ENSINO MÉDIO : em busca do princípio pedagógico1 Paolo Nosella2 RESUMO: Recentemente, o debate sobre a problemática do ensino médio se intensificou, envolvendo políticos, legisladores, empresários e educadores. Não se trata de um debate novo, porém, nestes últimos anos, ganhou novo fôlego, repercutindo inclusive nos meios de comunicação de massa. O debate se aguçou pelo grande crescimento de matrículas, em decorrência do aumento de concluintes do ensino fundamental. Infelizmente, os dirigentes da sociedade política e civil, ao invés de se regozijarem diante desse crescimento de matrículas, se preocupam em "acomodar" socialmente tamanha demanda de escolarização na expectativa de se aproveitarem da mão de obra precocemente profissionalizada. No intuito de contribuir para o atual debate sobre ensino médio, este texto traz informações de caráter histórico e considerações teóricas. Defendo a tese de que o trabalho como produção coletiva da existência humana é o princípio educativo geral de todo o sistema escolar. A especificidade pedagógica do ensino médio decorre do momento vivido pelo jovem em busca de sua definição moral, intelectual e social. Por ser a fase final do ensino básico de caráter formativo, não pode ser profissionalizante. É o momento da aprendizagem marcada pela passagem da heteronomia para uma fase cada vez mais autônoma. A consideração de que o ensino médio deve priorizar a preparação (imediata ou remota) para o mercado é admitir a legitimidade da profissionalização precoce. A atual apologia do ensino profissionalizante e a ampliação desse sistema escolar é uma declaração da falência e do abandono do ensino médio humanista, "culturalmente desinteressado", destinado a preparar dirigentes. Conseqüentemente, é uma indisfarçável expressão do engessamento e do agravamento da dualidade social e escolar. A idéia principal do texto é uma crítica ao Estado por não centrar suas políticas públicas no resgate qualitativo de todo o sistema regular não profissionalizante do Ensino Médio. Ou, em outras palavras, por centrar suas políticas no Ensino Médio profissional e desconsiderar o Princípio Pedagógico específico do Ensino Médio. 1 Texto apresentado no VI Colóquio de Pesquisa sobre Instituições Escolares, promovido pelo LIPHIS do PPGE da UNINOVE-SP ( 27/08/2009) e no encerramento do V Simpósio sobre Trabalho e Educação, promovido pela FAE/NETE da UFMG/BH (28/08/2009). O mesmo texto foi apresentado no Seminário Nacional de Políticas para o Ensino Médio, a convite do Ministério da Educação, Brasília, 23 de set. 2009. 2- Professor do PPGE da Universidade Nove de Julho (UNINOVE-SP) e colaborador do PPGE da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). 1 PREMISSA Recentemente, o debate sobre o ensino médio se intensificou, envolvendo políticos, legisladores, empresários e educadores. Não se trata de um debate novo, porém, nestes últimos anos, ganhou novo fôlego. O tema repercutiu inclusive nos meios de comunicação de massa, difundindo na sociedade uma convicção generalizada de que, se todo o ensino no Brasil é bastante deficitário, o ensino médio o é mais ainda: Um balanço da escola pública brasileira, em todos os níveis, no início do século XXI, nos revela o retrato constrangedor de uma dívida quantitativa e qualitativa. Todavia, é no ensino médio em que esta dívida se explicita de forma mais perversa (Frigotto et alii, 2005, 7). Com efeito, tanto na educação infantil como no ensino fundamental não existem relevantes divergências teóricas entre os educadores. Todos defendem para esses níveis da escolarização um programa pedagógico universal, obrigatório, unitário e de elevada qualidade. No entanto, para o ensino médio, a discordância atinge a própria definição do estatuto teórico-pedagógico. Uns defendem uma formação humanista e científica única e para todos; outros uma formação pré-profissional ou até mesmo profissionalizante; outros ainda defendem a separação entre o ensino médio regular e o ensino técnico e profissional; e outros finalmente defendem o ensino médio integrado ao ensino técnico ou à educação profissional. Também do ponto de vista administrativo há divergências. Para muitos a formação dos jovens é tarefa exclusiva do Ministério da Educação e das Secretarias de Educação dos Estados; outros consideram que a preparação técnica e profissional é de competência das Secretarias de Desenvolvimento e Tecnologia ou de outras Instituições públicas congêneres. Mas, para outros ainda a formação técnica e profissional é tarefa das instituições voltadas às atividades práticas, pois estas sabem como formar seus quadros produtivos e tendem naturalmente a criar suas escolas próprias. Quanto ao currículo e à duração do ensino médio, as opiniões, as iniciativas e a legislação também são muitas e variam: para o ensino médio regular muitos defendem que três anos de estudo são suficientes, porém para o ensino médio integrado se acrescenta um ano; outros acham que o jovem brasileiro entra na universidade cedo demais e que, portanto, todo o ensino médio deveria se desenvolver em quatro anos. Quanto aos cursos técnicos ou profissionalizantes, separados do ensino médio regular, as opiniões sobre sua duração variam muito, desde poucas semanas até um ano e meio ou, no máximo, dois. Em tese e abstratamente, todos defendem a necessidade de um currículo abrangente, que 2 integre elementos científicos, culturais e profissionais (trabalho, ciência, tecnologia e cultura). A Deliberação do Conselho Estadual de Educação Nº 79/2008, do Estado de São Paulo, é um entre os inúmeros documentos legais que evidenciam a existência de uma enorme multiplicação de tipos de escolas e cursos profissionalizantes. Visa a disciplinar "a implantação do catálogo Nacional de Cursos Técnicos de nível médio no Sistema de Ensino do Estado de São Paulo". Na verdade é uma tentativa do Estado para controlar e regulamentar os inúmeros cursos técnicos e profissionalizantes de ensinos médios, reflexos da desigualdade social e da degenerescência do sistema educacional médio regular. Obviamente, o debate sobre o Ensino Médio se aguçou sobretudo pelo grande crescimento das suas matrículas em decorrência do aumento dos concluintes do ensino fundamental. Os dados levantados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2008 (PNAD-IBGE) mostram que o atendimento aos jovens de 15 a 17 anos, pela primeira vez, superou a barreira de 84% (in: Jornal Folha de S. Paulo, 19/09/09). Infelizmente, diante desse crescimento, muitos se preocupam tão somente em "acomodar" socialmente tamanha demanda de jovens em busca de formação. Esperam, inclusive, tirar proveito material dessa mão de obra juvenil e, por isso, pensam em profissionalizá-la rápida e precocemente. Assim, fazem diariamente a apologia do ensino técnico e profissionalizante. Citemos, como exemplo, o editorial da Folha de S.Paulo: Mão-de-obra-difícil. A recente aprovação, no Senado, da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica é um passo pequeno, ainda que na direção correta, para preencher uma das grandes lacunas na formação dos brasileiros: o ensino profissional. A rede pretende organizar o setor a partir da integração das atividades dos centros federais tecnológicos, escolas técnicas, agro-técnico e vinculadas às universidades federais. Foram criados 38 institutos, abrangendo todos os Estados e Distritos Federal. Paralelamente à reorganização, está em curso um aumento considerável no total de escolas. Pelos planos oficiais, o número de instituições de perfil técnico chegará a 354 em 2010 – atualmente são 215. O objetivo é ampliar a oferta de vagas para 500 mil. Se a expansão se concretizar, mais que triplicará o número oferecido em 2003-160 mil. Para ser bem sucedida, é importante que essa expansão contemple principalmente os alunos do ensino médio. Infelizmente, a responsabilidade da educação profissionalizante tem sido transferida no período recente para o ensino superior. (Jornal Folha de S.Paulo, 28/12/08) Não nos enganemos, não é amor à Escola do Trabalho. É um movimento político para uns de acomodação social e para outros de exploração de mão de obra jovem. No âmago dessa movimentação política, muitos confessam dúvidas injustas e discriminatórias como: todos precisam ir para a universidade? Por que 3 não priorizar um ensino médio técnico que ofereça um diploma profissional com o qual os filhos de trabalhadores possam ingressar imediatamente no emprego? Aliás, para muitos, a idéia de oferecer cursos rápidos, práticos, que atendam ao mercado e "acomode" muitos jovens se apresenta como democrática. Conseqüentemente, dizem, isso irá fortalecer também o tradicional ensino médio "abstrato", "demorado", embasado numa cultura geral "desinteressada" ou "inútil". No intuito de contribuir para esse debate, o presente texto traz informações de caráter histórico e considerações teóricas. Defendo a tese de que o trabalho é o princípio educativo geral de todo o sistema escolar, sem qualquer destaque para o ensino médio, fase final do ensino básico, de caráter formativo geral. O princípio pedagógico específico do ensino médio decorre do momento vivido pelo jovem em busca de sua autonomia e identidade moral, intelectual e social. Pedagogicamente é marcado pela transição da fase da aprendizagem prioritariamente heterônoma para a fase da aprendizagem autônoma. Qualquer consideração de que o ensino médio deve levar em conta a preparação (imediata ou remota) para o mercado de trabalho é admitir a legitimidade da profissionalização precoce. A atual apologia e ampliação do ensino profissional é uma declaração da falência e do abandono do ensino médio regular, indisfarçável expressão do agravamento da dualidade social e escolar. O ENSINO MÉDIO NO BRASIL Dizíamos que o debate sobre Ensino Médio não é novo. Sua dualidade, escola secundária para os dirigentes e profissional para preparar os quadros do trabalho, é antiga e ainda hoje perdura, apesar dos muitos "esforços" para superála ou, quase sempre, para dissimulá-la. Ironicamente, o ensino médio só não foi dual quando, antes do processo de industrialização, simplesmente excluía da escola os jovens destinados ao trabalho: "A tradição escolar do Brasil pré-industrial era a escola humanista, socialmente distintiva, destinada às elites. Não havia escolas para formar trabalhadores." (Buffa E. e Nosella, P. 1998, pg. 138). A partir dos anos 30 do século passado, com o advento da industrialização, foi organizado no país um sistema legal de ensino profissional, estabelecendo formalmente a dualidade pedagógica, correspondente à dualidade social: Como desdobramento da Constituição de 1937, a Lei Orgânica do Ensino Secundário, de 1942, estabeleceu a dualidade do sistema , explicitando que a escolarização, depois do primário obrigatório de quatro anos, teria duas vertentes: o ensino secundário regular – em dois ciclos perfazendo sete anos- 4 3 destinado às 'elites condutoras' e o ensino profissionalizante também em dois ciclos em sete anos – para as classes populares. (Dagmar M.L. Zibas, 2005, p.4) Isso não ocorreu somente no Brasil. Com variáveis, aconteceu no mundo industrializado em geral. A instituição formal da dualidade do sistema escolar, por contraste, mobilizou muitos educadores idealistas que, por defenderem a igualdade social, levantaram a bandeira da escola única. Lembremos, por exemplo, a proposta de escola única de Anísio Teixeira, que propunha uma escola igual para todas as crianças e jovens a despeito de suas diferenças sociais. Daí em diante, inúmeras foram as tentativas de harmonizar a escola humanista com a escola do trabalho, quer no âmbito da equivalência dos diplomas quer no âmbito da integração dos currículos. A Lei de Diretrizes e Bases de 1961 (Lei 4.024/61) foi um marco, pois possibilitou aos diplomados das Escolas Técnicas o ingresso no ensino superior. A forma política como isso aconteceu, merece ser registrada. Jorge Amado era deputado pelo Partido Comunista na Câmara Federal e integrava a Comissão de Educação e Cultura. Paschoal Lemme, que o assessorava nas questões escolares, nos diz: Eu resolvi fazer um projetozinho para ele apresentar na Câmara. Esse projeto, com apenas dois artigos, dizia o seguinte: todos os estudantes que completarem os sete anos de ensino de grau médio, não importa o tipo, teriam o direito a concorrer ao vestibular para as universidades. Entreguei a ele e, com aquela confusão, não pude explicar exatamente o alcance daquilo. Ele começou a receber telegramas elogiosos de todo o Brasil. Ficou pasmo. Expliquei a ele que só quem fazia o curso secundário é que tinha o privilégio de fazer o vestibular para o ensino superior. Os outros faziam sete anos, às vezes são rapazes mais amadurecidos até do que esses meninos de famílias mais ricas e, no entanto, estão proibidos. Só o ensino comercial, de nível bastante mais elevado, mais tarde permitia chegar ao curso de administração. Era isso que estava acontecendo. Eu generalizava o privilegio para todos os 3- Cabe aqui um pequeno comentário sobre essa escola destinada às "elites condutoras". O objetivo dessa escola era formar dirigentes. Mas, atenção: tal objetivo não era equivocado, nem elitista de per si. Aquela escola era elitista pela clientela que atendia. Infelizmente, ao ingressarem nas escolas os filhos dos trabalhadores (grosso modo, no período dos governos populista), o objetivo geral da formação escolar popular ao invés de continuar sendo o de formar dirigentes, obviamente, da nova sociedade industrializada e urbana, degenerou o método e preparou operadores de máquinas ou executores de serviços: "Não é a aquisição de capacidades de direção, não é a tendência a formar homens superiores que dá a marca social de um tipo de escola. A marca social é dada pelo fato de que cada grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nestes estratos uma determinada função social, tradicional: dirigente ou instrumental. Se se quer destruir essa trama, portanto, não se deve multiplicar e hierarquizar os tipos de escola profissional, mas criar um tipo único de escola preparatória (primária-média) que conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante este meio tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige."(Gramsci, 2000, 490.) 5 que fizeram sete anos de grau médio; todos tinha o direito de provar sua capacidade no vestibular, em igualdade de condições. De certa forma quebrava um pouco aquela organização de Capanema que reconhecia as classes existentes. Sem mascará-las num tipo de ensino unitário, como o profissionalizante. (Lemme, P. Entrevista, relatório, p. 324325). As últimas palavras do Prof.Lemme se referem especificamente à reforma educacional dos governos militares, Lei 5692/71, aparentemente o ponto mais alto da evolução da idéia de escola média única, para todos. É curioso constatar que a aversão ao idealismo pedagógico levou comunistas convictos, como por exemplo o Prof. Paschoal Lemme, a preferir o 'realismo' das leis orgânicas do ensino de Capanema, que subsumem a divisão da sociedade em classes na própria estrutura do ensino, à hipocrisia da lei 5692/71 que propõe a escola única numa sociedade que produz cidadãos cada vez mais diferentes. Nas palavras do próprio Lemme: O Estado Novo foi um regime muito contraditório. (...) Houve a criação do SENAI e do SENAC que foram consideradas iniciativas interessantes para a formação de mãos de obra. Capanema tinha uma certa rivalidade com aquilo, ele preferia fazer as Escolas Técnicas, uma em cada Estado, que ele acabou fazendo. Por incrível que pareça , acho a organização do ensino secundário que ele fez, muito mais realista do que esta lei da ditadura (5692/71), essa lei de colocar o profissionalizante metido numa escola , uma coisa inteiramente irreal. Ele fez logo as coisas às claras, fez o ensino secundário, o único que conduzia à universidade, e fez, em segundo lugar, um ensino industrial, um ensino comercial, um ensino agrícola para as classes de nível econômico um pouco...e o ensino normal. Assumiu as classes sociais: não sei se é elogiável, mas é interessante. (LEMME, P. 1988,não publicada)4. A determinação da Lei 5692/71, estabelecendo três anos de ensino médio (chamado então de ensino de 2º grau), para os jovens de 15 a 17 anos, com profissionalização obrigatória, é bastante conhecida. Houve interferências importantes do Congresso da época na definição da referida Lei. Tanto o Senhor Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, como o Prof. Valnir Chagas não 4 Curioso que também Gramsci faz uma referência em parte elogiativa à "velha escola média italiana, como a antiga lei Casati a havia organizado, cuja eficácia não devia ser buscada (ou negada) na vontade expressa de ser ou não escola educativa, mas no fato de que sua organização e seus programas eram a expressão de um modo tradicional de vida intelectual e moral, de um clima cultural difundido em toda a sociedade italiana por uma antiqüíssima tradição." (Gramsci, 2000, 45) . Assim, tanto P.Lemme como Gramsci valorizam a objetividade de uma determinada organização escolar por corresponder ( orgânica) à sociedade que a produz. Na verdade, os dois autores rejeitam o idealismo hipócrita, apontando para a perspectiva revolucionária que busca uma escola unitária orgânica à sociedade unitária. 6 assumem a qualificação da lei da profissionalização compulsória como autoritária e ingênua. O fato é que a Lei se caracteriza por esses dois aspectos. O Prof. Walnir, em seu depoimento, assim sintetiza a trajetória legal da integração do ensino profissional com o secundário: A Lei de Diretrizes e Bases de 1961 gerou muita frustração...No dia seguinte ao da promulgação dessa Lei, começamos a luta. Anteriormente a essa lei tinha havido a equivalência do ensino profissional com o secundário, em nível de ginásio. Em 1953 houve a equivalência em nível colegial. No entanto, em ambos os casos, o aluno estava sujeito à adaptação às matérias do secundário que ele não tivesse feito, porque a estrada real para a universidade era, como dizia Capanema, a escola secundária. A Lei de Diretrizes e Bases deu esse terceiro passo, ou seja, sem adaptação. Porém, no dia seguinte à (promulgação ) da Lei de Diretrizes e Bases, começou-se a dizer: 'quem diz equivalente, não diz igual. Há o dualismo, há uma classe rica ...e outra, apenas equivalente, mas não igual. Aí começou a luta: batalhar pela escola única. (...) Nós não propusemos a escola única, sabendo que não poderíamos caminhar para a escola única de vez. Exatamente considerando que a sociedade é de classes5. (VALNIR,C. 1988, não publicada). O fracasso da profissionalização compulsória da Lei 5692/71 dos Governos Militares era previsível: na verdade, sob a retórica de liquidar a escola secundária, verbalista e elitista, escondia-se o projeto de extinguir uma escola formadora de dirigentes,ou de controladores dos dirigentes, fundamental principio unitário da escola média secundária. O sonho educacional dos militares era universalizar uma escola de técnicos submissos, de operadores práticos. Ou seja, criava-se a unitariedade do sistema escolar cortando a parte melhor da dualidade. Imediatamente evidenciou-se o artificialismo das inúmeras habilitações profissionais. A escola humanista foi empobrecida e o ensino técnico esvaziado. O equívoco foi reconhecido e corrigido pelo governo, pois a própria classe dirigente o havia percebido. Assim, em 1982 , foi promulgada a Lei 7.044, determinando que a profissionalização não mais fosse obrigatória e sim opcional de cada escola, isto é, de cada grupo ou classe social. Restabelecido o realismo escolar, o debate sobre o ensino médio unitário arrefeceu. Todavia, independentemente dos debates e das políticas governamentais, as camadas populares, durante a década de 1980, pressionaram por mais escolarização, inclusive média. Para dar atendimento a essa demanda, o Estado simplesmente abriu as portas desse ensino, prolongando a política do 5- Quem desejasse conhecer o processo de produção dessa lei, contado nos detalhes pelo próprio Ministro da Educação que a promulgou, Jarbas Passarinho, e pelo prof. Valnir Chagas, autor principal do projeto, há dois longos depoimentos, transcritos no relatório final de pesquisa, intitulado: Memória e Educação: da história de vida de Educadores à história da Educação Brasileira, Buffa, E., Nosella, P. 1987 (não publicado). 7 populismo educacional que facilitava a diplomação sem maiores preocupações com a qualidade da escola. Esse período caracterizou-se pela expansão dos cursos noturnos e supletivos. Democratizava-se a clientela, mas deformava-se o método, rebaixando a qualidade. A Constituição de 1988 foi a oportunidade de reacender o debate sobre a educação, a organização do sistema de ensino e sua qualidade. Com vistas à elaboração da nova LDB, o debate sobre ensino médio se polarizou: de um lado (neo-liberal) procura-se requalificar a tradicional escola propedêutica, reforçar a meritocracia e reencontrar a identidade própria do ensino técnico retirando de seu currículo as disciplinas de conteúdo geral. De outro lado (popular), levantou-se a bandeira da politécnica, densa de significação, embora semântica, conceitual e politicamente inadequada6. A nova Lei de Diretrizes e bases de 1996 buscou superar a contraposição entre a visão neoliberal e a popular, introduzindo a idéia de uma escola média cujo objetivo fosse integrar, no amplo conceito de cidadania, a participação do jovem à vida política e produtiva. Naturalmente, quando os conceito são bastante amplos e ambíguos, abrigam abstratamente todas as posições e cada grupo social fica concretamente com a sua prática. Em 1997, o grupo político hegemônico (governo FHC), por decreto federal, "determinou que o ensino técnico, organizado em módulos, seja oferecido separadamente do ensino médio regular." (Dagmar, 2005, p. 8). Estranho decreto: afastava legalmente o ensino técnico e profissional do ensino médio. O currículo nacional deste decreto é unificado por 75%, deixando 25% sob a responsabilidade de cada escola. Na verdade, o objetivo real foi liberar o ensino profissional de qualquer limitação ou controle burocrático, deixando o ensino médio regular, não obrigatório, sobretudo o público, no baixo nível a que chegara. Assim, como os governos militares quiseram estabelecer a unitariedade do ensino médio cortando o ensino secundário "retórico e inútil", o governo FHC pretendeu estabelecer a unitariedade cortando o ensino técnico-profissional, isto é, tornando-o administrativamente autônomo e, portanto, "livre" de maiores controles. Obviamente, esse Decreto constituiu-se no alvo principal das críticas dos que defendem a integração entre formação geral e técnica. Ao Governo Lula coube atender a essa crítica e tentar soluções. Mas, como este governo não é de rupturas, suas políticas não conseguem promover efetivas inovações no ensino médio: assim, o Decreto 5.154/2004 permite tudo: tanto o ensino médio separado como o integrado. O debate está em curso e centra-se sobretudo no âmbito da 6- A noção de politecnia, entre outros limites, restringia in terminis a formação no estreito horizonte dos fundamentos científicos e técnicos da produção. A proposta da formação politécnica foi apresentada no primeiro projeto de LDB à Câmera dos Deputados , em dezembro de 1988, e assim se expressava: "A educação escolar de 2º grau será ministrada apenas na língua nacional e tem por objetivo propiciar aos adolescentes a formação politécnica necessária à compreensão teórica e prática dos fundamentos científicos das múltiplas técnicas utilizadas no processo produtivo". (Brasil,1991, art. 38, in, Frigotto et alii, 2005, p.25. 8 problemática curricular e na busca de experiências interessantes. As palavras recorrentes são: integração, articulação, interdisciplinaridade e inovação. Os eixos orientadores do ensino médio devem ser: trabalho, ciência, tecnologia e cultura. Assim, a primeira iniciativa importante que o governo do PT tomou foi, obviamente, a revogação do Decreto nº 2.208/97. No âmbito das políticas para o ensino médio, essa determinação era entendida como o compromisso político mais importante do novo governo com os educadores progressistas. À separação obrigatória entre o ensino médio regular e o ensino técnico profissionalizante do governo anterior, haveria de se contrapor, de forma opcional um projeto de ensino médio integrado à educação profissional. Essa integração, a princípio, é irrepreensível, mas, na prática, levanta sérias preocupações, como as apresentadas pelos Secretários de Educação: Durante a elaboração da primeira versão da minuta de decreto que revogaria o Decreto nº 2.208/97, a preocupação dos secretários de Educação era a sustentabilidade de um projeto de ensino médio integrado à educação profissional. Além disso, a crítica a esta primeira versão era de que continha questões conceituais não apropriadas a um texto jurídico (Frigotto, et alii, 2005, p.26, nota 9). A verdade é que atualmente tanto a sociedade civil como a política estão priorizando a Educação Profissional, conforme se lê no editorial da Folha de S. Paulo, acima citado. Uma pequena minoria defende o ensino médio integrado à educação profissional. Com efeito, o termo/conceito "integrado" é sedutor e instigante, mas é muito polissêmico, podendo chegar a ser ambíguo e enganoso. Afinal, "integrar" pode significar justapor, acrescentar e, como bem sabemos, nem currículo, nem instituição ou gestão pedagógica conseguem unificar o que a sociedade separou, consoante o que Marta, Professora que compõe o quadro docente do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia (IFBahia), Campus de Vitória da Conquista, onde leciona Português no Ensino Médio Integrado, me escreveu: Professor,....quem sabe podemos encontrar possíveis saídas para alguns problemas com os quais ainda lidamos. Um deles diz respeito à decisão dos jovens, futuros técnico, para a escolha do curso. Como ingressam, na maioria, com 14 (alguns com treze) anos, são os seus pais , em grande parte, que fazem a escolha de um determinado curso. Então, no decorrer dos estudos, ouvimos de muitos que não irão seguir aquela carreira, estão ali se preparando para entrarem numa universidade. Gostam da escola, valorizam-na pelo bom ensino, mas, alguns, se pudessem, estariam em outras somente com o ensino médio. Outro problema, o qual considero mais grave, é que, até hoje, quatro anos após o início dessa modalidade de estudo, Ensino Médio Integrado, não conseguimos, de fato, 9 efetivar a tão desejada integração. Apesar dos esforços (reuniões, estudos, encontros pedagógicos) o que temos, na verdade, é uma justaposição, como ocorria antes da promulgação da Lei LDB/96. Atenciosamente. (Profª. Marta Quadros Fernandes, 2009, e-mail). EM BUSCA DO PRINCÍPIO PEDAGÓGICO A expressão "em busca" indica que a integração entre o sistema escolar e o produtivo não encontrou ainda,historicamente, a formula pedagógica definitiva. As formas como o homem socialmente produz sua existência, transformando e humanizando a natureza, mudam, como mudam também as concepções e as práticas escolares que articulam trabalho e educação, em decorrência da evolução dos meios de produção e das políticas educacionais elaboradas por um determinado bloco social. A expressão "princípio" aponta para a causa final do processo educativo. Com efeito, a causa final está intencionalmente presente no ser desde a sua primeira concepção informando todo seu processo, dando-lhe unitariedade e funcionalidade, conforme a celebre expressão da filosofia antiga: o ultimo na execução é também o primeiro na intenção. Ou seja: o objetivo final é o princípio organizativo e executivo de todo o processo. Em outras palavras, o "princípio educativo" é a razão última que informa todo o processo escolar, é a perspectiva real e de longo alcance assumida pelos educandos e pelos educadores. Nesta perspectiva selecionam-se e tomam sentido os conteúdos. O termo/conceito "unitário" é utilizado sempre que se quer identificá-lo, e ao mesmo tempo diferenciá-lo, do termo/conceito "único". Por décadas, falou-se em "escola única". De uns anos pra cá preferiu-se dizer "escola unitária". Com efeito, o termo "único" conceitualmente se refere a "idêntico" ou "exclusivo", isto é, afirma-se que algo é igual ao outro ou que não existe outro como este. De toda forma, o conceito "único" traz uma conotação de precisão mecânica. Diversamente, o conceito "unitário" diz relação a processo, a porvir histórico, a direção, a construção de um sistema, a algo que se inspira a critérios de unidade. Assim, o termo "unitário" qualifica melhor os princípios educativo e pedagógico que conferem unidade às instituições formativas e escolares. A expressão "trabalho como princípio educativo" se refere ao grande debate desencadeado entre pedagogistas a partir da revolução industrial, quando o trabalho industrial foi apontado como principal contexto e referência educacional da sociedade. A tese deste texto me levou a preferir o termo "pedagógico", pois se o princípio educativo se aplica indistintamente a todo o sistema escolar, o princípio pedagógico caracteriza a especificidade metodológico-escolar de cada fase do ensino. Assim, "princípio educativo" não é sinônimo de "principio pedagógico": o 10 primeiro é um conceito mais amplo que se aplica a todo o processo educativo, o segundo é a especificidade pedagógica que diferencia cada etapa do sistema escolar. O temo/conceito "trabalho" significa o processo ontológico de humanização da natureza que os homens, coletivamente, operam para prover à sua sobrevivência. É o objetivo final que informa e confere sentido a todo o processo ou porvir da sociedade humana, do indivíduo e da natureza. É portanto essencial estabelecer a diferença entre trabalho e profissão. O trabalho não é, de per si, produção de mercadoria; é, como dizíamos, o processo existencial de produção da própria personalidade e da sociedade visando a transformar e humanizar a natureza. Mercadoria é a força de trabalho, instrumento para produzir um bem de troca. Nesse sentido, profissionalização se relaciona com a mercantilização da força de trabalho. Pareceu-me importante explicitar esses termos e conceitos, uma vez que certas expressões, às vezes, perdem sua significação precisa e se tornam chavões, dogmas engessados, palavras de ordem, ideologicamente úteis em algum momento, mas inadequadas para entender o sentido exato de algumas teses. Antes da Revolução Industrial, a problemática da integração entre trabalho e educação era traduzida em termos de relação entre teoria e prática. A dualidade social, cultural e educacional marcou, desde os primórdios, toda a civilização ocidental, separando e contrapondo o mundo da necessidade (guerra e negócios) do mundo da liberdade (ócio, filosofia e comando). Este profundo racha social, injusto e cruel, sensibilizou desde sempre corações e mentes humanistas que valorizavam prioritariamente a liberdade, a justiça e a igualdade para todos e que por isso lutaram, por meio do pensamento e pratica, para superar essa dicotomia. O trabalho como principio educativo só pôde ser pensado e proposto a partir do processo de industrialização, pois, nesse processo, os homens compreenderam que o conhecimento cientifico necessário à industria era fruto da articulação entre as atividades práticas e os estudos teóricos, uma vez que a inteligência e as mãos executavam, conjuntamente, operações segundo regras objetivas teórico-práticas, aprendidas em escolas. Estava, assim, pela primeira vez na história justificada a entrada dos trabalhadores para dentro das escolas. O marxismo foi a linha teórica que mais levou adiante o ideário iluminista da integração entre artes mecânicas e liberais. Seu fundador, Marx, trouxe para o debate pedagógico a luta contra o estigma da dicotomia entre os que fazem e os que dirigem, afirmando que o processo educativo geral e escolar do homem está embasado no trabalho produtivo industrial, portanto, com ele a escola deve se articular. 11 Entretanto, o próprio Marx testa progressivamente as formas didáticas da articulação entre trabalho produtivo e escolar. Assim, em 1848, recomenda "combinar educação e trabalho fabril", referindo-se também à educação infantil7. Essa combinação foi considerada, mais tarde, inadequada por ele mesmo. Com efeito, quase 20 anos mais tarde, nas Instruções aos delegados e no O Capital (1866-67), apresenta pela primeira vez a idéia da educação politécnica e tecnológica, como forma pedagógica de integração do trabalho produtivo e escolar. Mais tarde, em 1875, no Programa de Gotha, a escola é vista por Marx na ótica política da conquista pela hegemonia, afirmando que não pode haver na sociedade burguesa escolas didaticamente iguais para classes desiguais. Em todo caso, Marx não encerrou a busca a respeito das formas didático-pedagógicas da articulação entre o trabalho produtivo e o escolar. Após a revolução socialista de 1917, a União Soviética implementou as primeiras leis escolares, reafirmando o princípio marxiano da unidade entre instrução e trabalho produtivo com base na formação politécnica. Sobre essa temática, ocorreu na época um memorável debate: de um lado havia os defensores da "morte da escola" (Sulghin e Krupenina)8 e de outro os defensores da profissionalização precoce chamada também de monotecnia. Contra estas duas posições, se pronunciaram Lênin, Krupskaia e Blonsky defendendo e implementando a politecnicização do sistema escolar. O que importa ressaltar é que nesse debate foram levantadas duas preocupações importantes: a) existem diferentes formas pedagógicas de aplicação da politecnia nos diferentes graus de escolarização; b) é definida a noção de trabalho produtivo "mercadologicamente desinteressado", isto é, formativo, inserido na escola. Quanto à primeira preocupação, o grupo político ao qual Lênin e Krupskaia pertenciam (Narkompros) defendia a identificação conceitual e prática entre o jogo e o trabalho para a escola infantil. Para os alunos do ginásio e do ensino médio, o trabalho de fábrica ou de oficina devia estar "rica e verdadeiramente articulado com a atividade de estudo". (Mauro, 1980, pg. 193). A própria Krupskaia, sem negar o valor da convivência das crianças e dos jovens com os adultos nas fábricas, "afirmava ser impossível introduzir nas fábricas crianças e adolescentes pois dizia se tratar de um trabalho superior às suas forças". (Ibidem, pg.193). Ao comentar os laboratórios escolares relacionados com a produção, "insistia que neles não houvesse exclusivamente exercitação". (Ibidem, pg. 193) Quanto à segunda preocupação, é importante frizar que esses primeiros pedagogistas soviéticos defenderam a noção de trabalho produtivo "desinteressado", isto é, formativo: 7- Marx e Engels, Os princípios básicos do comunismo e o Manifesto (1847-48), in: MANACORDA, 2007, p.35-42. 8- MAURO, Rosa. il lavoro produttivo in Makarenko, in: Scuola e città nº 5, maio de 1980, p.193. ed. La Nuova Itália, Firenze, 12 o trabalho, enquanto novo elemento a ser introduzido na escola, era sempre representado como criativo e não repetitivo, fonte de sempre novos conhecimentos e capaz de desenvolver o hábito da organização, da direção e das atividades coletivas. (Ibidem, pg. 193). É inegável o fascínio que a expressão "trabalho produtivo" e sua intima conexão com o processo educativo escolar suscitava nos educadores socialistas do inicio do século XX. Entretanto, a prática educativa cada vez mais evidenciava que o trabalho produtivo não era de per si educativo se não fosse acompanhado por uma explícita instrução e educação política. Makarenko escrevia: "a neutralidade do processo do trabalho surpreendeu muito o nosso coletivo pedagógico. Nós estávamos excessivamente acostumados a adorar o principio do trabalho". (Makarenko, in Mauro, 1980, pg.194). Mais adiante, Makarenko observa que existe contradição entre a afirmação abstrata sobre instrução politécnica e a iniciação concreta dos jovens no mundo do trabalho (Mauro, 1980, 194).9 Nas primeiras décadas do século XX, no Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou, pesquisadores importantes como Vygotsky, Leontiev, Luria, Elkonin, ao explicarem como o trabalho produtivo é o principio pedagógico da escola deslocaram o eixo de análise do instrumento técnico para o sujeito humano. Nesse contexto histórico, insere-se a contribuição de Antonio Gramsci que, na busca do principio pedagógico do sistema escolar, declaradamente critica as análises centradas no instrumento técnico de produção (tecnologia), preferindo focar o sujeito escolar, o aluno, enquanto integrante da luta hegemônica entre as classes, no processo de industrialização da sociedade. Em suas análises, a evolução psicológica do jovem toma destaque. A pessoa humana se integra nos processos do trabalho produtivo e de luta pela hegemonia política depois de descobrir sua individualidade que desde seu nascimento havia incorporado espontaneamente, de forma caótica, mesmo que original, um complexo enorme de relações sociais, culturais, físicas e econômicas. Este indivíduo, ao descobrir e desenvolver sua tendência profunda e seu talento, com constância e disciplina, torna-se uma personalidade consciente. Essa descoberta e desenvolvimento se dão lentamente, ao longo da carreira escolar; com carinho, com brincadeiras, com disciplina, integrando o "reino da necessidade com o reino da liberdade", isto é, integrando um núcleo de disciplinas e exercícios obrigatórios com atividades e 9- Sobre a história da instrução socialista, Manacorda escreveu três volumes com o título: Il Marxismo e l´educazione I, II e III , Ed. Armando Armando, Roma,1960. O primeiro volume se refere aos autores clássicos do marxismo (Marx, Engels, Lênin), o segundo trata da evolução da escola soviética e o terceiro da escola nos países socialistas. Dos três volumes, existe, em língua portuguesa, uma síntese do primeiro, Marx e a pedagogia moderna, Alínea Editora, Campinas, 2007. 13 opções do próprio gosto. O amadurecimento da individualidade para personalidade não pode ocorrer forçadamente, por precoce necessidade de sobrevivência material, mas pela educação disciplinada e amorosa, no tempo adequado. O trabalho produtivo como princípio educativo geral embasa indistintamente a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio. Com efeito, aprender as quatro operações da matemática no ensino fundamental não é menos importante, com relação ao trabalho produtivo, do que aprender as operações exponenciais ou de matrizes no ensino médio. Assim como as "brincadeiras" das crianças estruturaram a personalidade do trabalhador, a escolarização disciplinada do jovem a amadurecem. Em suma, o currículo e os conteúdos, de per si, não especificam didaticamente o princípio pedagógico desta ou daquela fase escolar, pois quer na educação infantil, quer na fundamental e na média narram-se, por exemplo, a mesma história de Tróia ou de Roma ou a "descoberta" do Brasil, acrescentando apenas alguns aspectos informativos a cada etapa, sem, entretanto, que a relação filosófico-formativa fundamental se modifique. Em outras palavras, a mesma concepção de valores e de ordem social é transmitida por meio de poucos ou muitos dados informativos. Daí a pergunta: se nem a articulação com o mundo da produção, nem os conteúdos caracterizam didaticamente um determinado grau escolar, qual é o princípio pedagógico específico que diferencia o ensino médio do ensino infantil e fundamental? Existe um princípio pedagógico específico do ensino médio? Também Gramsci se põe esta questão: O problema fundamental se coloca com respeito à fase da carreira escolar representada pelo ensino médio, que em nada se diferencia, atualmente, como tipo de ensino, das fases escolares anteriores (...). (Gramsci, 1975, p. 1536). Para responder a essa pergunta, Gramsci recorre à psicologia social e, no intuito de identificar o princípio pedagógico específico do ensino médio, atribui grande importância à puberdade e à adolescência. Todos passam pela puberdade, embora nem a todos seja dado o direito de vivenciar a adolescência, enquanto período de seis a sete anos de indefinição, em que o jovem, por meio de experiências orientadas, se define moral, intelectual e socialmente. A conclusão de Gramsci é que o jovem adolescente se caracteriza pelo processo de busca de maior autonomia, livrando-se da dependência mecânica e absoluta dos adultos. È a fase mais delicada de desenvolvimento da responsabilidade individual, da criatividade na elaboração de sua maneira de aprender, da tentativa para resolver as dúvidas e os problemas sozinho, mesmo que freqüentemente não consiga: Do ensino quase puramente dogmático (infantil e fundamental), quando a memória desempenha grande papel, passasse à fase criativa ou de trabalho autônomo e independente; da escola com 14 disciplina do estudo imposta e controlada autoritariamente passasse à fase do estudo ou de trabalho profissional onde a autodisciplina intelectual e a autonomia moral é teoricamente sem limites. E isto ocorre logo em seguida à crise da puberdade quando o ímpeto das paixões instintivas e elementares continua a lutar contra os freios do caráter e da consciência moral em formação. (Gramsci , 1975, p. 1536). Em outras palavras, o principio pedagógico especifico do ensino médio não deve ser buscado na perspectiva profissional, nem nos saberes curriculares e sim no método, embora este não se efetive sem à aplicação daqueles. É comum entre políticos e educadores destacar a importância da articulação entre o ensino médio e o fundamental. Mas, na prática, no Brasil, o ensino médio articula-se com o superior10. Entretanto, o fracasso do ensino médio é obviamente um reflexo do fracasso do fundamental, elevado ao quadrado. Vejamos: há uma aprendizagem própria da escolarização infantil e fundamental. Quando esta não ocorre, o prejuízo se reflete no ensino médio em medida exorbitante. Por que? Quando um aluno de 2º ou 3º ano do ensino fundamental não aprendeu, por exemplo, a tabuada, o prejuízo será repassado às 4ª e 5ª séries, que, de alguma forma, ainda poderão repará-lo. Porém, se a lacuna permanecer até o ensino médio, a dificuldade para saneá-la será enormemente maior, "elevado ao quadrado" como dizíamos, porque o adolescente não aceita o método de aprendizagem do fundamental. Gramsci expressa essa idéia com bastante clareza numa carta ao irmão Carlos, onde explica porque na educação de Mea, filha do irmão, os pais e mestres deveriam estar mais atentos e serem, amorosamente, mais rigorosos: Freqüentemente se comete na educação das crianças este erro: não se distingue que na vida das crianças existem duas fases muito distintas, antes e depois da puberdade. Antes da puberdade, a personalidade do menino ainda não se formou e é mais fácil guiar a sua vida e fazê-lo adquirir determinados hábitos de ordem, de disciplina, de trabalho; depois da puberdade, a personalidade se forma de modo impetuoso e toda intervenção exterior torna-se odiosa, tirânica, insuportável. Ora, ocorre justamente que os pais sentem a responsabilidade pelos filhos logo neste segundo período, quando é tarde: entra então naturalmente em cena a palmatória e a violência, que além do mais dão muito poucos frutos. Por que, ao contrário, não se ocupar da criança no primeiro período? Parece pouco, mas o hábito de estar sentado diante da carteira 5, 8 horas por dia é uma coisa importante, que se pode fazer com bons modos até os 14 anos, mas em seguida não se pode mais. (Gramsci, 1975, pg.364). 10 Relacionar o ensino médio com o superior é próprio da cultura educacional jesuítica, do ratio studiorum, cujo ponto de partida e de chegada do sistema escolar é a universidade. 15 Finalmente, no Caderno 12, Os intelectuais e o princípio educativo, Gramsci assim sintetiza, coerentemente, o princípio pedagógico próprio do ensino médio: A ultima fase da escola unitária (ensino médio) deve ser concebida e organizada como fase decisiva, na qual se tende a criar os valores fundamentais do 'humanismo', a autodisciplina intelectual e a autonomia moral necessárias a uma posterior especialização, seja ela de caráter científico (estudos universitários), seja de caráter imediatamente prático-produtivo (industria, burocracia, comércio etc). O estudo e o aprendizado dos métodos criativos na ciência e na vida devem começar nesta última fase da escola. (Gramsci, 2000, 39). A puberdade é uma revolução orgânica natural e universal que fundamenta o direito à adolescência, isto é, a um período de 6/7 anos de busca para os jovens identificarem e ensaiarem seus potenciais intelectuais, artísticos, científicos. Mas, quando aos jovens foi negada a aprendizagem dos hábitos e habilidades intelectuais próprias do ensino fundamental, no ensino médio torna-se extremamente difícil a recuperação e o caminho para a autonomia e criatividade estará gravemente prejudicado. Gramsci não expõe esta tese de forma desconectada de sua concepção de vida e de processo histórico civilizatório. Ao contrário, esta tese é o desdobramento filosófico educacional do imanentismo da filosofia da práxis. Ou seja: a idéia do transito da heteronomia escolar (ensino fundamental) para a autonomia intelectual e moral (ensino médio) é uma aplicação pedagógica do que ele afirmara no caderno 11, sobre a passagem do reino da necessidade ao da liberdade11. Para a filosofia da práxis (que, longe de ser uma expressão criptológica, sinônimo de marxismo, como muitos disseram, é uma original posição filosófica de Gramsci que, paradoxalmente, o torna mais marxista do que o próprio Marx) liberdade e necessidade, bem como autonomia e heteronomia ou ainda sociedade civil e política, se compenetram na concretude histórica. Não existe, portanto, a não ser ideológica e metafisicamente, um momento histórico de pura liberdade, de autonomia absoluta e de sociedade civil exclusiva. Existe, concretamente, a luta cotidiana do ser humano para ampliar o espaço da liberdade e da autonomia, reduzindo e subsumindo as dimensões da necessidade e da dependência. À luz desta visão filosófica, compreende-se certo privilegiamento e a preocupação de Gramsci para a fase escolar do ensino médio, por ela representar o momento catártico mais delicado e importante na vida da pessoa quando desabrocha o valor da autonomia que é a liberdade de se posicionar com base nas normas e regras aprendidas na educação infantil e fundamental. 11 "Eis porque a proposição [de Marx] da passagem do reino da necessidade ao da liberdade deve ser analisada e elaborada com muita atenção e acuidade." (Gramsci, 1975, p.1489). 16 Dos anos 1937 até os dias de hoje, passaram-se muitas décadas e o marxismo investigativo continuou buscando a concepção e as práticas pedagógicas mais condizentes com o princípio marxiano fundamental da articulação entre o trabalho produtivo e o trabalho escolar. Para isso, a contribuição das ciências sociais foi, e ainda é, essencial, particularmente da pedagogia, da psicologia e da sociologia. O princípio da unitariedade da escola básica permanece indiscutível, todavia, deve-se reconhecer que o mundo contemporâneo mudou e que a tecnologia avançou enormemente. Portanto, a escola precisa atualizar-se. Este direcionamento pedagógico geral, precisa ser aplicado à fase do ensino médio, uma vez que para estes alunos, por estarem na iminência de se tornarem mão-de-obra barata na produção de mercadorias, a ameaça da profissionalização precoce torna-se aguda. Dentro dessa problemática, um nome importante da pedagogia marxista contemporânea é, sem dúvida, Mário Alighiero Manacorda. Diz ele: Partindo do fato inquestionável que o mundo atual mudou e se enriqueceu extremamente, e que a escola deve atualizar-se nas coisas deste mundo, não se pode levar em consideração uma divisão, como se fez tradicionalmente e ainda hoje se faz, entre uma escola profissional para preparar os quadros do trabalho, industrial, mas também tecnológico, informático etc, e uma escola "desinteressada" para os dirigentes. (...) Marx fala de instrução intelectual, física e tecnológica para todos12. (Manacorda, DVD, livreto, 2007, p.13). Manacorda refere-se à clássica fórmula marxiana de "instrução intelectual, física e tecnológica para todos", qualificando-a como "germe do futuro", entendendo dizer que, mesmo tendo vivido em um contexto histórico hoje em grande parte superado, sua fórmula permanece válida também nos dias de hoje. Do ponto de vista curricular, continua Manacorda, a questão dos conteúdos, difíceis a serem precisados, permanece em aberto. Obviamente, não existe educação sem conteúdos, entretanto, a escolha deste ou daquele conteúdo é tarefa nunca encerrada: Quanto ao conteúdo da instrução, é difícil estabelecê-lo... Vocês no Brasil, o que devem estudar? Homero e Píndaro ou os Guaranis? Ou então, o mundo de hoje, a China emergente? Qual é a cultura a ser estudada? Os sete reis de Roma ou... É difícil estabelecer os programas, ninguém de nós tem as soluções no bolso. (Manacorda, DVD, ibidem, 2007, p.13-14). 12 Na entrevista, a expressão "para todos" é muito enfatizada pelo tom da voz. 17 Do ponto de vista político-administrativo, Manacorda afirma, sempre embasando-se em Marx e no conceito gramsciano dilatado de Estado, que a instituição escolar deve evitar a dependência dos governos e das igrejas: Marx acrescentava outra coisa – e isto é a base da assim chamada economia política – em perfeita coincidência com a idealidade da grande tradição liberal, isto é, que é preciso distinguir o governo do Estado: escola estatal não significa escola submetida ao governo. Precisa excluir governos e igrejas de qualquer interferência na escola, não ensinando matérias que permitam interpretações de partido e de classe. Assim, existe (em Marx) este dúplice ensinamento: uma escola para todos que seja cultural, física e tecnológica – tecnológica teórica e prática, não a escola pluriprofissional predileta pelos burgueses – e a liberdade de qualquer interferência do poder político. (Manacorda, DVD 2007, pg. 13) A tese da confluência histórica entre a economia política marxiana e a idealidade da grande tradição liberal do século XIX pode surpreender alguns marxistas de orientação positivista, mas não assusta Manacorda. Talvez se trate do maior legado teórico deste comunista italiano, para o qual Marx não é um teórico do poder e sim da liberdade. A desvinculação entre liberdade e igualdade foi infelizmente a tática bem sucedida dos antimarxistas. Com efeito, ao difundirem a falsa idéia de que o marxismo não prioriza a liberdade, solapa-se o objetivo final da revolução socialista. Ao contrário: a liberdade para todos é o valor máximo no pensamento de Marx. A igualdade social é a condição para a efetivação da liberdade. Ora, pergunta-se Manacorda, é amar de menos a liberdade quando a se quer plena e para todos? (Manacorda, 2007b, mimeo). Quanto ao principio pedagógico específico do ensino médio, retoma ele o tema da indefinição natural dos adolescentes que estão em busca de autonomia, identidade pessoal e inserção social. Para a pedagogia marxista, os adolescentes não são individualidades metafísicas ou naturalmente determinadas, fechadas em si mesmas e engessadas em sua classe social, à guisa de castas. Ajudá-los a descobrir, aos poucos, por meio de repetidos ensaios, sua identidade profunda, é tarefa da formação escolar média, oferecendo uma formação onilateral. Mas, cuidado: formação onilateral ou integral não significa saber fazer um pouco de tudo ou conhecer os fundamentos científicos de todos ramos da tecnologia e sim saber fazer com excelência algo em sintonia com o próprio talento e, ao mesmo tempo, poder usufruir de todos os bens produzidos pela civilização contemporânea. Está assim lançada uma proposta original do ensino médio a tempo pleno: diante das experiências do mundo moderno nós precisamos mirar o mais possível na preparação do aluno não somente para si mesmo, mas também para entrar na sociedade, se não com a capacidade de ser um produtor de cultura em todos os campos, 18 pelo menos com a capacidade de desfrutar, isto é, de saber gozar de todas as contribuições da civilização humana, das artes, das técnicas, da literatura. A cultura deve ser direcionada totalmente para todos, facilitando as disposições intelectuais e ao mesmo tempo forçando todo mundo, com firme doçura, a aprender a participar de todos os prazeres humanos. (Manacorda, DVD 2007, p. 21) Manacorda reflete sobre currículo e escola de tempo integral para o ensino médio, à luz da teoria gramsciana da integração do reino da necessidade com o reino da liberdade. O currículo proposto é estruturado por um núcleo de ensinamentos rigorosos, necessários para o jovem se tornar um homem moderno, e por um conjunto de atividades livremente escolhidas. A escola deve ser o espaço dos adolescentes onde podem vivenciar momentos de formação obrigatória e outros de formação livre: Para isto se precisa de uma escola que ministre o mais possível ensinamento rigorosos – difíceis a serem determinados – do que é necessário ao homem para ser moderno; mas que possibilite ao mesmo tempo um espaço em que cada um se forme livremente naquilo que é de seu gosto: arte, música, matemática, aeromodelismo, radiotelegrafia, astronomia, esporte, ou até mesmo técnicas artesanais. É preciso que a escola, ao invés de ser um lugar aberto cinco horas diárias, durante nove meses por ano e pelo resto do tempo permanecer fechada e vazia, seja o espaço dos adolescentes , onde estes recebam da sociedade adulta tudo o que é possível receber e ao mesmo tempo sejam estimulados em suas qualidades pessoais e capacitados de gozar todos os prazeres humanos. (Manacorda, DVD 2007, pg. 21) Aparentemente, todas as reformas currriculares pretendem integrar núcleos de saberes obrigatórios e optativos, o período do horário escolar tradicional com o outro período. Entretanto, a idéia mais importante da fórmula pedagógica marxiana integradora do reino da necessidade com o da liberdade indica que deve haver a redução progressiva do espaço da obrigatoriedade em função da liberdade. Infelizmente, quando se propõe, por exemplo, que 20% do currículo seja definido pelos alunos e/ou pelas unidades escolares, sabe-se que algumas poucas e pobres atividades didáticas acabam se tornando "optatórias". Ou ainda: quando o tempo de escolarização se estende para além das 4 ou 5 horas obrigatórias tradicionais, sabe-se que o tempo acrescido não é um tempo de liberdade e sim a mera extensão do tempo da escolarização obrigatória. Assim: o espaço da heteronomia invade e reduz o da autonomia e não o inverso. Reconheço que a integração das disciplinas do núcleo curricular obrigatório com as opcionais (estágios ou atividades) se constitui no maior desafio didático da atualidade, uma vez que a escola de tempo integral deve ampliar o tempo de formação escolar sem ampliar o tempo da obrigatoriedade escolar. 19 CONCLUSÃO Para nós, a grande questão é a seguinte: como priorizar na escola média brasileira a dimensão da formação para a autonomia, quando na sociedade a liberdade para a maioria é tão exígua? Como proteger o direito dos adolescentes a um tempo justo de "indefinição" e de busca, quando um pequeno número de jovens da classe dirigente usufrui de inúmeros anos de formação enquanto a imensa maioria deles necessita para sobreviver de uma definição profissional precoce? A resposta a essa problemática passa pela luta política para tornar a sociedade mais justa e igualitária e ao mesmo tempo reforçar concepções e práticas pedagógicas que fortaleçam o ensino médio unitário reduzindo cada vez mais o leque dos cursos profissionalizantes. No nosso sistema escolar, o próprio termo "médio" desvia o entendimento correto da natureza desta fase escolar. "Médio" significa uma "grandeza eqüidistante de dois extremos" (Huaiss, 2001, p. 1878), isto é, do ensino fundamental e do superior. Trata-se de um termo, portanto, que em si mesmo não diz nada, pois é definido pelos extremos. Quando, na verdade, esta importante etapa do ensino é a fase da plenitude e da maturidade da pessoa; é quando o jovem aprende a produzir e dirigir a si mesmo, como pressuposto básico para produzir e dirigir a sociedade. Um texto oficial do Ministério da Educação "Ensino Médio Inovador" (Brasília, 2009, p. 1) começa com uma afirmação equivocada: O Ensino Médio, no Brasil, tem se constituído, ao longo da história da Educação Brasileira, como o nível de maior complexidade na estruturação de políticas públicas de enfrentamento aos desafios estabelecidos pela sociedade moderna, em decorrência de sua própria natureza enquanto etapa intermediaria entre o Ensino Fundamental e a Educação Superior e a particularidade de atender a adolescentes, jovens e adultos em diferentes expectativas frente à escolarização. (Brasília, 2009, p. 3 doc) A expressão "em decorrência de sua própria natureza" oculta que o Ensino Médio no Brasil (antigo ensino secundário) para os jovens da classe dirigente foi instituído, com bastante clareza didática, consoante a filosofia da educação jesuítica, como preparação para o Ensino Superior. Enquanto para os jovens destinados ao trabalho, nos primeiros 4 séculos da história brasileira foi negado qualquer ensino e, no século XX, lhes foi oferecida uma escola profissionalizante assistencialista. Somente na atualidade, ensaia-se um ensino tecnologicamente 20 um pouco mais qualificado. Jamais, porém, se pensou em lhes oferecer um ensino para formar dirigentes ou controladores dos dirigentes. O mesmo texto oficial, desta vez com razão, embasado em DICK, afirma que a idade, a adolescência e a puberdade não são apenas fenômenos biológicos mas também construções sociais. Entretanto, o texto limita-se a essa afirmação genérica. Não evidencia as diferentes formas injustas e cruéis dessa construção social brasileira. Em seguida, o mesmo texto enfatiza a necessidade de articular trabalho, ciência, cultura. Diz que o ensino básico ( fundamental e médio) e superior devem ser pensados à luz dos valores da justiça, igualdade e solidariedade. O texto confessa o fracasso do Brasil na superação da dualidade histórica do ensino médio, bem como na garantia de sua universalização, qualidade e permanência dos jovens na escola. Afirma, finalmente, a necessidade de se garantir legalmente a obrigatoriedade da escolarização média até os dezessete anos. A breve referência elogiativa do texto às políticas do Ensino Médio Integrado à educação profissional técnica oculta a problemática desta nova experiência. Com efeito, "integrar", como dizíamos, é um termo sedutor que pode se prestar para justificar ideologicamente uma política de conciliação conservadora. Entretanto, a falha mais grave do texto oficial aninha-se na informação de que "prevalece a lacuna de programas consistentes no âmbito curricular para o Ensino Médio não profissionalizante, 8.366.100 matrículas (senso 2008), que corresponde a mais de 90% das matrículas do ensino médio regular." (Brasília, 2009, pg. 13). Não se trata de uma simples "lacuna". È um dado estatístico que revela o verdadeiro desastre escolar nacional do ensino médio. Não é um problema que possa ser resolvido com "uma nova organização curricular". Reflete uma grave contradição social, estrutural e a carência de políticas públicas adequadas para o ensino médio não profissionalizante. O projeto político-pedagógico para o ensino médio precisa centrar-se justamente na análise e fortalecimento desta faixa imensamente majoritária do Ensino Médio não Profissionalizante público, popular, para todos. Precisa-se reduzir, paralela e progressivamente, as inúmeras ramificações profissionalizantes socialmente paliativas, atraindo e absorvendo os adolescentes nos estudos do Ensino Médio regular público. Se é correto diferenciar algumas modalidades curriculares do ensino médio, poderão existir escolas de ensino médio regular com ênfases curriculares diferenciadas (cientificas, clássicas, artísticas, de comunicação, para magistério, etc.) que preservem, todavia, a unitariedade entre elas pelo rigor científico, pelos conteúdos essenciais, pela qualidade, duração, espaço físico, permitindo inclusive iguais condições de acesso a qualquer curso superior e com ampla possibilidade dos alunos se transferirem, quando o desejarem, de uma modalidade de escola média para outra. A unitariedade curricular dessas modalidades escolares será garantida 21 ainda por uma disciplina comum sobre a história do trabalho, eixo central formativo teoricamente vigoroso. Obviamente, diante desta proposta, não raramente levanta-se a objeção: O que fazer com os milhares de jovens que estão entrando no mercado de trabalho todo ano? Não seria o ensino técnico uma forma de ampliar a formação dos jovens que já estão entrando no mercado de trabalho? Seria injusto negar a estes jovens um processo de qualificação que valorize a sua inserção no 'mercado' de trabalho. Ou seja, o ensino técnico é uma necessidade atual decorrente da dualidade estrutural.Sendo uma necessidade, devemos também nos ocupar de qualificá-los. (Prof. Dr. Ronaldo Lima Araújo – E-Mail ao Autor deste, em 14 de set. 2009). A objeção é precisa. Entretanto, reafirmo que a necessidade decorrente da dualidade estrutural do sistema não justifica o abandono, por parte do Estado do Ensino Médio Público não Profissionalizante. O triste e ininterrupto declínio de sua qualidade começou nos governos populistas (e continua até hoje) mascarado pela crítica ao elitismo do antigo Ensino Secundário. Com efeito, o antigo ensino secundário foi elitista pela clientela, não pela orientação pedagógica e pela qualidade do ensino. Ou seja, o objetivo de formar dirigentes não é errado em si. O antigo Ensino Secundário Público precisava ser didaticamente atualizado e democratizado, não rebaixado. Isto é, seu objetivo de formar dirigentes modernos para uma sociedade urbana pós-agrária permanece válido desde que suas portas estejam objetivamente abertas a todos os cidadãos. Para não recuperar qualitativamente o sistema do Ensino Médio regular, o Estado se trincheira ideológica e politicamente em projetos assistenciais de formação técnica e profissional. Uma política centrada na recuperação da qualidade do Ensino Médio não profissionalizante não significa abandonar os milhares de jovens forçados a entrarem precocemente no mercado de trabalho todo ano. Ao contrário. È sempre oportuno lembrar, inclusive, que a iniciativa privada é muito sensível à demanda do mercado. Ao Estado compete supervisionar e controlar essas iniciativas, pois sua principal tarefa educacional é oferecer um Ensino Médio Popular não Profissionalizante, de qualidade e universal. Afinal, se a Sociedade Política não cuidar deste Ensino, a Sociedade Civil jamais o fará. Tenho uma filha de 17 anos, Paola. Irritava-me sua indefinição profissional. De vezes em quando mudava: do curso de química para o de biologia, deste para o de sociologia ou de filosofia. Um dia, percebi o óbvio. Embora, aparentasse se acomodar na indefinição, não era isso que ela desejava. Ao contrário, a buscava com bastante ansiedade, pois o seu entorno social a pressionava para uma 22 precoce definição profissional, ao invés de discutir com ela temas de cultura geral relevantes. Ou seja, a indefinição da Paola não era um estado de inércia, de mórbida espera passiva. Era um buscar racional, profundo. Consultava, às escondidas, minha biblioteca, levava algum livro para o quarto. Visitava universidades, inclusive do exterior. Se relacionava e conversava sobre o assunto com professores, com amigos. Pedia algum dinheiro para assistir palestras, visitar exposições, museus e também para prestar seleção como "treineira". Convivendo com Paola comecei a defender o direito à indefinição profissional, ativa e dinâmica, pelo menos até os 18/20 anos, para todos os jovens adolescentes. Para todos? Como defender o mesmo direito para Michael Leão, chamado de Maicom, filho de Neuza, minha empregada doméstica? Maicom tem apenas 13 anos e cursa a 4º série. Sua mãe é arrimo de família. Diz não ter pai. Quaisquer 5 reais que leve para casa faz diferença no orçamento familiar. Diz que deseja ser como eu, trabalhar em universidade, escrever, viajar. Ou, então, quer ser mecânico ou tapeceiro. A necessidade matará seu direito à indefinição profissional. Um processo de indefinição profissional de 4/5 anos é natural; custa, mas é importante, sobretudo quando se visa a formar um dirigente da sociedade, sto é, um cidadão pleno. É um processo que exige capital cultural, social e econômico. Maicom precisa conviver com livros, computador, viajar, se relacionar de forma rica e variada, ler e escrever, sem que falte nada de essencial em sua casa. Maicom será encaminhado para uma prática produtiva imediata e/ou para um curso profissionalizante rápido que o ajude a desempenhar algum serviço remunerado. Qual a tendência profunda ou o talento de Maicom? Vários. Mas não haverá tempo e condições materiais para ele identificá-lo e cultivá-lo. Na melhor das hipóteses, será uma matrícula entre as mais de 90% do ensino médio regular público. Quem poderá abrir-lhe o horizonte da possibilidade concreta e pessoal de ser um dia um futuro dirigente ? Como lhe mostrar que no futuro deverá exercer alguma atividade prática produtiva, mas também se tornar um cidadão pleno, isto é, um dirigente? Como fazer com que acredite sinceramente nisto? Quem o educará nesse sentido, formando-o na profissão para a qual demonstra mais talento e na responsabilidade política? A resposta é que compete ao Estado educar nessa perspectiva todos os milhões de Maicom da Nação, por meio de um estudo de elevada qualidade, de amplo espectro cultural, não assistencialista. Para conseguir esse objetivo, o Estado precisa priorizar em suas políticas o ensino médio regular, reduzindo aos poucos as inúmeras ramificações de formação profissionalizante. Por isso, é obrigação do Estado possibilitar à família de Maicom sobreviver sem a contribuição imediata deste adolescente, oferecer um ensino médio rico de recursos didáticos, onde se leiam, entre outros, os 23 Épicos de Homero, o Discurso de Cícero contra Catilina, o Dialogo Sobre os Dois Maiores Sistemas de Galileu, Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos. Onde se estudem e discutam os velhos e novos instrumentos tecnológicos; onde se organizem viagens de estudo para vários lugares do Brasil e também (porque não?) para o exterior; onde os alunos seja orientados e acompanhados individualmente nas atividades de seu gosto, dentro ou fora da escola, durante o período oposto ao horário da escolarização obrigatória. Somente quando Maicom conseguir se projetar espiritualmente como um futuro dirigente desta sociedade, tomarão sentido para ele os debates de cultura geral acima exemplificados. Caso contrário, seu interesse encolherá em aspectos prático-profissionais. Esse Ensino Médio não é muito caro; muito caros (queridos) sãos os nossos adolescentes, sobretudo os que precisam correr atrás do enorme prejuízo causado pela falta de capital cultural, social e econômico. À Paola e a Maicom dedico esse artigo, para que lutem pela realização do sonho de seu pai e do patrão de sua mãe. REFERÊNCIAS BRASÍLIA, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Ensino Médio Inovador, abril, 2009. BUFFA, Ester, A Educação Negada: Introdução ao estudo da educação brasileira contemporânea. 2ª edição. São Paulo: Cortez, 1997. ______________e NOSELLA, P., A Escola Profissional de São Carlos, São Carlos, EdUFSCar, 1998. CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO - SÃO PAULO . Deliberação CEE nº79/2008. CUNHA, L.A.C.R., Política educacional no Brasil: A Profissionalização no Ensino Médio. Rio de Janeiro: Eldorado,1977. DAGMAR, M. L. Z. Breves anotações sobre a história do Ensino Médio no Brasil e a Reforma dos anos 1990. 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