Nefrite Lúpica
Eduardo Henrique Costa Tibaldi
1) Introdução
Cinquenta a 75% dos pacientes têm alteração renal no lúpus, porém, a verdadeira
prevalência deve ser em torno de 90%, pois nem todos os pacientes são submetidos à
biópsia renal.
2) Biópsia renal
a) Racional
Deve ser realizada em quase todos os pacientes com evidência clínica ou laboratorial
de comprometimento renal (proteinúria, sedimento urinário ativo ou elevação da
creatinina), pois o quadro clínico pode não corresponder aos achados histológicos e os
diferentes subtipos têm prognósticos e tratamentos diferentes. Exemplos:
• Síndrome nefrótica + sedimento urinário pouco ativo são alterações compatíveis com a
classe V (membranosa).
• Sedimento ativo + pouca proteinúria ou nenhuma + creatinina normal + PA normal =
nefrite lúpica classes I ou II.
• Aumento de creatinina + sedimento urinário ativo + proteinúria nefrótica = nefrite lúpica
proliferativa difusa (classe IV). Deve-se pensar em formação de crescentes em pacientes com
clínica de GNRP.
A biópsia também permite avaliar a presença de doenças tubulointersticial e vascular
concomitantes. Além disso, ela pode dar o diagnóstico de LES nos pacientes com quadro
clínico duvidoso.
Quanto ao tempo, é recomendado que seja realizada rapidamente (dias a semanas)
nos pacientes com indicação estabelecida. Caso haja elevação abrupta da creatinina (GNRP),
a biópsia deve ser realizada em caráter de urgência. O atraso no diagnóstico da nefrite lúpica
tem relação com maior progressão para DRC em estágio terminal.
b) Indicações
- Proteinúria > 500 mg/dia
- Sedimento urinário ativo: hematúria dismórfica e/ou cilindros celulares; leucocitúria
asséptica.
c) Repetição da biópsia renal
A repetição está indicada se a doença é quiescente e ocorra surgimento de
sedimento urinário ativo, nova piora da creatinina e piora da proteinúria apesar do
tratamento.
É importante também considerar o tipo histológico prévio, como ilustrado nos exemplos a
seguir:
• Nefrite lúpica membranosa com sedimento ativo: possível transformação para lesão
proliferativa, porém, a recorrência de proteinúria não indica repetição de biópsia, pois é um
evento comum, especialmente se houver tratamento com ciclosporina.
• Nefrite lúpica classe IV adequadamente tratada e novo sedimento urinário ativo: a
repetição da biópsia renal é quase sempre de caráter prognóstico em casos no qual há
dúvida da viabilidade renal e benefícios da intensificação ou mudança do tratamento
imunossupressor frente aos riscos implicados nessa terapêutica.
É importante ressaltar que, muitas vezes, as lesões imunológicas regridem e as lesões
não imunes progridem (hiperfiltração, atrofia tubular, fibrose intersticial e perda de
néfrons); assim, há consequente piora progressiva da creatinina associada a ausência de
sinais e sintomas de LES em atividade.
3) Diagnóstico de LES (Colégio Americano de Reumatologia - agosto/2012)
São necessários pelo menos 4 critérios, sendo 1 clínico e 1 imunológico. A existência
de biópsia renal com nefrite confirma o diagnóstico. Devemos considerar e descartar os
diagnósticos diferenciais. Exemplo: na existência de infecção do trato urinário, não devemos
associar a hematúria como atividade de doença.
A. Critérios clínicos
- anemia hemolítica
- lúpus cutâneo agudo
- leucopenia ou linfopenia
- lúpus cutâneo crônico
B. Critérios imunológicos
- úlceras orais
- FAN+
- alopécia não cicatrizante
- Anti-dsDNA+
- sinovite
- Anti-Sm+
- serosite
- Anticorpo anti-fosfolipídeo+
- lesão renal
- Complemento consumido
- sinais e sintomas neurológicos
- Coombs direto +
- trombocitopenia
4) Classificação da nefrite lúpica (ISN/RPS - 2004)
- Classe I: nefrite lúpica mesangial mínima. Forma mais leve
• Laboratório: urina I e creatinina normais.
• Microscopia óptica (MO): normal.
• Imunofluorescência (IF) e Microscopia eletrônica (ME): depósitos imunes mesangiais.
A situação é ilustrada nas figuras abaixo:
MO com coloração pelo ácido periódico
de Schiff (PAS): ausência de alterações.
IF: depósitos de IgG no mesângio.
- Classe II: nefrite lúpica proliferativa mesangial.
• Laboratório: hematúria microscópica ou proteinúria.
• MO: hipercelularidade mesangial de qualquer grau e/ou expansão da matriz
mesangial.
• IF e ME: depósitos eletrodensos no mesângio. Pode haver uns poucos depósitos
subepiteliais ou subendoteliais. A figura abaixo exibe depósito de C1q confinado ao
mesângio.
mesangial.
IF: depósitos eletrodensos no mesângio.
- Classe III: nefrite lúpica proliferativa focal.
• Quadro clínico: urina com espuma, edema e HAS. Muitos pacientes têm síndrome
nefrótica.
• Laboratório: hematúria e proteinúria em quase todos os pacientes. Elevação da
creatinina.
• MO: < 50% dos glomérulos com lesão ativa ou inativa, segmentar ou global,
proliferação endocapilar ou extracapilar. Pode haver ou não acometimento do
mesângio.
• ME: depósitos subendoteliais focais.
• Subclassificação:

III (A): somente lesões ativas - nefrite lúpica proliferativa focal.

III (A/C): lesões ativas e crônicas - nefrite lúpica proliferativa e esclerosante.

III (C): lesões crônicas inativas com cicatrizes glomerulares - nefrite lúpica
esclerosante focal.
Distribuição segmentar e focal da
proliferação endocapilar, que ocorre em
menos de 50% dos glomérulos
amostrados.
PAS: proliferação endocapilar segmentar
e necrose, havendo ruptura da MBG e
crescente celular adjacente.
- Classe IV: nefrite lúpica proliferativa difusa. Alguns autores não separam as classes III
e IV.
• Quadro clínico: síndrome nefrótica, HAS e insuficiência renal.
• Laboratório: hematúria, proteinúria, elevação da creatinina, hipocomplementenemia
e aumento dos níveis de anti-DNA.
• MO: > 50% dos glomérulos com lesão ativa ou inativa, segmentar ou global,
proliferação endocapilar ou extracapilar, incluindo lesões necrosantes e envolvimento
mesangial.

IV-S: > 50% dos glomérulos afetados com lesões segmentares.

IV-G: > 50% dos glomérulos afetados com lesões globais.

Com a doença ativa, pode haver o aparecimento de lesões proliferativas e
necrosantes, assim como a formação de crescentes.
• IF: depósito difuso de complemento e de imunoglobulinas.
• ME: depósitos subendoteliais.
Hematoxilina
e
Eosina
(HE):
proliferação mesangial e endocapilar. Os
trombos hialinos e as “wire loops” estão
distribuídos com padrão segmentar.
HE: presença difusa de “wire-loops” sem
proliferação endocapilar significativa.
IF: depósito intenso e difuso de IgG no
mesângio e nas alças capilares
periféricas, o que é consistente com a
distribuição subendotelial.
- Classe V: nefrite lúpica membranosa. Pode ser concomitante às classes III e IV; neste
caso, o sedimento urinário é mais ativo e há maior elevação da creatinina.
• Quadro clínico: apresentação similar à nefropatia membranosa idiopática, havendo
sinais de síndrome nefrótica e HAS.
• Laboratório: hematúria microscópica e pouca elevação da creatinina podem estar
presentes.
• MO: espessamento difuso da membrana basal glomerular; a “prata de Jones”
corrobora este achado e pode evidenciar espículas. A proliferação mesangial está
tipicamente presente.
• IF e ME: depósitos imunes subepiteliais, que podem ser segmentares ou globais. Os
depósitos mesangiais podem estar presentes.
HE: espessamento difuso da MBG.
A prata de Jones exibe as espículas na
MBG.
- Classe VI: nefrite lúpica esclerosante avançada. Representa a cicatriz de um processo
inflamatório agressivo prévio, assim como o estágio avançado das nefrites lúpicas
crônicas classes III, IV ou V.
• Quadro clínico: perda lenta e progressiva da função renal associada a proteinúria e
alguma hematúria. A imunossupressão geralmente não está indicada.
• MO: > 90% dos glomérulos com esclerose global.
Tricrômico de Masson: fibrose
glomerular extensa mostra vestígios
de crescentes fibrosadas. Há ainda
glomérulos com esclerose segmentar,
além de atrofia tubular e túbulos com
hipertrofia
compensatória
(vicariância).
A tabela a seguir correlaciona os achados das diversas técnicas de microscopia:
Tabela 1. Integração dos achados de MO, IF e ME pela classificação da WHO
Microscopia óptica
Classe Mesangial
Parede
capilar
Imunofluorescência
Mesangial
Parede
capilar
Microscopia eletrônica
Mesangial Subendotelial Subepitelial
I
0
0
+
0
+
0
0
II
+
0
+
0
+
0
0
III
+
+
++
+
++
+
+/-
IV
++
++
++
++
++
++
+/-
V
+
++
+
++
+
+/-
++
*Adaptado de Hepintall's Pathology of the Kidney, 6th edition - Table 12.4
- Outras lesões associadas à doença glomerular
• Nefrite tubulointersticial aguda
• Doença vascular
• Lúpus induzido por drogas
• Podocitopatia lúpica
• Lesões renais concomitantes: DM...
- Lesões vasculares no LES
• Arterioesclerose e arteriolosclerose
• Depósitos vasculares imunes e sem complicações
• Vasculopatia do lúpus: vasculopatia necrosante não-inflamatória
• Microangiopatia trombótica

Associada a SHU/PTT

Associada a anticorpos anti-fosfolipídios

Associada com esclerodermia / doença mista do tecido conjuntivo

Vasculite necrosante

Crioglobulinemia
5) Índices de atividade e cronicidade
Para aprimorar a interpretação dos achados histológicos, podemos ainda
utilizar o escore de atividade e cronicidade de Morel Maroger e Austin
(semiquantitativo):
Índices de Atividade
Hipercelularidade endocapilar
Infiltração leucocitária
Depósitos hialinos subendoteliais
Necrose fibrinóide / cariorrexe
Crescentes celulares
Inflamação intersticial
Total
Índices de Cronicidade
Glomérulos escleróticos
Crescentes fibrosas / fibrocelulares
Atrofia tubular
Fibrose intersticial
Total
Faixas de Escores
0-3
0-3
0-3
0-3 (x2)
0-3 (x2)
0-3
0-24
Faixas de Escores
0-3
0-3
0-3
0-3
0-12
6) Tratamento
O tratamento da nefrite lúpica depende da avaliação do grau de
comprometimento da função renal, dos índices de atividade e cronicidade apontados
pela interpretação da biópsia renal, das manifestações extra-renais da doença, e ainda
da consideração de aspectos inerentes aos riscos e efeitos colaterais das drogas
imunossupressoras utilizadas. Essa complexidade de fatores envolvidos faz com que as
decisões terapêuticas sejam guiadas tanto por estudos clínicos disponíveis quanto pela
experiência e bom senso clínico do nefrologista. O panorama atual é melhor que no
passado com sobrevida dos pacientes, mesmo nas formas severas proliferativas, de
aproximadamente 80% em 10 anos.
O arsenal disponível atualmente abrange, entre outras drogas: nefroprotetores
(estatinas, iECA,BRA, e outros hipotensores para controle adequado da PA);
hidroxicloroquina
(antimalárico);
corticoterapia
oral
e/ou
endovenosa;
antiproliferativos (micofenolato, azatioprina); inibidores da calcineurina (ciclosporina,
tacrolimus); ciclofosfamida; uso de imunobiológicos como o rituximab; imunoglobulina
e plasmaferese.
Em geral, todos os pacientes com nefrite têm benefício do uso dos
antimaláricos no controle da doença. As nefrites classes I e II, em geral, dispertam
seguimento nefrológico cuidadoso e uso de nefroproteção. Os pacientes com NL
proliferativa focal ou difusa exigem imunossupressão prolongada, em especial aos
portadores de quadros proliferativos difusos com apresentação em GNRP que
configura uma emergência nefrológica com necessidade de pulsoterapia e
consequente indução do esquema imunossupressor a ser escolhido.
A glomerulonefrite membranosa secundária ao LES pode ter conduta
expectante inicialmente, desde que não haja complicações/refratariedade da
síndrome nefrótica ou hipoalbuminemia importante. Entretanto, a maior parte dos
pacientes exige imunossupressão combinada para remissão e prevenção de recidivas.
Por fim, a biópsia renal prognóstica ajuda a identificar casos com avançada
fibrose intersticial/atrofia tubular e esclerose glomerular difusa (classe VI). Tal
informação, desconsideradas manifestações extra-renais, suscita a retirada da
imunossupressão frente à alta mortalidade por infecções. O preparo adequado para
terapia renal substitutiva é o melhor que o nefrologista pode fazer por alguns
indivíduos acometidos.
7) Referências Bibliográficas
1. Jennette, J. Charles et al. Hepinstall's Pathology of the Kidney, 6ª edição. Lippincott
Williams & Wilkins, 2007.
2. Bomback, A. S.; Appel, G. B. Diagnosis and classification of renal disease in systemic
lupus erythematosus. UpToDate, 2015.
3. Falk, R. J. et al. Indication for renal biopsy in patient with lupus nephritis. UpToDate,
2015.
4. Toledo Barros, Ribeiro Alves Dantas, Kirsztajn, Sens et al. Glomerulopatias:
patogenia, clínica e tratamento. 2ª edição. Sarvier, 2006. Cap 17, pag 261-272.
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