão necessária, é se podemos
ficar satisfeitos com esta formulação. Às
vezes me parece, quando estou estudando sobre a feminilidade, o feminino, a
mulher e o desejo feminino que: mulher
é aquilo que não se conhece porque não
se vê. Daí, me parecer insatisfatória
uma leitura rígida do aforismo lacania-
1. “Romeiro”, Daniel Emídio de Souza.
2. “Deuses que habitam nosso corpo”, poesias, Pedro Humberto Faria Campos.
Mãe e filha: da identificação à devastação
no: “A mulher não existe”. O mesmo é
válido para a fórmula que diz que não
existe um traço “identificatório” que
“condense” a feminilidade. Fico pensando que, quando vemos uma “mulher”
grávida, podemos perceber “algo”, ou
seja, vemos ou é visto uma barriga e parece que aí a mulher passa a existir. Com
base em Freud, tem-se tentado entender
(ou ver) a mulher, o que me parece impossível pois partiu-se do princípio de
uma falta, a falta do pênis. Esta “falta”
do órgão se confunde com outra falta,
que pode ser sentida como “vazio”.
Assim sendo, a verdadeira “falta” é sentida, mas não é vista, não se vê a falta.
Na gravidez, a falta é o que é mostrado, o vazio, este mesmo vazio (escondido) de onde se nasce, visto que o útero
é um órgão oco. A gravidez dá visibilidade ao “órgão oco”, ao vazio. É dali
que se vê; do nada, do vazio, do desconhecido. Frente a esse vazio, a mulher
se depara com a sua angústia, com o seu
medo que é o próprio vazio que ela não
pode entender, nem controlar.
O ser feminino recebeu desde sempre sua
definição canônica na maternidade. Ser
mãe parece trazer uma solução para as incertezas da identidade, mesmo que tal resposta não deixe de ser acompanhada
pela angústia, quando se realiza. (Pommier,
p. 31).
No trabalho com pacientes com dificuldades de engravidar, as mulheres expressam a vontade de ter uma criança
de variadas formas. Elas falam de um
desejo íntimo (que é o maior de todos),
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o qual elas não podem definir claramente. Elas dizem saber que a ausência de
uma criança tem a ver ou está relacionado com este desejo indefinível; que elas
têm uma necessidade de ter uma criança para serem mais seguras e sobretudo serem mais mulheres; que elas se
sentem excluídas e vazias.
Neste momento, quando ela me falava
desse vazio, desse desejo indefinível,
dessa vontade ou necessidade de ter uma
criança, eu comecei a me perguntar:
Para ser mulher é preciso ser mãe?
Como uma mulher se torna mulher?
Com certeza, a gravidez não resolve o
problema da identidade feminina. Isto
quer dizer que, mesmo exibindo o sinal
visível de uma identidade fundada no
“órgão não visível”, a mulher sabe que
o que está exibindo não é “dela”, não é
ela, não é a feminilidade, posto que ela
também se sente mulher quando não está
grávida. A angústia é o resultado de uma
operação, melhor dizer, de uma representação imaginária que corresponde à
equação simbólica Freudiana, onde a
criança equivale ao pênis.
Dessa atitude, dividida, abrem-se três linhas de desenvolvimento. A primeira leva
a uma revulsão geral à sexualidade. A menina, assustada pela comparação com os
meninos, cresce insatisfeita com seu clitóris, abandona sua atividade fálica e, com
ela, sua sexualidade em geral, bem como
boa parte de sua masculinidade em outros
campos. A segunda linha a leva a se aferrar com desafiadora auto-afirmatividade à
sua masculinidade ameaçada. Até uma idade inacreditavelmente tardia, aferra-se à es-
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perança de conseguir um pênis em alguma
ocasião. (...) Esse “complexo de masculinidade” nas mulheres pode também resultar
numa escolha de objeto homossexual manifesta. Só se seu desenvolvimento seguir
o terceiro caminho, muito indireto, ela atingirá a atitude feminina normal final, em que
toma o pai como objeto, encontrando assim o caminho para a forma feminina do
complexo de Édipo. (Freud, 1931, p. 264)
Mesmo na forma considerada por Freud,
como a “forma feminina do complexo
de Édipo”, o filho vem “cauterizar”
a ferida narcísica aberta pelo complexo
de castração e selar a escolha de objeto
para além do ser masculino concreto
que é o pai. Se, na terceira via de desenvolvimento proposta por Freud, se
faz possível a “realização da inveja do
pênis”, a gravidez está ainda situada no
gozo fálico.
A mulher com a criança não responde ainda à questão da identidade feminina, mesmo que ofereça uma solução momentânea
para o problema do que quer uma mulher.
A mãe fálica não traz resposta para a questão do que é uma mulher. Ela situa na maternidade um traço de identificação que,
longe de ser próprio ao feminino, permanece preso à ordem masculina. Eis por que
tal traço escava uma divisão cruel; ele vem
cindir a mulher entre ela mesma enquanto
causa do desejo e um Outro materno impessoal, persecutório, porque, na sua completude, ele significa o fim desse desejo.
(Pommier, p. 32)
A mulher diz, eu quero um filho. Isto é
uma demanda, mesmo que ela não de-
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mande a ninguém, mesmo que ela não
dirija esta demanda a nenhum “outro” em
particular. Em casos de mulheres que
passam pelo processo de bebê de proveta ela pede ao médico, mas no caso
das mulheres que não têm problemas
para engravidar, elas expressam sua vontade dizendo que querem um filho, sem
se dirigir exatamente a uma pessoa, às
vezes, nem mesmo para o seu “marido”.
Esta é a expressão de um sentimento.
“Eu quero uma criança”: o que é isto?
HISTÓRIA DE UM CASO:
“A MULHER, A MÃE”
A senhora M. começa a sessão explicando que depois da FIV, ela teve problemas
para ter relações sexuais e que não foi a
primeira vez porque, após uma outra tentativa, ela passou pelo mesmo problema;
tinha medo que a relação sexual lhe causasse dor. Ela relatou que durante o processo de FIV os médicos tocaram muito seu corpo, o que a nível moral era
muito difícil; então, durante as relações
sexuais ela pensava nisto o tempo todo,
imaginava que todo mundo estava lá, não
conseguia esquecer.
Ela me disse que tinha um problema
com a sala de operação, porque os médicos “limpam” as mulheres antes de
serem anestesiadas. “Entre outras coisas,
todo o tempo, eles utilizam instrumentos, dentro do corpo da gente, para fazer exames, para aplicarem injeções... ”
No seu relato, ela esclarece que não era
uma questão de “gentileza”, porque ela
achava que todas as pessoas tinham sido
muito amáveis com ela, mas sim uma
Mãe e filha: da identificação à devastação
questão de moral, ou seja, que isto tinha atingido sua moral e que ela tinha
vergonha.
Em seguida, disse que durante as relações sexuais ela pensava em tudo isto,
o que lhe bloqueava. Disse que tinha
medo de ter dores, mesmo sabendo que
antes ela não as tinha.
O casal não tinha, também, qualquer
problema físico que justificasse a esterilidade. Ela contou que os médicos não
falavam diretamente, mas que ela subentendia que o problema de infertilidade
poderia ser ligado a um problema psíquico. A senhora M. me fala que a relação mãe/filha tinha sido sempre difícil,
que para ela o exemplo de maternal, assim como sua própria educação, era sua
avó. Ela fazia referências à sua mãe dizendo: “Esta mulher lá” (cette femme là
– c’est femme là – c’est femelle, poderíamos escutar em português: esta mulher – estar mulher – estar fêmea – ser
fêmea). Ela repete muitas vezes esta expressão. Não utiliza, nenhuma vez, as
palavras “minha mãe”. Para ela “esta
mulher” não tinha tido uma “relação” de
mãe e filha (o que era muito doloroso).
No discurso da senhora M., a fala referente à mãe é plena de dor, ódio e ressentimento que se misturam e se condensam na expressão curta e violenta
“esta mulher”. Ela “quer” um filho, pois
busca e se submete ao processo de FIV.
No entanto, esse “querer” está, também
ele, pleno de ressentimento e dúvida.
A relação mãe/filha é a relação mulher/
mulher, ou seja, a fertilidade que a mulher/mãe dá à mulher/filha como uma
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potencialidade de ser mulher. Para a paciente, é preciso passar por todo tipo de
dificuldades para ter uma criança, dificuldades que ela sempre passou com sua
mãe (femelle). Para ser mãe é preciso
ter dor? (O parto é doloroso, a separação é dolorosa). Quem é fêmea? São
perguntas que me faço, e a resposta me
parecer ser: aquela mulher que me fez
tão mal.
Como já afirmei em trabalhos anteriores
(Campos, 1999), penso que o domínio
da FIV (das técnicas de reprodução humana) é um terreno privilegiado para o
estudo das articulações prováveis entre
o desejo feminino e o desejo de ter uma
criança, porque pode-se interrogar sobre
a significação real desta demanda de
criança, e também se a apresentação de
uma demanda assegura a existência do
desejo de ter uma criança. As mulheres
com dificuldades de ter filhos se confrontam mais com o desejo, elas são
obrigadas a parar para pensar. No cotidiano das mulheres sem problemas de
fertilidade a dinâmica do diálogo acontece na vida familiar. A questão da
escuta e do diálogo tem a ver com a dinâmica familiar.
Quando a mulher pede uma criança os
médicos acreditam que exista um desejo e eu acho que os médicos devem
começar a suspeitar desse pedido. No
contexto dos centros de reprodução humana e das técnicas envolvidas, quando a mulher expressa a sua necessidade
pela demanda, ouve-se um desejo. É o
equívoco entre a problemática psicanalítica do desejo e a questão biomedical
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do desejo. Na minha escuta clínica perguntava-me qual era a real necessidade
da mulher. Vi que muitas vezes a necessidade de uma criança provinha da pressão social dentro da qual a mulher é
caracterizada pela sua capacidade de
procriar. De toda forma, o desejo de se
ter uma criança é sustentado pelo pressuposto social que ele é inato na mulher,
o que legitima socialmente a demanda (o
pedido).
Entretanto, para falar do desejo feminino dentro da psicanálise, a questão da
castração é primordial e, para Freud,
tornar-se mulher é a conseqüência resultante de seus efeitos (os efeitos da castração), é o que distingue o menino da
menina. Para Lacan a castração é igual
para os dois, pois eles perdem o mais
importante: a mãe. A castração é o evento que separa (ou distingue) o falo e a
imagem do corpo.
Pois o falo é um significante, um significante cuja função na economia intra-subjetiva da análise, levanta talvez o véu daquela que ele mantinha nos mistérios. Pois
é o significante destinado a designar no
seu conjunto os efeitos de significado, no
que o significante os condiciona por sua
presença de significante. (Lacan, 1958,
p. 267)
“ Falo” designa inicialmente a falta, o ponto
de impossibilidade onde o significante não
pode definir-se a si mesmo e convoca um
outro. (Pommier, p. 18)
Como diz Conrad Stein (1987), as idéias
de “inveja do pênis” e de “complexo de
castração” não devem nos confundir, no
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sentido que não devemos tomá-las como
valor em si:
Se o valor representado pelo pênis pode
ter alguma relação com o poder da fala, isto
retira a estranheza da formulação (...) segundo a qual o a uma cadeia de atributos
que vemos se substituírem uns aos outros, no andamento da análise; o que
permite compreender que o complexo de
Édipo se constitui dentro da situação analítica em referência à representação de pessoas respectivamente munidas e desmunidas do atributo da fala, mesmo antes de se
referir a pais ou a substitutos de pais distintos em razão de suas características anatômicas. (Stein, 1987, p. 182)
AINDA “A MULHER, A MÃE”
Quem é fêmea? É a pergunta que me
faço, e a resposta me parecer ser: aquela
mulher que me fez tanto mal (mal, em
francês, que é também dor).
Ela continua falando, falando da dor que
“esta mulher lá” se queixava sempre, de
como foi difícil o seu parto, mas que ela
(a paciente) não tinha culpa. Ela afirmava ainda achar nunca ter tido amor
maternal daquela “mulher lá” e que ela
nunca o teve.
O pai da senhora M. aparece e reaparece numa expressão compacta e ambígua: “il é nul”, ele é nulo (como se não
existisse; é um zero à esquerda). Diante
da ambigüidade que ecoa na minha escuta, eu me pergunto o que é “nulo”?
Nulo era o pai.“‘Esta mulher lá’ é muito
dominadora, ela controla a vida de todo
mundo e também a do meu pai e do meu
irmão”; assim, seu pai fazia exatamente
Mãe e filha: da identificação à devastação
o que “esta mulher” queria. Escuto e
fico pensando: cette femme-là (la
femelle) é também (processo de identificação à mãe) “esta fêmea-aqui” (senhora M): de onde a equação: ser fêmea
me fez tanto mal, ser fêmea (mulher)
me causa tanta dor, toca “na moral”. De
toda forma, o pai é reconhecido como
“pai”, ele é percebido e aceito como tal,
mesmo que não tenha sido o pai que ela
queria. Ele é presente e existe, pois permite a “dominação da mãe”. Mas a mãe
não é percebida como “mãe”, e sim
como uma mulher rival. Esta rival é dominadora do homem/pai e, por isso, é
ela que o possui e é poderosa.
Não posso deixar de pensar nas palavras
de Pommier (1991):
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um pênis. Acusação, outra vez, plena de
ódio, ressentimento. Ela disse, muitas
vezes: “Esta mulher me fez muito mal”.
Esta expressão me faz pensar que ela
não se sente completa e que acusa a
mãe desta falta. Assim, ela não aceita sua
mãe que possui o phallus e que tem um
poder sobre os outros: seu pai e seu irmão.
De toda forma, como símbolo de mulher, a mãe é vista e invejada como tal.
A mãe é capaz, enquanto mulher, de dar
a vida a alguém e, portanto, dominar esta
vida. Para ser mulher e para dominar o
phallus, é preciso então lhe produzir e
lhe “fabricar” de si.
Vejo aqui a identificação com a mãe, e a
identificação com o pai como uma via
de alcance dessa mãe “que está longe”
(cette femme-là), que é aquela que tem
o “dom” de passar a “esta mulher aqui”
(cette femme-là) o que é ser mulher.
Pois, segundo Stein:
Uma mulher apreende uma feminilidade
problemática pelo viés do olhar de um homem, mas isso não ocorre apenas assim.
De fato, porque sua feminilidade lhe é estranha, ela venera, através do seu próprio
corpo, o mistério da Outra mulher, que detém o segredo daquilo que ela é. (Pommier,
p. 35)
Não se poderia, então, se identificar ao
phallus sem se fazer phallus de alguém.
(Stein, 1987, p. 227)
O pai é nulo porque ele não foi capaz
(assim como a mãe) de “lhe fazer um
homem”?, ou de lhe dar um pênis? Notase que ela se identificou a seu pai (ele
existe como pai, enquanto a mãe não
existe como mãe, pela sua própria rejeição); assim ela imagina que ele gostaria
que ela fosse um homem como ele. Entretanto, ela nasceu menina e, como não
tem pênis, não é capaz de ter uma criança: ela é impotente. Portanto, é a sua
mãe que ela acusa de não ter lhe dado
A senhora M. perguntou o que eu pensava de tudo isto, se todas as dificuldades que ela tinha com a mãe poderiam
ser a causa de sua infertilidade e também dos problemas que ela tinha nas
relações sexuais. Disse-me que todo o
processo de FIV tinha sido muito difícil, ao nível moral, e que eu, como mulher, poderia compreender melhor que
ela tinha vergonha de ficar exposta a
todo mundo. O que eu tenho enquanto
mulher que poderia fazer-me compreendê-
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la ou “entendê-la”; ou, ainda, para que
eu possa “compreender”? Ela divide
algo comigo; algo que ela já tem enquanto mulher.
Disse ainda que não se sentia bem porque todo mundo tocava seu corpo, principalmente em partes muito íntimas: “É
difícil isto”. Para a paciente era difícil
ser tocada porque era, principalmente
em partes “muito íntimas”, que a equipe médica o fazia. Muito íntima, como
um segredo, o segredo de não ter um
phallus capaz de dar uma criança a ela
mesma. Então procura fazer uma criança fora dela mesma, sem relação sexual, o que significa ter um pênis sem
tê-lo, sem saber tê-lo e sem que ele seja
simbolizado.
A paciente espera da ciência o que está
fora do objeto, como um phallus. Ter
uma criança é tão importante porque a
falta da mesma representa, para ela, a
privação, ou a frustração de não ter um
phallus. Então, o phallus representa o
único recurso do sujeito.
Escrevendo este caso, retorno à idéia de
que exista “Talvez a minha inquietude,
ou talvez algo dessa mulher dentro de
mim...”
Então, retornando a Freud, a resolução
do complexo de Édipo abre diferentes
vias ao desenvolvimento psíquico. Para
certas mulheres, somente a gestação
pode esconder a ferida narcísica originária do complexo de castração (que é
a perda do amor da mãe). Para pegar a
teoria ao pé da letra, só se é mulher se
se tem um filho. Mas que desejo é este?
Não tem outro jeito? Se a criança (ou a
Pulsional Revista de Psicanálise
demanda da criança) responde realmente a um desejo, pode-se perguntar se tornar-se mulher é tornar-se mãe, bem-entendido dentro do sentido onde a criança ocupa o lugar do falo, ou seja, o desejo
de criança será o substituto do desejo do
pênis. Eu me pergunto se a gravidez é,
para todas as mulheres, a única via de
realização da feminilidade. Quem não tem
filho não é mulher? Ora, somente a mulher pode engravidar e isto faz com que
a maternidade seja um traço de distinção
simbólico dos gêneros. Entretanto, não
é somente isto que explica como uma
moça, uma jovem, vira mulher.
Na verdade, me parece que Freud já
pressentia uma função anterior ao Édipo, uma equação maior: a menina já vem
deslizando no interior de uma longa
equação:
Vemos, portanto, que a fase de ligação exclusiva à mãe, que pode ser chamada de
fase pré-edipiana, tem nas mulheres uma
importância muito maior do que a que pode
ter nos homens. Muitos fenômenos da vida
sexual feminina, que não foram devidamente
compreendidos antes, podem ser integralmente explicados por referência a essa fase.
(Freud, 1931, p. 265)
A mulher ressente uma falta originária do
fato de não ser capaz de engravidar. O
que aparece é a rivalidade, mas o que ela
quer é estar nela, ser ela; ela quer ser
todo-poderosa como é a mãe ou a imagem da mãe. Como já existe uma falta
do pênis, ela vai ter um vazio ao qual não
consegue expressar. Ela se sente desligada, sem nada que lhe pertença: sem
Mãe e filha: da identificação à devastação
pai, sem pênis, sem criança, sem nada
de si. É a figura da mãe todo-poderosa
que é confrontada à sua própria imagem,
ou seja, a imagem de um vazio.
O caso da senhora M. assinala uma feminilidade que não se constrói em referência à “inveja do pênis”. Pode-se pensar na condensação de dois movimentos: a identificação à mãe-phallus e o
ódio à mãe-mulher como conseqüência
de uma demanda de amor não correspondido, cujo avatar é a identificação ao
pai. Alcançando o phallus, ela será capaz de fazer uma criança a ela mesma e
poderá dar amor a ela mesma. „
BIBLIOGRAFIA
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BRUN, D. (1990). La maternité et le féminin,
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STEIN, C. (1971). L’enfant imaginaire. Paris: Denoël.
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