ANÁLISE DAS RELATIVAS NO PORTUGUÊS ESCRITO Profa. Ms. Sandra Espínola dos Anjos Almeida Universidade Regional do Cariri (URCA) Profa. Ms. Cristiane Rodrigues Vieira Universidade Regional do Cariri (URCA) RESUMO O estudo da língua portuguesa (LP), na sua modalidade escrita, vem sendo alvo de muitos estudos nos últimos anos, mostrando um grande interesse pela superação das perspectivas tradicionais que priorizam o ensino prescritivo, normativo da LP, muitas vezes desconsiderando a realidade social e linguística do aluno. Muitos textos científicos escritos, principalmente pela faixa etária mais jovem apresentam marcas da oralidade, denunciando, em muitos casos, pouca prática com atividades relacionadas à escrita formal. A contribuição da Sociolinguística para o ensino-aprendizagem de LP não está apenas no ensino de novas habilidades linguísticas ao aluno, mas na ajuda para compreender e ampliar os usos de sua língua materna de maneira mais eficiente. A sua visão de ensino mais produtivo não pretende alterar padrões já adquiridos pelo aluno, mas aumentar seus recursos de modo que ele tenha a seu dispor, para uso adequado, a maior escala possível de potencialidades de sua língua, em todas diversas situações das quais tem necessidade. Este artigo tem como objetivo (1) identificar os “erros” no uso dos pronomes relativos em textos escritos produzidos por alunos do V e VI semestres do curso de Licenciatura em Letras da Universidade Regional do Cariri (URCA), (2) analisar esses “erros” a partir da visão sociolinguística e da gramática normativa e (3) mostrar a interferência da fala na modalidade escrita. Para esse estudo, baseamo-nos na visão de Marcuschi (2000; 2001) sobre letramento, de Smith (1982) sobre o conceito de escrita, de Bagno (2007) sobre variação linguística e monitoramento estilístico, e na visão da gramática normativa de Bechara (2009). Para constituição do corpus, utilizamos três textos de alunos do V semestre e três de alunos do VI escolhidos aleatoriamente. A análise revelou que o uso dos pronomes relativos não foi aplicado de maneira adequada devido ao desconhecimento das regras sobre regência verbal e nominal, ao uso inapropriado de pronomes relativos e pela influência da oralidade na escrita. Concluímos que as dificuldades apresentadas pelos alunos se iniciam no ensino fundamental, passam pelo ensino médio e chegam à educação superior, e se devem ao fato de os alunos não terem o hábito de ler e escrever além do exigido nos trabalhos acadêmicos. Palavras-chave: Escrita, Erro, Variação ABSTRACT The study of the Portuguese language, in its writing modality, has been the aim of many studies in the last years. These studies have shown great interest in surpassing the traditional perspectives that used to prioritize the prescriptive teaching of Portuguese. Many times, such perspectives did not take into consideration the student´s social and linguistic reality. Lots of written scientific texts show characteristics of oral language, indicating, in many cases, little practice with activities related to formal writing. The contribution of Sociolinguistics to the learning-teaching of Portuguese is not only on the teaching of new skills to the student, but to help her/him to understand and increase the usages of her/his mother tongue in a more efficient way. The Sociolinguistics perception about a more productive teaching does not intend to change the student already acquired patterns, but to expend her/his resources so that she/he has, to an adequate usage, the biggest possible scale of her/his language potentialities, at all diverse situations she/he needs. This article aims at (1) identifying the “errors” related to the use of relative pronouns in written texts produced by undergraduate students enrolled in V and VI semesters in the course of Language and Literature of the Universidade Estadual do Ceará (URCA), (2) analyzing these “errors” considering the normative grammar and Sociolinguistics perspectives and (3) showing the influence of the spoken language into the written language. In order to attain such an objective, we choose three texts written by students enrolled in the V semester and three texts written by students enrolled in the VI semester, all picked out randomly. To carry out this study, we based on Marcuschi´s view (2000; 2001) about literacy, Smith´s (1982) discussions about the concept of writing, Bagno´s (2007) view about linguistics variation and register monitoring, and Bechara´s (2009) view about normative grammar. The results showed that the inadequate usages of relative pronouns are due to the fact that the students did not know the rules of verb and noun agreement, the inappropriate usages of relative pronouns and to the influence of spoken language on writing. We concluded that such difficulties began in Elementary School, continue at High School and get to University Courses since the students do not have reading and writing habits beyond what is required in academic papers. Key words: Writing, error, variation 1. Introdução O caráter dinâmico e variável da língua nos leva, a cada dia, à análise de situações que, embora sejam passíveis de estudo e explicação, conduzem-nos a outros problemas no âmbito da relação oralidade e escrita. Tais problemas podem ser visualizados em momentos que requerem um gênero textual com a escrita rebuscada, de acordo com as regras gramaticais que regem a língua, e uma linguagem mais cuidadosa e sucinta. É comum vermos atualmente textos científicos escritos, principalmente pela faixa etária mais jovem, que apresentam marcas da oralidade, denunciando, em muitos casos, pouca prática com atividades relacionadas à escrita formal. Percebemos, ainda, o domínio da escrita digital por esse público mais jovem e que, muitas vezes, é transferida de forma inadequada para textos científicos, os quais exigem a escrita padrão da língua. Partimos do entendimento de que a língua é heterogênea e de que o seu uso propicia variações e até mudanças linguísticas. A Sociolinguística há muito vem contribuindo para um ensino de língua materna mais produtivo, objetivando não só ensinar novas habilidades linguísticas ao aluno, mas ajudando-o a compreender e, por consequência, ampliar os usos de sua língua materna de maneira mais eficiente. Na escola, o aluno precisa aprender que a língua apresenta variedades adequadas a diferentes situações e isso lhe será apresentado de forma descritiva pelo professor. Halliday, McIntosh e Strevens (1974, p. 277 e 279) mencionam que essa tendência da linguagem de assumir diferentes variedades penetra na leitura e na escrita e, mais cedo ou mais tarde, o aluno aprende que certos padrões encontrados, usados na fala não se encontram na escrita. Porém, o ensino produtivo tem como foco mostrar a amplitude e o uso das diferentes [e possíveis] variedades da língua materna muito mais do que a real introdução de novos padrões e elementos. Esse tipo de ensino compreende que todos os empregos e variedades de uma língua são parte dela. Dessa forma, o ensino produtivo não “pretende alterar padrões que o aluno já adquiriu, mas aumentar os recursos que ele possui e fazer isso de modo tal que tenha a seu dispor, para uso adequado, a maior escala possível de potencialidades de sua língua, em todas diversas situações em que tem necessidade delas” (HALLIDAY; McINTOSH; STREVENS, 1974, p.276). O que existe, a despeito do que possam pensar os leigos ou tradicionalistas, não é apenas uma norma linguística ou um único dialeto (culto) falado no país, mas sim “um mosaico de normas, um leque de possibilidades de realização da língua, e entre essas possibilidades há uma realização, falada ou escrita, que se aproxima mais do que prescreve a gramática normativa” (LEITE, 2005, p.184). As fronteiras entre a língua falada e a língua escrita têm sido cada vez mais tênues1, ao passo que a escola atingiu classes menos favorecidas da sociedade, recebendo um público falante de um dialeto mais distante daquele considerado padrão (SOARES, 2006). A democratização da escola na década de 60 trouxe para a sala de 1 Com o advento da internet, a escrita digital se popularizou rapidamente nas várias camadas sociais, atingindo todas as faixas etárias, principalmente as mais jovens. Os recursos visuais disponíveis nessa modalidade de escrita são bem mais abrangentes do que aqueles da escrita tradicional. Nesses ambientes virtuais, há cada vez mais a tendência de aproximar e misturar as modalidades fala-escrita, tornando o texto escrito “falado” (SANTOS, 2005). aula uma norma linguística oposta a padrão utilizada como veículo de comunicação pelos livros didáticos, gramática e a mídia, em geral. A heterogeneidade da sala de aula levou o professor e a escola a se adaptarem a essa nova realidade e a repensar suas metodologias de ensino na tentativa de conduzir o aluno das camadas populares a uma ascensão linguística, a qual poderá também conduzi-lo a uma ascensão social. Ao mesmo tempo que a escola democratizava seu ensino, a Linguística também se abria a novas tendências de pesquisa, levando em conta o papel do sujeito, seu contexto sócio-cultural e as diversas realizações da língua falada, despertando para o estudo da variação linguística. A partir daí, começou-se a discutir o conceito de certo e errado na língua e sua repercussão nas concepções de ensino em sala de aula. A língua deixou de ser vista como algo homogêneo, isolado ou ideal para ser compreendida como algo heterogêneo, concreto, e real, pois é “na língua e pela língua que indivíduo e sociedade se determinam mutuamente” (BEVENISTE, 1995, p.27). 1.1. Oralidade e escrita: uma visão preliminar Há diferenças entre a língua falada e escrita e a natureza das duas ainda não foi tão explorada por serem muitas e complexas. Uma característica básica é que ambas utilizam o vocabulário e a gramática de maneiras diferentes e com convenções diferentes também. No entanto, convém lembrar que ambas as linguagens possuem sutilezas que podem diferenciá-las. Como exemplo, podemos mencionar algumas características citadas por Smith (1982): o texto oral não requer tanta organização e precisão, ao passo que o texto escrito exige consistência e logicidade, devido à distância entre escritor e leitor; o discurso oral não dá muito tempo ao ouvinte para pensar e memorizar detalhes, enquanto que, no texto escrito, o leitor pode manipular o tempo de leitura, revisar e relembrar as idéias. Para Saussure (1857-1913 apud ONG, 1998), a oralidade era o pilar de sustentação de toda comunicação verbal, além de chamar a atenção para o fato de se “pensar na escrita como forma básica da linguagem”, até mesmo no meio científico. Para esse linguista, a escrita era “como uma espécie de complemento do discurso oral, e não como transformadora da verbalização” (1998, p.13). Até não muito tempo, muitos autores adotavam uma visão dicotômica estrita sobre a fala e a escrita, ao ponto de estudiosos como Perera (1984) e Smith (1982) afirmarem que não existia uma relação de proximidade entre essas modalidades. Isso quer dizer que em momento algum as características de ambas se entrelaçavam, não existindo a idéia do continuum fala-escrita tão defendida por Marcuschi (2000). Este autor ainda menciona que todo sentido é situado e todo uso linguístico é sempre contextualizado em universos socioculturais”, e que “o contexto cultural exerce forte influência sobre o papel da escrita, sendo ambos os modos mais similares do que diferentes no seu impacto sociológico (2001, p. 32). Ainda para Marcuschi (2001, p.17), oralidade e escrita são práticas e usos da língua com características próprias, conforme apontou Perera (1984) e Smith (1982), mas não diferentes ao ponto de formarem dois sistemas linguísticos opostos nem, tão pouco, uma dicotomia. Sendo assim, as duas modalidades permitem ao falante /escritor a construção de textos coesos e coerentes e, também, a elaboração de raciocínios abstratos e uso de registros de maior ou menor formalidade. Pode ser observada em muitas escolas, a prática de se trabalhar com a escrita desvinculada de um contexto comunicativo, com palavras e frases soltas, e com exercícios que possuem função apenas de arrematar conteúdo. Como afirma Antunes (2003, p.25-26), é “a prática de uma escrita mecânica e periférica, centrada, inicialmente, nas habilidades motoras de produzir sinais gráficos e mais adiante, na memorização pura e simples de regras ortográficas”. No tocante à oralidade, a prática, muitas vezes, resume-se aos gêneros da oralidade informal. São trabalhados e comparados textos em linguagem coloquial e em linguagem mais formal, na busca de “erros” e diferenças entre eles, prevalecendo, assim, a visão dicotômica. Na sala de aula, conforme Antunes (2003, p.25), faltam “oportunidades de se explicitar os padrões gerais da conversação, de se abordar a realização dos gêneros orais da comunicação pública, que pedem registros mais formais, com escolhas lexicais mais especializadas e padrões textuais mais rígidos (...)”. Vistas assim, oralidade e escrita não refletem a realidade sócio-linguísticocultural do aluno e não desenvolvem sua competência comunicativa, tornando-o apenas um reprodutor de ideias, incapaz de se posicionar criticamente diante dos fatos. O professor de língua materna tem a árdua missão de promover a cidadania, facilitando o acesso à informação e também desenvolvendo a capacidade de análise crítica do discente. Intervindo, ele promoverá, no caso da escrita, entre outras características mencionadas por Antunes (2003), a produção de textos socialmente relevantes; uma escrita funcionalmente diversificada, orientada para a coerência global, e metodologicamente ajustada. No tocante à oralidade, se o professor aceitar o seu caráter interacional e sua realização em diferentes gêneros e registros textuais, poderá conduzir o trabalho com essa prática para que seja orientada para a coerência global, para a variedade de tipos e gêneros de discursos orais, para facilitar o convívio social, dentre outras características (ANTUNES, 2003, p.100-105). De posse do conhecimento acerca da variação de registros [ou estilos de fala], e, por conseguinte, da diversidade de tipos e gêneros textuais, o professor entenderá que a tão propalada variação linguística acontece, como afirma Bagno (2007, p.45), tanto no âmbito individual do uso da língua, como também nos grupos sociais e nas diferentes comunidades. Essas variações de estilo são denominadas de monitoramento estilístico, o qual pode ser classificado numa escala contínua que vai do grau mínimo ao grau máximo a depender de situações que pode[m] ser de maior ou menor formalidade, de maior ou menor tensão psicológica, de maior ou menor pressão da parte do(s) interlocutor(es) e do ambiente, de maior ou menor insegurança ou autoconfiança, de maior ou menor intimidade com a tarefa comunicativa que temos a desempenhar etc. O monitoramento é feito por todos os indivíduos quando estes usam a língua falada ou escrita e não depende de grau de instrução, classe social, faixa etária, etc. Ele faz parte das regras de convívio social que as pessoas aprendem desde cedo em suas comunidades. No que se refere ao monitoramento da escrita, ele está diretamente ligado ao grau de letramento2 do indivíduo, ou seja, aquelas pessoas que frequentaram poucos anos de escola e não obtiveram o hábito de ler e escrever textos não terão, consequentemente, o mesmo grau de monitoramento estilístico daquelas pessoas que 2 Soares (1999, p. 3) define letramento como “estado ou condição de quem não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais da leitura e da escrita que circulam na sociedade em que vive, conjugandoas com as práticas sociais de interação oral (grifos da autora)”. Para Kleiman (1995, p. 19), letramento é “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. fizeram algum curso universitário e foram acostumados a ler e escrever textos dos mais diversos gêneros com todas as convenções linguísticas que lhes são inerentes. A presença da oralidade na escrita é possível em vários gêneros textuais, como cartas pessoais, bilhetes, anotações, dentre outras. Nesses casos, existe a possibilidade de o escritor infringir certas regras gramaticais, como supressão de letras, substituição de uma letra que representa mais de um fonema por outra, etc. No entanto, para outros gêneros textuais, como uma carta ao diretor da escola, uma redação de vestibular ou um artigo científico, é necessário que o escritor conheça e obedeça às convenções da escrita da língua que utiliza, pois esses gêneros exigem uma linguagem mais rebuscada, mais organizada e que obedeça aos padrões gramaticais. O conhecimento dos padrões gramaticais da língua é adquirido não só na sala de aula, mas no hábito de ler e escrever do indivíduo, na sua prática social com a leitura e a escrita em seus diversos graus. Na escola, o aluno convive com diversos graus de letramento e no caso específico do aluno de nível superior, o convívio com gêneros textuais de cunho científico, como artigos, monografias, resenhas, crônicas, projetos, etc., permite uma exposição e um manuseio maior com a língua escrita e falada. Presumimos, por isso, que esse aluno tenha um conhecimento linguístico mais aprimorado para lidar com os diversos gêneros, principalmente, com a norma padrão. Até porque a cobrança pelo uso da norma padrão é diretamente proporcional aos anos de escolaridade do indivíduo. Essa prática social com a escrita, ou seja, letramento é definido por Soares (1999, p. 3) “estado ou condição de quem não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais da leitura e da escrita que circulam na sociedade em que vive, conjugando-as com as práticas sociais de interação oral (grifos da autora)”. Para Kleiman (1995, p. 19), letramento é “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Entendendo letramento como tecnologia, Mey (2001, p. 241.) assinala que: O letramento não é o que torna as pessoas letradas, mas sim a maneira como essas pessoas funcionam em um discurso societal utilizando suas próprias vozes. O letramento é como a cultura: não é um objeto em si, é uma função na sociedade ou, mais precisamente, um meio de funcionamento. Corroborando com as idéias expostas por Mey (2001), sobre o conceito de letramento funcional, devemos mencionar, aqui, outro tipo de letramento, mais específico para este estudo, relacionado aos alunos universitários: o letramento acadêmico. Ser letrado pressupõe participar com competência em determinados discursos. No contexto acadêmico, não basta apenas ler e escrever de acordo com os padrões da língua, são necessárias as apropriações das normas e do rigor científico próprios desse sistema. Nas palavras de Alvernaz (2001, p.6), “letramento acadêmico deve ser visto além da competência para a escrita”. No que se refere aos sujeitos desta pesquisa, alunos do curso de Letras prestes a concluir o curso, que tiveram [e ainda tem] contato com disciplinas nas áreas de língua [materna e/ou estrangeira], literatura, e disciplinas pedagógicas, deveriam, a priori, demonstrar maior competência na produção de textos acadêmicos. Porém, diferente do que esperávamos, eles apresentaram, dentre outras tantas, dificuldades com elementos básicos de coesão textual, como o uso dos pronomes relativos e das preposições que os regem em orações relativas. Os professores universitários trabalham com um modelo de língua escrita bem elaborada que atenda às convenções gramaticais e à organização lógica de pensamento. Tal modelo se reflete nas exigências do próprio curso, expressas nas ementas das disciplinas, no conteúdo programático discutido em sala e nas avaliações. Há para os discentes a exigência de um padrão mínimo de letramento que, embora não seja sistematizado teoricamente, é esperado pelos professores. Os alunos universitários [neste caso, professores em formação] desempenham papéis associados às práticas sociais de letramento e às escolhas linguísticas/discursivas que precisam ser feitas neste contexto. Essas escolhas relacionam-se e dependem do acesso aos bens da cultura letrada. 2. Aspectos Metodológicos O corpus que serviu de base para esta pesquisa foi obtido através de textos escritos por alunos do V e VI semestres do curso de licenciatura em Letras da Universidade Regional do Cariri (URCA-CE) que participaram de uma prova de seleção para o Programa de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBD)3. Ao todo foram escolhidos 3 Para maiores informações sobre o texto solicitado aos alunos, ver anexo. três textos escritos por alunos do V semestre e três escritos por alunos do VI. Participaram desta seleção alunos do I ao VI semestre do curso, mas resolvemos analisar apenas os textos dos semestres já mencionados pelo fato de esses alunos, professores em formação, já terem cursado mais da metade da licenciatura, a qual possui ao todo oito semestres, e por supormos que eles já deveriam possuir embasamento teórico e práticas de escrita suficientes para produzir um texto acadêmico dentro das convenções próprias deste gênero. A escolha de analisar especificamente o uso inadequado dos pronomes relativos e das preposições que os acompanham foi motivada pelo fato de ter havido muitos erros desse tipo nas orações relativas escritas pelos alunos, dentre todos os demais. A análise dessas construções foi feita a partir do contexto em que elas estavam inseridas. O uso dos pronomes relativos e das preposições que os acompanham foi contrastado com as recomendações propostas por Bechara (2009). Para esta pesquisa, consideramos erro todas as formas que fogem à variedade padrão do português brasileiro escrito, utilizadas no meio acadêmico-científico. Este posicionamento se justifica pelo fato de que em uma análise de erros, é preciso se apoiar em apenas uma definição, pois, do contrário, não haveria condição de analisar as produções devido à grande variedade de conceitos e definições das formas não padrão da língua, e, também, pelo fato de ser preciso reconstruir as frases erradas mediante o confronto destas com uma gramática normativa da língua portuguesa. 3. Apresentação dos dados A oralidade pode ser um caminho de mão dupla no que se refere à construção de sentenças bem formadas de acordo com as normas da língua portuguesa, pois da mesma forma que ela pode ajudar na construção de sentenças coerentes do ponto de vista semântico, pode, também, atrapalhar do ponto de vista estilístico ou gramatical. Um exemplo da influência da oralidade na escrita pode ser demonstrado através do exemplo a seguir: (Va34) *... existindo assim um duelo no que está sendo falado e no que é escrito, no que está certo ou errado...” Em termo de gramaticalidade, esta sentença está correta, pois a preposição no pode ser entendida aqui como naquilo (...existindo, então, um duelo naquilo que está sendo falado e naquilo que é escrito, naquilo que está certo ou errado...”). No entanto, a preposição no não é apropriada para o contexto acadêmico em que ela foi empregada, pois, para os padrões da língua portuguesa, em sua modalidade escrita, a preposição que deveria acompanhar o pronome relativo que seria entre ou sobre. Este exemplo pode ser considerado como de variação sociolinguística, pois o aluno fez uso de um menor grau de monitoramento para os padrões exigidos nesse gênero textual, mas não erro. Bechara (2009, p. 171) define pronomes relativos como sendo “elementos que se referem a um termo anterior chamado antecedente”. Na língua portuguesa, esses pronomes são: • Que – se refere a pessoas ou coisas e sua função é de pronome substantivo; • Qual (o qual) – se refere a pessoas ou coisas e sua função é de substantivo ou adjetivo; • Quem – se refere a pessoas ou coisas personificadas, funciona como pronome substantivo e vem sempre precedido de preposição; • Onde – assume a função de adjunto adverbial (= lugar em que, no qual). Dentre as oito orações analisadas, cinco apresentaram erros quanto ao uso indevido dos pronomes relativos e/ou das preposições que devem acompanhá-los. Nesses casos, a origem dos erros foi o desconhecimento sobre regência verbal, já que os pronomes relativos devem vir sempre após a preposição que rege o verbo principal da oração relativa. Como exemplo, podemos citar: (Va1) *... e a forma a qual os receptores agem...5 • ... e a forma pela qual os receptores agem... 4 Para preservar a identidade dos sujeitos desta pesquisa, seus textos foram identificados através da seguinte codificação: o algarismo romano se refere ao semestre em que o aluno estava matriculado, a letra do alfabeto romano se refere ao aluno que produziu a oração e o numeral arábico se refere à oração analisada. Desse modo, a frase identificada por Va3 significa que foi a terceira frase analisada, produzida pelo aluno ‘a’, matriculado no V semestre. 5 As orações identificadas com (*) foram produzidas pelos sujeitos da pesquisa, enquanto que as orações reconstruídas foram identificadas com (●). Erros além do uso dos pronomes relativos não foram analisados, porém foram corrigidos quando da reconstrução das orações. (Vc1) *... Mesmo que a pessoa que estamos comentando esse acontecido... • ...Mesmo que a pessoa com quem estamos comentando esse acontecido. (VIa2) *... é necessário uma carga de conhecimento bem mais ampla, a qual disponha de uma considerável “visão de mundo”. • ... é necessário uma carga de conhecimento bem mais ampla, que disponha de uma considerável “visão de mundo”. (VIb1) * ...as regras pelas quais o sistema funciona ou pode-se pensar em que dentro da Linguística tudo é permitido. • ...as regras pelas quais o sistema funciona ou pode-se pensar que dentro da Linguística tudo é permitido. (VIc1) * Um fator de grande importância, é a coerência textual, na qual dela dependemos. • Um fator de grande importância é a coerência textual, da qual dependemos. No exemplo (Va2) a seguir, houve uso inapropriado do pronome relativo ‘a onde’, em vez do relativo ‘que’. Nesse caso, inferimos que a origem desse erro foi a influência da oralidade na escrita, pois é comum escutarmos orações relativas começando com ‘onde’, sem que este se refira à lugar. (Va2) *... a onde confundem pessoas... • ...que confundem pessoas. Por último, nos exemplos abaixo, houve uso inadequado da preposição que acompanha o pronome relativo, o qual faz referência a um substantivo comum mencionado anteriormente. Concluímos que a origem destes erros foi por desconhecimento sobre regência nominal. (Vb1) *... de acordo com o conhecimento de mundo do indivíduo, pois o universo o qual está inserido pode definir o parâmetro de leitura do mesmo. • ...de acordo com o conhecimento de mundo do indivíduo, pois o universo no qual está inserido pode definir o parâmetro de leitura do mesmo. (Vb2) *... de acordo com a situação a qual está inserido... • ...de acordo com a situação na qual está inserida... Concluímos, ainda, que os exemplos (Vc1) e (Va2) refletem, além do desconhecimento sobre regência verbal e uso inapropriado do pronome relativo, respectivamente, a influência da oralidade na escrita dos textos. Usualmente, na língua falada, os relativos ‘que’ e ‘onde’ são substituídos por outros relativos exigidos pela norma padrão da língua portuguesa. 4. Considerações Finais A partir da análise que fizemos neste estudo, podemos concluir que a maioria dos erros encontrados no corpus, cinco em um total de oito, foi devido ao desconhecimento sobre regência verbal, seguidos por um erro de inapropriação vocabular e dois erros devido ao desconhecimento das regras de regência nominal. Desses erros, dois - uso inapropriado dos pronomes relativos ‘onde’ e ‘que’ - podem ser considerados como influência da oralidade na escrita. Todos os demais não foram influenciados pela oralidade, mas pelo desconhecimento de regras gramaticais da língua padrão. Levando em consideração que (1) os sujeitos deste estudo são alunos do curso de Letras, professores em formação, (2) expostos diariamente a gêneros textuais que utilizam a língua padrão, e (3) deles é exigido uma competência mínima de prática discursiva para o contexto em que os textos foram produzidos, percebemos a necessidade de um maior aprofundamento no que concerne ao conhecimento gramatical, em específico ao uso dos pronomes relativos e das preposições que os acompanham, objeto ora analisado, bem como de conseguirem distinguir os limites entre a fala e a escrita em gêneros textuais diversificados. Por fim, concluímos que o uso inadequado dos pronomes relativos é apenas uma pequena parcela do problema que envolve o ensino-aprendizagem de língua portuguesa. Para Careno (2001), o déficit se inicia, ainda, no ensino fundamental, passa pelo ensino médio e chega à educação superior, onde os professores, embora se espantem e se sintam indignados pela falta de competência dos discentes com o uso da língua padrão, muitas vezes, deixam a situação se avolumar e passam adiante o problema. Salientamos que as dificuldades apresentadas pelos alunos podem ter como causa o pouco hábito de leitura e escrita, pré-requisitos necessários e obrigatórios para a formação de escritores e leitores competentes. Ou seja, aqueles que não só elaboram redações escolares e interpretam textos, mas que conseguem escrever e ler nos mais variados gêneros e, por consequência, produzem e não apenas reproduzem conhecimento. Referências ALVERNAZ, S. Práticas de letramento no contexto acadêmico. In: CONGRESSO DE LETRAS DA UERJ-SG, 4., 2007, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. 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Um exemplo da nossa capacidade de usar o sistema linguístico que conhecemos, ou seja, o português, está no fato de ser possível entender um texto mesmo que as letras das palavras estejam fora de ordem, desde que a primeira e a última sejam mantidas em seus respectivos lugares. Uma pessoa que não está familiarizada com a nossa língua não entenderia nada nesse caso. Mas não basta somente saber um pouco de nosso sistema. É preciso também poder dominá-lo razoavelmente. Como vemos no exemplo a seguir: “É com prazer que a Diretoria e Funcionários da TERRAFOTO S/A comunica o falecimento de seu colega ENGo. SÉRGIO DA COSTA SAMPAIO. A ele nossas últimas homenagens.” Esse é um tipo de comunicado de falecimento. Para escrevê-lo, não é possível usar o termo destacado (“prazer”). Por nosso conhecimento de mundo, podemos descobrir por quê. O mais interessante é que o termo que deve ser colocado lá é formalmente semelhante ao que foi posto. Ambas as palavras, “prazer” e “pesar” possuem “p” e letras com o som de /z/, mesmo que elas sejam diferentes. Daí, talvez, a confusão linguística de quem escreveu. Esse tipo de coisa acontece muito no nosso dia a dia de trabalho. Exemplos clássicos ocorrem quando alguns termos técnicos são solicitados: fonoaudiólogo ou fonoaudiologista, odontólogo ou odontologista. (Adaptado de MELO, Iran Ferreira. REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA, n.21, 2010). Recebido Para Publicação em 26 de maio de 2010. Aprovado Para Publicação em 30 de outubro de 2010.