Decorrido mais um congresso LusoBrasileiro, é tempo de fazer o seu balanço. E de facto o balanço final que faço é muito positivo. Penso que foi um congresso bem conseguido, muito participado, com um programa equilibrado e apelativo. A ausência da barreira da língua, já que comungamos do mesmo idioma, confere outra vitalidade às discussões dos vários temas do congresso. Também em número de participantes, foi muito gratificante. Ultrapassámos as 300 inscrições, o que para um congresso de Transplantação em Portugal é um número muito bom. Houve uma grande adesão ao evento e o eco que tenho recebido dos participantes, é que foi muito interessante. Um dos propósitos deste congresso, tal como afirmei no primeiro boletim de divulgação do congresso, era tratar dos problemas com os quais diariamente se deparam os profissionais na sua actividade relacionada com a transplantação. Tivemos também temas de futuro, que esperamos seja próximo, como a utilização de células estaminais; ou a transplantação com doador cruzado. Contudo, a maioria dos temas foram sobre questões muito práticas - clínicas, ético-legais, psico-sociais - às quais temos de dar resposta em cada dia, mas que podem ter abordagens distintas, e que foram dissecadas neste congresso. É óbvio prever que do intercâmbio entre estes dois países, com a sua relevância internacional na área da transplantação, se podem obter resultados muito positivos. Estamos a falar do Brasil, que com a sua dimensão é um dos líderes mundiais em número absoluto de transplantes; e de Portugal, que apesar de ser um país muito mais pequeno, se tem posicionado nos lugares de topo mundial na transplantação de dador cadáver. No que respeita à transplantação renal de cadáver, Portugal atingiu mesmo o 1º lugar do ranking. A transplantação com dador vivo é um exemplo de sucesso no Brasil a que Portugal está atento. Os colegas do Brasil exaltaram a nossa capacidade de captação e colheita de órgãos de cadáver, que ultrapassou os 30 por milhão de habitante e esperam melhorar esse índice lá. Estamos a falar de 2 países com provas dadas, com muito bons resultados, e que podem aprender mutuamente com o que faz de melhor cada um deles. O número e a qualidade dos trabalhos apresentados em comunicações orais e em posters (mais de 200), também demonstra a vitalidade das nossas sociedades científicas, a SPT e a ABTO. E demonstram o entusiasmo dos profissionais na divulgação dos seus resultados e na discussão das questões que querem trazer à reflexão. Para finalizar, mas não menos importante, há que referir os momentos de convívio que também pudemos partilhar. E que foram também, muitas vezes, uma extensão temporal para ampliar a discussão de alguns temas, que o tempo limitado das sessões do congresso não permita que pudesse continuar dentro de salas. Foram momentos de diversão e de confraternização e sobretudo contribuíram para estreitar os fortes laços que nos unem e nos enriquecem. Foi um prazer acolher-vos nesta bela cidade do Porto. Agradeço a todos o seu entusiasmo e o seu contributo, que foram determinantes para o sucesso deste IX Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, de 2010. NEWSSPT O número crescente de doentes transplantados renais, põe às unidades de transplantação problemas graves de seguimento a médio e longo prazo. Cada doente transplantado obriga em média a 20/30 consultas no primeiro ano dependendo de vários factores (função renal post-tr, idade, infecções, etc.).O seguimento a médio prazo é igualmente variável na frequência das consultas em função também do histórico do transplante. O que hoje todos sabemos é que a esmagadora maioria dos doentes tem DRC e na classificação actual se situam maioritariamente nos graus II/III ou seja com compromisso significativo da função renal. A etiologia da DRC depende de factores relativos ao dador, ao receptor, bem como á medicação e claro á imunologia do transplante. Muitas destas causas são dificilmente controláveis, outras porem, podem ser atenuadas dependendo do controle atempado, do diagnóstico e terapêutica. Bertoni, em estudo observacional verificou que após o transplante o grau de anemia, hipertensão arterial, dislipidemia, doença óssea, estão na sua grande maioria fora de controlo. O risco cardiovascular é elevado continuando a ser a principal causa de morte nestes doentes. Vários estudos confirmam esta realidade. Assim nos doentes transplantados vários cuidados devem ser tomados: tratamento da anemia, apoio nutricional, educação do doente (incumprimento da medicação….), vigilância da função renal/proteinuria, controle da HTA e dislipidemia, modulação da imunossupressão, vigilância da doença óssea e diabetes….e ainda prevenção das infecções e screening de neoplasias. Será isto possível nas consultas de pot-transplante em que o número crescente de doentes aumenta exponencialmente? A reposta caberá a cada unidade mas creio que dificilmente unidades com actividade acima da média, conseguirão dar resposta a menos que mudem radicalmente a sua organização interna ou criem protocolos com serviços/unidades de nefrologia exteriores ao hospital onde se efectua o transplante. Se hoje faz parte do curriculum de nefrologia estágio obrigatório na área de transplante, faz pouco sentido que os nefrologistas não assegurem o seguimento destes doentes. A SPT já realizou um curso de transplante renal dirigido aos colegas em formação e nefrologistas que estivessem em unidades periféricas e está em vias de realizar um novo curso. Parecem-me da maior importância estes cursos. Na verdade, hoje, que se põe o assento tónico na prevenção da DRC não faz qualquer sentido que os doentes transplantados estejam “marginalizados” desta preocupação. Acresce ainda que para alem da DRC á que somar a maior incidência de tumores, infecções, etc. Se se conseguir atrasar a evolução da DRC, que ganhos vamos obter na sobre vida do doente e do enxerto? Não havendo estudos para dar resposta a esta pergunta não me parece ilógico que um bom seguimento se traduza numa mais-valia também nos doentes transplantados. Hoje em Portugal cerca de 50% dos doentes em tratamento da sua IRT são doentes transplantados a perda precoce do enxerto é a todos os títulos difícil de aceitar. Assim sendo devemos olhar para estes doentes como portadores de DRC e prevenir a sua evolução para a IRT. O transplante com órgão de dador vivo está em franca expansão. Este implemento deve-se em parte à escassez de órgãos para acorrer às necessidades dos doentes. Do ponto de vista dos resultados o transplante com órgãos de dador vivo está bem justificado, sendo o principal factor limitante os riscos que o dador assume. Deve-se assegurar que o processo de doação imponha o menor stress psicológico e económico sobre estes seres humanos altruístas, passíveis da nossa admiração. Por vezes o transplante de dador vivo é evitado devido a uma incompatibilidade do grupo sanguíneo (ABOi) ou devido a uma reacção cruzada positiva (CM+). Além disso a probabilidade de acesso ao transplante cadavérico de candidatos do grupo O era em 1997 2,7 e 2,3 vezes inferiores aos candidatos do grupo A e B respectivamente (1).Existem algumas possibilidades de tentar ultrapassar estes problemas (incompatibilidade ou acumulação dos doentes do grupo O na lista de espera) usando técnicas de remoção de anticorpos e terapêuticas imunossupressoras geralmente mais agressivas e/ou pelo transplante renal cruzado. O transplante renal cruzado pressupõe a troca de rins entre dois ou mais pares incompatíveis. Se considerássemos apenas a troca entre pares ABOi (par 1 na fig.1), o receptor do grupo O, num sistema convencional de troca, não conseguiria dador em virtude do dador do grupo O do outro par (par 2) ser dador universal (podendo portanto dar sempre ao seu próprio receptor). Uma das formas de ultrapassar esta dificuldade é introduzir pares com CM+. Mesmo assim a percentagem de dadores O nos conjuntos (pool) assim formados ( 25%) tende a ser significativamente inferior à percentagem de dadores O dum programa de dadores compatíveis (60%) e a percentagem de receptores O maior (2). Bibliografia Kukla A, et al-NDT 2007;10:1093 Akbari A, et al - Nephron Clinical Pract. - 2007;107:c7-13 Bertoni E, et al - Transp.Proceedings, 2006;38:1024-1025 Matas A, et al - Kid.Int. 2002;62:704-708 Pascual - NEJM-2002; 346:580-590 NEWSSPT Fig. 1 A introdução de pares com CM+ aumenta contudo a complexidade do procedimento. O receptor apresenta muitas vezes anticorpos contra múltiplas especificidades HLA, o que pode tornar a possibilidade de encontrar um dador de outro par bastante reduzida. Para aumentar a possibilidade de identificar (match) pares compatíveis, aumentando assim o nº de transplantes, desenvolveramse programas em que se procura identificar o par compatível em conjuntos de múltiplos pares (pool). Quanto maior for o pool, maior será o nº de transplantes possíveis no momento (match run) de procurar os pares compatíveis para a troca (3). Se encontrar os pares compatíveis manualmente é fácil quando se usam apenas trocas de 2 vias com pares ABOi, a tarefa torna-se praticamente impossível, muito fastidiosa e sujeita a erros quando se usam múltiplos pares e se introduzem os pares CM+. Por este motivo, para tornar os programas de transplante renal cruzado sustentáveis, desenvolveramse programas de computador, baseados na teoria dos algoritmos de Edmonds, para identificar os pares compatíveis no pool (3). Em Portugal usando um programa adaptado por Bruno Lima do Centro de Histocompatibilidade da Zona Norte (CHZN), simulamos a identificação de pares num pool de 13 pares incompatíveis (fig. 2), identificados na base de dados do CHZN. Fomos capazes de identificar 7 transplantes possíveis (4). logísticos e com ganho marginal de nº de transplantes, em pools com grande nº de pares. A regularidade com que se faz a alocação dos rins (mathc run) geralmente também não é uniforme nos diferentes programas activos, sendo a mais comum a trimestral (5). Por vezes durante a selecção dos pares para cruzamento pode-se encontrar mais que um par compatível. Fig. 3 No exemplo ilustrado na figura 3 que par excluir? 0 P2,2 procedendo-se aos transplantes P1,3 e P3,1 ou o par P3,3 procedendo-se aos transplantes P1,2 e P2,1 ? O princípio geral deverá ser sempre transplantar o receptor mais difícil, tendo em conta o seu PRA e o nº de dadores ABO compatíveis, com especificidades HLA proibidas para esse receptor (aqueles antigénios HLA dos dadores contra os quais o receptor tem anticorpos). (6) Pensemos no seguinte exemplo: o pool tem 20 dadores dos quais 12 do grupo O. O receptor 2 também do grupo O (representado na figura 3) tem um PRA de 60% e tem anticorpos anti DR6 e anti B22. Cinco dos 12 dadores do grupo O têm os antigenios DR6, B22 ou ambos. Logo 7 dos dadores serão compatíveis. A probabilidade de compatibilidade Fig.2: Modelo da teoria dos grafos de nodos dador/receptor incompatíveis, mostrando o nº máximo (7) de transplantes possíveis: (PC) será : (1-PRA)*(% de dadores ABO compatíveis no pool sem especificidades proibidas)* 100 = (1P1,3 ; P3,1 ; P4,12 ; P12,4 ; P10,13 ; P13,8 ; P8,10. 0,6)*(7/12)*100=23,3%. O receptor 3 do grupo O tem um PRA de 5% e não Assim, para existir um programa sustentável são necessários geralmente programas multicêntricos, tem nenhuma especificidade proibida. (PC)= (10,05)*(12/12)*100=95%. supervisionados por comissões independentes inseridas No exemplo dado exclui-se o P3,3 (aquele cujo receptor nas autoridades de transplantação locais, com o intuito de permitir a supervisão clínica, logística e ética dos tem maior probabilidade de compatibilidade, 95%) e programas. Em Portugal o Programa Nacional de Doação procede-se aos transplantes P1,2 e P2,1 . Outros critérios Renal Cruzada (PNDRC) encontra-se regulado por lei de selecção existem com diferentes graus de prioridade (portaria nº 808/2010 de 23 de Agosto). Aderiram à em caso do primeiro não conseguir fazer a selecção . rede nacional de hospitais do PNDRC 5 centros de Usam-se diferenças se idade entre dador e receptor ou transplante: Hospital de São João, Hospital de Santo diferença de idade entre dadores (programa português), António/Centro Hospitalar do Porto, Hospitais da tempo de diálise e ainda preferência a cadeias curtas Universidade de Coimbra, Hospital Curry Cabral e versus longas. A diferença de idades entre dador-receptor Hospital de Santa Cruz. parte do pressuposto que um dador 20 a 30 anos mais idoso implicaria um pior outcome do receptor (sobrevivência De notar que no exemplo dado no grafo da figura 2 permitiram-se trocas de 2 e 3 vias. Outras combinações do enxerto e do doente) e a diferença de idades entre são possíveis (trocas de 4 e mais vias) tornando o dadores tenta que o receptor do par que intervirá sempre procedimento extremamente complexo em termos no transplante (P1,1) receba um rim dum dador de idade semelhante ao seu. Recentemente a análise de 2364 transplantes de dador vivo na Austrália demonstrou não haver diferenças significativas entre os 882 receptores que receberam rins de dadores viovs com uma diferença de idade superior a 20 anos e os restantes (7). Após o 1º match run começam-se a acumular no pool doentes do grupo O e hipersensibilizados, díficeis de transplantar nos match run seguintes. Segundo a experiência do Programa Holandês a grande maioria dos pares de sucesso foram identificados em 3 match run. Depois deste nº de match run a probabilidade de encontrar um par compatível torna-se diminuta e devemse procurar outras alternativas, por exemplo, terapêuticas de dessensibilização associadas ou não ao programa de transplante cruzado. (8). Conhecidos os pares a transplantar após o match run, os doentes são retirados da lista activa de transplante de cadáver e as cirurgias são programadas para iniciarem à mesma hora. Coloca-se a questão se o dador deve viajar para o hospital do receptor, separando-se o par relacionado (familiar, esposa…) e aumentando a possibilidade de quebra de confidencialidade exigido pela maioria dos programas ou se deve ser o rim a ser enviado, aumentando assim o tempo de isquemia. Paul Terasaki em dados recolhidos na UNOS não encontrou diferenças significativas na sobrevivência dos enxertos comparando as duas opções (9). Se por qualquer motivo excepcional um dos rins não foi colhido (deterioração aguda do estado do dador durante a indução anestésica), ou foi colhido e não pode ser implantado, deve o receptor não transplantado entrar em lista de espera super-urgente a nível nacional gratificando assim a generosidade do seu par, que contribuiu para o transplante de outro doente. O caso do rim perdido no período pós-operatório imediato levanta também dificuldades. Assumindo a possibilidade de problemas técnicos terem ocorrido há quem defenda que o doente deve ser colocado em lista prioritária nacional logo que possível e outros que defendem que um comité de peritos nomeado pela autoridade de transplantação deve decidir caso a caso. Concluindo, os Programas de Transplante Renal Cruzado promovem uma distribuição equitativa de benefícios, sendo a sua utilidade inquestionável uma vez que permitem a saída de dois ou mais doentes da lista de espera para transplante de cadáver, melhorando assim o acesso de outros doentes a esta lista. Contudo para serem programas sustentáveis colocam problemas organizacionais, logísticos e éticos importantes. Organizacionais e logísticos, porque exigem colaboração entre médicos, coordenadores de transplante, imunologistas e autoridades de transplante para promoverem o estudo e selecção, procederem às respectivas cirurgias e seguimento dos pares. Também importante para a sustentabilidade do programa é a colaboração de informáticos para a implementação dos algoritmos adaptados às realidades locais. Éticos, porque a manutenção da confidencialidade para evitar a possibilidade de coacção, e as questões levantadas pela acumulação de doentes do grupo O no pool com o inerente risco de seleccionar pares compatíveis, exige que o sistema seja centralizado e monitorizado pela autoridade de transplante (10). Correspondência: [email protected] 1. Dados fornecidos pelo Dr. Bruno Lima, Centro de Histocompatibilidade da Zona Norte, Porto Portugal 2. S E gentry,RA montgomery et al. Expanding kidney paired donation through participaton by compatible pairs. American Journal of Transplantation. 2007; 7: 2361-2370 3. Inessa Kaplan_, Julie A. Houp, Mary S. Leffell, John M. Hart and Andrea A. Zachary. A computer match program for paired and unconventional kidney exchanges. American Journal of Transplantation 2005; 5: 2306-2308 4. Bruno A. Lima, Leonídio Dias, António C. Henriques, Helena Alves. The Portuguese match algorithm in the kidney paired donation program. ORGANS, TISSUES & CELLS, (13), 25-32, 2010 5. Paolo Ferrari, Marry de Klerk. Jnephrol www.sinitaly.org/jnonline - www.jnephrol.com 6. K.M. Keizer, M. de Klerk, B.J.J.M. Haase-Kromwijk, and W. Weimar. The Dutch Algorithm for Allocation in Living Donor Kidney Exchange. Transplantation Proceedings, 37, 589-591 (2005) 589 7. Paolo Ferrari, Wai Lim, Hannah Dent and Stephen P. McDonald. Effect of donor-recipient age difference on graft function and survival in live-donor kidney transplantation. Nephrol Dial Transplant (2011) 26: 702-708 8. Marry de Klerk, Willem Wiemar et al. The optimal chain length for kidney paired exchanges: an analysis of the Dutch progam. Transplant international, vol. 23, nº 11, November 2010 9. Waki,P terasaki, et al.Clin transplant 2007: 21: 186-191 10. Consensus and recommendations on Legal, Ethical, Registration and Living donr Protection Practices. EULID PROJECT. Accepted for publication in Transplantation. Matí Manyalich, Assumpta Ricart, Christian Hiesse, Pal-Dag Line, Andy Maxwell, Ingela Fehrman-Ekholn, Leonídio Dias. NEWSSPT As leis de “consentimento presumido”, aplicadas à colheita de órgãos e tecidos de cadáveres para fins terapêuticos, continuam a ser objecto de controvérsia e dúvida. Os opositores a esse tipo de fundamento legal afirmam, seguramente com alguma razoabilidade, que só há verdadeiramente consentimento quando ele é afirmado de modo explícito, sendo assim abusivo pressupor haver consentimento quando ele não é, ou não foi, claramente solicitado a quem pode dizer sim ou não. Nesta perspectiva, a expressão “consentimento presumido” é uma contradictio in terminis, uma contradição nos termos, um paradoxo. I - O estatuto do cadáver Na tradição cultural e legal da maioria das civilizações, o cadáver têm um estatuto particular: não sendo já uma pessoa não é apenas uma coisa, não tendo já os direitos e a dignidade de um indivíduo humano, não é um mero objecto material. O cadáver de um indivíduo mantém funções simbólicas, geralmente respeitadas, que levam a que não possa ser livremente manipulado ou considerado posse de alguém. Cultural e legalmente os cadáveres merecem respeito. III - Os indivíduos, os familiares e o destino dos restos mortais. Actualmente, as normas legais referentes à disponibilidade do próprio corpo limitam a execução daquilo que o indivíduo pode ter expresso que desejaria que fosse feito aos seus restos mortais: se pode ser aceite que uma pessoa formule indicações sobre a inumação do seu corpo, já não terá qualquer consequência prática se, nos nossos dias, alguém, repetindo o que D. Pedro IV fez, exprimir no testamento que deseja que o seu coração seja sepultado em uma cidade e o resto do seu corpo em outra… Assim, os direitos de uma pessoa quanto ao destino dos seus despojos não são ilimitados, são legalmente muito restringidos. De modo análogo, também os familiares não podem, por exemplo, ir além de limites fixados quanto aos tempos, locais ou modos de sepultura do seu parente. Na lei portuguesa, uma pessoa pode opor-se a que órgãos ou tecidos venham a ser retirados do seu corpo post-mortem. IV - As leis, os seus fundamentos e os conflitos de interesses Os referidos opositores às leis de consentimento presumido invocam, para além da mencionada contradição nos termos, que é a família que cabe decidir sobre a possibilidade de retirar tecidos ou órgãos do corpo falecido e, assim, invocam falta de respeito pelos familiares quando tal não é legalmente exigido. Ora o conceder à família esse direito de permitir ou proibir a II - As leis sobre cadáveres manipulação do cadáver tem duas consequências, poucas Os motivos morais aludidos, conjugados com necessidades vezes enunciadas nos inúmeros debates sobre leis “optingin” versus “opting-out”: de higiene e saúde pública, levaram a que o Direito estabelecesse normas reguladoras do que é obrigatório, – Por um lado, diminui o respeito devido aos restos mortais de um indivíduo, coisificando-os, tratando-os permitido ou proibido fazer aos restos mortais de um indivíduo. É obrigatório sepultar ou cremar os cadáveres como se fossem uma herança; – Por outro lado, em casos de conflitos de interesse durante um determinado prazo após a morte, é permitido entre os sentimentos dos familiares e a necessidade dos que a família organize, dentro de regras fixadas, cerimónias órgãos para salvar vidas, essa concessão de direitos à fúnebres, é proibido ultrajar ou mutilar os corpos falecidos. família permite que, em nome do respeito por esses Reconhecida, pelo menos desde o Renascimento, a sentimentos, uma pessoa, cuja única possibilidade de utilidade do estudo dos corpos inanimados para o continuar viva seja a de ser transplantada - e transplantada progresso científico, Portugal foi dos primeiros países a com um órgão de um certo dador em determinado considerar, em textos legais, que o interesse colectivo momento - afinal … morra. Ou seja, entre um direito pode, em circunstâncias determinadas, prevalecer e subjectivo (derivado das emoções de uma família) e um justificar a mutilação de cadáveres: desde o século XVI interesse objectivo e vital (o de alguém se manter vivo), que a lei permite o aproveitamento de cadáveres para os opositores ao consentimento presumido permitem que a lei proteja mais o primeiro do que o segundo. estudos de Anatomia o que , uns duzentos anos depois, Enquanto não existirem terapêuticas alternativas à no consulado do Marquês de Pombal, foi reforçado nos transplantação de órgãos para tratar insuficiências Estatutos da Universidade que concedem ao Reitor e à “terminais” desses mesmos órgãos, não parece admissível Faculdade de Medicina “…todo o pleno poder, e que se conceda, como continua a acontecer em muitos autoridade, para fazerem conduzir para o Teatro Anatómico os cadáveres necessários, e para obrigarem a consentir países usualmente considerados “civilizados”, esse direito, irrestrito e generalizado, de alguém se poder opor a que nisso a todas, e quaisquer pessoas, que quiserem repugnar outra pessoa continue viva. à entrega deles: Procedendo contra os rebeldes, como Há que salientar que os argumentos a favor do inimigos do bem público, e fautores das preocupações, consentimento presumido não só nada desrespeitam que tanto dano têm causado ao progresso da medicina, como não são meramente utilitaristas. Afinal, não se trata e à saúde e vida dos homens”. apenas de facilitar a obtenção de mais órgãos, trata-se Portugal foi assim pioneiro, no Direito, a considerar o também de não considerar os cadáveres como objectos herdados pelas famílias. cadáver como uma res communis.