NHOLA DOS ANJOS E A CHEIA DO CORUMBÁ NARRADOR Em 3º pessoa, e um Exemplo: narrador onisciente. O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no terreiro, debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no chão mole [...] isto era simpatia para fazer estiar. (p.26) Podemos perceber também a presença da fala das personagens, (discurso direto livre): - Fío, fais um zoi de boi lá fora pra nois. (p.26) ESPAÇO Fazenda no interior de Goiás. Já tinha pra mais de 80 anos que os dos Anjos moravam ali na foz do Capivari no Corumbá. O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de terrenos baixos e paludosos. A casa ficava num triângulo, de que dois lados eram formados por rios e o terceiro por uma vargem de buritis. (p.27) TEMPO Cronológico e segue uma ordem linear, pois a ação ocorre em uma noite. Começou a escurecer nevroticamente. Uma noite que vinha vagarosamente, irremediavelmente, como um progresso de uma doença fatal. (p.26) Há a presença do flash-black para mostrar a decadência que a família de Nhola dos Anjos estava vivenciando. Veja a citação a seguir: No tempo da guerra do Lopes, ou ainda, o avô de Quelemente veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formação geográfica construíra um excelente apartador. O gado, porém, quando o velho morreu, já estava quase extinto pelas ervas daninhas. Daí para cá foi a decadência. No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um racho de palhas. A erva se incumbiu de arrastar o resto do gado e as febres as pessoas. (p.27). PERSONAGENS Nhola dos Anjos. Era entrevada. Havia vinte anos apanhara um “ar de estupor” e desde então nunca mais se valera das pernas, que murcharam e se estorceram. (P.26) Clemente (Quelemente). O filho de Clemente. Um biruzinho sempre perrengado. (p.28) COMENTÁRIOS: COMENTÁRIOS (1) É uma narrativa poderosa e envolvente. Élis usa metáforas criativas e uma construção cuidadosa que tornam vívidas as sensações de pavor e desespero das personagens subitamente envolvidas pela água e pela escuridão da noite (2) Traça um perfil da miséria, de uma gente pobre, que por falta de opção vive à beira do rio mesmo conhecendo os perigos. Seus hábitos, costumes e superstições. Reflete sobre o instinto animal do ser humano na luta pela sobrevivência. O desfecho é surpreendente, impactante, tudo acontece de repente, os fatos se precipitam, irremediavelmente, num suspense de tirar o fôlego, que causa profunda impressão no leitor (3) Tragédia, morte, tristeza e arrependimento compõem o quadro de Élis. Embora o conto tenha sido escrito na década de 40, o tema é atualíssimo, pois tanto a miséria quanto as enchentes são problemas crônicos no Brasil. TRAÇOS ESTILÍSTICOS E TEMÁTICOS O regionalismo do autor vem incorporar não só o falar caboclo de Goiás, mas também suas crendices e a situação de abandono em que vivem. Esse falar caboclo acaba se entrelaçando ao discurso do narrador, buscando uma maior aproximação entre a fala dos personagens com a do narrador. Faz o uso de expressões próprias da oralidade “Quelemente” ao invés de Clemente. (p.26) Regionalismos :“caroça” – capa de palha. (p.26) E expressões populares: “Estava ensopadinho da silva”. ( p.26). Seu nível vocabular, embora básico, reflete um cuidado na seleção das palavras empregadas. É o que se observa na descrição de Clemente chutando o rosto da mãe: “Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer, presa ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressão de incompreensão e terror espantado. Novo coice melhor aplicado e um tufo d’água espirrou no escuro. Aquele último coice, entretanto, desequilibrou a jangada, que fugiu das mãos de Quelemente, desamparando-o no meio do rio.” (p.31). O uso da expressão coice dá um caráter animalesco ao personagem e à cena, evidenciando o instinto animal de sobrevivência suplantando o do ser humano. Perceba que ele atirou um coice. O verbo atirar já denota agressividade, agressividade que é respondida pela mãe na mesma forma, só que pelo olhar, como mostra o verbo fuzilar. ENREDO Retrata a estória de Nhola dos Anjos, seu filho Quelemente (Clemente) e o neto dela, um garoto não nomeado, diante de uma enchente. Eles moram em uma tapera de palha – um local que já fora bem próspero – e à noite, são surpreendidos pela cheia do rio Corumbá. Inicialmente, uma das paredes cede com a força das águas; posteriormente, a porta. Quelemente improvisa com a porta uma jangada, onde coloca sua mãe e seu filho. Ele sabia que tinha que levar a embarcação para a vargem, para dali segurarem-se nas árvores. Caso não, cairiam pela cachoeira. Nhola dos Anjos cai n’água, segurando-se à porta que está se despedaçando. Quelemente, percebendo que a jangada não agüenta mais três pessoas, chuta por duas vezes o rosto da mãe para que ela se solte da porta. O segundo chute fez com que ele perdesse o equilíbrio e caísse da embarcação improvisada. Contudo, viu que estava em uma parte rasa do rio. Arrependeu-se de ter chutado a mãe, que agora deveria estar sendo arrastada para a cachoeira. Sai em sua procura e morre afogado. Joãoboi Narrador em terceira pessoa, onisciente. Prinspiava a seca, naquele final de março, com trovões assim com que disparados ali pelas três horas da tarde reboando nas bocainas, ameaçando chuvisco grosso que afinal resolvia num pé de vento assoprando num rumo só, enquanto as nuvens pesadas lá iam se desmanchando, desmanchando. (p.121) A história se passa em uma fazenda. A presença do patrão era denunciada pelo ronco da caminhonete “Chevrolet” e pelo clarão da lâmpada “petromax” que ele mesmo acendia durante a permanência na fazenda, era o que era muito incerto. (p.121) Cronológico e linear. [...] naquele final de março, com trovões assim como que disparados ali pelas três horas da tarde [...]. (p.121). Joãoboi Um homem grosso disforme, catuzado pra frente com coisa que queria apoiar-se com as mãos no chão. (p.125). Patrão Homem risão [...] embora fosse bicho enérgico e franco nas suas palavras, tendo na brincadeira a forma de proferir franqueza sem agravar ninguém. (p.122). Vaqueiros da fazenda: Zeca - vaqueiro, Lôro, Clódio e Nastaço. cabo-verde do Nacleto Rosária, Veva, Nhã Bate na cangalha compreender. (p.122) pro burro SAINO (saindo) Assucedendo (sucede) Esculca (escuta) Cuzinha (cozinha) Cumbersa (conversa) Teoria Do fantástico Todorov cita em seu livro “Introdução à Literatura Fantástica”, que dentro da nossa realidade regida por leis, ocorrências que não podem ser explicadas por essas leis incidem na incerteza de ser real ou imaginário. Para Todorov, um evento fantástico só ocorre quando há a dúvida se esse evento é real, explicado pela lógica, ou sobrenatural, ou seja, regido por outras leis que desconhecemos. “Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico.” (TODOROV, 1968, p. 31). Ele nasceu foi de uma vaca, a qual ele mamou nela também e vevia lá no Retiro do pai dele [...]. (p.128) De tanto lidar com a vaca e boi, de tanto viver com o gado, acabou pegando o jeito de rês, acabou pegando uma peste aftosa que botou ele arrupiado de pele, febrento, o linguão de fora por bem ua quizena e daí os pés dele abriram em frieiras como assucede com boi [...] foi de tanto viver com bichos, comadre, que ele se virou um bicho-boi também. (p.129) Outro ponto interessante presente no conto é como o meio influência o viver das pessoas: De tão desamparada, nhã mãe concedeu ela viver ali no relento [...] Sem fazer nada que nem cuzinhar ela sabia mais. Desaprendeu tudo e foi morrendo de pena que nhã mãe começou a ensinar aquela velha a fazer de novo o pelo – sinal e a rezar a santa-maria [...] se não desse comida cozida em panela a coitadinha, o que ela comia era fruta do cerrado, mel de abelha, comia grilo, gafanhoto, coró de coco [...] imitando tatu ou tiú. (p.133). ENREDO A ENXADA NARRADOR A posição do narrador é onisciente e denota certa empatia, que toma forma pela migração dos traços regionais da fala do personagem iletrado para dentro da narrativa em terceira pessoa do narrador letrado. Dessa posição o narrador pode se imiscuir, pelo uso do discurso indireto livre, na lógica dedutiva de Piano e acompanhar os cálculos mentais do personagem para tentar arranjar a enxada: Pensou em matar um caititu, vender o couro e comprar a enxada. O cálculo ia muito bem até o ponto em que Piano se lembrou que (...) carecia de pólvora, espoleta, chumbo e espingarda. E ele possuía alguma dessas coisas? (Élis, 1966: 96). ESPAÇO A narrativa se passa em uma fazenda. Vem trabalhar mais eu, Piano. Te dou terra de dado, te dou interesse...(p.75) TEMPO Cronológico e linear. Estava em jejum desde o dia anterior, porém mentiu que havia almoçado. (p.74) PERSONAGENS Piano Era trabalhador e honesto. (p.76). Supriano Era feio, sujo, maltrapilho, mas delicado e prestimoso como ele só. (p.73). Dona Alice Joaquim Faleiro Era um sitiante pobre, dono de um nesginha de vertente boa. (p.75) Elpídio Chaveiro Era um fazendeiro que exigia que todo mundo pedisse menagem para ele. (p.77) Capitão Benedito João Brandão Vigário Bobo bobo babento, cabeludo”, que não falava e levava a mãe entrevada nas costas pelos caminhos, era um “bicho”, um “animal”, um “porco”, sempre “numa fungação de anta no vício” (p.107). Sacristão Sujeitinho muito intimador e enfatuado. (p.83) Olaia Era entrevada das pernas desde o parto do bobo.(p. 81) A obra é marcada por uma linguagem própria, regional, típica do meio rural. Antonio Candido (1972) destaca como as obras do regionalismo brasileiro estão cheias de realidade documentarista e pode apresentar uma função humanizadora ou desumanizadora, dependendo de como o autor faz uso da linguagem. O sentido desumano está presente quando o escritor estabelece diferenças na forma de falar, reserva ao personagem campestre a fala coloquial, apresentando a linguagem e aspecto fônico rústico, já o narrador, pessoa de nível superior, geralmente não tem sotaque e fala de acordo a norma culta. Já a representação humanizadora é possível quando não são impostas essas diferenças: Enjeitou (rejeitou) Boia (comida) Mecê (você) Homência (inocência) Utilização de ditado popular. O que não tem remédio já nasce remediado! (p.83) ENREDO O enredo se desenvolve em torno da busca por uma enxada. O lavrador Supriano - Piano - tem que prestar serviço ao Capitão Elpídio Chaveiro que lhe impõe data para entrega da plantação, mas não lhe fornece o instrumento de trabalho – a enxada. Piano, homem transformado em objeto, é utilizado no pagamento de uma dívida. O delegado paga ao Capitão Elpídio, oferecendo a mão-deobra de Piano que antes lhe devia favores. Dessa forma, Piano passa a ser propriedade do capitão. Deve ser submisso àquele que o trata como escravo. Bernardo Élis discute os problemas sociais ocorridos no meio rural goiano, apontando não só aspectos regionais, mas também abordando temas de caráter universal. Antônio Hohlfeldt descreve de forma precisa os temas abordados pelo autor: condições de violência na exploração latifundiária, que caracterizam o desenvolvimento social e econômico das províncias brasileiras ainda hoje, fato facilmente verificável nas manchetes dos jornais. A construção do conto fundamentada na representação de uma disparidade social entre o poderoso e o submisso, portanto calcada na diferença de classe que sustenta também as disparidades sociais do capitalismo industrializado dos grandes centros urbanos, traz, no seu bojo, um quadro social típico da realidade goiana rural. (GOTLIB, 1984:4). O trecho acima descreve muito bem a relação de exploração recorrente no meio rural. O conto “A enxada” é uma obra regionalista, que tem como tema a exploração laboral de um grande proprietário de terra em relação a um pobre lavrador. O escritor goiano retrata o jugo e destino infeliz do povo que vive em condições subumanas e trabalha de forma escrava. A obra objetivista é fundamentada na diferença social, apresentando costumes, superstições, linguagem tipicamente rural, que dão um aspecto documentarista ao conto.