Epilepsia: estigma e preconceitos Rachel Marin de Carvalho 1 Faculdade de Medicina Centro de Ciências da Vida Resumo: Epilepsia é uma condição neurológica crônica caracterizada por crises epilépticas recorrentes, com impacto no cotidiano da vida do indivíduo. O objetivo desse estudo foi avaliar os aspectos clínicos que influenciam a qualidade de vida (QOL) em pacientes adultos com epilepsia. Foram avaliados 92 pacientes consecutivos, 49 do gênero feminino, idade media de 43,2 anos, com diagnostico de epilepsia acompanhados no ambulatório de Neurologia Clínica do Hospital e Maternidade Celso Pierro (PUC-Campinas). Foram realizados: anamnese e exame neurológico e aplicado questionário sobre a qualidade de vida (Quality of Life in Epilepsy Inventory QOLIE-31) e a escala de avaliação para depressão de Hamilton. Foi feita a correlação entre os aspectos clínicos e sócio-demográficos com os resultados obtidos no QOLIE-31. Resultados: Crises focais foram referidas por 73 casos; 44 pacientes apresentaram crises focais com generalização e somente crises generalizadas em 19 casos. Trinta (32,6%) pacientes negaram ter apresentado crises epilépticas nos últimos 12 meses. A idade média na 1ª crise foi de 21,6 anos. Tempo médio de epilepsia: 20 anos. Epilepsia de lobo temporal em 60 casos. QOL total (escore médio): 60,51. Domínios: Preocupação com as crises: 60,51; QV total: 63,91; Bem-estar emocional: 67,04; Energia/fadiga: 60,60; Funcionamento cognitivo: 64,72; Efeitos da medicação: 75,59; Funcionamento social: 75,61. Não foi observada correlação significativa entre os valores do QOL (6 domínios e escore total) e aspectos clínicos estudados (gênero, estado civil, situação laboral, idade de inicio da epilepsia, tempo de epilepsia, tipo e freqüência de crises, síndrome epiléptica) (ANOVA, ou Teste T; p> 0,05). Houve maior percepção de comprometimento de QV naqueles indivíduos com depressão quando comparados com indivíduos sem depressão (Duncan; p= 0,05). Foi observado que os valores do QOL total foram significativamente maiores nos indivíduos sem depressão, quando comparados com os com depressão (ANOVA; p= 0,000). Discussão e Conclusões: Os nossos dados sugerem comprometimento em domínios (QV total e 2 Glória Maria de A.S. Tedrus Faculdade de Medicina Centro de Ciências da Vida bem-estar emocional) da qualidade de vida em pacientes com epilepsia, quando comparado com os dados da literatura. Em nosso estudo não observamos correlação significativa entre aspectos clínicos da epilepsia e escores da QV. Foi observado impacto, de modo significativo, nos escores de qualidade de vida nos pacientes com depressão. Palavras-chave: Crises epilépticas, qualidade de vida, preconceito, estigma, depressão. Área do Conhecimento: 4.01.00.00.6 – CNPq. 1. INTRODUÇÃO Epilepsia é uma condição neurológica crônica caracterizada por crises epilépticas recorrentes, causadas pela atividade neuronal excessiva no cérebro, usualmente autolimitada. As epilepsias têm diversas etiologias, apresentam-se com diferentes tipos de crises e de evolução. Cerca de 30% dos pacientes não apresenta controle considerado satisfatório de suas crises e uma parcela elevada desses pacientes não faz tratamento adequado ou não tem acesso a drogas antiepilépticas. Indivíduos com epilepsia, particularmente aqueles com resposta insatisfatória ao tratamento associamse, mais freqüentemente, a uma série de comorbidades tais como: perda de memória, baixa escolaridade, depressão, desempenho psicossocial prejudicado e risco aumentado de óbito (morte súbita e morte acidental) e de suicídio. Nos pacientes com epilepsias o tipo, a severidade e freqüência das crises, o efeito colateral das DAE, e repercussões de possíveis lesões cerebrais vem sendo reconhecido como importantes para o melhor entendimento dos problemas de pessoas com epilepsias e consequentemente para a melhoria da qualidade de vida. Alguns estudos têm observado nos pacientes com epilepsias que os fatores emocionais, sociais tais como o trabalho, a escola, o lazer e os relacionamentos sociais, sua satisfação com a vida e sua percepção de bem-estar no contexto cultural onde vivem parecem ser fundamentais e mais importantes fatores para a sua qualidade de vida do que a severidade da epilepsia. 1- Aluno da Faculdade de Medicina, Bolsista FAPIC/Reitoria 2- Área de atuação: Neurologia e neurofisiologia clínica. Professora Doutora (PUC-Campinas). Depressão e ansiedade têm sido demonstradas como um significante impacto nos índices de QV em epilepsia, por vezes de modo mais importante do que a freqüência das crises. Em pacientes com epilepsias, distúrbios psiquiátricos, em geral, e particularmente a depressão são as mais freqüentes comorbidades. • Gênero feminino: 49 (53,2%) • Idade: 18 e 83 anos (idade média: 43,2). • 52%: solteiro, viúvo, separados ou divorciados. • Predomínio de indivíduos com baixa escolaridade formal. Nos pacientes com epilepsias são considerados como de relevância o tipo, a gravidade e a freqüência das crises, os efeitos colaterais das DAE, repercussões de possíveis lesões cerebrais. • Situação laboral: • 29% do pacientes empregados; • Afastamento e/ou aposentadoria: 38% dos pacientes, dona de casa: 8% dos pacientes. • 24%: desempregados. No entanto, em perspectiva mais ampla, a QV, vem sendo foi reconhecida como um importante conceito para o melhor entendimento dos problemas de pessoas com epilepsias, mesmo quando as crises estão controladas. 4.2.Aspectos clínicos 2. OBJETIVO • Crises focais: 75 casos Estudar em pacientes adultos com epilepsia a percepção da qualidade vida e os fatores biológicos e psicossociais que a influenciam • Tempo médio de epilepsia: 20 anos. • Ocorrência de crises epilépticas nos últimos 12 meses: 58%, • A maioria dos pacientes referiu uso regular da medicação • Co-morbidades: 44% dos pacientes. • Distribuição dos 50 casos de acordo com a escala de avaliação para depressão de Hamilton. Tabela 2. 3. CASUÍSTICA E MÉTODOS 3.1. Participantes Foram avaliados 92 pacientes consecutivos, 49 do gênero feminino, idade media de 43,2 anos (idade entre 18 e 83 anos), com diagnostico de epilepsia acompanhados no ambulatório de Neurologia Clínica do Hospital e Maternidade Celso Pierro (PUC-Campinas). 4.3 QOLIE-31 A participação no estudo foi feita mediante assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da PUC-Campinas. Tabela 1. Escores do questionário de QV. 3.2. Procedimentos e Material Preocupação com as crises 60,51 (28,71) Foram realizados: QV total 63,91 (20,25) Anamnese Bem-estar emocional 67,04 (24,05) Exame clínico-neurológico Energia/fadiga 60,60 (22,39) Questionário sobre a qualidade de vida (Quality of Life in Epilepsy Inventory QOLIE-31) Funcionamento cognitivo 64,72 (26,47) Efeitos da medicação 75,59 (26,29) Escala de avaliação para depressão de Hamilton. Funcionamento social 75,61 (24,28) Foi feita a correlação entre os aspectos clínicos e sócio-demográficos com os resultados obtidos no QOLIE-31 (6 domínios e escore total). Foram utilizadas análises estatísticas com testes paramétricos. Escore total 66,74 (19,00) 4.RESULTADOS 4.1. Aspectos sócio-demográficos • Foram incluídos 92 pacientes adultos. Domínios Valor médio (dp) 4.4.Correlação entre aspectos clínicos e QOL Não foi observada correlação significativa entre os valores do QOL (domínios e escore total) e aspectos clínicos estudados: gênero, escolaridade estado civil, situação laboral, idade de inicio da epilepsia, tempo de epilepsia, tipo de crise, freqüência de crises e síndrome epiléptica (Teste T ou ANOVA; p> 0,05). Houve maior comprometimento de QV nos indivíduos com depressão quando comparados com indivíduos sem depressão (Duncan; p= 0,05). Foi observado que os valores do QOL total foram significativamente maiores nos indivíduos sem depressão, quando comparados com os com depressão leve, moderada e grave. (ANOVA; p= 0,000). Tabela 2. Distribuição dos casos de acordo com a escala de depressão de Hamilton e o valor QOL. Depressão Nº. Média não 21* 76,53** leve 18* 66,13** moderada 6* 60,03** grave 5* 38,22** Total 50 66,98 5. DISCUSSÃO No Brasil, vem crescendo o interesse pelo tema da QV na área da saúde. O achado de associação entre QV e gravidade da doença tem sido referido em vários estudos de pacientes com doenças crônicas. Em parte esse achado é explicado por que os inventários de QV refletem os domínios sociais e psicológicos, e também porque são medidas subjetivas do pacientes quanto a sua percepção da QV (Rose et al., 2007). É sabido que a epilepsia tem grande impacto na QV. Os pacientes com epilepsia apresentam mais frequentemente do que na população não epiléptica, aspectos comprometidos da integração social na família, trabalho, escola e lazer. Em pacientes com epilepsia, distúrbios psiquiátricos em geral, e depressão em particular, são as mais freqüentes co-morbidades dependendo do tipo de população estudada e do método de estudo utilizado. É importante que a epilepsia seja potencial tratável, e remissão das crises pode ser obtida em grande proporção de casos, e controle completo das crises pode ser obtido em aproximadamente 60-70% dos casos. Drogas antiepilépticas melhoram o prognostico social e medico, possibilitando uma boa qualidade da vida desses indivíduos. Alguns estudos mostram que a QV é pior nos pacientes com epilepsia do que na população em geral (Vileneuve, 2004; Wagner et al., 1996; Wiebe et al., 1999). Nossos achados sugerem que a depressão tem forte impacto na QOL dos pacientes com epilepsias, de modo semelhante ao referido por Tracy et al., 2007. Em outras doenças crônicas, como câncer, HIV/AIDS, asma e diabetes é sabido que os aspectos psicológicos têm papel dominante na determinação das respostas dos questionários de qualidade de vida e comprometem negativamente os escores. Em pacientes com epilepsia refrataria é sabido que a depressão, mas não a freqüência das crises que determina a QV (Boylan et al, 2004). Desse modo semelhante os nossos dados reforçam dados da literatura que a freqüência das crises e efeitos colaterais de medicação são fatores que têm papel secundário no determinante dos escores de QV em pacientes com epilepsia (Devinsky et al.1993; Boylan et al, 2004 Tracy et al., 2007). 6. CONCLUSÃO Os nossos dados sugerem comprometimento em domínios (QV total e bem-estar emocional) da qualidade de vida em pacientes com epilepsia, quando comparado com os dados da literatura. Em nosso estudo não observamos correlação significativa entre aspectos clínicos da epilepsia e escores da QV. Foi observado forte impacto negativo, de modo significativo, nos escores de qualidade de vida nos pacientes com depressão. 7.REFERÊNCIAS [1] Bittencourt PRM, Adamolekum B, Bharucha N, et al. Epilepsy in tropics: I. Epidemiology, socioeconomic risk factors, and etiology. Epilepsia 1996; 37:1121-1127. [2] Borges MA, Zanetta DMT, Marchi NSA, Carvalho AC, Oliveira FN, Borges APP. 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