IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA
HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS.
29 de Julho a 1° de Agosto de 2008.
Vitória da Conquista - BA.
AS VIDAS PARALELAS (E INVERTIDAS) DE EUCLIDES DE CUNHA
E ANTÔNIO CONSELHEIRO 1
Raimundo Nonato Pereira Moreira
Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
E-mail: marrano.alto@bo l.com.br
Palavras-chave: Euclides da Cunha . Antônio Conselheiro. Biografia. Canudos.
Biografia, autobiografia, escrita de si. Sobre estes eixos organiza -se o Simpósio
Temático Recompondo Trajetórias , justificando-se pela necessidade de construir, no inte rior
do IV Encontro Estadual de História da ANPUH -BA, um espaço de diálogo entre os
pesquisadores relacionados às temáticas em questão. Para tanto, intenta-se abordar o gênero
biográfico como um problema para os historiadores contemporâneos, debruçan do-se, ainda,
sobre pesquisas centradas em objetos tais como correspondência ativa e passiva, memórias,
poesias, diários e relatos de histórias de vida . Portanto, busca-se evidenciar as “grandezas e
misérias” do gênero biográfico, nos termos discutidos por Borges (2006, p. 203-233),
refletindo acerca dos limites e das possibilidades de um modo singular de escrita, que se
propõe a narrar uma história recorrendo à trajetória de um homem ou de uma mulher.
A partir desse escopo, seria possível comparar as trajetórias do engenheiro-escritor
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha (1866 -1909) e do líder religioso Antônio Vicente
Mendes Maciel (1830-1897), o Conselheiro? À primeira vista, a resposta é negativa . O que
aproximaria sujeitos tão distintos no tocante às suas convicções filosóficas e opções políticas?
De um lado, Euclides: engenheiro militar, republicano, agnóstico, racionalista e progressista;
do outro, o Conselheiro, evangel izador, monarquista, católico , místico e conservador.
Contudo, a Guerra de Canudos (1896 -1897) entrelaçou as biografias do autor de Os Sertões e
do Bom Jesus sertanejo – nos termos que se discutem na seqüência do presente trabalho.
A cena originária, que marcou o enleamento das trajetórias de Euclides e do
Conselheiro, pode ser descrita, sumari amente, nos seguintes termos: Canudos, sertão da
Bahia, dias 3 e 4 de março de 1897; as tropas federais chefiadas pelo tenent e-coronel Antônio
Moreira César (1850-1897) foram derrotadas pelos adeptos do beato Antônio Conselheiro, na
batalha travada naquele arraial; o comandante da Expedição foi mortalmente ferido, o seu
corpo abandonado e os soldados debandaram – largando na caatinga os cadáveres dos
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O presente trabalho apresenta alguns dos resultados iniciais da pesquisa Euclides da Cunha na Bahia : uma
investigação histórica acerca da presença do correspondente de O Estado de São Paulo no território baiano
durante a Guerra de Canudos , desenvolvida no Departamento de Educação (DEDC) – Campus II/Alagoinhas da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
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companheiros, os feridos e farto material bélico. Envolvido por essa atmosfera de comoção
nacional e ecoando a campanha de manipulação da opinião pública pelos órgãos da imprens a,
Euclides compôs um ensaio intitulado “A Nossa Vendéia” , publicado em 14 de março e 17 de
julho, nas páginas de O Estado de São Paulo . No corpo desse trabalho, estabeleceu analogias
entre a revolta dos camponeses da Vendéia (1793-1796), no oeste da França, e o movimento
de Canudos. Assegura va que, de maneira idêntica ao processo experimentado pelas massas
rurais vendeianas, o fanatismo religioso que dominava as “almas ingênuas e simples ” dos
sertanejos era aproveitado pelos propagandistas da Restauração . Destacava que a “coragem
bárbara e singular” de chouans e de tabaréus se aliava com um terreno desfavorável às tropas
republicanas francesas e brasileiras. Assim, sob a pena de Euclides, Canudos transformou -se
numa usina produtora de ensaios, artigos, reportage ns e telegramas – no total, foram trinta e
quatro artigos e cinqüenta e sete telegramas sobre as peripécias do Conselheiro e dos seus
jagunços, escritos para O Estado de São Paulo (CUNHA, 2000, p. 51 -52).
O ensaio “A Nossa Vendéia ” foi decisivo para a contratação de Euclides c omo
correspondente de guerra e a assinatura de um contrato com O Estado de São Paulo , no qual
se firmava que o engenheiro -escritor deveria enviar material do tea tro das operações e tomar
notas para escrever “um trabalho de fôlego sobre Canudos e Antônio Conselheiro”. Em 3 de
agosto, no Rio de Janeiro, Euclides juntou -se ao staff do Ministro da Guerra, marechal Carlos
Machado Bittencourt (1840 -1897), e partiu para a Bahia, a bordo do navio Espírito Santo.
Aportou em Salvador no dia 7 e permaneceu na capital baiana até o dia 30 de ag osto. Em
Salvador, expediu reportagens e telegramas, além de pesquisar acerca do Conselheiro e do
movimento de Canudos “na poeira dos a rquivos” soteropolitanos. Em 30 de agosto, Euclides
partiu da Estação da Calçada , com destino a Queimadas, na qual se localizava a parada de
trens mais próxima de Canudos, e de lá seguiu para Monte Santo, base das operações
militares, ali permanecendo até 13 de setembro. Finalmente, de acordo com o registro que fez
na sua Caderneta de Campo , chegou em Canudos às catorze horas do dia 16 de setembro
(CUNHA, 2000, p. 69-126, 174-178; CUNHA, 1975, p. 2, 53-54).
No teatro das operações, enviou reportagens e tel egramas para o Estado de São Paulo
– com destaque para as narrativas dos combates de 24 de setembro e 1 o de outubro (CUNHA,
2000, p. 199-218). Conforme Calazans (1969, p. 49) e Ventura (2003, p. 174-203), Euclides
permaneceu em Canudos até o dia 3 de outub ro, retirando-se do front por conta dos seus
acessos de febre, resultantes das condições da guerra, ou seja, pilhas de cadáveres e feridos,
falta de comida e noites de sono interrompidas por conta dos tiroteios. Portanto, não assistiu
ao massacre dos prisi oneiros, ao incêndio e à queda da cidade, à exumação do cadáver do
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Conselheiro e à descoberta dos seus manuscritos. As cenas em questão, ausentes das suas
reportagens, foram narradas com poucos detalhes em Os Sertões.
Não obstante, no corpo do seu livro vingador, o engenheiro-escritor esboçou uma
biografia de Antônio Conselheiro. Assim, em “O Homem”, uma da s marcas do biógrafo
Euclides aparece na recomposição da trajetória do “anacoreta sombrio” . Na verdade, o
engenheiro-letrado já havia se deparado com o C onselheiro como um problema biográfico
desde as reportagens escritas no calor da guerra para o diário paulistano. As oscilações
euclidianas no tocante à trajetória do líder religioso a testam as dificuldades enfrentadas para
avaliar o significado histórico daquele homem obscuro, até então encarado como o inimigo da
República. Se, no conjunto das reportagens, Euclides não logrou atingir uma postura
equilibrada frente ao espectro do profeta sertanejo, essas contradições foram transpostas e
redimensionadas no t exto de Os Sertões. Assim, em que pese o julgamento pessoal
desfavorável (tratava -se de um “documento vivo de atavismo”), ponderava que o historiador
somente podia avaliar a altitude do evangeli zador considerando a psicologia da sociedade que
o criou: “Isolado, ele se perde na turba dos nevróticos vulgares. Pode ser incluído numa
modalidade qualquer de psicose progressiva. Mas posto em função do meio, assombra. É uma
diátese, e é uma síntese.” Sob essa pe rspectiva, o homem destinado aos cuidados médicos,
impelido por uma potência superior, veio bater de encontro com uma civilização – “indo para
a história como poderia ter ido para o hospício.” Essas singularidades dific ultavam uma
reflexão euclidiana acerca do papel desempenhado pelo Bom Jesus: “Porque ele p ara o
historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como a integração de caracteres diferenciais
– vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos na multidão, mas enérgicos e definidos,
quando resumi dos numa individualidade.” De toda sorte , Euclides reconhecia as estreitas
conexões que ha via entre a existência do “gnóstico bronco” e o meio social que o produziu:
“É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências
coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade”
(CUNHA, 2001, p. 251-255). Para o bem ou para o mal, a biografia do Conselheiro
compendiava a existência da sociedade sertaneja.
A afirmativa “a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de suas
sociedades” deve ser investigada c omo uma pista para deslindar as estratégias de composição
biográfica, mobilizadas por Euclides. É fato que o autor buscou delinear a história de vida d e
Antônio Vicente com base em diversas referências , inclusive a partir de font es orais e de
memórias escritas por contemporâneos do beato – com destaque o tenente-coronel Durval
Vieira de Aguiar (1849 -1900) e o major João Brígido dos Santos (1829 -1921). Entretanto,
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para os propósitos deste trabalho, é interessante esmiuçar as contri buições de uma das
referências ocultas de Os Sertões: Thomas Carlyle (1795 -1881). Sobre o ponto em questão,
pode-se sugerir que os influxos de Carlyle foram decisivos para a composição da biografia
conselheirista. Por exemplo, a expressão irônica “grande h omem pelo avesso” (CUNHA,
2000, p. 124), uma das adjetivações aplicadas pelo engenheiro -letrado ao Conselheiro, é um
empréstimo euclidiano de Carlyle. A esse respeito, o autor de The French Revolution [A
Revolução Francesa , 1839] e On Heroes, Hero -Worship and the Heroic in History [Sobre os
Heróis, o Culto dos Heróis e o Heróico na História , 1841] foi uma das leituras prediletas do
escritor caboclo, como se pode constatar nas citações presentes em diversos momentos da sua
vida (CUNHA, 1995, p. 145, 200, 233, 386, 445). Por outro lado, nas reportagens escritas
sobre a Campanha de Canudos, o correspondente de O Estado de São Paulo aventou a
hipótese segundo a qual o peregrino poderia aparecer num capítulo fulgurante de Carlyle. No
específico, o livro aludido e ra On Heroes, dedicado ao “culto dos heróis”. Com efeito, essa
hipótese ganha força a partir de um indício concreto: a versão francesa desse trabalho,
intitulada Les Héros [Os Heróis] encontrava-se dentre os cerca de trezento s e cinqüenta
volumes que compu nham a biblioteca de Euclides, à época do seu falecimento (GALOTTI,
1984, p. 6).
Com base nessas ilações, discutir algum as das idéias de Carlyle contribui pa ra
esclarecer a sua presença no quadro das referências euclidianas. Assim, On Heroes reúne seis
conferências proferidas pelo ensaísta, entre os dias 5 a 22 de maio de 1840, em Oxford. Na
seqüência dessas intervenções, o conferencista abordou a figura do herói como divindade
(Odin), profeta (Maomé), poeta (Dante, Shakespeare), sacerdote (Lutero, Knox), homem de
letras (Johnson, Rousseau, Burns) e rei (Cromwell, Napoleão). C onservador e sobressaltado
com a emergência das massas populares no cenário político europeu, Carlyle acreditava na
ação providencial dos heróis para conjurar o perigo revo lucionário. Segundo o autor, a
História Universal, ou seja, de tudo aquilo que o homem realizou neste mundo, era a história
dos “grandes homens” que passaram pela Terra. Esses seres heróicos eram “os condutores de
homens”, os modeladores, os padrões e, e m um sentido amplo, os criadores de tudo quanto os
demais se propuseram a fazer ou atingir. Consequentemente, todas as coisas realizadas no
mundo eram o resultado material externo, a realização prática e a incorporação do
pensamento dos grandes homens que foram enviados ao nosso planeta. Para o ensaísta, a alma
de toda a históri a universal era a história do s homens providenciais. Sob essa perspectiva, a
história universal não passava da biografia dos grandes homens, dos espíritos superiores, dos
heróis: “A história do mun do, como já disse, é a biografia dos grandes homens.” Adversário
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da Revolução Francesa, esse romântico assinalava que toda sociedade era fundada no culto
dos heróis. Assim, toda sociedade era uma representação, não insuportavelmente inexata, do
culto dos heróis, que ganhava importância em épocas de descrença, de revolução, de
decadência e de ruína. “Para mim, nestes dias, parece -me que vejo nesta indestrutibilidade do
culto dos heróis a eterna rocha dura e resistente que o naufrágio confuso dos abalos
revolucionários não pode destruir” . Portanto, a salvação do mundo repousava na ação dos
heróis, que deveriam ser reverenciados pelos demais homens, pois esse culto se constituía no
“único ponto fixo na moderna história revolucionária, de outra sorte ela ser ia um mar sem
fundo e sem praia” (CARLYLE, 1962, p. 9, 18 -20, 22).
A esta altura do texto, poder -se-ia questionar: e as analogias entre as vidas paralelas (e
invertidas) de Euclides da Cunha e Antônio Conselheiro ? No que concerne a essa questão,
entra em cena outra referência ausente das notas de rodapé de Os Sertões: o grego Plutarco (c.
46 c.120). A esse respeito, Vidas Paralelas é o título de um conjunto de vinte e duas
biografias de estadistas e guerreiros romanos, escritas por Plutarco, que, buscando
engrandecer os então sen hores do mundo, ressaltou os paralelismos com as vidas de pares
gregos. Aqui, não se deve menosprezar a relevância desse autor no contexto da literatura
ocidental, desde o Renascimento e ao longo do século XIX. Desse modo, foi profunda a
difusão da imagem do filósofo de Queronéia como educador e moralista no âmbito da cultura
ocidental. Consequent emente, a onda Plutarco v eio bater no Brasil, já que seu trabalho foi um
dos modelos para os historiadores nativos erigirem o “panteão de papel ” brasileiro, ou seja, a
seleção das figuras históricas dignas de serem lem bradas – como assinalou Enders (2000, p.
41-62). Nas plagas nacionais, o livro O Plutarco brasileiro (1847) – ou, numa versão revista e
ampliada, Os varões ilustres do Brasil durant e os tempos coloniais (1868) –, escrito por João
Manuel Pereira da Silva (1817 -1897), atesta essa presença. No que se refere aos escritos de
Euclides, há uma menção a Plutarco na crônica “Da Corte” , escrita em 1889 . Nesse texto, o
propagandista republicano desenvolveu o mote sobre a carência de historiadores no Brasil,
recorrentemente retomado:
Unicamente uma disciplina mental esmagadora, inexorável – tal que pelo
aniquilamento inteiro das paixões, nos facultasse a abdicação da própria
individualidade, po deria dar à nossa pátria um Guizot que relacionasse os
fatos e um Plutarco que definisse os homens (CUNHA, 1995, p. 617) .
Confirmando as afinidades do escritor caboclo para com o biógrafo da Antiguidade, o
inventário da biblioteca euclidiana revelou um indício concreto: a presença do livro de
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Plutarco, sob a forma da tradução francesa La vie des hommes illustres [A vida dos homens
ilustres] (GALOTTI, 1984, p. 6).
A descoberta da obra de Plutarco nas prateleiras do escritor caboclo foi o ponto de
partida para o biógrafo Roberto Ventura (1953-2002) sublinhar as coincidências insólitas que
aproximaram, tragicamente, as vidas de Euclides e d o Conselheiro (VENTURA, 2003, p. 258262). Por uma estranha ironia, a trajetória do autor de Os Sertões apresenta notávei s
semelhanças com as peripécias da personagem que buscou delinear nas páginas do livro
vingador. Ambos eram órfãos de mãe e tiveram o destino marcado pela s relações
extraconjugais das esposas, pela vendetta entre as suas respectivas famílias e pelas posiçõ es
assumidas perante a República – um se opondo violentamente e o outro apoiando com fervor
e depois criticando o novo regime. Ademais, tanto Antônio quanto Euclides eram construtores
itinerantes – de capelas, cemitérios e igrejas e de pontes, prédios e es tradas, respectivamente –
e andarilhos contumazes, que vagaram anos a fio pelos sertões. A mais cruel das analogias
entre as vidas desses homens aparece no fato que ambos tiveram as suas cabeças “cortadas”.
No caso do Peregrino, literalmente, como prova ca bal do seu extermínio e para investigações
científicas. Examinada pelo legista Raimundo Nina Rodrigues (1863 -1906), que atestou se
tratar um “crânio normal”, a cabeça do Conselheiro permaneceu conservada na Faculdade de
Medicina da Bahia, até o seu desapar ecimento, devido a um incêndio, em 1905. Quanto ao
escritor, após a autópsia, teve o seu cérebro retirado pelo médico Afrânio Peixoto (1876-1947)
e, posteriormente, conservado em formol, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, devido ao
interesse no estudo da s circunvoluções, pesqui sa levada a cabo pelo antropólogo Edgar
Roquette Pinto (1884 -1954). Somente em 1983, o encéfalo euclidiano foi inumado na cidade
fluminense de Cantagalo. Conforme Ventura (1990, p. 144-145), “Euclides ou Conselheiro, o
‘gênio’ ou o ‘louco’, ambos têm como destino a vala comum da ciência antropométrica da
virada do século” .
Segundo o mesmo biógrafo , Euclides projetou sobre o líder religioso muitas das suas
obsessões, a exemplo do temor da irracionalidade, da sexualidade, do caos e da anarquia,
desembocando na construção de uma personagem trágica, guiado por maldições hereditárias e
pelas crenças messiânicas, que o conduziram à loucura, ao conflito com a República e à queda
na desgraça. Baseado em profecias apocalípticas, que julgou ser em de autoria do líder
carismático, e poemas populares criou um retrato sombrio do Conselheiro e sedimentou uma
concepção de Canudos como movimento sebastianista e messiânico. Sob essa perspectiva, o
engenheiro-letrado enxergou o beato e a aldeia sagrada como desvios históricos capazes de
ameaçar a linha reta que ele se impusera desde a juventude. Portanto, é verossímil a impressão
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de que a imagem do Bom Jesus, composta a partir de tintas fortíssimas, apresenta diversos
requisitos de uma autêntica personage m literária e muito dos mecanismos de projeção
psicanalítica mobilizados pelo escritor (VENTURA, 2003, p. 202, 258 -259).
Por fim, outra amarga ironia: Euclides foi vítima da violência e da passionalidade,
criticadas em Os Sertões. A morte do autor foi con traditória com os propósitos da sua obra
maior, um manifesto contra a irracionalidade da força bruta e uma crítica ao código ancestral
de reparação das ofensas à honra mediante a utilização de sangrentas desforras. Assim, os
fatídicos embates entre as famí lias Maciel e Araújo teriam criado entre os seus descendentes
uma “predisposição fisiológica” que tornou hereditários os rancores e as vinganças, de
maneira similar às personagens trágicas gregas. Euclides rastreo u, nesse conflito entre os clãs
sertanejos, a presença da Nêmesis, deusa da vingança e da justiça entre os antigos helenos,
ignorando que ela se abateria sobre a sua própria vida e a da sua família poucos anos depois
(CUNHA, 2001, p. 257 -258). O engenheiro-letrado tinha predileção por modelos estéticos e
intelectuais gregos e franceses, os quais aplicava à sua existência e à sua obra, mas “ao agir
como os heróis antigos ou os valentões sertanejos, Euclides transformou a sua vida numa
ficção trágica” (VENTURA, 2002, p. 78-79).
A utilização do conceit o de “projeção”, para caracterizar algumas dos juízos emitidos
por Euclides sobre Antônio Conselheiro, possibilita discutir uma das razões que ainda levam
historiadores à rejeição da teoria psicanalítica como uma disciplina auxiliar: não se pode
psicanalizar os mortos. Sobre o ponto em questão, Gay (1989, p. 21) sintetizou alguns dos
argumentos fundamentais esgrimidos pelos adversários do diálogo entre o conhecimento
histórico e as idéias do Dr. Sigmund Freud (1856-1939). Em primeiro lugar, os sujeitos
históricos, os grupos sociais, as classes, as nações não são pacientes no divã, nem mesmo em
um divã imaginário. Proceder assim seria introduzir técnicas inapropriadas na pesquisa
histórica, permitir uma especulação infundada subverter o processo explicativo , que tão bem
tem servido aos hi storiadores ao longo do tempo . E mais: “Alguns historiadores, ofendidos
pelas alegações freudianas, têm até ultrapassado a sua esfera habitual para conjecturar em voz
alta se, além da incapacidade de psicanalisar os mortos, po de-se realmente psicanalisar os
vivos” (GAY, 1989, p. 21).
Um aspecto assaz interessante desses reptos é que, segundo o mesmo autor , o
historiador profissional tem sido sempre um psicólogo – um psicólogo amador, diga-se de
passagem. Assim, saiba ou não, o profissional da História opera com uma teoria sobre a
natureza humana: atribui motivos, estuda paixões, analisa irracionalidades e con strói o seu
trabalho a partir da confiança tácita de que os seres humanos exibem algumas características
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estáveis e discerníveis, alguns modos predizíveis (ou pelo menos decifráveis) de lidar com as
suas experiências. A descoberta das causas do hi storiador ainda inclui atos mentais. Em
síntese:
Mesmo os construtores de sistemas materialistas, como Karl Marx, que
sujeitam indivíduos às pressões inevitáveis das condições históricas,
admitem e declaram que entendem o papel desempenhado pela mente. Entre
todas as ciências auxiliares do historiador, a psicologia é a sua ajudante
principal, embora não reconhecida ( GAY, 1989, p. 25).
Aqui, não será necessário insistir acerca da s relações que vinculam História e
psicanálise, na elaboração da biografia de Euclides da Cunha . Em um ensaio inédito,
denominado “A biografia como micro -história”, Ventura (apud CARVALHO, 2003, p. 12) ,
procedeu uma defesa radical da “coragem” e da “ousadia” do biógrafo, no trabalho de
interpretação da trajetória das suas personagens . Para começar, toda biografia é um relato
verossímil construído com base em fontes diversas. O relato em questão sempre será uma
versão dos fatos, criada com base em depoimentos e documentos. Assim, muitos indícios
(uma carta ou uma entrevista) são decodificados , sem que se possa ter certeza sobre o grau de
verdade da interpretação . “O biógrafo precisa ter a coragem e a ousadia de dar a sua versão
dos fatos, de trazer idéias sobre as motivações de seu personagem. É isso que cria interesse
pelo relato biográfico, que deve ir além da mera exposição de fatos e dados.” Segundo ainda
Ventura (apud CARVALHO, 2003, p. 13) , “para escrever u ma biografia, é preciso confrontar
testemunhos contraditórios e rever o que se conhece sobre o biografado , à luz das fontes
levantadas. É aí que o b iógrafo pode descobrir fatos novos ou pistas até então desconhecidas ”.
Infelizmente, Roberto Ventura não viv eu tempo suficient e para seguir os rastros que
vinculam as trajetórias paralelas e invertidas de Euclides da Cunha e Antônio Conselheiro.
Um acidente automobilístico, ocorrido na madrugada de 14 de agosto de 2002, quando
retornava para São Paulo, após part icipar da Semana Euclidiana , em São José do Rio Pardo –
cidade na qual o engenheiro -escritor compôs Os Sertões –, ceifou a vida do professor de
Teoria Literária da Universidade de São Paulo (USP). A respeito do desaparecimento de
Ventura, há uma explicação lendária, que há tempos circula entre os euclidianos: a morte
acometeu, repentinamente, intelectuais que se propuseram a desembaraçar o “novelo”
biográfico do escritor caboclo , impossibilitando -os de concluir as suas pesquisas. Será que as
analogias entre as vidas trágicas de Euclides e do Conselheiro tamb ém recaem sobre os seus
pacatos biógrafos?
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Referências
BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(Org.). Fontes histórias. São Paulo: Contexto, 2006. p. 203 -233.
CALAZANS, José. Euclides da Cunha nos jornais da Bahia. Revista de Cultura da Bahia ,
Salvador, n. 4, p. 47-50, jul./dez. 1969.
CARVALHO, Mario. Diálogo com a memória de um computador. In: VENTURA, Roberto.
Retrato interrompido da vida de Euclides da C unha. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
p. 9-15.
CARLYLE, Thomas. Os heróis. São Paulo: Melhoramentos, 1962.
CUNHA, Euclides da. Caderneta de campo . São Paulo: Cultrix, 1975.
. Obra completa: em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 199 5.
_. Diário de uma expedição . São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
_. Os Sertões (Campanha de Canudos) . São Paulo: Ateliê E ditorial, 2001.
ENDERS, Armelle. O Plutarco Brasileiro – a produção dos vultos nacionais no Segundo
Reinado. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 25, p. 41 -62, 2000.
GALOTTI, Oswaldo. Biblioteca de Euclides da Cunha . São Paulo: [s.n.], 1984.
GAY, Peter. Freud para historiadores . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
VENTURA, Roberto. A Nossa Vendéia : Canudos, o mito da Revolução Francesa e a
formação da identidade cultural no Brasil (1897 -1902). Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros, São Paulo, n. 31, p. 129-145, 1990.
. Os Sertões. São Paulo: Publifolha, 2002 .
. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha . São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
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