A CULTURA DOS CICLOS NA ORGANIZAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL: MEMÓRIAS Marília Claret Geraes Duran Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) Introdução A implantação do Ciclo Básico (CB), no início dos anos oitenta, foi uma medida de impacto que sacudiu a rede pública de ensino do Estado de São Paulo e transformou as antigas primeira e segunda séries do Primeiro Grau em um continuum durante o qual o aluno realizaria o processo de aprendizagem sem interrupção, excluindo-se as reprovações no primeiro ano de escolaridade. A medida procurava combater um dos mais graves problemas do ensino fundamental em São Paulo e em todo o País: os inacreditáveis índices de reprovação e evasão de alunos já em seu primeiro ano de escola. Na época, houve muitas discussões, apoios e críticas ao Ciclo Básico, tanto nas escolas e Delegacias de Ensino quanto no âmbito da sociedade. Os seus desdobramentos ao longo da década, nas diferentes etapas de implantação do Ciclo Básico significaram momentos de construção, de crítica, de reconstrução, de deslocamento de foco, de avanços e retrocessos. Ao longo dos doze anos de sua implantação – 1983/95 –, a política de alfabetização concretizada pelo Ciclo Básico conseguiu ultrapassar uma barreira jamais transposta pela administração pública paulista: a de permanecer no tempo, consolidando um ganho de 13% nos índices de promoção em relação ao regime seriado. A proposta do Ciclo Básico representou um momento de ruptura e estabeleceu alterações no que vinha sendo feito na sala de aula. Porém, como todas as propostas geradas no setor público, carregou consigo certa dose de ceticismo e o impacto negativo inerente a projetos traduzidos em Resoluções e Decretos (afinal, a proposta estava contida num Decreto), os entraves burocráticos pela morosidade da máquina do Estado, além da questão crucial da formação contínua dos profissionais no processo, acostumados a uma prática conservadora propiciada por relações sociais autoritárias. Essa proposta, no entanto, ousou permanecer no tempo, a despeito de suas incoerências, de seus erros e acertos, de sua aceitação maior ou menor pelas instâncias do sistema. E é pela sua capacidade de incomodar práticas sedimentadas pelo conservadorismo que merece uma análise cuidadosa, especialmente neste momento em que, como sinalizam Barretto & Mitrulis (2001), o regime de ciclos passa a manifestar tendência crescente de 2 expansão, considerando a possibilidade de flexibilização da organização do ensino básico que o artigo 23 da Lei 9394/96 apresenta e que tem dado suporte à orientação das políticas na área, expressas, por exemplo, nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Neste texto1 apresento uma análise das principais questões que dominaram cada período desse processo complexo de implantação do ciclo básico nas escolas da rede estadual de São Paulo no período 1983-95, vivido por pais, alunos, professores, diretores, supervisores, técnicos e especialistas em Educação e, mais amplamente, por toda a sociedade, numa abordagem histórica. Procurei enfatizar os aspectos mais ligados à proposta de alfabetização que a organização curricular em ciclos estabeleceu, e que podem servir de indicadores de um modelo verdadeiramente novo de operar na escola, na perspectiva de explicitar a concepção de educação subjacente ao regime em ciclos. Nessa perspectiva, procuro analisar o significado dessa opção política de enfrentar, a partir de séries iniciais, a questão do letramento e da democratização da escola, considerando que a história do letramento em sociedades latino-americanas esteve centrada nas elites que compunham o anel letrado, cercando o poder, desde as origens da chamada "cidade barroca" (cf. Rama, 1985). Será que podemos afirmar que, nesse sentido, a proposta política do Ciclo Básico e a cultura que gerou significaram o enfrentamento de uma questão histórica, apresentando-se como revolucionária, num certo sentido de alterar o curso dessa história? Para essa análise utilizei-me dos principais documentos elaborados no período2, dos estudos de acompanhamento e avaliação produzidos no interior dos órgãos gestores da Secretaria da Educação e que podem ser considerados como construções tentativas de produção de uma cultura, por produzirem uma divulgação de idéias e de persuasão das pessoas. Utilizei-me também de teses de doutorado e dissertações de mestrado realizadas por diferentes pesquisadores que se ocuparam da análise dessa política, em momentos diferentes de sua implantação, desenvolvendo diversas interpretações, o que permitiu recuperar a dinâmica da situação estudada. As representações e interpretações desses pesquisadores constituíram-se em outra vertente bibliográfica deste estudo. A implantação do Ciclo Básico e seu processo A implantação do Ciclo Básico (CB) na rede pública estadual, a conseqüente construção de uma proposta de alfabetização, que estabeleceu uma ruptura com tudo o que vinha sendo feito até então nesta área, passou por quatro fases: a proposta política (1983/1985); a proposta 1 Este texto faz parte das reflexões desenvolvidas na tese de doutorado defendida pela autora na PUC-SP, 1995. Os Gráficos 1 e 2, anexados ao final do texto, apresentam o detalhamento da abordagem dos textos produzidos no período. 2 3 pedagógica (1985/1988); (1988/1991) a jornada única no CB; (1991/1994 ) a reforma do ensino. A proposta política (1983 - 1985) A proposta do Ciclo Básico foi uma decisão política que abrangeu toda a rede estadual, tendo sido implementada, em 1984, pelos novos administradores do ensino público de São Paulo, representantes do primeiro governo estadual eleito, depois de mais de quinze anos de regime de exceção e eleições indiretas. A unificação dos dois primeiros anos de escolaridade obrigatória em um só ciclo, ao longo do qual o aluno não poderia ser reprovado, correspondia à necessidade de enfrentar, já a partir dos primeiros anos de escolaridade, a questão da alfabetização e da democratização da escola, uma escola em que aproximadamente 40% das crianças não ultrapassavam a barreira da primeira série, e em que grande parte dos alunos sobreviventes conservava dificuldades no uso da língua escrita ao longo das séries seguintes. A proposta política do CB fundamentava-se numa avaliação crítica do ensino fundamental de oito anos, que vinha se revelando profundamente excludente em relação às camadas majoritárias da população. Baseava-se também numa revisão crítica dos preconceitos e estereótipos que permeavam (e, em muitos casos, ainda permeiam) a relação dos professores com alunos provenientes de camadas sociais desprivilegiadas, considerados culturalmente carentes. Era preciso combater a abordagem medicalizada e psicologizada que - com o respaldo "científico" da chamada "teoria da carência ou do déficit cultural" - atribuía aos alunos, a suas famílias e a seu meio social "deficiências" que explicariam o fracasso escolar de boa parte dessas crianças. E que, no dia-a-dia das escolas, manifestava-se nos freqüentes encaminhamentos de crianças para psicólogos, fonoaudiólogos, etc, nos constantes remanejamentos de alunos em função de seu rendimento escolar e na predição de fracasso para os alunos considerados "carentes", parcela considerável da clientela da rede. A implantação do Ciclo Básico começou com algumas medidas estruturais e, já no início de sua implantação, nas reuniões de apresentação e divulgação da proposta, manifestouse uma forte resistência dos professores, diretores e supervisores de ensino - além de críticas oriundas de diferentes áreas da sociedade. As mais fortes resistências articularam-se em torno de três questões: o caráter arbitrário da implantação do CB, o perigo de rebaixamento da qualidade do ensino e a questão da avaliação do desempenho do aluno. De fato, a própria sistemática de implantação pode ter contribuído para fomentar a resistência à desseriação entre os profissionais da rede pública 4 estadual: foi uma decisão central, efetivada por decreto, de cima para baixo - daí a crítica à arbitrariedade da medida. Entre os que acreditavam que o CB iria rebaixar a qualidade do ensino, a visão era de que governo estava implantando a promoção automática dos alunos e deslocando o gargalo da repetência da primeira para a segunda série do Ensino Fundamental. Embora o fato de o CB permitir que as crianças permanecessem um ano a mais na escola, sem reprovação, fosse considerado positivo, era evidente que a reprovação nas séries iniciais – e em todo o ensino fundamental – não se resolveria com a promoção automática, como a proposta do CB parecia enunciar3. A proposta do CB questionava algumas idéias arraigadas no magistério: que a reprovação pode ser benéfica para o aluno; que a reprovação garante a qualidade do ensino; que o prazo de um ano é suficiente para a criança se alfabetizar. Na verdade, ao estabelecer um continuum no processo de aprendizagem, o CB apontava para uma mudança na concepção de avaliação vigente na escola, que se prendia fundamentalmente a padrões de aprovação e reprovação. Mais que isso, a proposta abrindo a possibilidade de flexibilização na organização curricular, nos critérios de agrupamento de alunos, nos métodos e conteúdos de ensino, exigia uma avaliação de outro tipo, de dimensão educativa, capaz de reconhecer e valorizar os progressos dos alunos e de permitir ao professor e à escola observar os resultados de sua prática, ao longo do processo ensino-aprendizagem. Estudos sobre o processo de implantação do CB realizados ainda em 1984 indicaram que, passado o impacto inicial, os aspectos positivos da medida começaram a ser percebidos por parte dos educadores. Mas, para parcela significativa dos professores e dos diretores, persistiam questões extremamente problemáticas. A Secretaria enfrentou sérias dificuldades para fazer chegar às escolas as orientações necessárias à implantação do CB. Isto porque a proposta visava fundamentalmente o redirecionamento do processo de alfabetização, uma mudança qualitativa na concepção e na prática pedagógicas, sem o que ela se tornava inócua. A linha de formação contínua dos professores para o trabalho desseriado do CB foi extensiva, por meio da transmissão dos programas do projeto Ipê e da discussão monitorada de pequenos grupos através de textos sobre os temas dos programas em telepostos. Essa linha de formação, embora tenha a vantagem de atingir grandes contingentes em curto período, é um trabalho de superfície, funcionando mais como divulgação de idéias e propostas. Sua principal desvantagem é o 3 Esta é uma das questões mais importantes a serem discutidas uma vez que evidencia-se cada vez mais uma tendência de a proposta em ciclos ser confundida com progressão continuada de estudos, sem reprovação. O fato de a proposta ter como princípio a idéia de não reprovação, carrega a falsa concepção de que não deve haver também avaliação. 5 fato de trabalhar pouco com as concepções e pressupostos mais arraigados e com a transformação da prática efetiva dos docentes em sala de aula. Apesar dessas dificuldades, em 1986, as mudanças impostas pelo Ciclo Básico resultaram num acréscimo de 10% do índice de aprovação dos alunos em relação ao regime seriado anterior – um ganho que veio se mantendo relativamente estável desde então. Se, anteriormente, após dois anos de permanência na escola, eram 40% os alunos reprovados ou evadidos, após a implantação do Ciclo Básico este índice ficou em torno de 30%. Deve-se reconhecer, entretanto, que esse acréscimo é insuficiente para alterar efetivamente o perfil de atendimento no ensino fundamental, ainda muito seletivo e excludente. A proposta pedagógica (1985 - 1988) A elaboração de uma proposta de alfabetização não foi uma opção prévia das autoridades na época da implantação do CB, como também não houve a escolha do referencial teórico que apoiaria a nova proposta pedagógica para o período de alfabetização. Assim, a programação de conteúdos e atividades dos então conhecidos Guias Curriculares e dos Subsídios de Alfabetização4 foi a referência inicial para o trabalho didático dos professores do Ciclo Básico – o que não alterava substancialmente a prática anterior do sistema seriado. Os Subsídios eram verdadeiros receituários que controlavam a distribuição dos conteúdos e dos tempos, indicavam as formas de avaliação e as opções metodológicas – fundadas numa concepção da escrita como codificação do oral, que acaba por ocultar as reais funções e usos sociais da escrita, reduzindo-a a um objeto exclusivamente escolar. No período entre 1985 e 1988 uma nova proposta de alfabetização foi sendo gestada – no bojo do movimento de reformulação curricular – por professores e especialistas diretamente envolvidos com o trabalho na rede, por meio de documentos, cursos "face a face" (nas Universidades e na estrutura de supervisão da rede), orientações técnicas e cursos a distância (Projeto Ipê). E somente em 1988 ela foi apresentada ao conjunto da rede como proposta alternativa de alfabetização5. Duas questões fundamentais são discutidas por essa proposta: o caráter inaceitável dos percentuais de repetência que se acumulam historicamente e o significado dos chamados "objetivos da alfabetização": o manejo de 4 Os Guias Curriculares e os Subsídios de Alfabetização foram elaborados em meados da década de 70. Esses últimos resultaram do trabalho desenvolvido pelos técnicos da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas - CENP, da Secretaria do Estado de Educação de São Paulo. 5 Cf. Duran, M.C.G. "Proposta preliminar de alfabetização no Ciclo Básico". in: Ciclo Básico em Jornada Única: uma nova concepção do trabalho pedagógico. SE/CENP, 1988. v.1 p.11 6 técnica de codificação e decodificação ou o acesso ao uso da língua escrita em toda a sua complexidade. A questão política, de fundo, que envolve a alfabetização afeta, evidentemente, o processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita. Uma coisa é entender a alfabetização como um mero instrumental para a futura obtenção do conhecimento; outra, muito diferente, é compreende-la como forma de pensamento, como processo de construção de saber, como inserção ampla no pensamento do mundo letrado e no exercício da cidadania6. A nova proposta de trabalho para o CB ressaltou o valor social da língua escrita como objeto cultural, como produção humana, que traz a marca do desenvolvimento histórico da humanidade e simboliza uma das formas do homem transformar a realidade para se comunicar com outros homens. A criança, ao se apropriar desse objeto do conhecimento, o transforma, porque a ele imprime seu significado único e pessoal e, ao mesmo tempo, se transforma, pois, ao apropriar-se, desenvolve-se. Houve também a divulgação de experiências de alfabetização inovadoras, cujas propostas didático-pedagógicas foram formuladas a partir das fases de construção infantil sobre a língua escrita investigadas por Ferreiro e Teberosky (1979). Ao apresentar uma nova forma de entender e de trabalhar a aprendizagem da leitura e da escrita, essa proposta representou um momento de ruptura qualitativa. Por um lado, desencadeou mudanças nas práticas tradicionais em sala de aula e, por outro, reacendeu resistências. A proposta teve diferentes níveis de asssimilação e interpretação entre os professores. Por exemplo, tornou-se freqüente ver que as classes, anteriormente classificadas em "fortes, médias e fracas", passaram a ser nomeadas de "pré-silábicas, silábicas e alfabéticas", num processo em que a "modernização" dos rótulos não consegue esconder a permanência dos conteúdos anteriores. Inundar a sala de aula com cartazes, letras, jornais, revistas, livros não significa necessariamente criar um ambiente alfabetizador, se predomina um ponto de vista em que as interações dos alunos com esses materiais, com as produções da turma, com as outras crianças e com o professor não estão entranhadas na vida da classe. Alguns estudos, como o de Ambrosetti (1989), apontam esses três anos de discussão e construção da nova proposta para o CB como um período de indefinição das instâncias responsáveis pelos sistemas, gerando insegurança na rede estadual. Outros estudos, como o de 6 Trata-se, obviamente, da possibilidade que o domínio da escrita permite aos alfabetizados de uma inserção mais ampla, já que, numa sociedade letrada, conceitos e categorias produzidas por letrados circulam também entre não-letrados.(cf.Ivan Illich, "A plea for research on lay literary", in OLSON, D. & TORRANCE, M (eds.). Literary and Orality. Cambridge University Press, 1991. p. 28-46). 7 Bonel (1993) consideram que a publicação da Proposta de Alfabetização, embora batizada como "alternativa", estigmatizou as escolas que mantinham métodos tradicionais de alfabetização . Outros estudos (Nébias, 1990) consideraram a implantação do Ciclo Básico uma medida arrojada (por ousar inovar com a desseriação) e democrática (por ter sido extensiva a todo o Estado e aumentar a permanência do aluno por mais um ano na escola), e apontam para sua ingenuidade em relação aos objetivos a que se propôs. A Jornada Única para o CB (1988 - 1991) É no ano de 1988 que se institui a Jornada Única para o Ciclo Básico em todas as escolas de Primeiro Grau da rede estadual. A partir desta data, os alunos passaram a ter seis horas diárias de aula, distribuídas entre o professor alfabetizador e os professores especialistas de Educação Artística e de Educação Física. O professor alfabetizador, que anteriormente cumpria uma jornada semanal de dezesseis horas, teve sua jornada estendida para quarenta horas semanais, distribuídas entre a regência de sua única turma de alunos e a participação em reuniões conjuntas com outros professores (para preparar aulas e corrigir trabalhos) e em cursos de formação em serviço (as horas de trabalho pedagógico - HTPs). A jornada única também instituiu, em cada escola, um professor-coordenador para o Ciclo Básico, responsável por organizar o trabalho dos professores do CB e promover a articulação e a integração do trabalho com as terceiras e quartas séries do Primeiro Grau. Um balanço divulgado pela Secretaria da Educação seis meses após a implantação da Jornada Única apresentava uma perspectiva bastante otimista. No entanto, informações dos representantes de Delegacias e de Divisões Regionais de Ensino, colhidas durante o processo de implantação, apontavam dificuldades, sobretudo deficiências nas instalações (que exigiam reforma e ampliação de prédios) e de recursos humanos (que exigiam a contratação de pessoal operacional para as escolas) - problemas esses que, em algumas regiões do Estado, eram agravados pela elevadíssima mobilidade de professores e diretores, dificultando a continuidade das ações. Estudos realizados durante o processo por instituições externas à rede indicavam que, submetidas ao filtro político das várias instâncias intermediárias, muitas informações fundamentais para o entendimento do novo regime de trabalho eram omitidas ou repassadas de modo incorreto aos professores (Bonel, 1993). Em escolas e classes localizadas nos bolsões de pobreza da Grande São Paulo não foi possível implantar a Jornada Única, pois, nesses locais, as dificuldades de atendimento à demanda são mais graves, inviabilizando a extensão da jornada do aluno de quatro para seis 8 horas diárias. Também a mudança do Secretário da Educação em meados de 1988 levou a uma desmobilização dos órgãos centrais e intermediários em relação à proposta de trabalho da Jornada Única, ao afrouxamento e até à extinção dos mecanismos de orientação e acompanhamento da Secretaria, habitualmente bastante frágeis e conturbados. Alguns analistas consideram que a Jornada Única veio consolidar o Ciclo Básico, propiciando-lhe sobrevivência histórica. No entanto, se o Ciclo Básico era um ponto de partida para a reorganização do ensino de Primeiro Grau no Estado, a Jornada Única não representou exatamente um passo nessa direção. Ao estabelecer um continuum entre os dois primeiros anos de escolaridade, o CB eliminou o gargalo na passagem da primeira para a segunda série. Passados dez anos, esse gargalo transferiu-se um ano para frente, para a passagem do final do CB para a terceira série. Além disso, não se percebem resultados positivos nas terceiras e quartas séries, cujo rendimento continua caindo em cascata. A reforma do ensino (1991 - 1994) O Ciclo Básico e a Jornada Única já prenunciavam a necessidade de autonomia pedagógica por parte das escolas: abriram espaço para a flexibilidade na organização curricular, nas metodologias e técnicas didáticas e no agrupamento dos alunos: instituíram a figura do professor-coordenador, responsável pela articulação do trabalho dos professores do CB e deste com o das séries seguintes: introduziram o espaço para reuniões e formação em serviço. A política do governo do Estado no período 91/94, com o Programa de Reforma do Ensino Público de São Paulo, foi outro passo no sentido de criar e consolidar uma escola pedagogicamente consistente e dotada de suporte material e pessoal para desenvolver seu trabalho - um perfil que corresponde ao que foi chamado de ESCOLA-PADRÃO. Os pressupostos que fundamentam esse perfil não diferem substantivamente daqueles que presidiram a implantação do Ciclo Básico e da Jornada Única, especialmente quanto à necessidade de manter os alunos na escola e propiciar-lhes a continuidade do estudo, ao cuidado especial com o processo ensino-aprendizagem e à formação contínua do pessoal docente. A proposta central deste programa foi a implantação da ESCOLA-PADRÃO, idealizando um perfil da escola pública que pudesse "ser o núcleo e a base de um sistema de ensino capaz de dimensionar suas próprias necessidades, programar suas ações e demandar 9 recursos externos e aplicá-los”7, introduziu novas diretrizes e orientações, em particular as que afetam: • a autonomia da escola, entendida como a "possibilidade de cada escola, individualmente, estabelecer o seu próprio projeto pedagógico, construir sua identidade, definindo o seu caminho para a qualidade de ensino", com a organização de um novo quadro administrativo e pedagógico nas escolas; • a ampliação da concepção e do escopo do sistema de formação em contínua envolvendo docentes, direção e funcionários administrativos para que pudessem atender às novas exigências do funcionamento da vida escolar; • a reorganização do tempo escolar, tanto através da extensão da jornada de seis horas-aula para todas as séries quanto pela alteração da jornada e da carga docente, incluindo aí tempos específicos para o trabalho pedagógico (HTP), planejamento e coordenação de caráter coletivo, modificando, em parte, o que já se realizava através dos programas "Ciclo Básico" e "Jornada Única"; a concessão de gratificações visando à fixação do corpo docente e à estabilização do quadro de funcionários da escola. A estratégia de implementação das ESCOLAS-PADRÃO foi de natureza gradualista, estabelecendo um prazo de quatro anos para completar o processo. As metas iniciais eram implantar 300 escolas em 1992, 1000 em 1993, 2000 em 1994 e toda a rede em 1995. Contudo houve um afrouxamento em relação às metas propostas, em parte considerando a mudança na direção da Secretaria da Educação, pois, marcadamente, as mudanças do Secretário implicaram um redirecionamento na política que vinha sendo executada. Acrescente-se ainda que, tomando em conta o caráter inovador do programa e o fato de alterar profundamente o desenho da escola pública, a transformação da escola em "padrão" significou um processo em que se identificam as condições iniciais de a escola integrar o Programa, o que certamente demanda um longo período para que as medidas se efetivem. Considerações Finais Com este breve panorama do processo de implantação do Ciclo Básico nas escolas da rede pública estadual de São Paulo, procurei evidenciar o significado da decisão políticapedagógica de enfrentar, a partir das séries iniciais do ensino fundamental, a questão do letramento e da democratização da escola, e que, atravessando vários governos, criando seus caminhos e descaminhos, produziu uma “cultura do Ciclo Básico” cultura essa que vem se 7 SÃO PAULO, 1991 (Estado). Programa de reforma do ensino do Estado de São Paulo: Secretaria do Estado da Educação, outubro, 1991. 10 difundindo no bojo das atuais reformas educacionais, cujas iniciativas de diferentes administrações assumem características e ênfases semelhantes nas redes escolares de estados e municípios, como sinalizam Barretto e Mitrulis (2001) em seu estudo sobre o panorama atual das escolas sob o regime de ciclos no Brasil8. Essas autoras apontam os seguintes indicadores nas propostas de organização do ensino em ciclos: § autonomia das unidades escolares para formularem suas propostas educativas de modo contextualizado e de acordo com o perfil do aluno; § currículo concebido de forma dinâmica e articulado às práticas sociais e ao mundo do trabalho; § formação continuada dos professores; § tempo regulamentar de trabalho coletivo na escola; § flexibilização das rotinas escolares. Tais indicadores para o regime em ciclos, referem-se tanto às escolas que adotam ciclos nos anos iniciais, mantendo a seriação nas turmas mais avançadas, como às que estabelecem todo o ensino fundamental sob esse regime. O Ciclo Básico, reconhecidamente, representou um avanço em relação ao ensino seriado, por seus efeitos de democratização da escola pública, pelos desafios de desseriação e de mudanças de competência que representa, alterando práticas arraigadas e transferindo poderes, colocando claramente a questão da responsabilidade da escola no fracasso escolar e a necessidade de buscar alternativas para a solução do problema, questionando não apenas o papel do professor mas também dos agentes de supervisão e da própria organização escolar. Entretanto, a produção e a generalização das mudanças paradigmáticas, que se inscrevem na história da implantação do Ciclo Básico, precisam ser entendidas na dimensão de uma heterogeneidade constitutiva, que é, simultaneamente, afirmação e negação. Foi ao longo do tempo, na dinâmica do seu processo de implantação, que o Ciclo Básico, atravessando vários governos, criando seus caminhos e descaminhos, produziu uma cultura do regime em ciclos, que vem se disseminando em todo o país. 8 Ao analisarem as experiências brasileiras sob o regime de ciclos no Brasil, sinalizam para o fato de que tais experiências são bastante variadas e numerosas, acumulando-se desde o final dos anos 50, mas que os estudos mostram que há muitos processos de implementação de ciclos que foram interrompidos abruptamente, ao lado de iniciativas muito recentes. Afirmam, então, que os ciclos ainda não conseguiram consolidar-se enquanto estruturas e práticas inovadoras. Entretanto, consideram que apenas em relação aos ciclos de alfabetização parece haver um relativo consenso de que eles são irreversíveis nas redes em que são instalados há mais tempo, embora estejam longe de ter concretizado um modelo verdadeiramente novo de operar na escola. 11 Referências Bibliográficas ALVES, M. L. O papel equalizador do regime de colaboração estado-município na política de alfabetização. Campinas: UNICAMP/FE, 1990. Dissertação de Mestrado. AMBROSETTI, B. Ciclo Básico: o professor da escola pública paulista frente a uma proposta de mudança . São Paulo: PUC, 1989. Dissertação de Mestrado. BARRETO, E. S. S. de, O ensino fundamental na confluência das políticas públicas em São Paulo. São Paulo: USP/FELCH, 1991. Tese de Doutorado. BARRETO, E. S. S. de & MITRULIS, E. Panorama atual das escolas sob o regime de ciclos no Brasil. Trabalho apresentado no XX Simpósio sobre Políticas e Administração da Educação. ANPAE: Salvador, 25 a 28/11/2001. BONEL, M.M. O ciclo básico: estudo de caso de uma política pública no Estado de São Paulo. Campinas: UNICAMP/FE, 1993. Dissertação de Mestrado. DURAN, M. C. G. Alfabetização na rede pública de São Paulo: a história de caminhos e descaminhos do ciclo básico. São Paulo: PUC, 1995. Tese de Doutorado. FERREIRO, E., TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. MACEDO, L. O construtivismo e a aprendizagem da escrita. In: SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Orientações para o planejamento. São Paulo: SE/CENP, 1989. Encarte do Diário Oficial do Estado de São Paulo. NÉBIAS, C. M. O ciclo básico e a democratização do ensino: do discurso proclamado à representações. São Paulo: USP/Ciências de Comunicações, 1990. Tese de Doutorado. WEISZ, T. As contribuições da psicogênese da língua escrita e algumas reflexões sobre a prática educativa de alfabetização. In: SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas pedagógicas. Ciclo básico em jornada única: uma nova concepção de trabalho pedagógico. São Paulo: SE/CENP, 1988. v.1 p.39-46. 12 ANEXO GRÁFICO 1 – Tipos de abordagem dos textos produzidos GRÁFICO 2 – Tipos de abordagem dos textos produzidos - detalhamento Gráfico 1 - Tipos de abordagem dos textos produzidos 100 50 0 Político Pedagógico Tipos de abordagem dos textos produzidos - detalhamento 30 25 Seqüência1 Seqüência2 Seqüência3 Seqüência4 Seqüência5 Seqüência6 Seqüência7 Seqüência8 Seqüência9 Seqüência10 20 15 10 5 0 1 13 Legenda Descrição do tipo de texto Nº textos Seqüência 1 Textos de cunho político, de discussão e análise da proposta do Ciclo Básico, dos determinantes sociais e políticos da alfabetização Textos numa abordagem no quadro da Psicologia Diferencial envolvendo questões relacionadas à prontidão para a alfabetização e aos aspectos psiconeurológicos da aprendizagem. Textos numa abordagem no referencial construtivista, no quadro da Psicogênese da Língua Escrita (revisão do conceito de prontidão; discussão das hipóteses da criança a respeito da escrita; implicações para a prática. Textos no quadro da Lingüística, admitindo a língua como um sistema pronto de que o sujeito se apropria. Ênfase na codificação e decodificação de letras e sons. Textos no quadro da Lingüísitica admitindo que é o próprio processo interlocutivo, na atividade de linguagem, que a cada vez reconstrói a língua (linguagem como trabalho social e histórico) Textos de discussão da prática e construção de uma proposta de alfabetização: contribuições da psicologia (no quadro do construtivismo), da linguística (admitindo o processo interlocutivo de reconstrução da língua) e dos condicionantes sociais e políticos da alfabetização. Textos de análise de práticas em salas de aula Textos de sugestões de atividades para a sala de aula Textos de discussão dos componentes curriculares Textos que discutem o processo de formação contínua de professores 16 textos Ano/período da publicação 1983/94 5 textos 1983/1984 7 textos 1985/1994 1 texto 1984 5 textos 1985/86, 90 e 94 6 textos 1985/90 3 textos 1990/93/94 5 1985/86/93 4 1986/88/90 e 1994 1990/94 Seqüência 2 Seqüência 3 Seqüência 4 Seqüência 5 Seqüência 6 Seqüência 7 Seqüência 8 Seqüência 9 Seqüência 10 2