INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA DE SÃO PAULO
LLM- Direito dos Contratos
GRACIANA MAUTARI NIWA
Anotações acerca do contrato de prestação de serviços
empresarial à luz do novo Código Civil
SÃO PAULO
2011
2
GRACIANA MAUTARI NIWA
Anotações acerca do contrato de prestação de serviços
empresarial à luz do novo Código Civil
Monografia apresentada ao Curso LLM Direito dos
Contratos, como requisito parcial para a obtenção do
Grau de Pós-Graduação Lato Sensu.
Orientador: Prof.Daniel Martins Boulos
3
Catalogação na publicação
Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa
LLM- Direito dos Contratos
Niwa, Graciana Mautari.
Anotações acerca do contrato de prestação de serviços
empresarial à luz do novo Código Civil/ Graciana Mautari Niwa;
orientador: Prof. Daniel Martins Boulos. São Paulo, 2011.
Monografia (Programa de Pós-graduação em Direito. Área de
concentração: Direito dos Contratos) – Insper – Instituo de Ensino e
Pesquisa de São Paulo.
1. Anotações acerca do contrato de prestação de serviços
empresarial à luz do novo Código Civil. I. Título.
4
FOLHA DE APROVAÇÃO
GRACIANA MAUTARI NIWA
Anotações acerca do contrato de prestação de serviços empresarial à luz do
novo Código Civil.
Monografia apresentada ao Programa de LLM em
Direito dos Contratos, como requisito parcial para a
obtenção do título de pós-graduado em Direito.
Área de concentração: Direito dos Contratos
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Daniel Martins Boulos
Instituição: Insper
Assinatura:______________________
Prof.
Instituição: Insper
Assinatura:______________________
Prof.
Instituição: Insper
Assinatura:______________________
5
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a minha mãe Aracy, pessoa que amo muito e sempre
esteve presente em todos os momentos de minha vida de forma incondicional.
6
AGRADECIMENTOS
Ao meu professor orientador, um grande conhecedor das ciências jurídicas,
pelo qual tenho grande apreço. Aliás, de fato me mostrou diversas grandes luzes
não só nesse meu trabalho, mas também durante o percurso do curso LLM Direito
dos contratos, quando inclusive pude muito aplicar essas no meu dia a dia prático.
A minha querida Cássia, que durante tempos difíceis, me deu as mãos e me
ensinou a vencer o caminho das pedras.
Ao meu paizinho Massamiti, por todo o suporte necessário quando mais
precisei.
A minha irmã Ane, quem eu amo muito.
A minha querida Sueli, que vem me dando dicas preciosas para que eu possa
enfrentar mais uma etapa difícil de minha vida.
A todos os meus amigos, que me incentivaram a finalizar este trabalho de
forma positiva.
Por fim, agradeço a Deus por todas as forças que ele tem me proporcionado.
7
RESUMO
NIWA, Graciana Mautari. Anotações acerca do contrato de prestação de serviços
empresarial à luz do novo código civil. São Paulo, 2011. LLM Direito dos Contratos.
Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa.
A presente monografia tem a finalidade de analisar o contrato de prestação de
serviços sob enfoque empresarial. Para isso, faz-se o estudo do contrato, a evolução
histórica, a classificação, a alegada crise, e os princípios contratuais, bem como,
explanada a ideia das cláusulas gerais. Para que fosse possível a análise foi
estudado o contrato de prestação de serviços sob a ótica do Código Civil, seu
histórico e seus principais aspectos. Após este estudo preliminar, foram analisados
os princípios contratuais (tradicionais e os modernos). Ao final, enfatizamos o estudo
de como seriam aplicados os princípios contratuais sociais no contrato de prestação
de serviços empresariais, de acordo com a Jurisprudência.
Palavras-chave: Contrato – Prestação Serviços – Empresarial – Código Civil –
Princípios contratuais – Sociais – Jurisprudência.
8
ABSTRACT
NIWA, Graciana Mautari. Anotações acerca do contrato de prestação de serviços
empresarial à luz do novo código civil. São Paulo, 2011. LLM Direito dos Contratos.
Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa.
The present monograph has the purpose to analyze the corporate service
agreement. For this, studies were made on contract, historical evolution,
classification, his alleged crisis, contractual principles, as well as it has explained the
idea of the General clauses. So that such analysis was made possible it was studied
service agreement from the perspective of the Civil Code, its history and its main
aspects. After this preliminary study, we analyzed the contractual principles
(traditional and modern). At the end, we emphasize the study of how the principles
would apply in corporate service agreement, in compliance with the case law.
Key- words: Contract – Service – Corporate – Civil Code - Contractual Principles –
Social – Case law.
9
ABREVIATURAS E SIGLAS USADAS
abr.abril
abr/jun abril/junho
ago. agosto
art. artigo
arts. artigos
BA Bahia
CC. Código Civil
cit. citado
coord. Coordenação
DF Distrito Federal
DJ Diário de Justiça
DJE Diário de Justiça Eletrônico
ed. edição
EDcl. Embargos de Declaração
ES Espírito Santo
jan. janeiro
jan/mar janeiro/março
j. julgado
jun/fev junho/fevereiro
mar. março
MG Minas Gerais
nov.novembro
n° número
10
n°s números
op.cit. obra citada
out. outubro
out/dez outubro/dezembro
p. página
PR Paraná
REsp Recurso Especial
r. respeitável
RT Revista dos Tribunais
RJ Rio de Janeiro
set/dez setembro/dezembro
SP São Paulo
STJ Superior Tribunal de Justiça
trad. Tradução
vol. volume
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................
13
CAPÍTULO 1 DO CONTRATO EM GERAL
1.1 Evolução Histórica do Contrato...............................................................
15
1.2 Conceito de contrato...............................................................................
20
1.3 Panorama resumido da classificação dos Contratos: destaque para os
contratos típicos e atípicos......................................................................
22
1.4 Dos Princípios e dos Princípios Contratuais..........................................
26
1.5 Das cláusulas gerais, do código civil de 2002 e dos riscos de sua
aplicação abusiva pelos operadores do direito ............................................
28
1.6 A crise do contrato..................................................................................
33
CAPÍTULO 2 DO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À LUZ
DO CÓDIGO CIVIL
2.1 Breve antecedente histórico da concepção do Contrato de Prestação
de Serviços adotado pelo Código Civil de 2002...........................................
2.2 Conceito e caracteres............................................................................
2.3 Dos principais aspectos do contrato de prestação de serviços............
2.3.1 A esfera de aplicação das normas do Código Civil de 2002..............
2.3.2 Do objeto e da Remuneração..............................................................
2.3.3 Do tempo de duração..........................................................................
35
36
37
38
40
41
2.3.4 Da distinção existente do contrato de prestação de serviços com o
contrato de empreitada e com o contrato de trabalho.................................
43
2.3.5 Da relação de alguns dispositivos do Código Civil com o princípio da
função social e da boa-fé objetiva...........................................................
45
CAPÍTULO 3 DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS E O CONTRATO DE
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EMPRESARIAL
3.1 Introdução preliminar e classificação dos princípios contratuais............
51
3.1.1 A não exclusão dos princípios contratuais tradicionais: momento de
hipercomplexidade........................................................................................
51
3.1.2 Do Princípio da Autonomia da Vontade e do Princípio da Autonomia
Privada e as suas distinções........................................................................
52
12
3.1.3 Do princípio da força obrigatória dos contratos (Pacta Sunt
Servanda) ou Do princípio da força vinculante das convenções................
55
3.1.4 Do princípio da relatividade dos efeitos contratuais............................
58
3.1.5 Do princípio do consensualismo..........................................................
60
3.2 Do princípio da boa-fé objetiva...............................................................
61
3.2.1 O surgimento no ordenamento jurídico brasileiro do princípio da
boa-fé objetiva e o fundamento do princípio................................................
61
3.2.2 Do conceito de boa-fé objetiva............................................................
63
3.2.3 Distinção entre Boa-fé Objetiva e Boa-Fé Subjetiva...........................
67
3.2.4 As três funções da Boa-Fé Objetiva....................................................
69
3.2.5 Efeitos da violação ao princípio da boa-fé objetiva.............................
81
3.3 Do princípio da Função Social................................................................
82
3.3.1 Da noção preliminar e do fundamento constitucional do princípio da
função social do contrato..............................................................................
82
3.3.2 Do princípio da função social e o seu conteúdo..................................
85
3.3.3 Artigo 421 CC: natureza da Norma de Ordem Pública.......................
86
3.3.4 Da função social e os aspectos internos e externos...........................
87
3.3.5 Alguns casos de aplicação da função social.......................................
90
3.4 Do princípio da justiça contratual............................................................
92
3.4.1
Aspectos
objetivos
e
subjetivos
do
princípio
da
justiça
contratual......................................................................................................
95
3.4.2 Da lesão...............................................................................................
96
3.5 Da jurisprudência específica no contrato de prestação de serviços
empresarial e os princípios contratuais sociais............................................
99
CAPÍTULO 4 DA CONCLUSÃO
4.1 Da conclusão Genérica..........................................................................
4.2 Da conclusão específica.........................................................................
Referências...................................................................................................
124
126
130
13
INTRODUÇÃO
Durante a minha prática profissional notei uma maior demanda em
relação aos contratos de prestação de serviços sob a ótica empresarial.
E aliada a esta necessidade, durante o curso de LLM–Direito dos
Contratos tive uma aula sobre princípios contratuais que me fez começar a indagar
muitas questões, notadamente, na esfera empresarial. Imaginava como poderiam
ser resolvidas na prática as demandas dos casos de contrato de prestação de
serviços empresarial no que se refere a estes princípios da boa-fé objetiva, função
social e da justiça contratual?
Ainda notei durante as aulas que realmente o tema era bastante teórico e
árido, e pouco a pouco, foi surgindo uma maior curiosidade de estudar o contrato de
prestação de serviços empresarial mais com um toque nos princípios contratuais.
E mais como se não bastasse isso, de fato, atualmente é crescente a
utilização dos contratos de prestação de serviços no âmbito corporativo. Com este
aumento do uso deste tipo de contratação, sobre outro aspecto, também
proporcionalmente se incrementaram os problemas nesta seara. E apesar disto, há
pouca doutrina especializada nesse assunto.
Sobre outro aspecto, com a promulgação do Código Civil de 2002 foi
trazido à tona uma maior discussão sobre os princípios, tais como da função social
do contrato, da boa-fé objetiva, e da justiça contratual. Estes princípios mencionados
buscaram melhor nortear os conflitos surgidos nos contratos, dentre eles também o
contrato de prestação de serviços sob enfoque empresarial.
O intuito do presente estudo, é, enfim, tentar delinear os aspectos
principais do contrato de prestação sob enfoque empresarial, não podendo se
olvidar, logicamente, os princípios contratuais que norteiam qualquer avença. Para
tanto, foram utilizados na confecção da monografia os métodos comparativos e do
caso.
E ainda para se alcançar o almejado, foi esboçada uma trajetória com
técnicas de coleta de documentos indiretos. Ou seja, foi feita pesquisa documental
de sentenças, acórdãos e pareceres que serão encontrados nas bibliotecas. Como
também foi feita uma pesquisa bibliográfica em livros, artigos e revistas periódicas.
14
Enfatiza-se, buscando entender melhor o contrato estudado, foi delineada
no Capítulo 1, genericamente, a evolução histórica de qualquer contrato. Como
também, no primeiro capítulo discorremos sobre o conceito, classificação, dos
princípios contratuais, da alegada crise dos contratos e acerca da idéia das
cláusulas gerais.
No Capítulo 2, tratamos especificamente do contrato de prestação de
serviços, seu histórico, suas principais características, e seus aspectos principais.
Finalizamos o capítulo fazendo uma interface entre alguns dispositivos legais do
Código Civil do contrato de prestação de serviços com os princípios da função social
e da boa-fé objetiva.
No Capítulo 3, explanamos de forma genérica sobre os princípios
contratuais tradicionais e os modernos. Ao final do capítulo, pincelamos como estes
princípios sociais são aplicados pelos juízes.
O presente trabalho encerra em considerações finais (Capítulo 4), nas
quais serão apresentadas de forma genérica e de forma específica. A consideração
genérica explicará de forma resumida todo o objeto do estudo, já a específica tecerá
uma análise sob uma ótica mais acurada do problema.
Convém enfatizar, que a dificuldade do tema, deu-se em razão da pouca
doutrina especializada sobre o contrato estudado. Depois, também houve dificuldade
em relação aos poucos julgados no âmbito do contrato de prestação de serviços
empresarial, já que hoje a maior demanda do Judiciário está nos litígios do âmbito
do consumidor, conforme inclusive pudemos notar durante a pesquisa.
15
CAPÍTULO 1 DO CONTRATO EM GERAL
1.1
Evolução Histórica do Contrato
Num primeiro momento, é importante traçarmos um esboço histórico do
contrato. Em verdade, consoante demonstrado nos próximos parágrafos, o contrato,
seu conceito e seus princípios ao longo do tempo foram sendo moldados de acordo
com as vicissitudes históricas.
O conceito de contrato foi sendo formulado mediante o tempo desde o
direito romano. Nessa época, o contrato era visto como instrumento de pacificação
social visando à superação da apropriação violenta da res, já que esta era uma fator
que frequentemente desencadeava conflitos sociais. Logicamente, que ainda não
existia um instituto jurídico que abrangesse as diversas operações econômicas. No
entanto, já existia entre eles uma ideia de convenção, que era o gênero. As espécies
do gênero convenção eram os pactos e os contratos.
Também o contrato era definido como a situação na qual nascia o vínculo
jurídico em que consiste a obrigação. Para serem considerados como contratos, os
acordos precisavam de certas formalidades, tais como nexum, sponsio e estipulatio.
Outro ponto importante a ser anotado sobre o contrato, este era provido de actio
para a sua proteção como expressão do vínculo obrigacional. Essa característica
distinguia-se dos pactos, os quais geravam obrigações naturais, e não eram
protegidos por ações. Nessa hipótese (pactos), só poderiam ser arguidas as
exceções na defesa do demandado. Para o direito romano, os pactos são acordos
de vontade que não geram efeito jurídico imediato, de modo que não produziam nem
proporcionavam ação para exigir o cumprimento do convencionado1.
Tal conceito evoluiu, e gradativamente mitigou-se o rigor formal para se
aproximar a sua expressão clássica, qual seja a plena manifestação da vontade que
vincula os indivíduos, gerando direitos e deveres. Tudo isso ocorreu no início da
Idade Moderna. Nessa evolução, é de suma relevância a influência do direito
1
DIEZ-PICAZO, Luis. Fundamentos del derecho civil patrimonial: introducction y teoria del contrato. 5ª
ed. Madrid: Civitas,1996. p.119; LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria Geral dos contratos no novo
código civil. São Paulo: Método, 2002, p.27-28.
16
canônico, o qual confere valor fundamental ao consenso, e estipulava a ideia de que
a vontade é fonte de obrigação, fundado em considerações de ordem ética e moral,
impondo a obrigação de observar o cumprimento das convenções realizadas. 2
Durante a Idade Média até o século XIX, o Estado impôs limitações no
plano contratual.
A partir do século XIX, o liberalismo individualista firmou-se e com ele se
defendia a interferência mínima do Estado, ampliando-se, com essa postura estatal,
a liberdade contratual e ao mesmo tempo fazendo do contrato um instrumento
jurídico que possibilitou a circulação de riquezas, essencial na economia capitalista.3
O surgimento do Estado Liberal está intrinsecamente ligado à ascensão
da burguesia (nova classe detentora do poder econômico e político com a queda da
aristocracia feudal). Visando a transferência de titularidade das propriedades
pertencentes ao clero e à nobreza para a burguesia emergente, fez-se
imprescindível o uso de um instrumento técnico-jurídico que regulasse de maneira
segura e adequada essas transações. O contrato, concebido com base na ampla
liberdade de contratar, foi a peça-chave nesse processo. Nesse sentido, importante
anotar Enzo Roppo relatando sobre esta passagem histórica na França em sua obra
“O contrato”4:
“(...) Símbolo e simultaneamente manifestação concreta da
vontade revolucionária de realizar um tal objectivo, foi a
deliberação, tomada pela Assembleia Nacional na histórica
“noite de 4 de agosto” (1789), de suprimir todos os privilégios e
os direitos feudais que impendiam sobre a terra; a sua
coroação foi a definição legislativa do direito de propriedade,
que o código de 1804 solenemente esculpiu como “o direito de
gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta” (art.544.)
(e, com esta, o princípio da tipicidade – ou “numerus clausus” dos direitos reais menores susceptíveis de comprimir a sua
plenitude).
2
STIGLITZ, Rúben S. (Org). Contratos: teoria general. vol.2. Buenos Aires: Depalma,1994, p.24.
WALD, Arnoldo. Obrigações e Contratos, vol.2, 14ª ed.rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, p.184.
4
ROPPO, ENZO. O contrato. Tradução: Ana Coimbra e M. Januário C.Gomes. Coimbra: Almedina,
2009, p.45.
3
17
Mas isto não era suficiente: urgia ainda uma deslocação
significativa da disponibilidade dos recursos econômicos
(portanto da propriedade imobiliária) das classes – nobreza e
clero – que eram tradicionalmente os seus titulares, e cujo
papel político e econômico aparecia agora em declínio, para a
burguesia, a classe vitoriosa, que era chamada pela história a
fundar a sua hegemonia sobre aquela riqueza e sobre a sua
capacidade de multiplicá-la. E igualmente a realização de tal
objectivo teve lugar nos anos imediatamente seguintes à
Revolução: com as vendas abundantes de “bens nacionais”,
antes pertencentes ao clero e adquiridos, na sua maior parte,
por representantes do “terceiro estado”, começou, de facto,
aquele processo de transferência da riqueza das classes
vencidas para a nova classe nascente, que, depois de várias
formas, se desenvolveria e aperfeiçoaria, até reunir nas mãos
da burguesia – e confiar às suas capacidades e iniciativas
empresariais – a grande massa dos recursos produtivos. Mas
para que este processo de transferência da riqueza pudesse
efectivar-se da forma melhor e mais segura e de molde a não
provocar desperdícios, atritos e lesões demasiado graves, era
necessário um instrumento técnico-jurídico adequado. Este foi
justamente o contrato, e a disciplina contratual peculiar
codificada pelo legislador de 1804: liberdade de contratar,
baseada no consenso dos contraentes – poderia ser o slogan
que o resume.(...)” (g.n)
Convém ressaltar que nessa época o Estado deixou de ter um poder
absoluto para passar a ter um poder limitado ao mínimo necessário para o
desenvolvimento das relações. Havia uma restrição do poder estatal como reflexo no
plano jurídico do desenvolvimento do liberalismo econômico.
Depois da Revolução Francesa, no âmbito contratual, é o império da
autonomia privada e do pacta sunt servanda. Sob a influência do liberalismo, o
contrato acaba manifestando o fim do regime particularista vigente até então. As
aspirações da burguesia mudam a ótica aristocrática do direito, e a liberdade passa
18
a ser o elemento essencial.5 Nesse panorama jurídico, a teoria da autonomia da
vontade era a base do direito contratual.6 Para essa teoria não existia uma
preocupação em se atingir a efetiva justiça nos contratos firmados; o que era
primordial nessas relações era a observância da ampla liberdade das partes.
Obedecia-se ao pensamento qui dit contractuel dit juste, retrato da igualdade formal
instituído pelo Estado liberal, se as partes contrataram livremente e eram iguais, ali
existia justiça e o contrato deveria ser cumprido.7 Dessa teoria resultam outros dois
princípios fundamentais na concepção clássica de contrato, a liberdade contratual e
a obrigatoriedade do contrato, já que apenas existe vinculação nas obrigações
assumidas de forma voluntária.8
Nesse passo, importante notar que os códigos que nasceram a partir do
século XIX não mudaram a concepção clássica de contrato. Vide, por exemplo, o
Código Civil Francês de 1804, o Código Civil Italiano de 1865, o Código Civil
Português de 1867, o Código Civil Espanhol de 1889, o Código Civil Alemão de
1896 e o próprio Código Civil Brasileiro de 1916.
Dentro desse pensamento acima descrito (princípio da igualdade formal),
triunfo da Revolução Francesa, fundamentou-se a omissão do Estado no momento
da formação do contrato.9 Todavia a presumida igualdade formal das partes
apresentou-se
deficiente
para
o
equilíbrio
contratual,
ocasionando
descontentamento em grande parte da população.
5
ROPPO, ENZO. O contrato. Tradução: Ana Coimbra e M. Januário C.Gomes. Coimbra: Almedina,
2009, p.45.
6
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, 18ª ed., 2. Tiragem, Rio de Janeiro: Forense, 2001,
p.83.
7
Neste sistema, fundado na mais ampla liberdade de contratar, não havia lugar para a questão da
intrínseca igualdade, da justiça substancial das operações económicas de vez em quando realizadas
sob a forma contratual. Considerava-se e afirmava-se, de facto, que a justiça da relação era
automaticamente assegurada pelo facto de o conteúdo deste corresponder à vontade livre dos
contraentes, que, espontânea e conscientemente, o determinavam em conformidade com os seus
interesses, e, sobretudo, o determinavam num plano de recíproca igualdade jurídica (dado que as
revoluções burguesas, e as sociedades liberais nascidas destas, tinham abolido os privilégios e as
discriminações legais que caracterizavam os ordenamentos em muitos aspectos semifeudais do
“antigo regime” afirmando a paridade de todos os cidadãos perante a lei): justamente nesta igualdade
de posições jurídico-formais entre os contraentes consistia a garantia de que as trocas, não viciadas
na origem pela presença de disparidades nos poderes, nas prerrogativas, nas capacidades legais
atribuídas a cada um deles, respeitavam plenamente os cânones da justiça comutativa. Liberdade de
contratar e igualdade formal das partes eram portanto os pilares – que se completavam
reciprocamente – sobre os quais se formavam a asserção peremptória, segundo a qual dizer
“contratual” equivale a dizer “justo” (“qui dit contractuel dit juste”).(g.n) (ROPPO, Enzo, Op.cit., p.35)
8
SILVA, Agathe E. Schimdt da. Cláusula geral de boa-fé nos contratos de consumo. Revista de Direito
do Consumidor, n.17, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan/mar. 1996, p.147.
9
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria Geral dos contratos no novo código civil. São Paulo: Método,
2002, p.38.
19
Nesse instante relatado acima, houve a transição do Estado Liberal para
o Estado Social, cujo surgimento deu-se em razão da premente necessidade de ele
não ser mais mero espectador para passar a ser mais preocupado com as
demandas sociais. Foi no século XX que este Estado Social nasceu com as
particularidades de um poder limitado e com a função de assegurar os direitos
individuais, políticos, sociais e econômicos. O Welfare State tem o intuito de proteger
os mais fracos, e se revela pela intervenção legislativa, administrativa e judicial nas
atividades privadas.10
No âmbito do direito dos contratos, esse Estado Social começou também
a intervir para mitigar as diferenças nas contratações. Observa-se o dirigismo
contratual caracterizado pela “redução da liberdade de contratar em benefício da
ordem pública”, tanto que Josserand chega mesmo a considerá-lo a “publicitação do
contrato”.11 Isso significa dizer que o Estado Social não só intervém, como também
dirige, regulamenta e fiscaliza.12 Foi nesse momento que o Estado Social editou
diversas normas protetoras de categorias antes prejudicadas pela utopia da
igualdade formal, para com essa conduta tentar estabelecer maior equilíbrio nas
relações, bem como estimulando que as partes mais hipossuficientes se
organizassem em grupos visando encarar com maior igualdade as partes mais fortes
economicamente ou socialmente.
Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com a denominada
sociedade de consumo, fica ainda mais nítido o insucesso do liberalismo econômico
como forma de regular os contratos. A partir desse instante, buscou-se harmonizar o
liberalismo com o dirigismo contratual. Os anseios por maiores recursos, a
necessidade de tutelar os mais fracos nas relações jurídicas e de impedir o
surgimento de interesses privados que colidissem com os interesses públicos foram
elementos causadores que provocaram a intervenção cada vez mais intensa do
Estado na esfera da economia, e mais especialmente nas relações contratuais.13
10
LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípios sociais dos contratos no código de defesa do consumidor e no
novo código civil. Revista de Direito do Consumidor n.42, São Paulo: Revista dos Tribunais, abr/jun.
2002, p.187.
11
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil cit. vol.3, 11ª ed. rev.atual., Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p.13.
12
LOBO, Paulo Luiz Netto. Do contrato no estado social: crise e transformações. Maceió: Edufal,
1983, p.51.
13
WALD, Arnoldo. Obrigações e Contratos, vol.2, 14. ed.. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, p.190.
20
Atualmente, após as mudanças sociais e econômicas estabelecidas pela
Revolução Industrial e as duas guerras mundiais, exigiram do Estado uma conduta
nova e a revisão do modelo clássico de contrato. Os particulares exigem a
segurança do Estado que agora era obrigado a assegurar a igualdade com a
proteção do mais fraco e com isto valorizar o interesse coletivo. Nesse pano de
fundo de transformações históricas, a função social do contrato começa a ganhar
amplitude em conjunto com o elemento ético boa-fé, sendo este fator essencial para
o equilíbrio na expressão da vontade humana.
O contrato progride de rígido, imutável de ontem para flexível e dinâmico,
que prefere ao interesse comum e a função social ao invés do benefício particular
das partes envolvidas. Dessa forma, era indispensável uma reformulação dogmática
da ideia clássica de contrato, passando o absoluto para o relativo, sem abdicar da
segurança jurídica necessária ao desenvolvimento da economia, tendo em vista que
o direito deve almejar o equilíbrio entre a segurança e a justiça contratual.14
1.2 Do conceito de contrato
Num segundo momento, após uma breve noção histórica do contrato,
passaremos ao conceito de contrato.
Destaque-se, o Código Civil Brasileiro de 2002 e o Código Civil Brasileiro
de 1916 preferiram não conceituar o instituto do contrato por entenderem que esta
função caberia à doutrina. Note-se, interessantemente que o Código Civil de 2002
definiu diversas figuras contratuais, todavia não expressou o significado de contrato.
Após essas preliminares constatações, convém enfatizar que almejando
preencher a lacuna da lei, a doutrina procura esclarecer o conceito de contrato.
Senão vejamos.
Aliás, para entender o conceito de contrato, mister se faz compreender
primeiro a definição de negócio jurídico. Antonio Junqueira de Azevedo assevera
que o:
14
WALD, Arnoldo. Aspectos controvertidos no novo código civil. Escritos em homenagem ao Ministro
José Carlos Moreira Alves. In, A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo código civil. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 67 e 70.
21
“negócio jurídico é todo fato jurídico consistente em declaração
de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui os efeitos
designados como queridos, respeitados os pressupostos de
existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que
sobre ele incide.” (g.n)15
Já conceituando o contrato, Orlando Gomes entende que este é o
“negócio jurídico bilateral ou plurilateral, que sujeita as partes à observância de
conduta idônea à satisfação dos interesses que a regularam.”16 (g.n)
Marco Aurélio Bezerra de Melo preleciona a noção de contrato e também
enfatiza a visão dele com base nos princípios sociais dele, no seguinte sentido:
“o contrato é negócio jurídico bilateral pelo qual as pessoas,
naturais ou jurídicas, se obrigam com o objetivo de obterem do
direito algum bem da vida ou a defenderem determinado
interesse, devendo observar a função social e econômica do
mesmo, preservando, em todas as fases do pacto, a probidade
e a boa-fé.” 17 (g.n)
Depois dessa exposição breve, apenas para situar sobre a definição de
contrato, podemos compreendê-lo como acordo de vontades das partes visando
criar, modificar e extinguir uma relação jurídica patrimonial.
E mais, é um negócio jurídico bilateral, e em razão dessa sua natureza
naturalmente se aplicam a Parte Geral dos Negócios Jurídicos estipulados nos
artigos 104 até 184 do Código Civil Brasileiro de 200218, adicionados a Parte
especial dos contratos fixada nos artigos 421 até 480 do Código Civil Brasileiro de
2002. Especificamente no que tange ao contrato estudado, aplicam-se os artigos
15
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio Jurídico – Existência, Validade e Eficácia, apud MELO,
Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos –Tomo I. 2ª
ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.2.
16
GOMES, Orlando. Contratos, 17ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 1996, p.10.
17
MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts. 421 a 652), III. vol. ~Contratos –
Tomo I. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.3.
18
ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo código civil. Revista Forense, vol. n. 371, Ano
100, Rio de Janeiro: Forense, jan/fev.2004, p.54-56; NERY JUNIOR, Nelson. Contratos no Código
Civil. Apontamentos Gerais. In: FRANCIULLI NETTO, Domingos; MENDES, Gilmar Ferreira;
MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva (Coord.) O Novo Código Civil. Estudos em homenagem ao
Professor Miguel Reale. 2ª ed., São Paulo: Editora LTr, 2003, p.434.
22
acima mencionados acrescentando os artigos 593 até 609 do Código Civil Brasileiro
de 2002.
Sobre outro aspecto, indubitável lembrar que os contratos são
instrumentos de circulação de riquezas e, nesse ponto, importante anotar a lição de
Enzo Roppo ao entender que o contrato é a veste jurídica das operações
econômicas.19 No mesmo sentido, a definição de Humberto Theodoro Júnior ao
conceituar
o
contrato
como
“um
instrumento
de
jurisdicionalização
dos
comportamentos e das relações humanas no campo das atividades econômicas.”20
Logicamente que consoante já demonstrado no histórico (1.1) desta
monografia, não podemos olvidar: o contrato não pode mais ser visto como
instrumento regulatório dos interesses dos contratantes, mas deve ser analisado
como instrumento de utilidade social. Nesse ponto, conforme entende Miguel Reale,
o contrato surge de uma correlação fundamental entre o valor do indivíduo e o valor
da coletividade:
“O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo
como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a
sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e
onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida.”21
1.3 Panorama resumido da classificação dos Contratos: destaque para os
contratos típicos e atípicos
Neste tópico não ousamos em fazer uma classificação exaustiva, pois isto
fugiria do escopo do trabalho. Preferimos adotar uma classificação bem mais sucinta
com ênfase para os contratos típicos e atípicos, e outras classificações que
repercutem na ótica do contrato de prestação de serviços. (vide Capítulo 2, item 2.2
deste trabalho).
19
ROPPO, ENZO. O contrato. Tradução: Ana Coimbra e M. Januário C.Gomes. Coimbra: Almedina,
2009, p.9-10.
20
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Contrato e seus Princípios. 3ª ed., Rio de Janeiro: Aide, 2001,
p.61.
21
REALE, Miguel. O projeto do Código Civil – Situação atual e seus problemas fundamentais. São
Paulo: Saraiva, 1984, p.10.
23
Os contratos podem ser classificados em diversas categorias de acordo
com a ótica do operador de direito.
No que se refere a sua designação22, os contratos podem ser típicos ou
atípicos.
A “tipicidade significa presença, e atipicidade ausência de tratamento
legislativo específico.”23 E mais, Álvaro Villaça Azevedo ensina a diferença entre
ambos os institutos:
“Os contratos típicos recebem do ordenamento jurídico uma
regulamentação particular, e apresentam-se com um nome, ao
passo que os atípicos, embora possam ter um nome, carecem
de disciplina particular, não podendo a regulamentação dos
interesses dos contratantes contrariar a lei, a ordem pública, os
bons costumes e os princípios gerais de direito.”24
Daniel M. Boulos sobre a definição de contratos atípicos e típicos
preleciona:
“São considerados contratos típicos aqueles que possuem
regulamentação específica na lei e contratos atípicos aqueles
que não encontram na lei um modelo de regulamentação
próprio e exclusivo. Convém esclarecer que, para ser
considerado típico, não basta que o contrato seja de qualquer
forma regulamentado pela lei. Mister se faz que haja,
efetivamente,
na
especificamente
lei,
um
destinado
modelo
àquele
de
tipo
regulamentação
contratual
que
proporcione as partes ao menos, uma disciplina básica do
contrato.” (g.n)25
Como exemplos de contratos atípicos citamos os elucidados pelo
doutrinador Marco Aurélio Bezerra de Melo:
22
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Teoria Geral das obrigações contratuais e
extracontratuais, vol.3, 13ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p.85.
23
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos. Curso de Direito Civil. 2ª
ed., São Paulo: Atlas, 2004, p.137.
24
Ibid. p.138.
25
BOULOS, Daniel M. A importância e a disciplina dos contratos atípicos. São Paulo: News Ibmec
Direito, agosto, edição 23, n. 3.
24
“À guisa de exemplificação de contratos atípicos, imaginemos
uma prestação de serviços gratuita, uma permuta de obrigação
de fazer pela entrega de determinado objeto, contrato bancário
de abertura de conta corrente com disponibilização de um
limite de crédito, contrato bancário de depósito de uma jóia em
que se tem um misto de depósito e locação, contrato de cartão
de crédito em que se tem uma prestação de serviços cumulada
com o financiamento, uma doação onerosa em que o encargo
supera a vantagem criada pela liberalidade, o contrato de
estacionamento de veículos, o engineering, que é um misto de
cessão do know-how com empreitada e venda da indústria que
se elaborou para o outro contratante.” 26 (sic) (g.n)
O artigo 425 do Código Civil de 2002, aliás, autoriza os particulares a
criarem figuras contratuais, desde que estas não violem as normas do código civil, a
ordem pública e aos bons costumes. E o regime jurídico desses contratos atípicos
seriam os dispositivos constantes do Código Civil que disciplinam os negócios
jurídicos e os contratos em geral (artigos 104 ao 184 e 421 e 480 do Código Civil)27
No que se refere à obrigação assumida pelos contratantes28, os contratos
podem ser unilaterais ou bilaterais.
Os unilaterais são os contratos que criam obrigações somente para cada
uma das partes, tal como, por exemplo, a doação (art.538 a 564 CC), e o mútuo
(art.586 a 592 CC).29 Os bilaterais são aqueles contratos que geram obrigações para
ambas as partes, em um autêntico vínculo de reciprocidade, vide, por exemplo, o
contrato de prestação de serviços (art.593 a 609 CC).30
No que se refere ainda à obrigação assumida pelos contratantes31, os
contratos podem ser onerosos ou gratuitos.
26
MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos –
Tomo I. 2ª ed., Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2004, p.32.
27
BOULOS, Daniel M. A importância e a disciplina dos contratos atípicos. São Paulo: News Ibmec
Direito, agosto, edição 23, n. 3.
28
MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos –
Tomo I. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.12.
29
Ibid., p.12.
30
Ibid, p.12.
31
Ibid, p.13.
25
Os onerosos segundo Sílvio de Salvo Venosa são:
“aqueles em que ambos têm direitos e deveres, vantagens e
obrigações; a carga ou responsabilidade contratual está
repartida entre eles, embora nem sempre em igual nível. As
partes concedem-se reciprocamente direitos e reciprocamente
contraem
obrigações.
A
onerosidade
identifica-se
primordialmente pela contraprestação que segue à prestação,
pela vantagem que decorre de um sacrifício do contratante.
Pode ocorrer que o dever de um dos contratantes esteja em
âmbito maior que o do outro. Como contratos onerosos temos
a permuta, compra e venda, empreitada, etc.”32
Já os gratuitos na visão do referido mestre abaixo transcrita:
“Nos contratos gratuitos, toda a carga da responsabilidade
contratual fica por conta de um dos contratantes; o outro só
pode auferir benefícios do negócio. Daí a denominação
também consagrada de contratos benéficos. Inserem-se nessa
categoria a doação sem encargo, o comodato, o mútuo sem
pagamento de juros, o depósito e o mandato gratuitos.” 33
No que se refere ainda à obrigação assumida pelos contraentes 34, os
contratos podem ser comutativos ou aleatórios.
Os comutativos segundo Marco Aurélio Bezerra de Melo:
“são pactos onerosos em que as partes se obrigam a realizar
prestações e contraprestações adredemente definidas e
razoavelmente equivalentes.”35
32
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações.Teoria Geral dos Contratos,
vol.2.,8ª ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 389.
33
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações.Teoria Geral dos Contratos,
vol.2., 8ª ed., São Paulo: Atlas, 2008, p.387.
34
MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos –
Tomo I. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.14.
35
Ibid., p.14.
26
Por sua vez, o mesmo doutrinador conceitua contrato aleatório na
seguinte forma transcrita:
“(...) os contrato aleatórios são igualmente onerosos, mas os
contratantes não sabem de antemão as vantagens e
desvantagens do negócio jurídico que está sendo entabulado.
O regramento dos contratos aleatórios está positivado no
art.458 do Código Civil.”36
No que se refere à forma37, os contratos podem ser consensuais e
solenes ou formais. Os consensuais são aqueles que se formam com o simples
acordo de vontades dos contratantes.38 Já os formais são aqueles em que a
observância da forma é da substância do negócio jurídico.39
Por fim, no que se refere à pessoa do contratante40, os contratos podem
ser pessoais (intuito personae) e contratos impessoais. Os primeiros são aqueles em
que a pessoa do contraente é considerada pelo outro como elemento determinante
de sua conclusão; já os segundos são aqueles em que a pessoa do contratante é
juridicamente indiferente.41
1.4. Dos Princípios e dos Princípios Contratuais
Neste tópico, convém lembrar preliminarmente que não há um consenso
sobre uma definição unitária de princípios, e não iremos discutir a fundo esta
questão para não perdermos o foco do tema. Apesar disso, podemos afirmar que as
normas jurídicas mais importantes de um ordenamento jurídico são os princípios.
Princípios podem ser definidos de forma bastante simples como regras
que norteiam o Direito. Pode-se dizer que são a “tábua axiológica” do Direito. Para
36
Ibid., p.14.
Ibid., p.15-16.
38
Ibid., p.16.
39
Ibid., p.15.
40
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Teoria Geral das obrigações contratuais e
extracontratuais, vol.3, 13ª edição, São Paulo: Saraiva, 1998, p.89.
41
Ibid., p.89.
37
27
melhor entendermos do tema, explicitaremos a visão doutrinária sobre os princípios
jurídicos.
Conforme Judith Martins Costa42a acepção de princípio:
“pode indicar, também, determinados guias ou diretrizes
dirigidas ao legislador, em geral com caráter exortatório ou
programático, como determinadas normas constitucionais das
quais entre nós é exemplo paradigmático a do art.206, I, da
Constituição Federal, ou ainda, referir-se a máximas que
provém da tradição jurídica, como o princípio que veda o
enriquecimento injustificado em matéria obrigacional.”
Já consoante o critério do fundamento de validade de WOLLFBACHOF e
FORSTHOFF, os princípios seriam diferentes das regras por serem dedutíveis
objetivamente do princípio do Estado de Direito, da ideia de Direito ou do princípio
da justiça. Eles funcionariam como fundamentos jurídicos para as decisões. Ainda
que com caráter normativo, não possuiriam a qualidade de normas de
comportamento, dada a sua falta de determinação.43 Na mesma toada dessa
doutrina, Larenz define os princípios como normas de grande relevância para o
ordenamento jurídico, na medida em que estabelecem fundamentos normativos para
a interpretação e aplicação do Direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente
normas de comportamento.44
No sistema pátrio há autorização expressa para que o juiz ao dirimir a
controvérsia use dos princípios gerais de direito estampado no artigo 4° da Lei de
Introdução ao Código Civil.
Contudo, segundo consagrado por Paulo Lobo, resta cristalino que:
“A utilização de princípios e cláusulas gerais sempre foi vista
com muita reserva entre os juristas, ante a sua inevitável
indeterminação
de
conteúdo
e,
no
que
concerne
ao
hegemônico individualismo jurídico do Estado Liberal, o receio
42
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional,
São Paulo: Revista dos Tribunais,1999, p.317.
43
ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de
proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, Bahia, Ano I, vol. I, n. 4, julho de 2001.
44
Idem.
28
da intervenção do Estado nas atividades privadas, por meio do
juiz. Todavia, para a sociedade em mudanças e para a
realização da justiça social, constituem eles ferramentas
hermenêuticas indispensáveis e imprescindíveis.”45 (g.n)
Em razão do importante aspecto (ferramenta hermenêutica e de
interpretação) acima mostrado, a doutrina tem reconhecido a importância dos
princípios como forma de melhor aplicar e compreender o direito.
Feitas estas considerações, lembramos que abordaremos no Capítulo 3
os princípios contratuais.
1.5 Das cláusulas gerais, do código civil de 2002 e dos riscos de sua aplicação
abusiva pelos operadores do direito
Para adentrarmos no mérito dos princípios estipulados no código civil de
2002, é importante num primeiro lanço entendermos o conceito de cláusulas gerais.
Na definição de Teresa Arruda Alvim Wambier, cláusulas gerais são:
“normas em que vêm explicitados princípios jurídicos e que têm
por função dar ao Código Civil aptidão para acolher (=passar
abranger) hipóteses que a experiência social ininterruptamente
cria e que demandam disciplina. Assim, estas cláusulas, podese dizer, têm um potencial de abrangência infinitamente maior
do que as regras jurídicas de estrutura tradicional, mais
minuciosas e que contém em si mesmas descrita sua hipótese
de incidência. (...)
As cláusulas gerais utilizam em sua formulação linguagem
intencionalmente aberta, fluida ou vaga, e esta técnica tem
diversas funções.
Às vezes, a lei se serve de conceitos precisos (por exemplo:
um ano) e, por outras vezes, cada vez mais frequentemente,
de conceitos que linguisticamente têm sido chamados de
45
LÔBO NETTO, Paulo Luiz. Princípios Sociais dos Contratos no CDC e no Novo Código Civil.
Revista do Direito do Consumidor n.42, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.36.
29
conceitos vagos ou indeterminados (por exemplo: união
estável, bom pai de família, interesse público etc.)
Esses conceitos aparecem, aliás, muito comumente na
formulação de princípios jurídicos. São expressões linguísticas
(signos) cujo referencial semântico não é tão nítido, carece de
contornos claros.(...). E princípios jurídicos aparecem nas
chamadas cláusulas gerais.”46
Segundo já alertado acima, esta definição é relevante. O Código Civil de
2002 adotou o modelo de cláusulas gerais como técnica legislativa que foi muito
importante, pois permitiu uma abertura e mobilidade no sistema jurídico. Essa última,
sob a ótica externa, significou uma abertura no sistema jurídico para inserção de
elementos extrajurídicos, viabilizando a “adequação valorativa”.47
Porém, ao lado dessa função da cláusula geral de “oxigenar” o sistema,
prolongando a sua vida útil, criou-se o problema da “dose razoável de insegurança”.
Indubitável que antes que haja um “amadurecimento” da jurisprudência acerca dos
conceitos vagos e indeterminados constantes da formulação dos princípios
assumidos pela cláusula geral, haverá o referido problema.48
Sobre o tema e focalizando-se mais no perigo do uso abusivo das
cláusulas gerais, importante descrevermos a lição de Humberto Theodoro Júnior:
“O grande risco, nesse momento de aplicação do conceito
genérico da lei, está na visão sectária do operador, que, por
má-formação técnica ou por preceito ideológico, escolhe,
dentro do arsenal da ordem constitucional apenas um de seus
múltiplos e interdependentes princípios, ou seja, aquele que lhe
é mais simpático às convicções pessoais. Com isto, o valor
eleito se torna muito superior aos demais formadores da
principiologia constitucional. Toda a ordem infraconstitucional,
46
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais” do Código Civil de 2002
– A Função Social do Contrato. Revista dos Tribunais n.831, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan.
de 2005, p.60-79.
47
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional,
São Paulo: Revista dos Tribunais,1999, p.341.
48
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais” do Código Civil de 2002
– A Função Social do Contrato. Revista dos Tribunais n.831, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan.
de 2005, p.60-79.
30
graças à superideologização do operador, passa a se alimentar
apenas e tão-somente de forma sectária, unilateral e pessoal,
muito embora aparentando respaldo em princípio ético
prestigiado pela Constituição. (....)
(...).
E esse risco que não se pode, de maneira alguma, correr, nos
tempos atuais, com a aplicação distorcida de cláusulas gerais e
normas vagas. Nenhuma cláusula ou norma da espécie pode
resumir-se a si própria, nem pode ser interpretada apenas em
face do valor que ela mesma traduz. Tudo haverá de ser
enfocado a partir do sistema maior e dos valores superiores
que formam a ordem constitucional como um todo. Não há
lugar para sectarismo e paixões, quando se trata de realizar
uma ordem constitucional por inteiro.
Urge, por isso, evitar o excesso de ideologia, máxime a
ideologia pessoal do juiz ou intérprete.(...). O aplicador pode
suprir lacunas do ordenamento jurídico por meio de invocação
de princípios éticos, pode aperfeiçoar a regra do legislador,
interpretando-a à luz de dados éticos, pode recorrer à equidade
quando autorizado pela lei; não pode, entretanto, ignorar o
direito positivo, para criar regras judiciais diversas ou contrárias
às dispostas pelo legislador. Não cabe, em suma, à Justiça,
transformar-se em fonte primária da norma jurídica, colocandose acima do Poder Legislativo.(...).
O julgamento segundo cláusulas gerais autorizadas pela lei
não é, em hipótese alguma, „uma tarefa arbitrária‟.” (g.n)49
Eros Roberto Grau discordando dessa posição escreveu:
“Por mais que isso revolte a doutrina, o fato é que a segurança
e a previsibilidade dos contratos passam, necessariamente,
pela interpretação que as cortes dão às avenças. Não é a lei,
49
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense,
2008, p.153-158.
31
em última instância, que dá segurança e permite o cálculo e a
previsibilidade
aos
agentes
econômicos,
mas
o
Poder
Judiciário. Os textos [= as leis] nada dizem; eles dizem o que
os intérpretes dizem que eles dizem. Por isso apenas uma
Jurisprudência firme pode legar aos agentes econômicos a
segurança e a previsibilidade de que necessitam.”50
Sob qualquer ângulo acima exposto, entendemos que a introdução de
cláusulas gerais no Código Civil Brasileiro de 2002 acabou outorgando uma
“responsabilidade social” aos juízes quando de sua interpretação e aplicação ao
caso concreto, e caso haja omissão ou má aplicação delas, a sociedade poderá
cobrá-los
mediante
o
respaldo
dos
limites
estampados
no
ordenamento
constitucional. Convergindo com este raciocínio, interessante transcrever a lição de
Ruy Rosado Aguiar:
“Tenho para mim que cláusula geral é a norma que deixa em
aberto a descrição da conduta devida. Assim acontece, por
exemplo, com o tipo penal aberto do art. 121, par. 3º, do
CPenal: causar a morte de alguém por culpa. Sabendo-se que
a culpa consiste no descuido, na violação a um dever de
cuidado, a norma positivada não descreve que cuidado deveria
ser observado na situação concreta.(...).
Assim também
acontece
ao
quando
a
norma
determinar
contratante
comportar-se de acordo com a boa-fé, mas não lhe diz qual o
comportamento esperado nas circunstâncias do negócio.
Havendo o litígio, fixará o juiz o comportamento que deveria ter
sido observado quanto ao prazo, modo, lugar, quantidade,
qualidade da prestação, etc. Evidentemente que isso gera
insegurança, pois o contratante não sabe o que o juiz
entenderá como sendo o comportamento devido; a descrição
dessa conduta não está na lei.
50
GRAU, Eros Roberto. Um novo paradigma dos contratos? Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 5,
Rio de Janeiro: Padma, jan/mar. 2001, p.73-82.
32
Disso sobressai a responsabilidade do juiz de agir com extremo
cuidado ao estabelecer tal norma de dever, que ele usará como
parâmetro para resolver o caso.
(...). É de natureza social a responsabilidade do juiz que
emprega mal os poderes que lhe concede a cláusula geral, ou
que não a usa nos casos em que deveria fazê-lo. (...) Não
havendo sanção jurídica prevista em lei, aplicável ao juiz que
deixa de fazer o devido uso da cláusula geral, estamos diante
de um caso de responsabilidade social.
Em resumo, a cláusula geral impõe ao julgador o uso de uma
técnica judicial especial de julgar, estando o seu exercício
limitado pelo ordenamento constitucional; o desempenho
arbitrário ou omisso gera a responsabilidade social do juiz.”
(g.n)51
Indubitável que essas cláusulas gerais outorgam um imenso poder aos
juízes, tal como já afirmou as palavras de Joseph Esser: “como regla general,
podemos afirmar: donde existe un principio o cláusula general, la responsabilidad de
„dar forma a la regla‟ recae sobre la jurisprudencia.”52 E se esse mencionado poder
for mal utilizado, pode até desfigurar o intuito da própria norma, e até acarretar
efeitos negativos para o sistema como um todo.53
É um dos muitos desafios que os operadores do direito e a coletividade
deverão paulatinamente enfrentar.
Sob outro ponto de vista, essas cláusulas gerais poderá auxiliar na
aproximação do sistema jurídico da civil law ao da common law, já que com elas
serão gerados “catálogos de decisões fazendo com que haja uma verdadeira
sistematização do Direito Privado.”54
51
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais.
Revista de Direito Renovar, n. 18, Rio de Janeiro: Renovar, set./dez. 2000, p.11-19.
52
ESSER, Joseph. Principio y norma em la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Trad.esp.
de Eduardo V. Fiol. Barcelona: Bosch, 1961, p.344.
53
NERY JUNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil. Apontamentos gerais. In:FRANCIULLI NETTO,
Domingos; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva (Coord.) O Novo
Código Civil. Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. 2ª ed., São Paulo: Editora LTr,
2003, p.418-464; FONSECA, Rodrigo Garcia da. A função social do contrato e o alcance do artigo
421 do Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.19-20.
54
BOULOS, Daniel Martins. Abuso de Direito no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2006, p.78.
33
1.6. A crise do contrato.
A intervenção estatal na liberdade de contratar seja mediante a imposição
de normas cogentes quanto pela inserção de princípios gerais que possibilitem a
modificação das bases do contrato pelo Estado-Juiz, ou seja, esta flexibilização do
contrato trouxe uma preocupação com o declínio dele. Estará o contrato em crise, ou
estará morrendo, tal como afirmou provocativamente o autor norte-americano Grant
Gilmore.55
Luiz Gastão Paes de Barros Leães relata sobre a tal crise:
“há alguns anos, a decadência do direito contratual é
apregoada num tom fúnebre, que anuncia iminente desenlace.
Há inclusive quem já tenha lavrado a sua certidão de óbito.
Grant Gilmore, em 1974, publicou um livro com título
provocador – The Death of Contract (Columbus, Ohio) – onde
assinalou a ação demolidora dos novos tempos no edifício
conceitual do contrato. O fenômeno da padronização das
transações, decorrente de uma economia de mass production,
teria subvertido inteiramente o princípio da liberdade contratual,
transformando o „contrato‟ numa norma unilateral imposta pela
empresa situada numa posição dominante. Teria ocorrido
assim um retorno ao status.”56
Em sentido oposto, Caio Mário da Silva Pereira entende que o “mundo
moderno é o mundo do contrato”, eis que:
“a vida moderna o é também, e, em tal alta escala que, se
fizesse abstração por um momento do fenômeno contratual na
civilização de nosso tempo, a consequência seria a estagnação
da vida social. O homo aeconomicus estancaria as suas
55
GILMORE, Grant. The death of contract, Columbus: Ohio Universidade Press, 1974. Para Gilmore:
“contract is being reabsorbed into the mainstream of „tort‟.”
56
STRENGER, Irineu. Contratos internacionais do comércio, 3ª ed., São Paulo: LTr, 1999, p.17.
Prefácio.
34
atividades. É o contrato que proporciona a subsistência de toda
gente. Sem ele, a vida individual regrediria, a atividade do
homem limitar-se-ia aos momentos primários.”57
Em que pese o raciocínio acima exposto (da alegada crise dos contratos),
ousamos opinar que o declínio do contrato não há. Diversamente disso, o contrato é
hoje um “fenômeno cada vez mais onipresente na vida de cada um”, nas palavras de
Paulo Luiz Netto Lôbo.58 De fato, apenas ocorreu uma transformação do instituto em
sua estrutura. Com efeito, o que está ocorrendo com o contrato seria mais uma
renovação dos pressupostos e dos princípios da teoria geral dos contratos.
Sobre este ponto de renovação dos princípios da teoria geral dos
contratos, estará centralizado nosso estudo com foco no contrato de prestação de
serviços na seara do Código Civil brasileiro de 2002.
Outro ponto de vista importante a destacar, a alegada “morte do contrato”,
na verdade, significaria o fim da teoria clássica, que na ótica de Guido Alpa, cede
ante a necessidade da análise dos interesses concretos que o acordo entre as
partes expressa, análise conduzida não segundo o método formal, mas mediante o
exame dos interesses substanciais – ao que corresponde a objetivação e
despersonalização do contrato.59
Concluindo este ponto, não se pode falar em extinção do contrato, mas do
ressurgimento de um novo instituto com caráter mais “socializado” e “publicizado”.
57
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil cit. vol. 3, 11ª ed., rev.atual., Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p.9.
58
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios dos Contratos e Mudanças Sociais. Revista Jurídica n. 329,
vol.53, São Paulo: Notadez, mar. de 2005, p.9-17.
59
GRAU, Eros Roberto. Um novo paradigma dos contratos? Revista Trimestral de Direito Civil, vol. n.
5, Rio de Janeiro: Padma, jan/mar. 2001, p.73-82.
35
CAPÍTULO 2 DO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À LUZ
DO CÓDIGO CIVIL
2.1 Breve antecedente histórico da concepção do Contrato de Prestação de
Serviços adotado pelo Código Civil de 2002
No Direito Romano Clássico, foi na dogmática do Digesto a referência a
três contratos pelos quais se podia regular uma prestação de atividade humana: o
mandato, o depósito e a locação-condução. Na época, só receberia o preço pela
prestação de serviços (em sentido amplo) quem celebrasse o contrato de locação.
No caso do depósito e do mandato, não existia uma contrapartida remuneratória.
Outro ponto interessante a ser notado da época era que só podiam ser objeto de
locação as atividades denominadas de operae locari solitae; em contrapartida as
atividades designadas de artes liberales (atividades de profissionais liberais, tais
como advogados) eram só negociadas mediante mandato. Mesmo o labor
subordinado de pessoa livre era equiparado a qualquer outra res e não constituíam
no objeto do contrato, mas eram apenas os frutos da locação.60
A Escola de Direito Natural Moderna, não admitindo uma figura contratual
que suprimisse a liberdade de uma pessoa, como era o caso da locatio do
trabalhador livre, acabou construindo um conceito único e também estipulando uma
classificação do contrato de locação. A partir daí, o contrato de locação comportou
duas modalidades: a locação de coisas e a locação de serviços ou de obras. Esta
classificação serviria para deixar nítida a diferença entre a res e a atividade humana.
Na locação de serviços ou obra não havia qualquer subordinação de uma parte à
outra.61
Foram os pandectistas (sucessores da Escola de Direito Natural) quem
estipularam uma separação entre os contratos de mandato, depósito e locação. Nos
contratos de locação ainda fizeram uma subdivisão nas seguintes três subespécies:
locação de coisas, locação de serviços e locação de obra (empreitada). Também os
60
TIMM, Luciano Benetti. A prestação de serviços do Código Civil ao Código de Defesa do
Consumidor. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.14-19.
61
Ibid., p.29.
36
pandectistas ordenaram o antigo contrato de locação romano inserindo seus valores
modernizantes, notadamente a concepção burguesa de liberdade contratual
(autonomia da vontade)62. Ademais, convém recordar que foram os pandectistas
quem prepararam uma categoria contratual única, isto é, para eles a locação (em
sentido amplo) significaria “aquele acordo por meio do qual o locador promete ao
locatário (condutor) a concessão do uso de uma coisa ou de uma energia de
trabalho, ao passo que este último promete, em contrapartida, uma remuneração.”63
No século XIX, os elaboradores do Código Civil de 1916 seguiram as
noções estipuladas pela ciência dos pandectas, e por essa razão, o modelo de
sistematização da prestação de atividade humana proveniente da escola pandectista
foi recepcionado pelo referido código. Este molde foi parcialmente copiado no
Código Civil de 2002, no entanto, novos contratos foram disciplinados, tais como a
“comissão”, “corretagem”, “agência”, etc.64
2.2 Conceito e caracteres
Conforme Sílvio de Salvo Venosa, a prestação de serviços pode ser
conceituada como um contrato sinalagmático pelo qual uma das partes, denominada
prestador, obriga-se a prestar serviços à outra, denominada dono do serviço,
mediante remuneração.65
Orlando Gomes conceituou o contrato de prestação como sendo o que:
“uma pessoa se obriga a prestar serviços à outra, eventualmente, em troca de
determinada remuneração, executando-os com independência técnica e sem
subordinação hierárquica.”66
Destes conceitos defluem características fundamentais do contrato de
prestação de serviços descritas pela lição de Jorge Lages Salomo:
62
TIMM, Luciano Benetti. A prestação de serviços do Código Civil ao Código de Defesa do
Consumidor. 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p.30.
63
Idem.
64
Ibid., p.33.
65
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em espécie. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2010,
p.209.
66
GOMES, Orlando. Contratos, 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.343.
37
“Assim, a prestação de serviços contém as seguintes
características fundamentais:
a) a
realização
de
uma
atividade
lícita
de
serviço
especializado;
b) a liberdade técnica por parte de quem executa o serviço;
c) a ausência de subordinação entre o prestador e o
contraente; e
d) o pagamento de certa retribuição.”67
Quanto a seus caracteres, o contrato de prestação de serviços é típico,
bilateral, oneroso, consensual, comutativo e geralmente intuitu personae.
Senão vejamos.
1°) A tipicidade do contrato decorre de que é disciplinado no Código Civil
nos artigos 593 até 609 do Código Civil Brasileiro de 2002;
2°) a bilateralidade do contrato decorre do fato de que o contrato gera
obrigações e direitos a ambas as partes;
3°) a onerosidade do contrato, porque origina vantagens para os
contratantes, mediante contraprestações recíprocas68;
4°) a consensualidade do contrato, pois se aperfeiçoa com o simples
acordo de vontade das partes, independentemente de qualquer materialidade
externa. Como todo contrato, requer emissão volitiva, embora não exija forma
especial. É, portanto, contrato não-solene, podendo ser verbal ou escrito. Trata-se,
pois de contrato de forma livre69;
5°) o contrato é comutativo, pois há equivalência de prestações70;
6°) o caráter do contrato geralmente é personalíssimo (intuito personae),
já que na maioria das vezes, o serviço deve ser realizado pelo próprio contratado.71
2.3. Dos principais aspectos do contrato de prestação de serviços.
67
SALOMO, Jorge Lages. Contratos de Prestação de Serviços. Manual Teórico e Prático. 3ª ed., São
Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p.7
68
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e
Extracontratuais,vol.3, 23ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p.288.
69
Idem.
70
SALOMO, Jorge Lages. Contratos de Prestação de Serviços. Manual Teórico e Prático. 3ª ed., São
Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p.8.
71
Idem.
38
Após a definição e a apresentação dos caracteres do contrato de
prestação de serviços, abordaremos em seguida um resumo de alguns tópicos que
achamos mais relevantes para o foco do presente estudo.
2.3.1 A esfera de aplicação das normas do Código Civil de 2002
O artigo 593 do Código Civil de 2002, de forma expressa e clara, excluiu
de sua tutela a prestação de serviços que é disciplinada pelo ordenamento jurídico
trabalhista. (Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT) Dessa forma, estariam
incluídas do âmbito de sua aplicação as hipóteses de prestação de serviços entre
particulares em que não exista um vínculo de subordinação (de contrato de
trabalho). O intuito do legislador foi exatamente demonstrar que dependendo do tipo
de relação do caso, e se esta for mais vulnerável (tal como a relação de emprego),
há uma tutela específica na legislação.
Nesse passo, importante transcrever a lição de Nelson Rosenvald sobre o
tema de aplicação do código civil e da CLT e sobre a definição de subordinação:
“No Brasil, a Consolidação das Leis Trabalhistas é um
desdobramento do direito civil, alcançando a autonomia pela
necessidade de tutela ao trabalhador, visto como vulnerável. O
Código Civil só incidirá quando o serviço realizado não detiver
a característica da subordinação hierárquica que atrai a
incidência da CLT (art.3°). Toda relação de emprego é
qualificada por uma subordinação jurídica (funcional), com
sujeição do empregado às ordens legítimas emanadas do
empregador. O prestador de serviços não se emprega nem se
faz empregado, pois não se afirma o estado de dependência
econômica e submissão a ordens. Inexiste direção técnica e
39
controle sobre o modo de execução do serviço prestado, pois a
sua natureza é eventual.(...)”72 (g.n)
É válido lembrar que o Código Civil também exclui de seu objeto de tutela
as relações de consumo. Estas relações estão disciplinadas no Código de Defesa do
Consumidor (arts.2º, 3º, 14, 20 e 22 da Lei n° 8.078/1990). Anote-se que se
enquadra em serviço sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor “qualquer
atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de
natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das
relações de caráter trabalhista.”73
Acerca do âmbito de aplicação das normas do Código Civil, Teresa
Ancona Lopez destaca que “os serviços de telecomunicações em geral,
especialmente de telefonia, os de internet, os de TV a cabo, TV via satélite, têm
legislação especial”.74 Ademais, Teresa Ancona Lopez destaca que os serviços
bancários, por necessitarem de autorização especial estatal, bem como os demais,
tais como estacionamento e hotelaria, não se incluiriam nos dispositivos
relacionados à prestação de serviços.75
Ainda sobre o mesmo assunto, Nelson Rosenvald anotou que:
“A prestação de serviços compreende uma ampla gama de
atividades lícitas realizadas por aquele que pratica um serviço
especializado e eventual, abrangendo o exercício remunerado
de um ofício (v.g. bombeiro, carpinteiro); de um profissional
liberal (v.g. advogado, médico); e de empresas especializadas
(v.g. dedetização, vigilância) que terceirizam serviços. Em
síntese, obrigações de fazer, alcançando condutas físicas
(materiais) ou intelectuais (imateriais).” 76
72
ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro
Cezar Peluso. 5ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2011, p.632.
73
MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos –
Tomo I. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.285.
74
LOPEZ, Teresa Ancona. Comentários ao código civil: parte especial: das várias espécies de
contratos (arts.565 a 652), vol.7. São Paulo: Saraiva, 2003, p.190.
75
Idem.
76
ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro
Cezar Peluso. 5ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2011, p.633.
40
Ou seja, conclui-se da leitura do dispositivo legal e da doutrina acima que
o Código Civil tem uma função residual, destinada a uma gama mais restrita de
negócios jurídicos, na medida em que o grande universo da prestação de serviços
se encontra regulado pela CLT, legislação trabalhista em geral e pelo Código de
Defesa do Consumidor.77
Na hipótese em estudo, mais notadamente, no capítulo 3, daremos mais
ênfase a alguns julgados aplicados aos princípios contratuais na seara do contrato
de prestação de serviços enquanto empresarial (ou seja, o acordo celebrado entre
duas pessoas jurídicas). Nesta seara estudada, convém registrar que não há
presunção de vulnerabilidade, muito pelo contrário o regime é de paridade entre as
partes.
Logicamente que, no capítulo 3, num primeiro plano, abordaremos de
forma genérica os princípios contratuais, tais como preceitos aplicados a qualquer
contrato, até porque para o estudo de qualquer contrato, seja ele típico ou atípico,
devemos obrigatoriamente também compreender os princípios contratuais sob a
égide do Código Civil de 2002.
Posteriormente, num segundo momento, explicaremos como estes
princípios têm sido aplicados por alguns julgadores no que se refere ao contrato de
prestação de serviços empresariais, tal como, por exemplo, uma empresa
contratando os serviços de um escritório de advocacia (outra empresa); ou, por
exemplo, uma empresa contratando os serviços de outra empresa de publicidade,
entre outros.
2.3.2 Do objeto e da Remuneração
Consoante Maria Helena Diniz, o objeto do contrato de prestação de
serviços:
“é uma obrigação de fazer, ou seja, a prestação de atividade
lícita, não vedada em lei e pelos bons costumes, oriunda da
77
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil
Interpretado. Conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar,
2006, p.320.
41
energia humana aproveitada por outrem, e que pode ser
material ou imaterial (CC, art.594). Infere-se daí que qualquer
espécie de serviço, seja qual for a sua natureza, pode ser
objeto de locação: material ou imaterial, braçal ou intelectual,
doméstico ou externo; apenas se exige que seja lícito, isto é,
não proibido por lei e pelos bons costumes.” (g.n) 78
Na mesma vertente, entende Sílvio de Salvo Venosa, no sentido que o
objeto do contrato é uma obrigação de fazer, uma conduta, tanto material como
intelectual.79
No que tange ao aspecto da remuneração, esta é um elemento essencial
da prestação de serviços.80 Presume-se a onerosidade dos serviços prestados. Em
regra, essa remuneração é em dinheiro, mas nada impede a que parte dela seja em
alimentos, vestuário, condução, moradia, etc.81
2.3.3 Do tempo de duração
Em razão da inalienabilidade da liberdade humana, o legislador estipulou
um limite temporal de duração de quatro anos em relação aos contratos de
prestação de serviços. (artigo 598 do Código Civil)
Todavia, nada obsta que findo o prazo de 4 anos, um novo contrato seja
celebrado pelos contraentes por tempo igual ou inferior. Caso, porventura, as partes
convencionarem prazo superior ao legal, não existirá a nulidade da convenção, mas
apenas ajustamento da cláusula contratual ao prazo estipulado no ordenamento
78
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e
Extracontratuais, vol.3, 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p.289.
79
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em espécie. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2010,
p.213.
80
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e
Extracontratuais, vol.3, 23ª ed., 2007, São Paulo: Saraiva, p.290; BRASIL. Tribunal de Justiça de
Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0479.05.087162-9/001, da 14ª Câmara Cível, julgado em 10 de
janeiro de 2008.
81
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e
Extracontratuais, vol.3, 23ª ed., 2007, São Paulo: Saraiva, p.292.
42
jurídico. Sobre o tema (excesso de prazo no contrato de prestação de serviços não
ocasionar nulidade), a lição de Maria Helena Diniz:
“Se porventura o contrato for celebrado por mais de quatro
anos, o juiz poderá, ante o princípio da conservação dos
contratos,
reduzir
o
prazo,
a
pedido
do
interessado,
reajustando-o ao período legal. Logo, o excesso do prazo não
acarretará nulidade desse contrato locatício (RT, 165:752), mas
tão-somente a sua redução pelo magistrado.” (g.n)82
Na mesma vertente da doutrina de Maria Helena Diniz os seguintes
julgados: Apelação Cível n. 1.205.020- 0/7, da 36ª Câmara de Direito Privado, do
Tribunal de Justiça de São Paulo, julgado em 28 de novembro de 2008; Apelação
Cível n. 7164714-2, da 17ª Câmara de Direito Privado, do Tribunal de Justiça de São
Paulo, julgado em 05 de março de 2008.
Em que pese o raciocínio legal e o entendimento de alguns
doutrinadores83, entendo que esta norma não está mais condizente com a realidade,
e tem pouca aplicação prática. Defendendo essa tese, Nelson Rosenvald, ao
comentar o artigo 598 do Código Civil, criticou este dispositivo no seguinte sentido:
“Todavia, nos tempos atuais, a norma não mais se justifica por
duas razões, quais sejam:
Primeiro, haverá uma probabilidade de a prestação de serviço
de quatro anos ser considerada um contrato de trabalho, diante
de sua frequência e habitualidade, o que poderia inferir em
subordinação jurídica de uma parte à outra.
Segundo, esgotado o quadriênio, nada impede que as partes
ajustem novo contrato: por igual período, ou inferior. Ademais,
fixado o contrato por prazo superior a quatro anos, reduzir-se-á
82
Ibid. p.293.
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de, Código Civil
Interpretado Conforme a Constituição da República. vol. II. Teoria Geral dos Contratos. Contratos em
Espécie. Atos Unilaterais. Títulos de Crédito. Responsabilidade Civil. Preferências e Privilégios
Creditórios. (arts. 421 a 965). Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2006, p.328.
83
43
o prazo excedente ante sua ineficácia, mas o negócio jurídico
será válido.”84
Destaca-se, o intuito do legislador foi proteger a liberdade da pessoa
física. Porém, olvidou-se que o instituto do contrato da prestação de serviços
abrange diversas outras situações, tais como, por exemplo, os contratos de
prestação de serviços celebrado entre as empresas, e nessa hipótese, o limite
temporal não tem qualquer propósito.85
2.3.4 Da distinção existente entre o contrato de prestação de serviços com o
contrato de empreitada e com o contrato de trabalho.
Uma das grandes complicações da Doutrina seria a diferença entre o
contrato de prestação de serviços e o contrato de empreitada, tendo em vista que
ambos possuem o mesmo objeto (trabalho humano).
Para Sílvio de Salvo Venosa:
“Na empreitada ou contrato de obra, busca-se a obra perfeita e
acabada dentro do que foi contratado. Trata-se de critério
finalístico. A prestação de serviços não destaca o fim da obra,
mas a atividade do obreiro, em favor do dono do serviço,
durante certo lapso de tempo. (...) Outro critério leva em conta
a forma de retribuição. Se a remuneração é feita em relação ao
tempo de duração de trabalho, há prestação de serviços. Se o
pagamento tem relação com a obra em si, seus vários estágios
ou o resultado final, haverá empreitada. (...) Também deve ser
ponderada a relação de dependência do prestador em relação
ao patrão, encomendante ou dono do serviço. Em princípio,
existirá prestação de serviços quando o obreiro executar
84
ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro
Cezar Peluso, 5ª ed.,São Paulo: Editora Manole, 2011, p.633.
85
SALOMO, Jorge Lages. Contratos de Prestação de Serviços. Manual Teórico e Prático. 3ª ed., São
Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p.42.
44
trabalho sob dependência e fiscalização do outro contratante.
Na atividade dos profissionais liberais e em outras situações,
não fica caracterizada a relação de dependência. Haverá
empreitada se o que executa o serviço o faz de forma
independente,
por
sua
conta
e
responsabilidade,
sem
ingerência do dono da obra. É justamente a subordinação
hierárquica
trabalhista.”
do
trabalhador
que
caracteriza
a
relação
86
(g.n)
Com referência à diferença entre contrato de prestação de serviços de
índole civil e o contrato de trabalho, ontologicamente não existe esta, segundo a
doutrina.87
Sobre outro prisma, a doutrina especializada entende que o contrato de
trabalho tem características peculiares diversas do contrato de prestação de
serviços civil, tais como: o vínculo de subordinação, a continuidade, não
eventualidade. Nesse ponto, concordamos com a doutrina de Arnaldo Sussekind
que identifica a diferença entre os contratos de trabalho e o de prestação de serviços
na subordinação jurídica. E menciona a lição de Paul Colin:
“(...) por subordinação jurídica entende-se um estado de
dependência real criado por um direito, o direito do empregador
de comandar, dar ordens. Eis a razão pela qual se chamou a
esta subordinação jurídica, para opô-la principalmente à
subordinação econômica e à subordinação técnica que
comporta também uma direção a dar os trabalhos do
empregado, mas direção que emanaria apenas de um
especialista.(...). Direção e fiscalização, tais são então os dois
pólos de subordinação jurídica.” (sic)88
86
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em espécie. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2010,
p.211-212.
87
Ibid. p.212.
88
Süssekind, Arnaldo Lopes. Curso de Direito do Trabalho, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.212.
45
2.3.5 Da relação de alguns dispositivos do Código Civil com o princípio da
função social e da boa-fé objetiva
Neste tópico, abordaremos mais particularmente os artigos 603, 606 e
608 do Código Civil de 2002, já que estão relacionados com alguns princípios
estudados neste trabalho.
O artigo 603 do Código Civil Brasileiro de 2002 trata da denúncia
imotivada do contrato pelo tomador de serviços. Em outras palavras, caso o dono
dos serviços decida sem justo motivo finalizar o contrato antes do prazo, deverá
pagar ao prestador sua retribuição vencida e uma indenização a título de perdas e
danos. O montante dessa indenização seria de metade de sua remuneração em
relação ao prazo que faltaria para o término do contrato.89
O Colendo Superior Tribunal de Justiça sobre o tema decidiu:
“Contrato de locação de serviços. Ocorrendo a rescisão
unilateral, sem justa causa, terá direito o locador às prestações
vencidas e metade das vincendas (Código Civil – art.1228).
Essa segunda parcela corresponde à indenização e não se
acumula, em princípio, com a condenação decorrente de
cláusula penal.
(...)
A ora embargante obteve fosse a parte contrária condenada
ao pagamento das prestações vencidas e metade das
vincendas, nos termos no artigo 1.228 do Código Civil. A
importância relativa às primeiras poderá referir-se a trabalho
efetuado, visando a remunerá-lo. A outra parcela, entretanto,
corresponde a indenização, em virtude da rescisão do
contrato.”(g.n) 90
89
Nesse sentido, aplicando o artigo 603 do CC, os julgados: BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul. Apelação Cível n. 70018979104, da 9ª Câmara Cível, j. 02 de maio de 2007; BRASIL.
Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 720398-5, da 12ª Câmara Cível, j. em 09 de
fevereiro de 2011.
90
EDcl. no REsp. n. 39.569, Relator Ministro Eduardo Ribeiro, 3ª Turma, j. 24/02/1994, DJ.21/03/1994,
p.5483, Revista dos Tribunais, vol.719, p.275.
46
E ante a inexistência de cláusula penal no contrato de prestação de
serviços, a indenização deve ser calculada de acordo com o artigo 603 do Código
Civil de 2002, antigo dispositivo 1.228 do Código Civil de 1916.91
Teresa Ancona Lopez, comentando este artigo, opina no sentido de que,
em decorrência do princípio da boa-fé objetiva existente entre as partes
contratantes, o prestador de serviços poderá pedir indenização com fundamento no
artigo 187 do Código Civil, caso comprove danos maiores.92
Passaremos agora ao comentário do artigo 606 do Código Civil de 2002.
Este é um artigo novo que não tinha um correspondente no Código Civil de 1916. Se
se constatar no caso concreto que o prestador de serviços não tem título de
habilitação ou este não satisfaça outros requisitos legais, mas averiguada a boa-fé e
o benefício do tomador de serviços, o magistrado estipulará retribuição razoável, que
não favorece, no entanto, aquele que presta serviço proibido por lei de caráter de
ordem pública.
Enfatiza-se a necessidade de retribuir o serviço prestado até para se
evitar o enriquecimento injusto do dono do serviço, ainda que inexistente a
habilitação técnica exigida, e, concomitantemente, o legislador no parágrafo único
tentou obstar e punir o exercício irregular de profissão.
Os exemplos adotados por Sílvio de Salvo Venosa são ilustrativos:
“Assim, por exemplo, pode ocorrer com corretores não
credenciados;
agentes
não
autorizados;
técnicos
não
diplomados; artesãos informais como encanadores, eletricistas,
pedreiros, mecânicos etc. em situações cuja atividade exige
habilitação ou credenciamento legal.”93
Todavia, na hipótese de a concretização dos serviços sem habilitação for
proibida mediante lei de ordem pública, tal como acontece com o médico, advogado
91
BRASIL, Apelação Cível n. 938.840-00/9, Relator Paulo Ayrosa, 31ª Câmara de Direito Privado, São
Paulo, SP, j. em 29 de abril de 2008, Tribunal de Justiça de São Paulo; BRASIL, Apelação Cível n.
990.714-00/7, Relator Pereira Calças, 29ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, SP, j. em 30 de
janeiro de 2008, Tribunal de Justiça de São Paulo.
92
LOPEZ, Teresa Ancona. Comentários ao código civil: parte especial: das várias espécies de
contratos (arts.565 a 652), vol.7, São Paulo: Saraiva, 2003, p.224.
93
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em espécie. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2010,
p.215
47
e engenheiro, esse prestador de serviços não poderá cobrar o que gastou para
realizar os serviços. Nesses casos não haverá fixação de remuneração razoável.
Interessante notar a visão de Sílvio de Salvo Venosa ao defender a ideia
de que existindo a boa-fé do prestador de serviços, tal como, por exemplo, o
advogado, mesmo que desprovido da carteira da Ordem dos Advogados do Brasil,
houvesse obtido um resultado útil ao seu cliente, caberia ainda sim neste caso a
remuneração de acordo com os princípios da boa-fé objetiva, da função social dos
contratos e do enriquecimento sem causa. Nesse ponto, concessa venia, ousamos
em concordar com o Professor Sílvio de Salvo Venosa.
Para melhor exemplificar a tese exposta, segue a lição do ilustre Sílvio de
Salvo Venosa:
“(...)
Por outro lado, como enfatiza o parágrafo único, quando a
proibição resulta de lei de ordem pública, a remuneração
“razoável” é obstada. Não se aplica a segunda parte desse
artigo. Assim, em princípio, não pode ser remunerado quem
exerce indevidamente, por exemplo, a medicina ou a
advocacia. A lei diz que a segunda parte do artigo não é
aplicada, ou seja, nesses casos não há que se atribuir
remuneração razoável. No entanto, pela dicção legal, a
primeira parte do artigo tem aplicação, ainda que haja proibição
legal de ordem pública para a atividade. Nessa primeira parte
diz-se que não pode ser atribuída a retribuição normalmente
correspondente ao trabalho executado. Contudo, não se nega
integralmente a retribuição; doutro modo ficaria sem alcance a
dicção do parágrafo único. Não existindo má-fé do contratante
e perante os princípios da boa-fé objetiva e da finalidade social
dos contratos, se houve resultado útil para o encomendante do
serviço não pode ser negada a remuneração, ainda que fora
dos parâmetros do razoável. A nosso ver, nessa hipótese
devem ser aplicados os princípios do enriquecimento sem
causa.” (g.n) 94
94
Idem.
48
Por fim, comentaremos o artigo 608 do Código Civil de 2002. Este é um
artigo de maior reverberação no capítulo da prestação de serviços, pois tutela a
função social externa do contrato.95 Versa o dispositivo sobre quando certa pessoa
recrute outra ou outras já comprometidas por um contrato, para realização de
serviços, distanciando os prestadores da função contratada anteriormente.
Para se caracterizar o aliciamento descrito neste dispositivo legal, são
imprescindíveis os seguintes elementos: 1) o terceiro tenha induzido o prestador de
serviços a trabalhar com ele; 2) o dono do serviço (locatário/tomador de serviços)
sofra prejuízo decorrente do contrato desfeito; 3) o prestador de serviços estivesse
subordinado a um contrato de prestação de serviços por escrito. Se o prestador de
serviços estiver desempregado, ou se o prestador de serviços oferecer os seus
serviços a terceiros, não se presumirá que haja caracterização do aliciamento.
Também é importante na configuração do aliciamento os aspectos da especialidade
e a exclusividade nessa prestação de serviços, tendo em vista que se não houver
cláusula de exclusividade, e o prestador continuar a atender de forma eficaz a
ambos os contratantes, não haverá, em tese, o cabimento de indenização. 96
O aliciamento acarreta que o terceiro que o concretiza deverá indenizar o
dono dos serviços prejudicado pelo valor correspondente a dois anos de
remuneração devida ao prestador de serviços, estipulando o legislador uma
prefixação de perdas e danos. E nesse caso, não há um limite legal para se exigir
uma importância a maior desde que o locatário dos serviços comprove que o fim do
contrato de prestação de serviços acarretou uma perda maior do que a exposta no
artigo 608 do Código Civil de 2002.
Também o aliciamento poderá repercutir em responsabilidade penal
(artigo 207 do Código Penal), configurando, inclusive em crime de concorrência
desleal, na forma da Inteligência emprestada ao artigo 195, inciso IV, da Lei n°
9.279/1998.
Saliente-se, relevante a discussão do aliciamento e da função social
externa do contrato transcritas por Nelson Rosenvald:
95
ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro
Cezar Peluso, 5ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2011, p.640.
96
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em espécie, 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2010,
p.214.
49
“Cuida-se da tutela à função social externa do contrato. As
relações contratuais produzem obrigações restritas às partes –
princípio da relatividade contratual -, mas geram oponibilidade
erga omnes, pois a sociedade deve se comportar de modo a
respeitar as relações jurídicas em curso, permitindo que
alcancem
o
seu
desiderato
pela
via
adequada
do
adimplemento. Nesse instante, os contratantes retomam a sua
liberdade e estão aptos a contrair novos negócios jurídicos,
preservando o clima de estabilidade nas relações econômicas
e propiciando uma confiança generalizada no cumprimento dos
contratos.
Jogadores de futebol, artistas de emissoras de televisão,
técnicos especializados, enfim, uma gama de pessoas recebe
– e aceita – propostas de concorrentes, menos pelo interesse
específico do ofertante na aquisição do profissional e mais pelo
simples propósito comercial de esvaziar o contrato alheio,
naquilo que pode ser registrado como uma espécie de
concorrência desleal.
Portanto,
não
é
justo
que
terceiros
atuem
como
se
desconhecessem os contratos, desrespeitando-o apenas para
a satisfação de seus interesses pessoais, mas de modo
ofensivo às finalidades éticas do ordenamento jurídico. O
terceiro ofensor não será punido isoladamente, pois o
prestador de serviços também poderá ser responsabilizado,
seja em virtude de cláusula penal compensatória (art.411 do
CC), seja em sua ausência, mediante a fixação, pelo
magistrado,
de
perdas
e
danos
em
decorrência
do
inadimplemento contratual.”(g.n) 97
Por derradeiro, ainda relacionada a este artigo, algumas decisões judiciais
têm entendido pela não abusividade de multa imposta à tomadora de serviços por
97
ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro
Cezar Peluso, 5ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2011, p.641.
50
contratação de ex-empregado da prestadora durante a vigência do contrato e após a
rescisão durante um prazo fixado na avença. 98
98
BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Apelação Cível n. 20050111191657APC, da 1ª
Turma, j. em 16 de setembro de 2009; BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n.
9182720-98.2008.8.26.0000, da 33ª Câmara de Direito Privado, j. em 07 de fevereiro de 2011;
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 1.169.627-0/6, da 36ª Câmara de
Direito Privado, j. em 10 de julho de 2008.
51
CAPÍTULO 3 DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS E O CONTRATO DE
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EMPRESARIAL
3.1. Introdução preliminar e classificação dos princípios contratuais
As obrigações contratuais são dirigidas pelos princípios denominados
liberais ou tradicionais e pelos princípios denominados sociais ou modernos.99 São
classificados como princípios liberais ou tradicionais os seguintes: da autonomia da
vontade, da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) e o da relatividade
dos efeitos contratuais. Por outro lado, são classificados como princípios sociais ou
modernos o princípio da função social, da boa-fé objetiva e da justiça contratual.
Vamos abordar cada um deles a seguir.
3.1.1 A não exclusão dos princípios contratuais tradicionais: momento de
hipercomplexidade
Antes da análise dos princípios, raciocinando sobre os princípios, Antonio
Junqueira de Azevedo assevera que, atualmente, vive-se um momento de
“hipercomplexidade”, pois os princípios clássicos não se opõem aos princípios
sociais. Antes, verifica-se uma mescla entre as tendências axiológicas, que mesmo
distintas, não podem se excluírem uma a outra.
Sobre estas afirmações, transcrevemos Antonio Junqueira de Azevedo:
“(...)
Hoje,
diante
do
toque
de
recolher
do
Estado
intervencionista, o jurista com sensibilidade intelectual percebe
que
está
havendo
uma
acomodação
das
camadas
fundamentais do direito contratual – algo semelhante ao
ajustamento subterrâneo das placas tectônicas. Estamos em
99
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada,
boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.41.
52
„época‟ de hipercomplexidade, os dados se acrescentam, sem
se eliminarem, de tal forma que, aos três princípios que
gravitam em volta da autonomia da vontade e, admitido como
princípio, ao da ordem pública, somam-se outros três – os
anteriores não devem ser considerados abolidos pelos novos
tempos, mas, certamente, deve-se dizer que viram seu número
aumentado pelos três novos princípios. Quais são esses novos
princípios? A boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico do
contrato e a função social do contrato.”100(g.n)
Isso significa dizer que o modelo clássico e o modelo contemporâneo,
cada um com seus princípios, devem concomitantemente conviverem. A função do
operador do direito diante dessa hipercomplexidade será reconstruir o sistema
contratual à luz do Código Civil de 2002, de maneira a harmonizar os princípios
tradicionais (caráter liberal) com os princípios modernos (caráter social), como
também, resguardando de forma equilibrada os anseios constitucionais.
3.1.2 Do Princípio da Autonomia da Vontade e do Princípio da Autonomia
Privada e as suas distinções
O princípio da autonomia da vontade está intimamente relacionado ao
princípio da liberdade, o qual está previsto na Magna Carta e impregnado em todo
nosso ordenamento jurídico.
A autonomia da vontade significa a liberdade das partes em dispor e
regular suas esferas de direito, que podem se expressar de três formas: (1)
liberdade de contratar no que tange à opção de celebrar um contrato, (2) liberdade
contratual no que se refere ao conteúdo do contrato, mais especificamente, no que
100
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do Novo Direito Contratual e Desregulamentação do
Mercado – Direito de Exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – função social do
contrato e responsabilidade aquiliana de terceiro que contribui para inadimplemento contratual
(Parecer), Revista dos Tribunais n. 750, Ano 87, São Paulo: Revista dos Tribunais, abr./1998, p.115116.
53
se refere às regras internas mediante negociação de cláusulas contratuais e (3)
liberdade de escolher com quem contratar (quem será o outro contraente).
O princípio da autonomia da vontade ou da liberdade de contratar, ensina
Teresa Ancona Lopez, pode ser visto sob três aspectos principais:
“1) liberdade de contratar ou não, de participar da celebração
de um contrato;
2) liberdade da escolha da outra parte (com quem contratar);
3) liberdade de fixar o conteúdo dos contratos (liberdade
contratual).” 101
Esta liberdade de contratar encontra os limites nas normas de ordem
pública (que vedam acordos que lhe sejam contrários a elas) e nos bons
costumes.102
Este princípio teve seu ápice na época do Estado Liberal, em que não era
interessante a ingerência estatal na vida privada, especialmente nas relações
contratuais; e em que se acreditava que cada pessoa, ao contratar livremente,
buscaria o melhor para si e indiretamente para a sociedade. Verifica-se na época
que esse princípio partia do pressuposto de que existiria uma relação de equilíbrio e
paridade entre os contratantes, já que esses poderiam fazer contratos em igualdade
de condições de acordo com sua livre vontade, sem qualquer atuação de interesse
exterior. Ou seja, as próprias partes eram os melhores juízes e desconsideravam as
desigualdades fáticas até hoje vigentes. Fernando Noronha retrata bem esta visão
liberal ao se inspirar no filósofo Kant: “para quem a dignidade da pessoa humana
não se compadece com a submissão a leis outras que não aquelas que dê a si
mesma.”103
Pouco a pouco, observou-se que a alegada igualdade entre os
contratantes era somente formal, já que, na maioria das vezes, uma das partes era
quem ditava as regras internas do contrato. Nesse momento, essa autonomia da
vontade acaba sendo invadida pelo Estado Intervencionista que, mediante a lei, e
até mesmo por meio do Poder Judiciário, atua em favor dos princípios
101
LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador
Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.11.
102
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e
Extracontratuais, vol.3, 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p.23
103
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.112.
54
constitucionais. Enzo Roppo explana que a autonomia da vontade se vê relançada
em novas bases e para desempenho de um novo papel.104
Após esses breves comentários esclarecedores sob o princípio da
autonomia da vontade, passaremos ao ponto do princípio da autonomia privada e se
existe alguma diferença entre este e aquele. Há doutrina que defenda que as duas
expressões seriam sinônimas, nessa vertente, Paulo Lôbo a seguir transcrito:
“A esse respeito, afirmamos nosso entendimento de absoluta
indistinção entre autonomia privada, de um lado, e autoregramento ou autonomia da vontade, de outro. Para alguns,
autonomia privada capta o momento jurídico da exteriorização
da vontade, sendo esta, enquanto intenção íntima, uma
instância
pré-jurídica.
Para
outros,
autonomia
evoca
significação normativa e não podem os particulares ser autores
de normas jurídicas, diante do monopólio legislativo do Estado.
Essas distinções são inócuas e procuram escapar, sem
sucesso, à origem e à natureza políticas que se imputam à
autonomia privada (ou da vontade) ou ao caráter imperativista
que se atribuiu à vontade.” (g.n) 105
Por outro lado, outros doutrinadores se esforçam para traçar a diferença
entre autonomia da vontade e autonomia privada.106
Luigi Ferri afirma de forma contundente que a autonomia da vontade
distingue-se da autonomia privada, pois a primeira refere-se à vontade interna como
mola propulsora da relação contratual enquanto a segunda refere-se ao poder
reconhecido aos particulares de criar normas jurídicas. E completa o referido autor
explicando que a autonomia privada não corresponde à iniciativa privada, pois esta
104
ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução Ana Coimbra e M.Januário C. Gontes, Coimbra: Almedina,
1988, p.335.
105
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Condições Gerais dos contratos e cláusulas abusivas. São Paulo:
Saraiva, 1991, p.10.
106
GOMES, Orlando. Decadência do voluntarismo jurídico e novas figuras jurídicas, in
Transformações gerais do direito das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967; NANNI,
Giovanni Ettore. A evolução do direito civil obrigacional: a concepção do direito civil constitucional e a
transição da autonomia privada, in Cadernos de direito civil constitucional – Caderno 2, Renan Lotufo
(Coordenador), Curitiba:Juruá, 2001; TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de
Defesa do Consumidor ao novo Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.143.
55
se limita ao aspecto econômico.107 Francisco Amaral observou o significado do
princípio da autonomia privada no seguinte sentido:
“A autonomia privada é o poder que os particulares têm de
regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações que
participam, estabelecendo-lhe o conteúdo e a respectiva
disciplina jurídica. Sinônimo de autonomia da vontade para
grande parte da doutrina contemporânea, com ela porém não
se confunde existindo entre ambas sensível diferença. A
expressão „autonomia da vontade‟ tem uma conotação
subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o
poder da vontade do direito de um modo objetivo, concreto e
real.” 108
Apesar de existirem poucos doutrinadores que tracem essa diferença, nos
filiamos a esta corrente minoritária. Na verdade, na minha visão, a autonomia
privada nada mais seria que um reflexo da nova ótica contratual e, por essa razão, o
princípio da autonomia da vontade foi substituído pelo princípio da autonomia
privada.109
3.1.3 Do princípio da força obrigatória dos contratos (Pacta Sunt Servanda) ou
Do princípio da força vinculante das convenções
Segundo esse princípio, se a convenção tiver todos os elementos
essenciais, plano de existência, como também obedecidos os requisitos de validade,
esta vinculará os contratantes, sendo considerada como lei entre estes. Isto é, uma
vez celebrado o contrato, as partes têm o dever de respeitá-lo tal como foi pactuado.
107
FERRI, Luigi. La autonomia privada. Tradução Luiz Sancho Mendizzábal. Madrid: Revista de
Derecho Privado, 1969, p.5-6.
108
AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução, 5ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.348.
109
TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo
Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.143.
56
Lembrando que esse nítido caráter vinculante é oriundo do princípio da autonomia
da vontade.
Orlando Gomes sobre esse princípio ensina que:
“o princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de
que o contrato é lei entre as partes. Celebrado que seja, com
observância de todos os pressupostos e requisitos necessários
à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas
cláusulas fossem preceitos legais imperativos. O contrato
obriga os contratantes, sejam quais forem as circunstâncias em
que tenha de ser cumprido. Estipulado validamente o seu
conteúdo, vale dizer, definidos os direitos e obrigações de cada
parte, as respectivas cláusulas têm, para os contratantes, força
obrigatória.”110
De acordo com tal princípio, o pactuado é intangível e não passível de
modificação por qualquer dos contratantes, tampouco por terceiros, exceto se
disposto em contrário no contrato. Sob essa ótica, nem mesmo o juiz poderia rever
independentemente do fundamento alegado por qualquer dos contratantes. Apenas
se a parte se enquadrasse em uma dos casos de permissivo legal de intervenção do
Poder Judiciário, poderia ser decretada a nulidade ou resolução, todavia, jamais a
modificação contratual.
Nesse ponto, importante lembrar Maria Helena Diniz que leciona sobre
isto:
“(...)
da
obrigatoriedade
da
convenção,
pelo
qual
as
estipulações feitas no contrato deverão ser fielmente cumpridas
(pacta sunt servanda), sob pena de execução patrimonial
contra o inadimplente. Isto é assim porque o contrato, uma vez
concluído livremente, incorpora-se ao ordenamento jurídico,
constituindo uma verdadeira norma de direito, autorizando,
portanto, o contratante a pedir a intervenção estatal para
assegurar a execução da obrigação porventura não cumprida
segundo a vontade que a constituiu.
110
GOMES, Orlando. Contratos. 17ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1996, p.36.
57
À
idéia
de
auto-regulamentação
dos
interesses
dos
contratantes, baseada no princípio da autonomia da vontade,
sucede a da necessidade social de proteger a confiança de
cada um deles na observância da avença estipulada, ou
melhor, na subordinação à lex contractus. O contrato é
intangível, a menos que ambas as partes o rescindam
voluntariamente ou haja a escusa por caso fortuito ou força
maior (CC, art.393, parágrafo único). Fora dessas hipóteses,
ter-se-á a intangibilidade ou imutabilidade contratual. Esse
princípio da força obrigatória funda-se na regra de que o
contrato é lei entre as partes, desde que estipulado
validamente. (RT, 543:243, 478:93), com observância dos
requisitos legais. Se os contratantes ajustaram os termos do
negócio jurídico contratual, não se poderá alterar o seu
conteúdo, nem mesmo judicialmente, qualquer que seja o
motivo alegado por uma das partes, e o inadimplemento do
avençado autoriza o credor a executar o patrimônio do devedor
por meio do Poder Judiciário, desde que não tenha havido
força maior ou caso fortuito.” (sic) (g.n)111
Hordiernamente, esse princípio, assim como os demais tradicionais, é
mantido na ordem jurídica, entretanto, foi mitigado pela ciência jurídica visando
atender às aspirações de uma sociedade mais justa, com maior destaque para a
teoria da imprevisão (artigo 478 do Código Civil). Orlando Gomes, em seu livro
Transformações Gerais do Direito das Obrigações, bem destacou essa atenuação
do princípio da pacta sunt servanda:
“O princípio da intangibilidade dos contratos nas relações
patrimoniais não resiste aos solavancos de novas concepções,
já se admitindo alteração dos efeitos do contrato, no curso de
111
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e
Extracontratuais,vol.3, 23ª ed., 2007, São Paulo: Saraiva, p.31.
58
sua expressão, teorizada na doutrina da imprevisão ou da base
do negócio, que abalam a regra pacta sunt servanda.”112
E não é só: o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt
servanda) também foi flexibilizado pelos princípios modernos contratuais, tais como,
o da boa-fé, da função social do contrato e da justiça contratual. Importante notar
que o princípio em questão de fato foi relativizado, todavia, não foi retirado de nosso
ordenamento jurídico, já que ainda tem sua função de estabilizar as relações
contratuais. Na realidade, podemos afirmar que este princípio da força obrigatória do
contrato constitui exceção à regra geral da socialidade.113
Concluindo este tópico, anotamos o Enunciado n. 22 do Conselho
Superior da Justiça Federal aprovado na I Jornada de Direito Civil, de 2002, que
também adota este posicionamento de forma similar: “a função social do contrato,
prevista no artigo 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o
princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.”
3.1.4 Do princípio da relatividade dos efeitos contratuais
Conforme o princípio da relatividade dos efeitos contratuais, o contrato
obriga tão somente os contratantes. Isto significa dizer que o acordo só produz
efeitos para aqueles que participaram dele, não prejudicando nem beneficiando
terceiros. Maria Helena Diniz, ao explicar o princípio in tela, diz:
“(...) da relatividade dos efeitos do negócio jurídico contratual,
visto que não aproveita nem prejudica terceiros, vinculando
exclusivamente as partes que nele intervieram. O contrato
somente produz efeitos entre os contratantes. O ato negocial
deriva de acordo de vontade das partes, sendo lógico que
apenas as vincule, não tendo eficácia em relação a terceiros.
112
GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações, 2ª ed., São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1980, p.80.
113
TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo
Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.158.
59
Assim, ninguém se submeterá a uma relação contratual, a não
ser que a lei o imponha ou a própria pessoa o queira.”114
De fato, este princípio também sofre limitações. Flávio Tartuce citando
Maria Helena Diniz descreveu exemplos demonstradores de que esse princípio pode
ser mitigado:
“Na verdade, entendemos que o princípio da relatividade dos
efeitos contratuais também encontra limitações, na própria
codificação privada ou mesmo na legislação extravagante
aplicável aos contratos. Maria Helena Diniz aponta como
exceções a tal princípio a responsabilidade dos herdeiros do
contratante (art.1792 do novo CC), bem como a estipulação em
favor de terceiro, a qual „estende seus efeitos a outras
pessoas, criando-lhes direitos e impondo deveres, apesar de
elas serem alheias à constituição da avença‟ (arts.436 a 438 do
novo CC).‟ Acreditamos que, na estipulação em favor de
terceiro, os efeitos são „de dentro para fora do contrato‟ ou
„endógenos‟, já que a conduta de um estranho ao contrato
repercute dentro deste.”115
Um aspecto polêmico que merece atenção refere-se a quando um
contrato afeta de forma negativa a esfera de terceiro e a partir daí aparecem os
interesses divergentes. Darcy Bessone mostra exemplos de confrontos de
interesses, como: vender mercadorias abaixo do preço de custo com o fim de obstar
a concorrência. In casu, esta conduta do agente afeta não só os concorrentes (que
poderão até falir), como também todo o mercado consumidor. (trata-se de
concorrência desleal).116
Não se pode olvidar, atualmente, que esse princípio foi atenuado, tendo
em vista que o contrato não atinge só as esferas jurídicas dos contratantes, ainda
mais diante de relações tão frequentemente interligadas. A publicização dos
114
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e
Extracontratuais, vol.3, 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007 p.32.
115
TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo
Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.162.
116
BESSONE, Darcy. Do contrato – teoria geral. São Paulo: Saraiva, 1997, p.164.
60
contratos e a sua massificação demonstram o quanto os acordos hoje estão
interligados e não podem atingir apenas as partes.
Também, o princípio da função social corrobora para que esse princípio
seja flexibilizado. Sobre este prisma, e pertinente à questão exposta, transcrevemos
o Enunciado n. 21 emitido pelo Conselho Superior da Justiça Federal aprovado na I
Jornada de Direito Civil de 2002: “art.421: a função social do contrato, prevista no
art.421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio
da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela
externa do crédito.”
3.1.5 Do princípio do consensualismo
Alguns doutrinadores117 não incluem esse princípio entre um dos
principais do direito contratual, outros o fundem ao princípio da força obrigatória dos
contratos.118 Contudo, de qualquer forma, discorremos brevemente sobre esse tema,
pois achamos importante.
Segundo tal princípio, o mero consenso já é suficiente para criar um
contrato. Ou seja, para se aperfeiçoar um contrato não era preciso o formalismo.
Fernando Noronha, ao conceituar esse princípio, entende que é corolário
do princípio da autonomia da vontade e conceitua o princípio em debate de forma
resumida no seguinte sentido: “Consensualismo: se as partes são livres para contrair
obrigações, então, ficarão vinculadas apenas pela manifestação dada nesse sentido,
sem necessidade de se subordinarem a quaisquer formalidades.” 119
Na atual conjuntura, o artigo 104, inciso III do Código Civil de 2002,
estipula que os contratantes podem celebrar contratos da forma como preferirem,
prevalecendo esse princípio, salvo se a lei determinar de forma em contrário. Por
exemplo, do exposto, para que se concretize a compra a venda de um imóvel, é
necessário o registro e não basta apenas o consenso.
117
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – dos contratos e das declarações unilaterais de vontade, vol.3,
26ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p.15.
118
TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo
Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.154.
119
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.43.
61
3.2. Do princípio da boa-fé objetiva
3.2.1 O surgimento no ordenamento jurídico brasileiro do princípio da boa-fé
objetiva e o fundamento do princípio
Num primeiro momento, para entendermos melhor o princípio da boa-fé
objetiva, abordaremos quando esse princípio apareceu no direito brasileiro.
A boa-fé objetiva somente apareceu no Código de Defesa do Consumidor
nos artigos 4°, inciso III e 51, inciso IV. Antes do mencionado Código, a boa-fé era
ressaltada apenas em seu aspecto subjetivo.120
Registre-se, a regra do artigo 131, inciso I do antigo Código Comercial
(hoje revogado pelo Código Civil de 2002) tinha um preceito interpretativo conforme
o qual, nas interpretações de cláusulas contratuais, deveria ser usado inteligência
adequada que fosse mais condizente à boa-fé e ao espírito do contrato em
detrimento da significação das palavras.121 Contudo, esse dispositivo não foi muito
utilizado no mundo prático.122 Nesse mesmo sentido, transcrevemos Flávio Alves
Martins:
“(...) Embora à época, ante a extrema influência do direito
francês em nossa doutrina e em nossos Tribunais, não se
tenha conferido importância à aplicação da boa-fé como limite
autonomia das vontades das partes, os comercialistas sempre
defenderam que uma interpretação dos contratos não se pode
limitar a uma simples análise literal das palavras ou das
expressões utilizadas, mas sim a uma reconstituição do que
120
LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador
Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.43; NEGREIROS, Teresa.
Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar,
1998, p.174.
121
LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador
Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.43.
122
TEPEDINO, Gustavo. Introdução: crise de fontes normativas e técnicas legislativa na parte geral do
Código Civil de 2002, in (Coordenador). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva
civil-constitucional, 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.XIX.
62
motivou as partes na celebração do contrato, que deve seguir
os usos locais e a boa-fé” (g.n) 123
Teresa Negreiros explica que não houve efetividade da boa-fé estipulada
no Código Comercial de 1850, em decorrência de que a boa-fé tenha sido
restringida a mera função de interpretação/integração do contrato, sem que fosse
reconhecido o seu papel de criadora de deveres. Dessa forma, a boa-fé foi colocada
em contraposição ao sentido literal das cláusulas contratuais, o que é criticado pela
autora, na medida em que deveria incidir não apenas na relação entre o declarado e
o suposto, "mas igualmente sobre o núcleo mesmo da vontade intencionada,
podendo inclusive redundar em sua desconsideração".124
Destaca-se, para o doutrinador Flávio Tartuce o princípio da boa-fé
objetiva já estaria expresso no artigo 131, inciso I do Código Comercial de 1850; e
mais, que nesse dispositivo também já estaria implícito o princípio da função social:
“Ao contrário do que muitos podem imaginar, já existia previsão
expressa anterior quanto à boa-fé objetiva, de cunho
contratual, em nosso ordenamento jurídico. Com efeito, esta
era a previsão do art.131, I, do CCom/1850, constante na parte
que foi revogada pelo novo Código Civil (...)
Entendemos que o comando legal em questão, ao consagrar a
boa-fé objetiva como cláusula geral, também trazia implícito o
princípio da função social do contrato, já que afastava a
validade
das
palavras
que
constavam
do
instrumento
contratual, em benefício do verdadeiro espírito do contrato.” 125
Em que pese o raciocínio acima exposto, data venia, ousamos entender
que o Código Comercial em seu artigo 131, inciso I, ainda não vislumbrava a ideia
de boa-fé objetiva de forma contundente, e isso só passou a acontecer a partir da
promulgação do Código de Defesa do Consumidor.
123
MARTINS, Flávio Alves. A Boa-fé Objetiva e sua Formalização no Direito das Obrigações
Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.92.
124
NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé.
Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 75-76.
125
TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo
Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.168.
63
Num segundo momento, destaca-se que:
“O princípio da boa-fé objetiva tem fundamento constitucional
na cláusula geral de dignidade da pessoa humana como um
dos fundamentos do Estado Democrático (art.1º, III, da CF/88)
e no art.3º, I, que determinou ser objetivo fundamental da
República
uma
sociedade
livre,
justa
e
solidária.
É
precisamente essa solidariedade que embasa a cláusula geral
de boa-fé.”126
Para elucidar melhor esta questão acima, transcrevemos Teresa
Negreiros:
“A fundamentação constitucional do princípio da boa-fé assenta
na cláusula geral de tutela da pessoa humana – em que esta
se presume parte integrante de uma comunidade, e não um ser
isolado, cuja vontade em si mesma fosse absolutamente
soberana,
embora
sujeita
a
limites
internos.
Mais
especificamente, é possível reconduzir o princípio da boa-fé ao
ditame constitucional que determina como objetivo fundamental
da República a construção de uma sociedade solidária, na qual
o respeito pelo próximo seja um elemento essencial de toda e
qualquer relação jurídica. Nesse sentido „a incidência da boa-fé
objetiva sobre a disciplina obrigacional determina uma
valorização da dignidade da pessoa, em substituição à
autonomia do indivíduo, na medida em que se passa a encarar
as relações obrigacionais como um espaço de cooperação e
solidariedade entre as partes e, sobretudo de desenvolvimento
da personalidade humana.”127
3.2.2 Do conceito de boa-fé objetiva
126
LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador
Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.45.
127
NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo:
Renovar, 2002, p.117-118.
64
Em razão da importância da boa-fé dentro do âmbito do direito dos
contratos, seria importante iniciar esta abordagem com uma definição exata dele.
Ocorre que esta não é uma tarefa fácil, pois é um conceito bastante rico 128, de
grande magnitude e aberto.129 Todavia, na configuração da boa-fé, estão
intrinsecamente ligadas também as noções de probidade, honestidade, lealdade,
confiança que devem regrar o padrão de comportamento das partes em todas as
fases contratuais.130
Sobre o conceito da boa-fé objetiva citamos Paulo Luiz Netto Lôbo:
“A boa-fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas
relações jurídicas obrigacionais. Interessam as repercussões
de certos comportamentos na confiança que as pessoas
normalmente
neles
depositam.
Confia-se
no
significado
comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento
reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa
conduta
honesta,
leal,
correta.
É
a
boa-fé
de
131
comportamento.”
(g.n)
A boa-fé objetiva é um padrão de conduta social, standard jurídico,
segundo o qual as partes, no contrato devem agir com lealdade e correção.132
Fernando Noronha, em sua lição, descreveu bem três notas relevantes na
boa-fé objetiva a seguir transcritas:
“Para finalizar esta parte relativa da caracterização da boa-fé
objetiva, importa destacar três notas.
128
MARTINS, Flávio Alves. A Boa-fé Objetiva e sua Formalização no Direito das Obrigações
Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.7.
129
LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador
Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.45.
130
STIGLITZ, Rúben S. Contratos: teoría geral, Bueno Aires: Depalma, 1994, vol.2, p.251.
131
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios dos Contratos e Mudanças Sociais. Revista Jurídica n. 329,
vol.53, São Paulo: Notadez, mar. de 2005, p.9-17.
132
STIGLITZ, Rúben S. Op. cit., p.254.
65
Primeira. A boa-fé objetiva pressupõe que haja duas pessoas
ligadas por uma determinada relação jurídica, que lhes
imponha especiais deveres de conduta, de cada uma delas em
relação à outra, ou pelo menos de uma delas em relação à
outra. Como diz Larenz, ela „pressupõe uma vinculação
especial e uma determinada confiança entre as pessoas que
intervêm. Ela não é, porém, „a boa-fé ausência de intenção
malevolente‟, de que já falava Lyon-Caen, porque pode não
haver intenção malévola e, apesar disso, não se respeitar a
boa-fé, como se explicitará adiante.
Segunda. Quando no conceito são referidos padrões de
conduta
socialmente
recomendados,
pensa-se
no
comportamento exigível do bom cidadão, do profissional
competente, de um modelo abstrato de pessoa, razoavelmente
diligente, o que costuma tudo ser traduzido pela noção de
fumus pater famílias. (...)
Terceira. Se a boa-fé objetiva é dever de agir de acordo com
determinados padrões, nela é preciso verificar também a
situação da contraparte. Em cada caso é necessário ver se
estavam reunidas as condições suficientes para criar na
contraparte um estado de confiança no negócio celebrado: só
então a expectativa desta será tutelada. Melhor dizendo,
enquanto na boa-fé subjetiva se atende apenas à situação da
pessoa que confiou, na objetiva considera-se, ao mesmo
tempo, a posição de ambas as partes que estão em relação (ou
de todas elas, se forem mais de duas). Por um lado, é preciso
que uma delas, aquela sobre quem incumbia o dever de
informar, esclarecer, ou agir com lisura, tenha procedido com a
correção e a lealdade exigíveis no tráfico jurídico. Por outro
lado, é preciso que a contraparte tenha confiado na
estabilidade e segurança do negócio jurídico que celebrava,
porque podia legitimamente alimentar a expectativa de que a
outra
parte
procederia
com
correção
e
lealdade.
O
procedimento de uma parte, o respeito pelos padrões de
66
conduta exigíveis, é que justifica a confiança da contraparte.” 133
(g.n)
Antes de adentrar no mérito da distinção entre a boa-fé objetiva e a
subjetiva, cumpre esclarecer que, apesar de o artigo 422 do Código Civil não ter
expressamente contemplado a aplicação da boa-fé objetiva após a fase de
conclusão e execução contratual e nem na fase preliminar, isto coube à doutrina e à
jurisprudência interpretar de forma extensiva.134 Sobre esse aspecto específico,
citamos os Enunciados n°s 25 do Conselho Federal de Justiça na I Jornada de
Direito Civil e 170 do Conselho Federal de Justiça na III Jornada de Direito Civil que
esclarecem este ponto:
“Enunciado n° 25 do Conselho Federal de Justiça I
Jornada de Direito Civil - Art. 422: o art. 422 do Código Civil
não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé
nas fases pré-contratual e pós-contratual.135
Enunciado n° 170 do Conselho Federal de Justiça III
Jornada de Direito Civil – Art. 422: A boa-fé objetiva deve ser
observada pelas partes na fase de negociações preliminares e
após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da
natureza do contrato.”136
Ainda acerca das fases contratuais que devem presidir a boa-fé objetiva,
anotamos a lição de Marco Aurélio Bezerra de Melo:
“O art.merece ser criticado, pois faz referência apenas à
necessidade da boa-fé na conclusão e na execução do pacto,
quando a melhor doutrina há muito tempo já aponta para a
necessidade de o princípio da boa-fé ser observado em todas
as fases contratuais, inclusive após a execução contratual (fase
133
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.138-139.
134
REHDER, Paulo Dóron, Tratamento Contemporâneo da boa-fé objetiva nos contratos, In,
PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge. Contratos, vol. II. 1ª ed., São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.315.
135
Disponível em: http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf. Acesso em: 24 out. 2011.
136
Disponível em: http://www.cjf.jus.br/revista/enunciados/IIIjornada.pdf. Acesso em: 24. out. 2011.
67
pós-contratual). Diante desta falta de atualização do artigo, que
na época em que foi confeccionado era um primor de precisão,
não evitará que afirmemos ser a boa-fé um princípio que deva
ser respeitado nas meras tratativas, no momento da proposta,
na formação do contrato, assim como na antevista para depois
do próprio exaurimento do pacto.”137(g.n)
3.2.3 Distinção entre Boa-fé Objetiva e Boa-Fé Subjetiva
A boa-fé pode ter duas concepções jurídicas138, uma objetiva e outra
subjetiva. A primeira já foi explanada acima. Vamos à segunda boa-fé.
Consoante Fernando Noronha, a boa-fé subjetiva pode ser conceituada
na forma abaixo transcrita:
“A boa-fé subjetiva, ou boa-fé crença, é um estado – um estado
de ignorância sobre características da situação jurídica que se
apresenta, suscetíveis de conduzir à lesão de direitos de
outrem. (...)
Na situação de boa-fé subjetiva, uma pessoa acredita ser titular
de um direito, que na realidade não tem, porque só existe na
aparência. A situação de aparência gera um estado de
confiança subjetiva, relativa à estabilidade da situação jurídica,
que permite ao titular alimentar expectativas, que crê
legítimas.” 139
Judith Martins-Costa explica a ideia da boa-fé subjetiva, como também
em quais campos do direito esta é aplicada:
137
MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos –
Tomo I, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.22-23.
138
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.131.
139
Ibid., p. 132.
68
“A expressão „boa-fé subjetiva‟ denota „estado de consciência‟,
ou
convencimento
individual
de
obrar
[a
parte]
em
conformidade ao direito [sendo] aplicável, em regra, ao campo
dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Dizse „subjetiva‟ justamente porque, para sua aplicação, deve o
intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o
seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé
subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a
intenção de lesar a outrem.(...)
A boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a ideia de
ignorância, de crença errônea, ainda que escusável, acerca da
existência de uma situação regular, crença (e ignorância
escusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da
ignorância (as hipóteses do casamento putativo, da aquisição
da propriedade alheia mediante a usucapião), seja numa
errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro
aparente, etc.). Pode denotar, ainda, secundariamente, a ideia
de vinculação ao pactuado, no campo específico do direito
contratual, nada mais aí significando do que um reforço ao
princípio da obrigatoriedade do pactuado, de modo a se poder
afirmar, em síntese, que a boa-fé subjetiva tem o sentido de
uma condição psicológica que normalmente se concretiza no
convencimento do próprio direito, ou na ignorância de estar
lesando direito alheio, ou na adstrição „egoística‟ à literalidade
do pactuado.” (g.n)140
Enfatiza-se neste tópico que, apesar da boa-fé objetiva ser distinta da
subjetiva, podem existir relações entre elas. Fernando Noronha bem explana esta
relação:
“Existem, é claro, algumas relações entre as duas boas-fés.
140
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. Sistema e tópica no processo obrigacional,
São Paulo: Revista dos Tribunais,1999, p.411-412.
69
A inexistência de boa-fé subjetiva caracteriza sempre uma
atuação dolosa (concepção psicológica), ou pelo menos
culposa (concepção ética), e, portanto, sempre uma atuação
não conforme aos deveres de conduta impostos pela boa-fé
objetiva: quem não está em estado de ignorância (aspecto
subjetivo) e, apesar disso, age, sabendo ou devendo saber que
vai prejudicar direitos alheios, procede (aspecto objetivo)
necessariamente de má-fé.
Já, porém, o fato de a pessoa estar em estado (subjetivo) de
boa-fé não significa que não possa estar infringindo o dever
(objetivo) de agir de boa-fé. Se ela não conhece, nem tinha a
obrigação de conhecer a verdadeira condição da situação
jurídica que tinha diante de si, e assim age, violando sem saber
direito de outrem, estará de boa-fé (subjetiva) e também
procederá de boa-fé (objetiva). Se, todavia, não conhece, mas
tinha a obrigação de conhecer, o seu estado de ignorância será
irrelevante, e ela, ao proceder, infringirá o dever (objetivo) de
respeitar a boa-fé; não se poderá, porém, dizer que esteja
necessariamente agindo de má-fé, porque a boa-fé subjetiva
pode persistir, mesmo havendo culpa, se o caso for daqueles
em que baste a mera boa-fé psicológica.” 141
3.2.4 As três funções da Boa-Fé Objetiva
A Boa-Fé objetiva tem três funções, estando estas também estampadas
no Código Civil de 2002. A primeira função é de paradigma interpretativo na teoria
dos negócios jurídicos (artigo 113 do Código Civil). A segunda função é de assumir
índole de controle, obstando o abuso do direito subjetivo, qualificando-o como ato
ilícito (artigo 187 do Código Civil); e a terceira função é a integrativa, já que da boafé objetiva disseminam deveres que serão inventariados pela jurisprudência.
141
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.141.
70
Teresa Ancona Lopes, na mesma vertente, assim dispôs:
“Os doutrinadores apontam três funções principais para a boafé objetiva. Essas funções aparecem também no Código Civil
de 2002, a saber:
a) como regra de conduta obrigatória dos dois contratantes
(art.422);
b) como regra de interpretação dos negócios jurídicos
(art.113);
c) como limitadora de direitos subjetivos (art.187).”142
Em relação ao artigo 422 do Código Civil depreende-se a função de
criação de deveres instrumentais (secundários, laterais, anexos)143
Com efeito, a doutrina tem entendido que em cada relação contratual há
os deveres principais e os deveres secundários. Os primeiros constituem o núcleo
da relação obrigacional definindo o tipo contratual, tal como, por exemplo, o dever de
remunerar o prestador de serviços no contrato de prestação de serviços. 144 Já os
segundos são “meios para garantir a consecução do fim do contrato” e “caracterizam
a correção do comportamento dos contratantes, um em relação ao outro, tendo em
vista que o vínculo obrigacional deve traduzir uma ordem de cooperação, (...)”
145
O princípio da boa-fé objetiva nessa função opera como uma verdadeira
fonte de direitos e obrigações, não restrita à vontade ou à lei.146 Judith Martins-Costa
lista os principais deveres oriundos pela incidência da boa-fé objetiva:
“a) deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever
do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de
bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres
142
LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador
Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.51-52.
143
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional,
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.437.
144
Idem.
145
NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo:
Renovar, 2002, p.149-150.
146
SILVA, Clóvis V. do Couto, apud MARTINS-COSTA, Judith, A Boa-Fé no Direito Privado sistema e
tópica no processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.440.
71
de aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar
o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via
judicial
passível
de
escolha
para
satisfação
de
seu
desideratum, o do consultor financeiro, de avisar a contraparte
sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer o
paciente sobre a relação custo/benefício do tratamento
escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado,
ou ainda, na fase pré-contratual, o do sujeito que entra em
negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que
podem ter relevo na formação da declaração negocial; c) os
deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito
das relações jurídicas de consumo, seja por expressa
disposição legal (CDC, arts.12, in fine, 14, 18, 20, 30 e 31,
entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé
objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos
gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de
colaboração e cooperação, como o de colaborar para o correto
adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela
negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do
devedor; f) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o
patrimônio da contraparte, como, v.g., o dever do proprietário
de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento
comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fim de
diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omissão e de
segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos
dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de
negociações preliminares, pagamento, por parte do devedor,
etc.”(g.n) 147
Nesse passo, interessante mencionar o julgado que com base nesta
função da boa-fé objetiva criou o dever da prestadora de serviços em fornecer peças
147
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional,
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.439.
72
de reposição e assistência técnica em relação à tomadora de serviços, apesar de
inexistência de cláusula contratual.148
Ainda no que tange a esta função, ressalta-se que a boa-fé fez alargar o
conteúdo do contrato, já que junto com as obrigações contratuais e fora do âmbito
contratual, existe o dever geral de não causar dano.149
Será explicado em segundo, a função interpretativa da boa-fé. Esta
função tem o intuito de determinar o sentido das estipulações contidas no contrato
celebrado, permitindo até a sua reconstrução pelo juiz. Este julgador pode até
intervir nos direitos e deveres das partes envolvidas na relação jurídica
obrigacional.150
Fernando Noronha ao explicar esta função entende dois desdobramentos:
“(...) primeiro, os contratos (e os negócios jurídicos unilaterais)
devem ser interpretados de acordo com o seu sentido objetivo,
aparente, salvo quando o destinatário da declaração conheça a
vontade real do declarante, ou quando devesse conhecê-la, se
agisse com razoável diligência; segundo, quando o próprio
sentido
objetivo
suscite
dúvidas,
dever-se-á
preferir
significado que a boa-fé aponte como mais razoável.”(g.n)
148
o
151
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n.158642-7, da 5ª Câmara Cível, julgado
em 16 de novembro de 2004: “Ementa: (...) Embora não haja no contrato celebrado entre as partes
cláusula expressa prevendo a obrigação da empresa ABB Ltda. de fornecer peças de reposição e
assistência técnica a IBEMA, essa obrigação é ínsita à pactuação, razão pela qual, determina-se,
como providência cautelar, o seu cumprimento, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil
reais)(...) Analisando o processo, verifica-se que não há no contrato celebrado entre as partes
cláusula expressa prevendo a obrigação da empresa ABB Ltda. de fornecer peças de reposição e
assistência técnica permanente a IBEMA, porém essa obrigação é ínsita à pactuação, posto que
efetivamente só a ora agravante é quem dispõe, com exclusividade, da tecnologia empregada na
construção e montagem do denominado Grupo Elétrico desse maquinário, sendo natural o desgaste
do equipamento diante do seu contínuo funcionamento.
Os artigos 113, 421 e 422 do novo Código Civil tratam da função social dos contratos e do princípio
da boa-fé objetiva, estabelecendo o último dos dispositivos que os contratantes são obrigados a
guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boafé. (...)Assim sendo, embora inexista cláusula contratual obrigando a agravante a fornecer peças de
reposição e os serviços necessários ao funcionamento do maquinário, entendo que deve fazê-lo,
tendo em vista os institutos acima referidos, informadores do novo sistema jurídico de Direito
Privado.”(g.n)
149
NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo:
Renovar, 2002, p.153.
150
MARTINS, Flávio Alves. A Boa-fé Objetiva e sua Formalização no Direito das Obrigações
Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.20.
151
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.152.
73
Em nosso ordenamento jurídico sobre esta função da boa-fé, convém
anotar o artigo 113 do Código Civil de 2002: “Art. 113. Os negócios jurídicos devem
ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
Este dispositivo adotou a teoria da confiança, a qual segundo Silvio
Rodrigues, representa:
“uma fuga da posição individualista original. Tal entendimento
demonstra deliberado abandono daquela posição individualista
original, de ilimitado respeito ao dogma da vontade, para
acolher uma concepção que mais atenda ao interesse geral.
Isso a despeito de fugir à lógica do sistema, cujo pressuposto
básico é o de que o elemento medular do ato jurídico se
encontra na vontade.” (g.n)152
E conforme Teresa Ancona Lopez, o juiz, ao interpretar o negócio jurídico
em seu conteúdo, deve levar em consideração a lealdade e a correnttezza que se
espera. E explica a referida douta doutrinadora sobre a conciliação com o artigo
112:
“Por outro lado, o art.112 do Código Civil, que contém regra
interpretativa carregada da teoria da vontade, e que é
aparentemente antinômica ao art.113, só pode ser interpretado
segundo as luzes da teoria da declaração, na subespécie teoria
da confiança. Em outras palavras, quando a lei diz que „nas
declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas
consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem‟,
devemos ter presente que essa intenção consubstanciada no
texto negocial vem das declarações das partes e essas
declarações não podem ser contra a boa-fé objetiva. Portanto,
é perfeitamente possível conciliar os dois dispositivos, desde
que tenhamos em mente que a intenção das partes só pode
152
RODRIGUES, Sílvio. Dos Vícios do Consentimento, 3ª ed., São Paulo: Saraiva,1989, p.38.
74
ser avaliada objetivamente e segundo a boa-fé, pois estamos
diante de Código que adotou a teoria da confiança.”153
Ainda sobre essa função interpretativa da boa-fé objetiva, transcrevemos
a lição de Flávio Tartuce:
“Seguindo tendência ético-socializante, o art.113 do novo CC
prevê que „os negócios jurídicos devem ser interpretados
conforme a boa-fé e os usos do lugar da sua celebração‟.
Nesse dispositivo a boa-fé é consagrada como meio auxiliador
do aplicador do direito para a interpretação dos negócios,
particularmente dos contratos.
Entendemos, na verdade, que o aludido comando legal não
poderá
ser
interpretado
isoladamente,
mas
em
complementaridade com o dispositivo anterior, que traz regra
pela qual nas „declarações de vontade se atenderá mais à
intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da
linguagem‟ (art.112 do novo CC). Quando esse dispositivo
menciona a intenção das partes, traz em seu bojo o conceito
de boa-fé subjetiva, por nós já apresentado.
(...)
Encerrando a presente abordagem, opinamos no sentido de
que a boa-fé deve ser entendida como ferramenta auxiliar a
guiar o magistrado na aplicação da norma ao contrato, dentro
da equidade e das regras de razão que se espera do Poder
Judiciário.” (g.n)154
Em relação a essa função, convém por derradeiro anotar que se trata de
uma norma cogente que não pode ser afastada pelas partes ou pelo juiz.
153
LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador
Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.53.
154
TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo
Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.173-175.
75
E mais, alguns doutrinadores entendem que essa função deveria ser vista
em conjunto com a função interpretação-integração.155 Em tal função, o princípio da
boa-fé tem a finalidade nítida de completar, fornecer soluções e adequar a lei ao
caso concreto. Judith Martins-Costa sobre essa função explana:
“Com efeito, a primeira função, hermenêutico-integrativa, é a
mais conhecida: atua aí a boa-fé como kanon hábil ao
preenchimento de lacunas, uma vez que a relação contratual
consta de eventos e situações, fenomênicos e jurídicos, nem
sempre previstos ou previsíveis pelos contratantes.
(...)
A boa-fé atua, como cânone hermenêutico, integrativo frente à
necessidade
de
qualificar
esses
comportamentos,
não
previstos, mas essenciais à própria salvaguarda da fattispecie
contratual e à plena produção dos efeitos correspondentes ao
programa contratual objetivamente posto.” 156
No que se refere à função controladora, esta significa inserir limites ao
exercício dos direitos subjetivos. Nessa hipótese, esta função está diretamente
ligada ao abuso de direito descrito no artigo 187 do Código Civil Brasileiro de 2002.
Sobre esta função, descrevemos Fernando Noronha:
“A função de controle corresponde ao terceiro comando em
que se desdobra o princípio da boa-fé (e também relativo,
como o comando subjacente à função integrativa, à execução
das obrigações): o credor no exercício do seu direito, não pode
exceder os limites impostos pela boa-fé, sob pena de proceder
ilicitamente ou, pelo menos, antijuridicamente.”157
155
NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas, Rio de Janeiro, São Paulo:
Renovar, 2002, p.135; MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado sistema e tópica no
processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.428.
156
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.428.
157
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.167.
76
E mais adiante Fernando Noronha leciona sobre o abuso de direito e o
princípio da boa-fé:
“(...) Realmente importante é saber que o verdadeiro critério do
abuso de direito parece estar no princípio da boa-fé: o que
importa assinalar é, primeiro, que a boa-fé exige que cada
parte que, ao exercer os seus direitos, haja com moderação e,
segundo,
que
se
a
discricionariedade
concedida
aos
particulares constitui a sua esfera de autonomia privada, a boafé, agora, terá uma função de limite a tal autonomia.
Na verdade, se bem atentarmos nos atos geralmente
apontados como de abuso de direito, veremos como em todos
está presente uma violação do dever de agir de acordo com a
boa-fé. Esta violação é patente desde logo nos casos de abuso
de direito reconhecidos pelas concepções subjetivistas: quando
se escolhe, com o propósito de prejudicar, o modo de exercício
do direito que é mais danoso para a contraparte, é manifesta a
violação do dever de agir com moderação, imposto pela boa-fé.
Mas a violação do mesmo dever de agir conforme a boa-fé é
visível também nos demais casos de abuso de direito,
caracterizados
apenas
por
desvio
da
sua
finalidade,
independentemente de qualquer propósito de prejudicar.
Nestes casos, é preciso, todavia, sermos cautelosos antes de
dar como verificado um abuso de direito, porque a boa-fé não
exige que ninguém proceda de modo altruísta em relação à
contraparte.” (g.n) 158
Teresa Negreiros sobre abuso de direito e princípio da boa-fé objetiva
entende:
“Inspira-se neste artigo do Código português o atual art.187 do
Código Civil, o qual, contudo, em lugar da ilegitimidade, se
158
Ibid., p.173.
77
refere diretamente à ilicitude do exercício de direitos em
contrariedade aos ditames da boa-fé (...).
Diante da ordenação contratual, o princípio da boa-fé e a teoria
do abuso de direito complementam-se, operando aquela como
parâmetro de valoração do comportamento dos contratantes: o
exercício de um direito será irregular, e nesta medida abusivo,
se consubstanciar quebra de confiança e frustração de
legítimas expectativas. Nesses casos, o comportamento
formalmente lícito, consistente no exercício de um direito, é,
contudo, um comportamento contrário à boa-fé e, como tal,
sujeito ao controle da ordem jurídica.”159
Outra relevante particularização da boa-fé objetiva nessa sua função
controladora encontra-se na teoria do adimplemento substancial. Sobre essa teoria e
o princípio da boa-fé objetiva, importante transcrever a lição de Anelise Becker:
“O princípio da boa-fé objetiva aí atua de forma a proteger o
devedor frente a um credor malicioso, inflexível (boa-fé
eximente ou absolutória), como causa de limitação ao exercício
de um poder jurídico, no caso, do direito formativo de
resolução, do qual é titular o credor de obrigação não
cumprida.”160
Na forma dessa teoria, mesmo que a resolução esteja prevista
expressamente no contrato, ou seja, presumida pela lei, esta não será permitida,
pois viola a boa-fé, sempre que este adimplemento basear-se “em um resultado tão
próximo do esperado, que não chega a abalar a reciprocidade, o sinalagma das
prestações correspectivas.”161 Nessa hipótese, o credor receberá perdas e danos,
mas não se justificará a resolução, tendo em vista que a comutatividade do contrato
não chegou a ser abalada na sua essência.
159
NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas, Rio de Janeiro, São Paulo:
Renovar, 2002, p.141.
160
BECKER, A. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva
comparativista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Livraria dos Advogados, n. 1, vol. 9, nov. 1993, p.70.
161
Ibid., p.63.
78
Ainda sobre a visualização prática da teoria do adimplemento substancial,
enfatizamos a lição de Daniel Martins Boulos:
“(...) analisa-se a teoria da seguinte perspectiva: em contratos
de longa duração nos quais existe a obrigação de pagamento
de prestações, não raro ocorre que uma das partes contratuais
efetuar o pagamento de parcela substancial das prestações
contratuais e, por ter deixado de pagar uma ou duas parcelas,
a
contraparte
pleitear
a
resolução
do
contrato
por
inadimplemento. Neste caso, doutrina e jurisprudência pátrias
têm entendido que a prestação de resolução contratual por
inadimplemento fere o princípio da boa-fé objetiva eis que
houve
“adimplemento
substancial
das
obrigações
162
contratuais.”
Na Europa, no desempenho dessa função controladora da boa-fé
objetiva, surgiu a teoria dos atos próprios. Essa teoria tem dois prismas pela
doutrina: (1) regra do tu quoque; e, (2) regra do venire contra factum proprium.163
Sobre a materialização da tu quoque e o princípio da boa-fé objetiva,
anotamos a lição de Teresa Negreiros:
“A respeito do tu quoque, a ideia básica é a de que atenta
contra a boa-fé o comportamento inconsistente, contraditório
com
comportamento
inconsistente,
contraditório
com
comportamento anterior, e, especificamente, que resulte em
desequilíbrio entre os contratantes, na medida em que permita
que contratantes igualmente faltosos sejam, não obstante,
tratados de forma desigual. (...) No caso específico da regra do
tu quoque, a boa-fé objetiva atua como guardiã do sinalagma
contratual, impedindo que o contratante que descumpriu norma
legal ou contratual venha a exigir do outro que, ao contrário,
162
BOULOS, Daniel Martins. Abuso de Direito no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2006, p.182.
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.461.
163
79
seja fiel ao programa contratual: é o caso do contratante, em
mora quando da ocorrência de circunstância que alteram a
base do negócio, pretender então que o negócio seja extinto;
ou ainda o caso do condômino, violando ele próprio a
convenção do condomínio, pretender exigir dos
outros
condôminos que a respeitem.” (g.n) 164
Em relação à regra venire contra factum proprium, Teresa Negreiros bem
exemplifica quando acontece a sua configuração:
“Mais complexa é a regra do venire contra factum proprium,
que, de forma geral, proscreve o comportamento contraditório
que importe quebra de confiança, revertendo legítimas
expectativas criadas na outra parte contratante. É mais
complexa porque, neste caso, não se exige sequer que o
comportamento impugnado se realize na sequência de um ato
objetivamente indevido (como se viu em relação tu quoque),
bastando que se configure um desvio de conduta em relação à
linha de atuação que aquele contratante vinha assumindo
como padrão. (...) A complexidade desta noção ligada aos
valores da veracidade e de confiança, reside, como se percebe
facilmente, no estabelecimento de critérios de valoração aptos
a determinar quais as contradições da conduta humana que
devem e quais as que não devem ser consideradas contrárias
à boa-fé.
(...)
Na verdade, não são todas as expectativas, mas somente
aquelas que, à luz das circunstâncias do caso, estejam
devidamente fundadas em atos concretos (e não somente
indícios) praticados pela outra parte, os quais, conhecidos pelo
contratante, o fizeram confiar na manutenção da situação
assim gerada. Mais que isso, o comportamento contraditório só
164
NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo:
Renovar, 2002, p.143.
80
será alcançado pela boa-fé objetiva quando não for justificável
e, ainda, quando a reversão de expectativas assim ocorrida
gere efetivos prejuízos à outra parte cuja confiança tenha sido
traída.” 165
Esmiuçando ainda mais o tema, identifica a doutrina outras formas de
abuso de direito, dentre as quais a figura da supressio (ou Verwirkung como
preferem os alemães). Este instituto cabe dentro da categoria em que o titular de um
direito adota atitudes deslealmente contraditórias, criando primeiro na contraparte
uma confiança justificada em que não-exercerá o seu direito e depois fazendo valer
este.166
Segundo Menezes de Cordeiro “diz-se supressio a situação do direito que
não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de
tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa-fé.”167 Isto é, a
supressio é o fenômeno da perda de certa faculdade jurídica pelo decurso do tempo,
tendo em vista que gerou a outra parte uma legítima expectativa de não exercício do
respectivo direito pelo titular.
Em outra oportunidade, um julgado decidindo uma questão relacionada
ao contrato de mútuo e fornecimento de energia elétrica, a Desembargadora relatora
Maria Isabel de Azevedo Souza bem anotou os requisitos necessários para a sua
configuração, quais sejam; “(i) decurso de prazo sem exercício do direito com
indícios objetivos de que o direito não mais seria exercido e; (ii) desequilíbrio, pela
ação do tempo, entre o benefício do credor e o prejuízo do devedor.”168 Como
também, no mesmo voto, reconheceu quando se aplica este instituto, no seguinte
sentido: “A supressio constitui em limitação ao exercício de direito subjetivo que
paralisa a pretensão em razão do princípio da boa-fé objetiva.”
Após estes esclarecimentos sobre a tripartição das funções do princípio
da boa-fé objetiva, de fato, realçamos que na prática elas se complementam, sendo
165
NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo:
Renovar, 2002, p.146-148
166
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Editora Saraiva, 1994, p.183.
167
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina,
1984, vol.2, p.797.
168
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70001911684, da 2ª Câmara
Cível, j. em 04 de dezembro de 2000.
81
trabalhoso, numa hipótese concreta, saber qual papel o princípio da boa-fé estaria
desempenhando.169
3.2.5 Efeitos da violação ao princípio da boa-fé objetiva
Se o juiz considerar que o contrato teria violado o princípio da boa-fé
objetiva, qual seria o efeito na prática dessa sentença em uma relação jurídica não
regida pelo Código Consumidor, tal como a ora estudada (contrato de prestação de
serviços empresarial)? O juiz poderia declarar a nulidade, haja vista que teria sido
transgredida uma norma cogente?
Nosso entendimento seria de que neste caso teria se violado uma norma
cogente, e, logo, a consequência jurídica seria a decretação da nulidade do contrato.
Ou, dependendo do caso, poderia ocorrer uma revisão do contrato, de forma a
equilibrar melhor a relação contratual. Entendo também serem aplicáveis as
consequências descritas no item 3.3.3 desse trabalho, as quais, inclusive são
aplicáveis em relação ao princípio da função social.
A doutrina de Teresa Negreiros, citando um precedente jurisprudencial,
corrobora com esse raciocínio da nulidade.170
Algumas decisões do Colendo Superior Tribunal de Justiça, ao mencionar
sobre normas cogentes em outros assuntos e inclusive citando o entendimento de
Nelson Nery Júnior (nos Comentários ao Código Civil, item 3.3.3 desse trabalho), já
foram cristalinas ao consagrar que os princípios da boa-fé objetiva, da função social
estão em normas de caráter cogente.171 Inclusive sobre o assunto específico
(natureza de ordem pública dos princípios da boa-fé objetiva e da função social no
contrato de prestação de serviços empresarial) há a decisão monocrática proferida
169
NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo:
Renovar, 2002, p.140.
170
Ibid., p.138-139.
171
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Decisão Monocrática em Recurso Especial n. 1086197-SP,
da 3ª Turma, Brasília, DF, data da publicação no “DJE” 25 de maio de 2011; BRASIL, Superior
Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.1.112524-DF, Corte Especial, Brasília, DF, data de
publicação no “DJE” 01 de setembro de 2010.
82
no Agravo de Instrumento n. 1.163482-PR proferida pelo Ministro João Otávio
Noronha.172
3.3 Do princípio da Função Social
3.3.1 Da noção preliminar e do fundamento constitucional do princípio da
função social do contrato
O artigo 421 do Código Civil Brasileiro de 2002 dispõe: “A liberdade de
contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” Este
texto explicitou expressamente a função social do contrato.
Segundo este postulado se declara que o contrato não pode mais ser
visto pela visão meramente individualista, tendo em vista que tem um sentido social
de utilidade para toda a sociedade. Isto não significa dizer na dicção da norma que a
função social do contrato proíba a liberdade de contratar, porém, legitima a liberdade
contratual.173
Exemplificando este princípio, Paulo Luiz Netto Lobo afirma:
“O princípio da função social determina que os interesses
individuais das partes do contrato sejam exercidos em
conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se
apresentem. Não pode haver conflito entre eles, pois os
interesses sociais são prevalentes. Qualquer contrato repercute
no ambiente social, ao promover peculiar e determinado
ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.” (g.n)
174
172
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 1163482-PR, da 4ª Turma,
Brasília, DF, data da publicação no “DJE” 17 de fevereiro de 2011.
173
ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro
Cezar Peluso. 5ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2011, p.485.
174
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios dos Contratos e Mudanças Sociais. Revista Jurídica n. 329,
vol.53, São Paulo: Notadez, mar. de 2005, p.9-17.
83
Tal como o princípio da boa-fé objetiva, este dispositivo (artigo 421 do
Código Civil) é uma típica cláusula geral, permitindo ao intérprete um certo grau de
mobilidade na sua concretização diante dos fatos.
No que tange à base desse princípio, não é um consenso na doutrina.
Para alguns, a base da função social estaria no princípio da igualdade
substancial.175
Para outros, a base da função social estaria no artigo 170, caput, da
Constituição Federal da República, de forma que os contratos não podem trazer
prejuízo para a sociedade, devendo estabelecer-se em uma ordem social
harmônica.176
Existe doutrina que raciocina que a função social do contrato teria base
na dignidade da pessoa humana e da livre iniciativa, pois o contrato deverá
harmonizar esses dois cânones constitucionais, almejando a justiça social e o
desenvolvimento nacional.177 Paulo Nalin defende que o fundamento mais sólido da
função social seria a solidariedade.178 Já Daniel Martins Boulos entende que a
função social estaria fundamentada na solidariedade social e na dignidade da
pessoa humana.179
Nosso entendimento é de que a cláusula geral deriva de forma lógica do
princípio constitucional dos valores decorrentes da solidariedade, da dignidade da
pessoa humana e da construção de uma sociedade mais justa (artigo 3°, inciso I da
Constituição Federal). Isso porque esse preceito embasa no exato sentido de que se
os indivíduos querem contratar, eles têm a liberdade para tanto, devendo, contudo,
também atentarem em preservar os valores da dignidade da pessoa humana, da
175
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. A função social do contrato. Revista de Direito Civil,
Imobiliário, Agrário e Empresarial, n. 45, São Paulo, 1983, p.141.
176
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do Novo Direito Contratual e Desregulamentação do
Mercado – Direito de Exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – função social do
contrato e responsabilidade aquiliana de terceiro que contribui para inadimplemento contratual.
(Parecer), Revista dos Tribunais n. 750, Ano 87, São Paulo: Revista dos Tribunais, abr./1998, p.116.
177
HORA NETO, João. O princípio da função social do contrato no código civil de 2002. Revista de
Direito Privado, n° 14, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.46.
178
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional. Curitiba: Juruá, 2001, p.223.
179
BOULOS, Daniel Martins. A autonomia privada, a função social do contrato e o novo Código Civil.
In: ALVIM, Arruda; CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira; ROSAS, Roberto (Coordenador), Escritos
em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003,
p.131.
84
solidariedade (verdadeira dicção de que o homem vive na medida em que convive),
do interesse coletivo, para com essas posturas alcançarem de forma indireta uma
justiça mais distributiva.
Ademais, além dos fundamentos expostos, concordamos plenamente
com a visão de Teresa Ancona Lopez ao dizer que:
“O fundamento do princípio da função social do contrato é
constitucional e somente pode ser entendida tamanha limitação
à autonomia privada, princípio básico dos contratos, à luz do
texto
constitucional.
Os
dispositivos
que
diretamente
fundamentam a função social do contrato na Constituição
Federal são:
a) art.1°, III – cláusula geral que contém o princípio da
dignidade humana, como um dos pilares da República do
Brasil. Porém, mesmo tendo o contrato a função social como
pressuposto de sua validade que impõe respeito à coletividade
e a terceiros, não pode, de forma alguma deixar de proteger e
promover as pessoas que dele participam, ou seja, não pode
deixar de lado o valor fundante da dignidade da pessoa
humana;
b) art.1°, IV – dispõe como fundamento para um Estado
Democrático os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
A Lei Maior consagra expressamente o valor social da livre
iniciativa. Eis aí a importância do contrato como fato social,
principal instrumento de circulação das riquezas e, com isso,
do progresso econômico de um país. A disposição do art.1°,
inciso IV, „impõe, ao jurista, a proibição de ver o contrato como
átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de
tudo o mais.‟
c) art.3°, I – por ele a função social do contrato vai ajudar a
„construir uma sociedade livre, justa e solidária‟. É o princípio
da solidariedade social consagrado por todas as constituições
modernas e que deve ser observado por toda a legislação
85
infraconstitucional. Sem isso, impossível a construção de uma
sociedade justa na qual o bem comum é o seu fim último;
d) os artigos antecedentes são completados pelo art.170 da
CF, que abre o capítulo dos „Princípios gerais da atividade
econômica‟ e que determina que a „a ordem econômica‟,
fundada na valorização do trabalho humano e da livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social...‟ O dispositivo repete o valor que tem
para a sociedade não só o trabalho humano mas também a
livre iniciativa, sendo esta, inclusive, a principal geradora de
empregos.” (g.n)180
3.3.2 Do princípio da função social e o seu conteúdo
O contrato só terá o conteúdo da função social se os contraentes amoldálo aos valores da solidariedade, da justiça social, da dignidade da pessoa humana.
Não estará se atendendo a esta função quando:
“a) a prestação de uma das partes for exagerada ou
desproporcional, extrapolando a álea normal do contrato; b)
quando houver vantagem exagerada para uma das partes; c)
quando quebrar-se a base objetiva ou subjetiva do contrato,
etc.”181
O princípio da função social está intrinsecamente ligado ao princípio da
boa-fé objetiva. Lembre-se, a boa-fé objetiva deriva da função social, de forma que
tudo o que se disser acerca da primeira poderá ser considerada integrante, também
da segunda.182
180
LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador
Wanderley Fernandes. São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.61-62.
181
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7ª edição, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.531.
182
Idem.
86
3.3.3 Artigo 421 CC: Natureza da Norma de Ordem Pública
Na forma expressa do parágrafo único do artigo 2.035 do Código Civil
Brasileiro de 2002, a função social é um preceito de ordem pública e de interesse
social.
Em razão dessa natureza, o juiz pode conhecê-la de ofício, a qualquer
momento e em qualquer grau de jurisdição. Sobre esse tema, transcrevemos Nelson
Nery Júnior:
“A norma ora comentada é de ordem pública e de interesse
social (CC 2035 par.ún.). Constitui-se como cláusula limitadora
da autonomia privada. Como é de ordem pública, o juiz deve
aplicá-la de ofício (sua aplicação não exige a iniciativa da
parte), a qualquer tempo e grau de jurisdição (não está sujeita
à preclusão).
Como consequência, quanto à cláusula geral de função social
do contrato, não incide a regra da congruência entre pedido e
sentença (CPC 128 e 460), de modo que é imune ao vício da
decisão extra ou ultra petita. Tem função instrumentalizadora,
propiciando ao juiz transformar a expressão abstrata e estática
da lei em situação e normatização concreta: o juiz integra o (faz
parte do) contrato.” (g.n) 183
E mais, se o contrato violar esse preceito, o julgador poderá expedir
decisão para: a) declarar a nulidade dele; b) convalidar ato anulável; c) determinar a
sua resolução se configurada a onerosidade excessiva; d) revisar o contrato
reduzindo a prestação de umas das partes se esta estiver exagerada ou
desproporcional; e) diminuir o percentual dos juros estipulados na relação contratual.
183
Ibid., p.530.
87
E mais, se o contrato violar este preceito, o julgador poderá expedir
decisão para: a) declarar a nulidade dele; b) convalidar ato anulável; c) determinar a
sua resolução se configurada a onerosidade excessiva; d) revisar o contrato
reduzindo a prestação de umas das partes se esta estiver exagerada ou
desproporcional; e) diminuir o percentual dos juros estipulados na relação
contratual.184
Finalmente, é importante consignar que o princípio da função social, tal
como o da boa-fé objetiva, pode ser aplicado em contratos firmados antes de 1º de
janeiro de 2003. É a ordem pública retroagindo em nome da solidariedade social
(função social) e da eticidade (boa-fé objetiva) visando à construção de uma
sociedade mais justa.185
3.3.4 Da função social e os aspectos internos e externos
Neste tópico, em um primeiro momento, iremos discorrer brevemente
sobre esses dois aspectos internos e externos. O aspecto interno é pertinente entre
os partícipes da relação contratual, por outro lado, o externo é referente ao terceiro
que não é parte do contrato.
Aliás, sobre esses aspectos foram editados enunciados aprovados pelo
Conselho da Justiça Federal, a seguir transcritos:
184
DELGADO, José Augusto. O contrato no Código Civil e a sua Função Social. Revista Jurídica, São
Paulo: Síntese, ago./2004, n.322, ano 52, p.7-25.
185
LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador
Wanderley Fernandes. São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.62. Corroborando com este
raciocínio Fatima Nancy Andrighi preleciona: “(..) O art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil de
2002, como já visto, trata da validade dos negócios e atos jurídicos, dispondo que nenhum negócio
ou ato jurídico prevalecerá, quanto aos seus efeitos, se,quando da ocorrência destes houver afronta
aos preceitos fundamentais de ordem pública introduzidos pelo Novo Diploma Civil, como a função
social da propriedade, do contrato e a boa-fé objetiva.
Tais preceitos de índole constitucional, hoje incorporados à Lei Civil, imprimem caráter cogente ao
dispositivo de Direito Privado sobredito, vindo a permitir a salvaguarda dos interesses jurídicos de
caráter prevalentemente social, superando, de certa forma, a regra também posta pela Lei
Fundamental no que tange à irretroatividade de leis.” (g.n) (ANDRIGHI, Fatima Nancy. Aplicação do
Novo Código Civil: Direito Intertemporal. Brasília: Bdjur-STJ: 14/05/2003. Disponível em:
http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/652. Acesso em: 18 out.2011)
88
“Enunciado n° 21 do Conselho Federal de Justiça – I
Jornada de Direito Civil Art.421: a função social do contrato,
prevista no art.421 do novo Código Civil, constitui cláusula
geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos
do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa
do crédito.186
Enunciado n. 360 do Conselho Federal de Justiça – IV
Jornada de Direito Civil– Art. 421. O princípio da função
social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as
partes contratantes.”187
Paulo Nalin preleciona que a função social manifesta-se em dois
aspectos/níveis: um intrínseco e outro extrínseco. O primeiro (o contrato sob a ótica
da relação jurídica dos contratantes) significa que a função social estaria
intimamente ligada à obediência aos princípios da boa-fé objetiva, da equidade188,
da igualdade material, pelos partícipes contratuais, “todos decorrentes da grande
cláusula constitucional de solidariedade, sem que haja um imediato questionamento
acerca do princípio da relatividade dos contratos.”189 Já o segundo nível (o contrato
contra a coletividade) significa quebrar com o princípio da relatividade dos efeitos do
contrato.
Sob o prisma de Humberto Theodoro Júnior, para quem:
“a função social do contrato consiste em abordar a liberdade
contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não
apenas no campo das relações entre as partes que o estipulam
(contratantes). Já o princípio da boa-fé fica restrito ao
relacionamento travado entre os próprios sujeitos do negócio
jurídico.
Nessa ótica, sem serem partes do contrato, terceiros têm de
respeitar seus efeitos no meio social, porque tal modalidade de
186
Disponível em: http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf. Acesso em: 21 out. 2011.
Disponível em: http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IVJornada.pdf. Acesso em: 21 out. 2011.
188
NALIN, Paulo. A função social do contrato no futuro Código Civil Brasileiro. Revista de Direito
Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, vol.12, p.54, out./dez/2002.
189
Idem.
187
89
negócio jurídico tem relevante papel na ordem econômica
indispensável
ao
desenvolvimento
e
aprimoramento
da
sociedade. Têm também os terceiros direito de evitar reflexos
danosos e injustos que o contrato, desviado de sua natural
função econômica e jurídica, possa ter na esfera de quem não
participou de sua pactuação.”190
Em relação ao aspecto externo, relevante notar que este princípio é o que
mais interfere no princípio da relatividade das convenções191; ou seja, o princípio da
função social é o que mais ponderações suscita acerca dos contornos do princípio
da relatividade.192
Com efeito, embora o princípio da relatividade dos efeitos do contrato seja
ainda um princípio que rege as relações contratuais, ele não autoriza que estes
terceiros possam ser indiferentes ao contrato, nem tampouco que as partes sejam
indiferentes ao terceiro.
Ainda em relação ao aspecto externo, cria-se uma situação jurídica que
vincula não só os contratantes, mas também terceiros, que tenham conhecimento do
contrato, dessa forma, ampliando a sua oponibilidade. Exemplificando esta
oponibilidade advinda do princípio da função social do contrato, mencionamos
Teresa Negreiros:
“O princípio da função social condiciona o exercício da
liberdade contratual e torna o contrato, como situação jurídica
merecedora de tutela, oponível erga omnes. Isto é, todos têm o
dever de se abster da prática de atos (inclusive a celebração
de contratos) que saibam prejudiciais ou comprometedores da
satisfação de créditos alheios. A oponibilidade do contrato
traduz-se, portanto, nesta obrigação de não fazer, imposta
àquele que conhece o conteúdo do contrato, embora não seja
parte. Isto não implica tornar as obrigações contratuais
190
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense,
2008, p.31-32.
191
LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador
Wanderley Fernandes. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, Série GV Law, p.71.
192
NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo:
Renovar, 2002, p.223.
90
exigíveis em face de terceiros (é o que a relatividade impede),
mas impõe aos terceiros o respeito por tais situações jurídicas,
validamente constituídas e dignas da tutela do ordenamento (é
o que a oponibilidade exige).” (g.n)193
Isto significa dizer que, pelo princípio da função social, o contratante é
civilmente responsável perante terceiros que foram prejudicados em razão do desvio
da função do contrato; e, por outro lado, o terceiro é responsável civilmente pelos
danos que causar aos contratantes devido a sua intervenção indevida. Isto é, em
outras palavras, o aspecto externo da função social, com essa cara de oponibilidade,
pode fazer surgir uma responsabilidade civil aquiliana se for violada pelos partícipes
contratuais ou por terceiros.
3.3.5 Alguns casos de aplicação da função social
O próprio Código Civil de 2002 tem artigos que indicam que têm como
regra de fundo a realização do princípio in casu. Alguns exemplos desses
dispositivos: artigo 144, 157, Parágrafo 2° (lesão), 170, 473, 608, 1.488.194
Humberto Theodoro Júnior, de forma interessante em sua obra, tentou
listar alguns exemplos de ocorrência de desvio da função social no contrato:
“Embora seja difícil reunir ou sintetizar todas as possibilidades
de desvio da função social do contrato, alguns exemplos
podem ser aventados, para ilustrar a tese, como:
a)
induzir a massa de consumidores a contratar a prestação
ou aquisição de certo serviço ou produto sob influência de
propaganda enganosa;
b)
alugar imóvel em zona residencial para fins comerciais
incompatíveis com o zoneamento da cidade;
193
Ibid., p.264-265.
LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador
Wanderley Fernandes. São Paulo : Saraiva, Série GV Law, 2009, p.69.
194
91
c)
alugar quartos de apartamento de prédio residencial,
transformando-o em pensão;
d)
ajustar contrato simulado para prejudicar terceiros;
e)
qualquer negócio de disposição de bens em fraude de
credores;
f)
qualquer contrato que, no mercado, importe o exercício de
concorrência desleal;
g)
desviar-se
a
empresa
licitamente
estabelecida
em
determinado empreendimento, para contratação de operações
legalmente não permitidas, como v.g., uma fatorizadora que
passa a contratada depósitos como se fosse instituição
bancária; ou instituição financeira que, em lugar das garantias
reais permitidas pela lei, passa a adotar o pacto de retrovenda
ou o compromisso de compra e venda, burlando assim a
vedação legal do pacto comissário;
h)
agência de viagens que sob a aparência de prestação de
serviços de seu ramo, contrata na realidade o „turismo sexual‟,
ou a mediação no contrabando ou em atividades de penetração
ilegal em outros países;
i)
enfim, qualquer tipo de contrato que importe desvio ético
ou econômico de finalidade, com prejuízo para terceiros.”195
Luiz Guilherme Loureiro também exemplifica casos em que a função
social do contrato não foi cumprida:
“A título de exemplo, seriam contrários à sua função social os
contratos
que
violassem
a
ordem
econômica,
seja
determinando o aumento arbitrário de lucro, seja causando o
domínio de mercado relevante por parte de uma empresa cocontratante, seja possibilitando o exercício abusivo de posição
dominante de uma das partes; bem como contratos em que
houvesse desproporcional vantagem patrimonial de uma das
195
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense,
2008, p.73-74.
92
partes, em detrimento de outra, por força de circunstâncias tais
como o estado de perigo, o estado de necessidade e a
inexperiência da outra parte.”196
Interessante mencionar um caso prático do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais que, revisando o contrato de prestação de serviços empresarial de
publicidade com base na função social, diminuiu a remuneração do prestador de
serviços em 25%, já que prestou de forma tardia os serviços.197
3.4 Do princípio da justiça contratual
Este princípio exprime-se com a busca da efetiva igualdade entre as
partes. Mediante esse preceito, busca-se conciliar os interesses dos contratantes, e
concretizar o equilíbrio real das prestações em todo o processo obrigacional. Sobre
esse aspecto, transcrevemos a lição de Paulo Luiz r Lôbo que neste caso apelidou o
princípio como princípio da equivalência material:
“O princípio da equivalência material busca realizar e preservar
o equilíbrio real de direitos no contrato, antes, durante e após a
sua execução, para harmonização dos interesses. Esse
princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual,
seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e
obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes,
pouco importando que as mudanças das circunstâncias
pudessem ser previsíveis.”198
196
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria geral dos contratos no novo código civil. São Paulo: Método,
2002, p.56.
197
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0024.03.101440-0/001, da 14ª
Câmara Cível, j. em 16 de novembro de 2006.
198
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios dos Contratos e Mudanças Sociais. Revista Jurídica n. 329,
vol.53, São Paulo: Notadez, mar. de 2005, p.15.
93
A importância desse princípio na teoria contratual começou quando a
igualdade jurídico-formal (na concepção clássica liberal de contrato) não era
suficiente para garantir o equilíbrio das prestações no contrato.
Esse cânon flexibiliza o princípio clássico do pacta sunt servanda, pois
hoje o que interessa é se na execução do contrato não existirá um desequilíbrio nas
prestações, e não mais uma exigência cega de simples cumprimento de contrato. 199
Com efeito, isto significa dizer que o princípio do pacta sunt servanda foi mitigado,
mas não foi extinto do ordenamento jurídico. Aliás, isto nem seria possível, dado o
valor da segurança jurídica das relações contratuais. O que ocorre é que este
princípio não justifica que se possa haver proveito injustificado de uma das partes
em detrimento da outra. Teresa Negreiros, sobre este aspecto, diz sobre apelidado
princípio do equilíbrio econômico (aqui chamado princípio da justiça contratual):
“A ênfase no tratamento paritário, em substituição à ênfase na
liberdade, não deixa de representar uma escolha com
colorações valorativas. No domínio das relações contratuais, a
concepção de justiça, outrora formulada em termos de
autonomia e liberdade, altera-se profundamente à luz do
princípio do equilíbrio econômico.
(...)
Com efeito, a noção de equilíbrio no contrato traz para o seio
da teoria contratual a preocupação com o justo como sendo um
critério paritário de distribuição dos bens. Justo é o contrato
cujas prestações de um e de outro contratante, supondo-se
interdependentes, guardam entre si um nível razoável de
proporcionalidade. Uma vez demonstrada a exagerada ou a
excessiva discrepância entre as obrigações assumidas por
cada contratante, fica configurada a injustiça daquele ajuste,
exatamente na medida em que configurada está a inexistência
de paridade.
O princípio do equilíbrio econômico do contrato remete,
portanto, a uma dada definição filosófica de justiça, sintetizada
199
Ibid., p.14.
94
na ideia de “meio termo”. (...) Este meio termo, este ponto
intermediário, resta comprometido, na relação contratual,
sempre que se verificar um certo nível de desproporção entre
prestações que se supõem minimamente equivalentes.” (g.n)
200
Fernando Noronha entende que a justiça contratual é a “relação de
paridade, ou equivalência, que se estabelece nas relações de troca, de forma que
nenhuma das partes dê mais nem menos do valor que recebeu”
201
E mais adiante,
explica que:
“se a justiça costuma ser representada pela balança de braços
equilibrados, a justiça contratual traduz precisamente a ideia de
equilíbrio que deve haver entre direitos e obrigações das partes
contrapostas numa relação contratual.”
Nesse ponto, importante mencionar Leonardo Mattietto, que, sobre esse
preceito assim denominado princípio do equilíbrio contratual, diz:
“O princípio do equilíbrio contratual enseja, por um lado, a
renegociação, pelas próprias partes, dos termos inicialmente
avençados, como também, por outro lado, abre a via, nem
sempre desejável, mas frequentemente adotada, conducente à
revisão do contrato ou mesmo à sua resolução.
(...)
Dado que o equilíbrio contratual remete à igualdade, como
princípio constitucional, a resolução ou revisão do contrato em
razão da alteração de circunstâncias são expressões de uma
exigência fundamental do ordenamento. O princípio da
200
NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo:
Renovar, 2002, p.166-167.
201
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994, p.214-215.
95
igualdade é a ratio que enseja o equilíbrio nas relações
jurídicas contratuais.” (g.n) 202
Esta preocupação em manter o equilíbrio das prestações está também
estampada no Código Civil Brasileiro de 2002 em seus artigos 317, 478, 480 (teoria
da imprevisão), 156 (instituto do estado de perigo), 157 (instituto da lesão), e, por
isso, estes dispositivos permitem a revisão das condições contratadas e em alguns
casos até a sua resolução. Vejamos o instituto lesão de forma resumida no item
3.4.2.
3.4.1 Aspectos objetivos e subjetivos do princípio da justiça contratual
O postulado estudado pode ser visto sobre dois aspectos diferentes: o
objetivo e o subjetivo. O primeiro leva em consideração o efetivo desequilíbrio de
direitos e deveres contratuais que já pode estar presente quando na celebração do
contrato ou este (desequilíbrio) surge posteriormente (onerosidade excessiva de um
dos contratantes). Nesses casos, discutiremos a lesão de forma resumida, e
deixaremos de abordar o estado de perigo, a onerosidade excessiva para evitar a
fuga do tema. Já o segundo leva em consideração o poder contratual dominante de
uma dos contraentes e a presunção legal de vulnerabilidade. Este segundo caso, a
lei presume juridicamente e de forma absoluta serem vulneráveis o trabalhador, o
consumidor e o aderente de contrato de adesão.203
Antes de adentrar nos institutos da lesão, importante mencionar que
esses, além de serem esboçados pelo princípio da justiça contratual, devem, por
outro lado, não se olvidarem das reflexões do princípio da boa-fé objetiva, já que se
relacionam também com esse cânon. Sobre isso, assevera Fernando de Noronha:
“Se, porém, o princípio da justiça contratual é fundamental no
delineamento destas figuras da lesão (...), é preciso nunca
202
MATTIETTO,
Leonardo.
O
Princípio
do
Equilíbrio
Contratual.
Disponível
em:
http://download.rj.gov.br/documentos/10112/392202/DLFE26513.pdf/11OPrinci-piodoEquilibrio.pdf.
Acesso em: 22 out.2011.
203
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios dos Contratos e Mudanças Sociais. Revista Jurídica n. 329,
vol.53, São Paulo: Notadez, mar. de 2005, p.15.
96
esquecer que a elas também não pode ficar alheia a
ponderação do princípio da boa-fé – para tutela de eventual
boa-fé da parte que tem interesse na manutenção do negócio,
quando se funde numa expectativa legítima de atuação correta
e leal, no momento de contratar, da outra parte, que agora está
interessada na rescisão. A necessidade da tutela da confiança
dessa parte interessada na manutenção do negócio, quando
legítima, irá, portanto, aqui, atuar em sentido contrário ao
princípio da justiça contratual. Cremos mesmo que, se na
lesão, além da manifesta disparidade entre prestação e
contraprestação (elemento objetivo), é de exigir também, como
sustenta o Prof.Caio Mário, um aproveitamento consciente,
ainda que não intencional, da situação de inexperiência, ou de
leviandade, ou ainda do estado de necessidade da outra parte
(elemento subjetivo), é exatamente para a tutela da eventual
boa-fé desta. Aliás, se a contraparte se aproveitou da
inexperiência, leviandade ou situação de necessidade da parte
lesada, ela, além de infringir o dever de agir com correção e
lealdade impostas pela boa-fé objetiva, ainda estará de má-fé
objetiva. (...) a atuação de quem não esteja em situação de
boa-fé subjetiva será sempre conduta infringente do dever de
agir de acordo com o princípio da boa-fé objetiva.” (g.n)204
3.4.2 Da lesão
Esse instituto é visualizado no aspecto objetivo do princípio, conforme
explicado acima.
204
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994, p.236-237.
97
Sobre a lesão, esta pode ser “caracterizada como uma situação de
desequilíbrio entre a prestação e contraprestação que, sendo, grave, autoriza o
prejudicado a rescindir o contrato.”205
Maria Helena Diniz, ao comentar o artigo 157 do Código Civil, define o
instituto da lesão:
“É um vício de consentimento decorrente do abuso praticado
em situação de desigualdade de um dos contratantes, por estar
sob premente necessidade, ou por inexperiência, visando
protegê-lo, ante o prejuízo sofrido na conclusão do contrato
comutativo,
devido
à
desproporção
existente
entre
as
prestações das duas partes, dispensando-se a verificação do
dolo, ou má-fé, da parte que se aproveitou.” (g.n) 206
O instituto da lesão manifesta o princípio da justiça contratual, e foi uma
das formas que o legislador arranjou em proteger uma parte que se encontra em
nítido estado de inferioridade.
Carlos Alberto Bittar Filho assevera que a luta em face da lesão
representa:
“a consagração da democracia contratual, garantindo a
igualdade nas contratações e o equilíbrio relativo de poder no
âmbito negocial, tendo por objetivo último a manutenção da
homeostase
contratual,
consagrando
a
democracia
no
microcosmo negocial.” (g.n) 207
Após a concepção de lesão, convém explanar que a doutrina classifica a
lesão em três modalidades: lesão enorme, lesão qualificada (usurária) e a lesão
especial. A primeira é aquela que simplesmente verse sobre a desigualdade
genética entre a prestação e a contraprestação. A segunda é aquela que além da
desigualdade inicial entre a prestação e contraprestação, ainda decorrem a
inexperiência e a leviandade do devedor, acrescidas do dolo de aproveitamento do
205
Ibid., p.233.
DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 15ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p.185.
207
FILHO BITTAR, Carlos Alberto. A lesão no direito brasileiro atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
p.3.
206
98
credor. Por derradeiro, a terceira exige a inexperiência ou necessidade de contratar
do assuntor e a desigualdade nascente de prestações.208
O artigo 157 do Código Civil Brasileiro positivou a lesão na modalidade de
lesão especial, eis que exige o requisito objetivo (desproporção entre prestação e
contraprestação) e o subjetivo (inexperiência ou necessidade do assuntor da
obrigação) para a configuração do instituto.209 Comungando desse entendimento, foi
emitido o Enunciado n. 290 pelo Conselho Federal da Justiça na IV Jornada de
Direito Civil, a seguir exposto:
“A lesão acarretará a anulação do negócio jurídico quando
verificada, na formação deste, a desproporção manifesta entre
as prestações assumidas pelas partes, não se presumindo a
premente necessidade ou a inexperiência do lesado.”210
A lesão também não exige o dolo de aproveitamento, tal como ficou
definido pelo Enunciado n. 150 emitido pelo Conselho Federal da Justiça na III
Jornada de Direito Civil: “A lesão que trata o CC 157 não exige dolo de
aproveitamento.”211
No que se refere a sua natureza, a lesão é um vício do negócio jurídico, e,
por essa razão, é causa de anulação, conforme inteligência emprestada ao artigo
171, inciso II, do Código Civil, exceto no caso do artigo 157, Parágrafo Segundo do
Código Civil. O prazo para pedir a anulação é decadencial de 4 anos contados da
celebração do negócio. (artigo 178 do Código Civil) 212. O Enunciado n° 149 do
Conselho Federal da Justiça, emitido na III Jornada de Direito Civil, e o Enunciado n°
291 do Conselho Federal da Justiça, emitido na IV Jornada de Direito Civil, falam
acerca da anulação do negócio jurídico quando dispõem:
“Enunciado n° 149 do Conselho Federal da Justiça emitido
na III Jornada de Direito Civil - Em atenção ao princípio da
conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá
208
LOTUFO, Renan. Código Civil comentado: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003, p.440.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7ª edição, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.361.
210
Ibid., p.362.
211
Idem.
212
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7ª edição, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.361.
209
99
conduzir, sempre, à revisão judicial do negócio jurídico e não à
sua
anulação,
sendo
dever
do
magistrado
incitar
os
contratantes a seguir as regras do art.157, §2° do Código Civil
de 2002.213
Enunciado n° 291 do Conselho Federal da Justiça emitido
na IV Jornada de Direito Civil – Nas hipóteses de lesão
prevista no art.157 do Código Civil, pode o lesionado optar por
não pleitear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde
logo, pretensão com vista à revisão judicial do negócio por
meio da redução do proveito do lesionador ou do complemento
do preço.”214
3.5 Da jurisprudência específica no contrato de prestação de serviços
empresarial e os princípios contratuais sociais
Em uma análise perfunctória, e sem fazer qualquer prévia consulta
jurisprudencial, entende-se de forma lógica que o motivo dos litígios nessas searas
estaria mais especificamente em casos de resilição antecipada unilateral de uma
das partes quando foram feitos investimentos por uma delas, e cláusulas abusivas
que levariam a um desequilíbrio em favor de um contratante em detrimento de outro.
Ou, tal como já alertado pela doutrina (item 2.3.4), no caso do artigo 608 do Código
Civil, que trata da consequência do aliciamento do prestador de serviços por
terceiro. Nesses três casos, imaginaria uma intersecção mínima entre os princípios
da boa-fé objetiva e o da função social do contrato. Vamos a estes casos que
imaginamos.
Imagine-se que o prestador de serviços (como Pessoa Jurídica) em seu
negócio fizesse investimentos consideráveis para atender a demanda do tomador de
serviços (como empresa). Durante o prazo contratual, o tomador de serviços em
qualquer justificativa, notifica a prestadora de serviços com intuito de resilir o
213
214
Ibid., p.362.
Idem.
100
contrato com fundamento em cláusula contratual. Neste caso, a empresa prestadora
de serviços poderia alegar que esta cláusula de possibilidade de resilição violaria ao
princípio da boa-fé objetiva e da função social do contrato em face da outra empresa
tomadora de serviços? E nessa hipótese seria possível o juiz manter o contrato de
prestação de serviços?
Verificando os julgados nas hipóteses abaixos, notamos que somente em
casos excepcionais, tais como risco de fato de encerrar um empreendimento em
razão da cláusula de exclusividade, e danos à saúde da população, os
desembargadores entendem em manter o contrato. A regra ainda continua com a
prevalência do “pacta sunt servanda”, haja vista o posicionamento cauteloso dos
julgadores em aplicar os princípios sociais. Parece-nos que estes princípios são
aplicados com bastante parcimônia, e somente nas circunstâncias que existe nítida
relação de vulnerabilidade da parte solicitante, e mais com fundamento no princípio
da justiça social com nítido intuito de promover o equilíbrio das prestações. É como
se os dois princípios (boa-fé objetiva e função social) fossem embasados tão só no
cânon da justiça contratual.
Em caso similar ao exposto, em pesquisa no Colendo Tribunal de Justiça
do Paraná, este entendeu que a cláusula de denúncia unilateral seria contrária aos
princípios do equilíbrio contratual, da boa-fé objetiva e da função social do contrato,
e dessa forma em sede de concessão de tutela antecipada obstou a resolução do
contrato de prestação de serviços. Seguem as principais partes das razões do
V.Acórdão:
“EMENTA: AGRAVO POR INSTRUMENTO - AÇÃO DE
PROCEDIMENTO ORDINÁRIO COM PEDIDO DE TUTELA
ANTECIPADA ARTIGO 273, INCISO I DO CPC - PRESTAÇÃO
DE SERVIÇO - RESILIÇÃO UNILATERAL - DENÚNCIA
REALIZADA COM BASE EM CLÁUSULA CONTRATUAL DISCUSSÃO A RESPEITO DA VALIDADE DA CLÁUSULA POSSIBILIDADE
DE
OFENSA
AOS
PRINCÍPIOS
DO
EQUILÍBRIO CONTRATUAL, DA BOA-FÉ OBJETIVA E
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO - PRESENTES OS
REQUISITOS - RECURSO PROVIDO.
1. A tutela requerida pela agravante é uma forma de proteção a
um direito que alega existente (vigência do contrato até o prazo
101
estipulado ante a possível declaração de nulidade da cláusula
que prevê a resilição imotivada antecipadamente, pelo caráter
abusivo da mesma), tendo a ora agravante demonstrado
nestes autos a plausibilidade do direito alegado, ou seja, a
verossimilhança
das
alegações.
2. A possibilidade de dano irreparável ou de difícil reparação
demonstra-se nos prejuízos irreparáveis que a agravante possa
ter eis que a ausência da concessão da medida pode importar,
como já asseverado, na ineficácia do pleito feito pelo agravante
na ação de procedimento ordinário, pois uma vez desfeito o
vínculo contratual, já terá comprometido uma imensa estrutura,
que possui um grande número de funcionários e de
equipamentos adquiridos para a execução do serviço. Cumpre
observar ainda que tal medida pode importar na dissolução da
empresa agravante, ante a existência de cláusula de
exclusividade que impede a agravante de prestar serviços a
outras empresas concorrentes das agravadas (cláusula 4.1
XXXII, fl. 119 - TJ).” (g.n) 215
Em caso análogo, o Agravo de Instrumento n° 360702-3 proferido pelo
Relator Clayton Camargo da 19ª Câmara de Direito Cível do Colendo Tribunal de
Justiça do Paraná.216
Nesse tópico, interessante a decisão que manteve o contrato de
prestação de serviços médicos de uma prestadora de serviços (Hospital) em face da
pleiteada rescisão unilateral de contrato de prestação de serviços pelo Plano de
Saúde, com fundamento no princípio da função social (direito subjetivo à saúde dos
clientes da “Unimed”):
“A agravante, por ora, pretende a suspensão da decisão,
ficando mantida a rescisão do contrato com a agravada até o
julgamento da lide, alegando que não há verossimilhança nos
215
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 361214-2, da 12ª Câmara de Direito
Cível, Comarca de Curitiba, Curitiba, PR, DJ: 7309, 23 de fevereiro de 2007, DJ: 7309.
216
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 360702-3, da 19ª Câmara de Direito
Cível, Comarca de Curitiba, PR, de 25 de agosto de 2006, DJ:7151.
102
fatos alegados pela agravada, e que não há no contrato
firmado qualquer proibição de rescisão.
De fato, verifica-se que não há no contrato previsão de cláusula
penal para o caso de rescisão unilateral, pelo qual a agravante
sustenta a legalidade da rescisão pretendida, aduzindo,
ademais, que não pode ser eternamente obrigada a vincular-se
ao contrato.
Imperioso reconhecer que a ordem jurídica brasileira consagra
o princípio da autonomia da vontade, ou seja, o da liberdade de
contratar. Entretanto, esta
concepção
clássica
vem
se
modificando, tornando fundamental a função social do contrato
e o interesse público. (...)
Nesse contexto, observa-se que a matéria discutida envolve
muito mais que os interesses das partes em litígio, mas
também o direito subjetivo à saúde dos clientes da agravante.
Em que pese os argumentos lançados no presente recurso,
entendo que o contrato que contenha norma de interesse social
e que tem por objeto resguardar a saúde do ser humano, não
pode ser preterida em virtude de resolução unilateral do
contrato.
A tutela requerida envolve questão de saúde pública, pois é
notório que a agravada presta serviço médico-hospitalar a
milhares de pessoas, cuja cessação ou comprometimento da
plena atividade dará causa a possíveis danos até irreparáveis à
população que depende de tais serviços.
.(...) As alegações da agravada se mostram relevantes, eis que
a agravante pretende, de fato, rescindir o contrato celebrado. O
receio de dano irreparável também restou configurado, vez que
a rescisão do contrato fará com que os médicos cooperados da
Unimed, que prestam serviços ao hospital da agravante,
suspendam seus serviços, prejudicando a eles próprios e à
população em geral que se utilizam de seus serviços. (...)
Dessa forma, revelando-se plausíveis as alegações feitas na
peça vestibular da agravada, haja vista todos os fundamentos
103
acima expostos, presentes os requisitos autorizadores para a
antecipação dos efeitos da tutela, e, não havendo nenhuma
comprovação de lesão grave ou de difícil reparação pela
continuidade do pacto até ulterior decisão judicial, tenho que há
que prevalecer a decisão que deferiu a antecipação da tutela
requerida, garantindo a manutenção do contrato até a solução
final da lide.” (g.n) 217
Em alguns julgados, os Egrégios Tribunais de Justiça do Espírito Santo,
da Bahia, do Rio de Janeiro e de São Paulo, já entenderam similarmente ao julgado
acima, qual seja pela continuidade do contrato de prestação de serviços de
assistência médica hospitalar em regime de Plano Coletivo para empregados das
empresas (tomadoras de serviços)218 Nessas demandas os desembargadores
alegaram que esta denúncia unilateral pela prestadora de serviços atentaria a boafé objetiva e a função social.
No entanto, em caso similar ao do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o
Tribunal de Justiça de São Paulo já entendeu que a cláusula de denúncia unilateral
é válida entre as partes, e que a continuidade da prestação de serviços contra a
vontade da tomadora de serviços violaria ao princípio da liberdade dos contratos. E
“in casu” vigoraria o preceito do pacta sunt servanda. Nessa hipótese, diversa da
acima exposta, era um prestador de serviços médicos no estabelecimento hospital, e
este último rescindiu unilateralmente a avença.219. No mesmo sentido, os julgados
do Colendo Tribunal de Justiça do Paraná. 220
217
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Agravo de Instrumento n. 1.0521.07.064209-0/002,
da 13ª Câmara Cível, Ponte Nova, MG, Publicação em 08 de março de 2008.
218
BRASIL. Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Agravo de Instrumento n. 30069000930, da 2ª
Câmara Cível, Vitória, ES, publicado em 26 de março de 2008; BRASIL. Tribunal de Justiça do
Espírito Santo. Agravo de Instrumento n. 24089002364, da 2ª Câmara Cível, Vitória, ES, publicado
em 13 de junho de 2008; BRASIL. Tribunal de Justiça da Bahia. Apelação Cível n.31978-2/2007, da
4ª Câmara Cível, Jaguaquara, BA, j. em 19 de novembro de 2008; BRASIL. Tribunal de Justiça da
Bahia. Agravo de Instrumento n. 25178-0/2009 da 3ª Câmara Cível, Salvador, BA, j. em 22 de maio
de 2009; BRASIL.Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento n. 2009.002.29211,
da 7ª Câmara Cível, j. em 21 de outubro de 2009; BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo, Agravo
de Instrumento n. 994.06.120717-4, da 1ª Câmara de Direito Privado, j. em 20 de abril de 2010.
219
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 915312-0/1, da 25ª Câmara
de Direito Privado, Comarca de São Paulo, São Paulo, SP, j. em 30 de agosto de 2005.
220
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 312281-2, da 17ª Câmara Cível,
Comarca de Curitiba, Curitiba, PR, j. em 13 de janeiro de 2006, DJ: 7037; BRASIL. Tribunal de
Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 338751-9, da 12ª Câmara Cível, Comarca de Curitiba, Curitiba,
PR, j. em 02 de março de 2007, DJ: 1314.
104
Nesse passo, importante notar que em hipóteses que não envolviam uma
real vulnerabilidade da empresa tomadora de serviços, tem se decidido que a
cláusula de rescisão unilateral não viola aos princípios da função social e da boa-fé
objetiva.221
E mais, a tal tipo de cláusula implica em exercício regular de direito e não
configura ato ilícito, tal como já julgou o Desembargador Gilberto Leme do Tribunal
de Justiça de São Paulo.222 Nesse tópico, em que pese o juízo do ilustre
Desembargador, ousamos divergir, e entender tal como o voto vencedor do
Desembargador Emanuel Oliveira.223. Nessa vertente, o julgado da mesma lavra do
Desembargador Emanuel Oliveira: Apelação Cível n. 1022228-0/6.224
Enfatiza-se que a ruptura de contrato de prestação de serviços sem a
prévia notificação por escrito, quando este já estava tacitamente renovado,
caracteriza inobservância da boa-fé objetiva contratual, como já entendeu o seguinte
julgado do Egrégio Tribunal de Justiça do Paraná.225 Perceba-se que nessa situação
há um desequilíbrio de uma das partes em detrimento da outra parte.
Ainda vislumbramos outro ponto de discórdia judicial no artigo 608 do
Código Civil (aliciamento de prestador de serviços), e sua relação clara com o
princípio da função social (aspecto externo), conforme já anotado pela Doutrina
inclusive. (item 2.3.5 desse trabalho)
221
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível sem Revisão n. 987.387-0/5, da 35ª
Câmara de Direito Civil, j. em 03 de novembro de 2008 (caso de contrato prestação de serviços de
cobrança de débitos de um Banco); BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n.
331.490-3, da 10ª Câmara Cível, Curitiba,PR, j. em 22 de junho de 2006. (caso de contrato de
prestação de serviços de assistência técnica); BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Apelação Cível n. 1.0024.05.628276-7/00, da 17ª Câmara Cível, Belo Horizonte, MG, j. em 14 de
dezembro de 2006. (de forma similar contrato de prestação de serviços de transporte de jornais)
222
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível sem Revisão n. 992.05.097070-3, da
27ª Câmara de Direito Civil, São Paulo, SP, j. em 30 de março de 2010.
223
Idem. Principais termos da fundamentação: “(...) De fato, a denúncia que extingue os contratos
„antes tempus‟, não exime o denunciante de sujeitar-se às perdas e danos, se não houver justa
causa, observando-se o princípio da boa-fé contratual e o fim econômico e social do contrato (CC
2002, arts.113, 421 e 422). Ressalta-se que a função do princípio da boa-fé nos contratos é impor
aos contratantes a condição de agir de maneira não-arbitrária, impedindo-se que se façam uso de
seus direitos de forma desequilibrada, gerando prejuízos desproporcionais à parte
contrária.(...)Emerge clara das cláusulas contratuais que o acionante se obrigou, por ocasião do
ajuste, à aquisição de materiais e equipamentos de ponta de expressivo valor, locação de imóvel
mais amplo, contratação de inúmeros funcionários para fazer frente às imposições contratuais, na
certeza de que o ajuste teria como termo pelo menos os sessentas meses fixados inicialmente. Essa
expectativa frustrada, que o levou a diminuição do seu patrimônio material é de ser reparada, com os
elementos probatórios já existentes nos autos.”
224
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível sem Revisão n. 1022228-0/6, da 34ª
Câmara de Direito Civil, São Paulo, SP, j. em 03 de outubro de 2007.
225
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 638008-9, da 8ª Câmara Cível, Curitiba,
PR, j.em 18 de novembro de 2010, Publicação DJ: 555 em 24 de janeiro de 2011.
105
Imagine que uma pessoa jurídica (tomadora de serviços) seduz outra
pessoa física (obreiro e empregado de empresa prestadora de serviços) já
comprometida por contrato de prestação de serviços escrito (com outra empresa)
para que ela (pessoa física/obreira) trabalhe para si (sedutor/tomador de serviços). E
neste contrato já se estipula cláusula inclusive fixando multa no sentido de que a
empresa tomadora de serviços não contrate seus obreiros durante certo prazo
(cláusula de não concorrência). Esta cláusula deverá ainda ter validade mesmo
quando rescindido o contrato de prestação de serviços entre as empresas? A
conduta da empresa tomadora de serviços após a rescisão do contrato é contrária a
algum princípio social?
O Tribunal de Justiça já decidiu em caso de prestação de serviços de
engenharia clínica a validade dessa cláusula mesmo após a rescisão. E a conduta
da tomadora de serviços violaria ao princípio da boa-fé objetiva:
“EMENTA - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE ENGENHARIA
CLÍNICA
MULTA
POR
INFRAÇÃO
CONTRATUAL
CONTRATAÇÃO DE EX-FUNCIONÁRIOS DA PRESTADORA
DO SERVIÇO EXISTÊNCIA DE
CLÁUSULA IMPEDITIVA DE CONTRATAÇÃO POR PERÍODO
DE TRÊS ANOS - CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA
VALIDADE
CONTRATO
EXTINTO
BOA
FÉ
OBJETIVA
EFEITOS PÓS-CONTRATUAIS RECURSO DESPROVIDO.
Cabível a imposição da multa contratual à requerida que
contrata ex-empregados de empresa prestadora de serviços de
tecnologia, após a extinção do contrato, em afronta ao prazo
previsto na cláusula de não concorrência. As partes devem
guardar a boa-fé objetiva antes, durante e após a execução do
contrato (CC, art. 422). Ainda que extinto o contrato,
remanesce válida a cláusula de não concorrência firmada no
bojo de contratos, à luz da eficácia pós-contratual decorrente
do princípio da boa-fé objetiva prevista no art. 422 do CC/02. A
vedação de não contratação pelo prazo de três anos, além de
não se afigurar abusiva ou desarrazoada, visa preservar o
interesse comercial da prestadora do serviço em manter seu
investimento em mão de obra especializada, bem como em
106
evitar a concorrência desleal, no caso justificada, frente à
tecnologia por ela desenvolvida.” (g.n) 226
Em sentido similar, o julgado também entendeu que houve o
descumprimento do contrato pelo prisma da cláusula da boa-fé objetiva quando a
tomadora de serviços alicia os empregados que prestavam serviços para outra
empresa e passa a integrar o quadro funcional dela.227
Ainda no que se refere ao tópico da não contratação por terceiros de
prestador de serviços já comprometidos com contrato de prestação por escrito,
interessante mencionar as decisões em três instâncias (Vara Cível de Brasília,
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Superior Tribunal de Justiça) de um caso de
Brasília, Estado do Distrito Federal.
Tratava-se de uma ação de cobrança promovida pela empresa prestadora
de serviços de limpeza Speed Clean em face da empresa tomadora de serviços
Kyoto Star, com pedido de condenação da segunda na quantia de R$10.408,37, ao
argumento de que a ré-Kyoto Star infringiu cláusula contratual que a impossibilitava
de contratar, pelo período de 120 dias, qualquer ex-empregado da autora
(diretamente ou indiretamente mediante outra prestadora de serviços). Em sede de
contestação, a Ré invocou a prevalência da função social do contrato em detrimento
do cumprimento dos pactos, além da observância que se deve ter ao princípio do
asseguramento do pleno emprego, até porque este critério teria ingente penetração
do interesse público. O juiz entendeu em favor da Ré julgando improcedente a
demanda, pois a cláusula restritiva era contra os princípios legais e constitucionais
da função social, do valor social do trabalho, da livre concorrência e da busca do
pleno emprego.228
226
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação com Revisão n. 0002496-95.2009.8.26.0451,
da 35ª Câmara de Direito Privado, Piracicaba, SP, j. em 29 de agosto de 2011.
227
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 992.05.107291-1, da 25ª Câmara de
Direito Privado, São Paulo, SP, j. em 23 de fevereiro de 2010.
228
BRASIL. 13ª Vara Cível. Processo n. 2007.01.1.107805-2, Brasília, DF, j. em 20 de fevereiro de
2008. Eis abaixo, os principais pontos do fundamento da sentença:
“(...) Enxergo presente na presente hipótese um conflito aparente envolvendo a função social do
contrato, esculpido no art. 421 do Código Civil e o princípio de que os pactos devem ser observados.
Quanto a esta tônica, não vejo como dar supremacia ao princípio de que os pactos devem ser
observados, em toda a sua plenitude, em detrimento do princípio da função social do contrato, eis
que segundo a tábua axiológica estipulada pela Constituição Federal em seu art. 1º, inciso IV,
privilegia-se o valor social do trabalho.
Isto quer dizer que, ainda que as partes tenham entabulado a cláusula restritiva constante do ajuste,
ela não pode prevalecer se qualquer das partes decide ofertar emprego para os ex-empregados da
107
A Autora, inconformada com a sentença, apelou e o Egrégio Tribunal de
Justiça do Distrito Federal reformou-a ao entender que não ofende o princípio da
função social do contrato a cláusula que prevê o pagamento de multa caso o
contratante empregue um dos ex-empregados durante a vigência do acordo ou após
decorridos 120 (cento e vinte) dias de sua extinção, porquanto não existe proibição a
tal contratação, encontrando-se ausente qualquer interesse coletivo.229
Insatisfeita com o V. Acórdão, a Autora interpôs Recurso Especial no
Superior Tribunal de Justiça, e este manteve a decisão de segunda instância, ao
raciocinar que: 1) esta cláusula restritiva não viola ao princípio da função social, e, 2)
também a validade da cláusula se impõe, justamente em cumprimento ao princípio
da boa-fé objetiva, com a seguinte ementa:
“Ementa. Civil e Processo Civil. Contrato. Rescisão. Cláusula
contratual que prevê multa em face da contratação de exempregado da autora durante a vigência do acordo ou até 120
(cento e vinte) dias após o término do ajuste. Possibilidade.
parte adversa, seja com a finalidade de proteger reserva de mercado, ou seja lá porque motivo for.
Aliás, este Juízo não enxergou motivação plausível para a existência da apontada cláusula restritiva
na medida em que aqui se está tratando de oferta de emprego para trabalhadores que haviam
encerrado seu contrato de trabalho com um das empresas e que não detinham nenhuma qualificação
profissional especial, posto que não eram detentores de qualquer tipo de segredo que pudesse vir a
importar em quebra de segredo profissional. Consta dos autos que os empregados da autora que
foram readmitidos pela ré, seja diretamente em seus quadros, seja por intermédio de outra prestadora
de serviços que foi contratada (Grupo Mastro), eram todos eles servidores de limpeza e percebiam no
máximo R$ 400,00 por mês. Admitindo-se a aplicação direta dos direitos fundamentais às relações
privadas por intermédio de sua eficácia horizontal, pode-se inferir que a Constituição Federal alçou a
erradicação da pobreza como um de seus objetivos fundamentais (CF, art. 3º, II e III) e constituiu a
valorização do trabalho humano como princípio da ordem geral da atividade econômica (CF, art. 170).
Logo, não seria razoável dar validade e aplicabilidade à invocada cláusula restritiva, apenando
injustamente a ré porque contratou diretamente um dos empregados da autora ou porque contratou
outra empresa prestadora de serviços de limpeza que tinha em seus quadros ex-empregados da
autora no prazo de 120 da rescisão do contrato entabulado entre as partes.
Ademais, observa-se, ainda, que a cláusula restritiva fere outro princípio constitucional, qual seja, o
da livre concorrência, na medida em que se os empregados da autora conseguiram melhores
condições de trabalho e melhores salários em outra empresa, não haveria porque impor sanção à ré.
Muito pelo contrário, a única sanção imputável á ré seria a premial por estar fomentando a livre
concorrência e dando melhor oportunidade e expectativa de vida para os ex-empregados da autora
que foram contratados.
Por fim, uma derradeira aplicação imediata dos direitos fundamentais às relações privadas reside no
artigo 170, inciso VIIII da Constituição Federal que prima pelo princípio da busca do pleno emprego.
Desta forma, nenhuma razão haveria para, na presente controvérsia, dar primazia ao princípio da
observância dos pactos em detrimento dos demais princípios legais e constitucionais já ventilados (da
função social do contrato, do valor social do trabalho, da livre concorrência e da busca do pleno
emprego)
porque
não
seria
minimamente
razoável.
(...)Posto isto, julgo improcedente o pedido.” (g.n)
229
BRASIL. Tribunal de Justiça de Brasília. Apelação Cível n. 2007.01.1.107805-2, da 4ª Turma Cível,
j. em 02 de julho de 2008, publicado em 08 de setembro de 2008, DJ-e página 105.
108
1. A falta de prequestionamento em relação ao art. 122 do CC
impede o conhecimento do recurso especial. Incidência da
súmula 211/STJ.
2. A cláusula contratual que estipula o pagamento de multa
caso o contratante empregue um dos ex-funcionários ou
representantes da contratada durante a vigência do acordo ou
após decorridos 120 (cento e vinte) dias de sua extinção, não
implica em violação ao princípio da função social do contrato,
pois não estabelece desequilíbrio social e, tampouco, impede o
acesso dos indivíduos a ele vinculados, seja diretamente, seja
indiretamente, ao trabalho ou ao desenvolvimento pessoal.
3. Recurso especial não conhecido.”(g.n) 230
Frise-se, de fato, na nossa ótica, o entendimento dos dois Tribunais estão
em plena consonância com o real significado dos princípios sociais (da função social
e da boa-fé objetiva), em que pese, data venia, o juízo do MM. Juiz.
Antes de abordar outros aspectos que podem ser observados aos
princípios contratuais, indaga-se ainda se seria possível o juiz promover a revisão
contratual em contrato de prestação de serviços empresarial em razão dos princípios
da função social e da boa-fé objetiva?
O Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais na decisão abaixo julgou
pela possibilidade desta revisão, com fundamento no princípio da função social
(artigo 421 CC) e o Código de Defesa do Consumidor (artigo 29 CDC, consumidor
equiparado), apesar de o juiz da primeira instância ter extinto o processo sem
julgamento do mérito em razão de impossibilidade jurídica do pedido:
“Ementa: Ação Revisional de Contrato – Aplicação dos
Capítulos V e VI do Código de Defesa do Consumidor –
Consumidor equiparado – função social do contrato.
Revela-se viável a revisão de contrato de prestação de
serviços
230
firmado
entre
pessoas
jurídicas,
aplicando-se,
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n°1.127.247 – DF, da 4ª Turma, Brasília,
DF, Julgado em 04 de março de 2010, Publicado em 19 de março de 2010, DJ-e.
109
somente, as disposições dos capítulos V e VI do Código de
Defesa do Consumidor, devido ser a empresa considerada
consumidor-equiparado, a teor do artigo 29 do CDC, bem como
em face da observância da cláusula geral da função social do
contrato, prevista no artigo 421 do Código Civil, que permite a
revisão das cláusulas contratuais.
(...)
Colhe-se dos autos que a r. sentença julgou extinta a presente
ação, sem resolução do mérito, nos termos do art. 267, VI, do
CPC, por ter entendido o MM. Juiz pela impossibilidade jurídica
do pedido de revisão contratual firmado entre a empresa
apelante e a empresa apelada.
Não obstante o entendimento firmado pelo ilustre Magistrado
primevo, tenho posicionamento firmado no sentido de ser
absolutamente viável a revisão contratual de avença firmada
entre empresas, quando uma delas presta serviço à outra,
equiparando-se, assim, a consumidor equiparado, nos termos
do art. 29 do CDC, decorrendo, daí, a viabilidade de se buscar
equilíbrio contratual entre as partes.
A situação descrita nos autos à luz do princípio da probidade e
da boa-fé objetiva, bem como da extensão do conceito de
consumidor inserta no artigo 29 do Código de Defesa do
Consumidor, autoriza a incidência dos capítulos V e VI do
referido mandamento legal, para regular a relação jurídica
estabelecida entre pessoas jurídicas. (...)
Ademais disso, imperioso registrar, também, que a cláusula
geral da função social dos contratos, prevista no artigo 421 do
Código Civil permite a revisão das cláusulas contratuais
contidas em contrato de adesão firmado entre empresas, de
forma a assegurar o equilíbrio contratual entre as partes.
Por fim, e não menos importante, é de se frisar que o princípio
do pacta sunt servanda restou absolutamente flexibilizado,
quando
da
observância
interpretação
à
das
necessidade
relações
de
contratuais,
equilíbrio
contratual
em
e
110
reprimenda do abuso da posição econômica de uma das
partes,
suscetível
de
causar
onerosidade
excessiva
à
contraparte.
Desta sorte, entendo imperiosa a cassação da sentença que
extinguiu o feito, sem resolução do mérito, a que os autos
retornem seu regular fluxo, à conclusão de sua instrução e
julgamento.” (g.n) 231
Agora que já esclarecida a possibilidade de revisão nos contratos de
prestação de serviços entre empresas quando estes não observam os princípios
sociais, abordaremos outra fonte de litígios. Passaremos a discutir quais cláusulas
contratuais dessas avenças em que podem ser declaradas a abusividade, em razão
de inobservância dos princípios contratuais sociais da boa-fé objetiva, da função
social e da justiça contratual (aspecto da lesão).
Primeiramente, discutiremos sobre as multas contratuais. Já alertamos
que nesse terreno, a Jurisprudência só as diminui quando essa sanção é tão
dimensionada de forma a afetar o equilíbrio contratual. Dados os parcos julgados, foi
analisada a questão levando em consideração o Tribunal de Justiça de São Paulo,
Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro.
Já foi declarada abusiva cláusula penal que previa desconto de 50% a
100% sobre a remuneração do prestador de serviços. Tratava-se da hipótese de
prestação de serviços de vistoria prévia de carros realizada pela empresa Javali
Vistórias Prévias para a tomadora de serviços Vera Cruz Seguradora. O contrato
entre as partes continha uma cláusula penal abusiva que previa o desconto de 50%
a 100% da remuneração pelos serviços prestados. Foi considerada abusiva pela
inobservância dos princípios da função social e da boa-fé objetiva, e reduzindo-se o
percentual da multa para 20%, com a seguinte ementa do Colendo Tribunal de
Justiça de São Paulo:
“Ementa – Prestação de Serviços de Vistoria Prévia –
Abusividade da cláusula penal que prevê desconto de 50% a
100% da remuneração pelos serviços prestados – incidência
231
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação n.1.0105.05.151303-1/002, da 12ª Câmara
de Direito Privado, Valadares, MG, j. em 17 de setembro de 2008.
111
do princípio da boa-fé e da função social do contrato – redução
para o limite máximo de 20% - incidência de correção
monetária pela tabela deste Tribunal a partir de cada
vencimento – juros de mora de 1% ao mês e desde a citação
sem a incidência da taxa Selic – honorários mantidos –
sentença de procedência parcial mantida.” (g.n) 232
Interessante notar que os desembargadores e as partes preferiram
mencionar aos princípios da função social e da boa-fé objetiva, ao invés de citar o
artigo 413 do Código Civil. Também o Tribunal de Justiça de Minas Gerais já reduziu
uma multa contratual de rescisão antecipada de 20% para 10% de um contrato de
prestação de serviços de consultoria celebrado entre empresas, tanto com o
fundamento do artigo 413 do CC e do princípio da boa-fé objetiva. Lembrando que
na questão fática, poucos dias após a assinatura do contrato, a tomadora de
serviços pediu a rescisão, e a prestadora de serviços não comprovou nenhum
prejuízo de ordem material com a rescisão antecipada do contrato.233
Convém ressaltar que em sentido oposto, o Tribunal de Justiça de São
Paulo decidiu que a multa compensatória pela resilição unilateral sem justa causa de
30% sobre as remunerações a vencer em contrato de prestação de serviços
empresarial de publicidade é legítima, e como esta é imputada a ambos os
contratantes, atende aos princípios da função social e da boa-fé objetiva. Ademais, o
fato de a tomadora de serviços ter encontrado serviço idêntico ao prestado pela ré
com preço menor não constitui fato superveniente apto a ensejar o reconhecimento
da excessiva onerosidade, já que esta só é cabível em evidente desequilíbrio
causado por situação nova.234
Em outro julgado do Tribunal de Justiça do Paraná, discutindo sobre a
abusividade de cláusula contratual de penalidade em contrato de prestação de
serviços educacionais, celebrado entre empresas em que se previa o pagamento de
multa no importe de 20% (vinte por cento) sobre o total contratado mais o
pagamento integral dos valores acordados por curso. Na hipótese, o tribunal de
232
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 0141770-11.2005, da 34ª Câmara de
Direito Privado, São Paulo, SP, j. em 12 de setembro de 2011.
233
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 1.0024.07.481082-1/001, da 17ª
Câmara Cível, Belo Horizonte, MG, j. em 19 de agosto de 2010.
234
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 0000210-58.2009.8.26.0318, 22ª
Câmara de Direito Privado, Leme, SP, j. em 21 de julho de 2011.
112
ofício reconheceu que essa cláusula deveria ser interpretada de acordo com o
princípio da função social, condenando a tomadora de serviços a somente pagar a
multa contratual de 20% sobre o total dos cursos prestados ou não (já que é uma
multa compensatória), e excluindo da condenação o valor dos cursos que não foram
efetivamente realizados.235
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu que a multa em caso de
cancelamento pelo tomador de serviços correspondente a 50% do valor total do
contrato, multiplicado pelo número de meses faltantes (cláusula de fidelização), era
abusiva em um contrato de prestação de serviços de telefonia entre empresas. Isto
porque a multa foge ao equilíbrio contratual e agride a boa-fé objetiva.236
Demais, discutindo-se sobre cláusulas contratuais, apreciaremos um outro
caso interessante que foi apreciado inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça em
relação à matéria processual (natureza de ordem pública os artigos 421 e 422 CC).
Tratava-se de contrato de prestação de serviços de consultoria tributária firmado
entre duas empresas. No contrato existia uma cláusula que previa a estipulação da
incidência dos honorários sobre os valores apurados e não sobre a base dos valores
efetivamente aproveitados pela empresa tomadora dos serviços. O Tribunal de
Justiça do Paraná entendeu que essa cláusula era abusiva, pois violava a boa-fé e a
função social do contrato, e, inclusive, foram conhecidas sem a provocação de
qualquer das partes:
“Ementa: Apelação Cível. Cautelar de Sustação de Protesto,
Ordinária e Declaratória de Inexistência de débito. Prestação
de Serviços Consultoria Tributária. Recurso. 02. Levantamento
de créditos. Honorários sobre valores apurados. Previsão
contratual. Violação à boa-fé. Matéria de Ordem Pública.
Apreciação
ex-officio.
Proporcionalidade.
Incidência
dos
honorários sobre os valores efetivamente aproveitados pela
contratante. Recurso. 01. Honorários advocatícios. Majoração.
Cabimento.1. Em contrato de prestação de serviço de
235
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 429112-5, da 11ª Câmara Cível,
Curitiba, PR, j. em 24 de outubro de 2007, publicado em DJ: 7502, em 30 de novembro de 2007.
236
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 2009.001.66941, da 15ª Câmara
Cível, Julgado em 08 de março de 2010.
113
assessoria tributária consistente no levantamento de créditos
passíveis de aproveitamento pela contratante, considera-se
abusiva a estipulação da incidência dos honorários sobre os
valores apurados, sendo devida a cobrança com base nos
valores efetivamente aproveitados pela empresa contratante. 2.
Por se tratar de ordem pública, as matérias referentes à função
social do contrato (artigo 421 do Código Civil) e sua variante
intrínseca, qual seja a boa-fé objetiva (artigos 113 e 422 do
CC), podem ser conhecidas de ofício pelo julgador a qualquer
tempo ou grau de jurisdição. 3. Incumbe ao julgador-intérprete,
instrumentalizar os princípios da função social e boa-fé
objetiva, e, por meio da relativização do pacta sunt servanda,
fazê-los incidir no interior da relação contratual, visando à
proteção da confiança legítima despertada pela declaração de
vontade da contraparte, além da tutela do equilíbrio das
prestações contratuais. 4. Recurso 02. Conhecido e nãoprovido. 5. Recurso 01. Conhecido e provido para majorar os
honorários advocatícios.”237(g.n)
A Prestadora de Serviços sucumbente interpôs Agravo de Instrumento
para a subida de seu Recurso Especial, alegando que o Tribunal tinha decidido de
forma “ultra petita” ao julgar matéria que sequer foi ventilada pelas partes e apontou
divergência jurisprudencial. Em sede de decisão monocrática, o Ministro João Otávio
Noronha negou provimento ao recurso. Em suas razões, em breve síntese explanou
que os princípios da função social e da boa-fé objetiva são de ordem pública,
podendo ser conhecidas de ofício, sendo este posicionamento mantido na decisão
do Agravo Regimental.238
Também ainda na esfera da análise de cláusulas contratuais, no que se
refere ao dispositivo contratual que estipula honorários iniciais (10% do valor
atribuído à causa) mais “honorários de êxito” (15% da diferença entre o valor
237
BRASIL.Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 384991-2, Curitiba, PR, da 11ª Câmara
Cível, j. em 20 de junho de 2007, publicado em DJ:7411, em 20 de julho de 2007.
238
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 1.163.482 –
PR, da 4ª Turma, j. em 29 de novembro de 2010; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo de
Instrumento n.1.163.482 – PR, da 4ª Turma, j. em 22 de março de 2011.
114
atribuído à causa e o valor da efetiva condenação) fixados em contrato de prestação
de serviços advocatícios firmados entre escritório de advocacia e empresa, o
Colendo Superior Tribunal de Justiça, apreciando a demanda, decidiu que não se
configura o instituto da lesão, pois em resumo:
“(...) não há como vislumbrar a aplicabilidade do art.157 do
CC/02 à hipótese dos autos, visto que o referido dispositivo
legal cuida da lesão, instituto que se caracteriza quando uma
pessoa, sob premente necessidade ou por inexperiência,
obriga-se à prestação manifestamente desproporcional ao valor
da prestação oposta. No particular, não se cogita da urgência
da contratação tampouco da inexperiência dos representantes
da recorrente, uma sociedade anônima cujo capital social, em
2002, era de R$40.000.000,00 (fl. 425) e que certamente está
habituada a celebrar contratos de elevado valor. Ao contrário
do que procura fazer crer a recorrente, o fato de os seus
representantes
não
serem
advogados
não
“torna
extremamente difícil a compreensão da efetiva dimensão que
poderia atingir estas cláusulas contratuais” (fl. 1.311). As
cláusulas em questão foram transcritas pelo TJ/RS (fls.
1.274/1.275), evidenciando que a fixação dos honorários fora
estipulada de maneira clara e precisa, exigindo tão somente a
realização de cálculos aritméticos, atividade corriqueira para
empresários. Ademais, é de se supor que a recorrente tenha
nomeado
pessoas
competentes
e
preparadas
para
a
negociação frente à recorrida, sobretudo considerando que,
conforme ela própria admite, “pagava mensalmente à recorrida
o importe aproximado de R$40.000,00” (fl. 1.312). Também
não se constata desproporção entre os valores pagos pela
recorrente e as obrigações assumidas pela recorrida. Não
procede a alegação de que “levando-se em consideração os
valores
cobrados
pela
recorrida
atinentes
às
duas
reclamatórias trabalhistas, seria muito mais vantajoso para a
115
recorrente pagar diretamente aos reclamados do que quitar os
honorários advocatícios” (fl. 1.310).
Com efeito, inexistindo circunstância geradora de onerosidade
excessiva, o equilíbrio entre os encargos assumidos pelas
partes deve ser analisado à luz da situação existente no
momento da celebração do acordo e não a posteriori , como
faz a recorrente.
É evidente que, depois de confirmada a improcedência dos
pedidos formulados nas reclamações trabalhistas objeto desta
ação de cobrança, pode considerar-se elevado o valor dos
honorários, correspondente a um quarto da pretensão dos
reclamantes. Todavia, deve-se ter em mente que, no ato da
contratação, existia o risco da recorrente ser condenada ao
pagamento de todas as verbas pleiteadas, de sorte que a
atuação da recorrida resultou, na realidade, numa economia
para a recorrente de 75% do valor dessas verbas.” (g.n) 239
Convém ressaltar que os Tribunais têm entendido que são abusivas as
seguintes cláusulas e diante das circunstâncias abaixo, eis que violam o princípio da
boa-fé objetiva e da função social:
(a) cláusula autorizando a tomadora de serviços a reter, do valor das
faturas, importância correspondente ao valor da causa de eventuais ações
trabalhistas que contra ela vierem a ser ajuizadas pelos empregados da contratada
(empresa prestadora de serviços de vigilância), foi flexibilizada em decorrência da
função social.
“In casu”, a contratante anunciou a retenção do valor de
R$1.000.000,00 (um milhão de reais) correspondente ao valor da causa da
reclamação trabalhista, situação esta capaz de em tese arruinar a empresa
contratada. O desembargador Ricardo Pessoa de Mello, com fundamento na
cláusula, limitou o valor da retenção a 10% de cada fatura, não inferior a
R$50.000,00 (cinquenta mil reais).240
239
BRASIL.Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.1.117.137, da 3ª Turma, j. em 17 de
junho de 2010, DJ: 30 de junho de 2010.
240
BRASIL.Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 990.10.184548-2, da 25ª
Câmara de Direito Privado, j. em 18 de maio de 2010.
116
(b) de previsão contratual de que, os postos de vigilância poderiam ser
excluídos, sem direito à contratada de indenização, reparação ou compensação. No
caso, a tomadora de serviços (Banco), apesar de comunicar com antecedência de
60 (sessenta) dias a rescisão do contrato, no mesmo dia excluiu os postos de
vigilância da maioria de suas agências, tornando, assim, inócua a previsão
contratual de prévio aviso da rescisão. O desembargador entendeu que na situação
caracterizou-se o desvirtuamento da real vontade das partes, da quebra do equilíbrio
contratual, da ruptura do princípio da boa-fé dos contratos, da desobediência do
dever anexo de cooperação, bem como, a violação do artigo 187 do CC (Abuso de
direito). E em razão disso, condenou o Banco (tomador de serviços) ao pagamento
de aviso prévio previsto em cláusula, do contrato entabulado entre as partes em
valor correspondente aos serviços contratados pelo período de 60 (sessenta) dias,
calculado segundo a média do que foi pago nos 3 (três) meses anteriores .241
(c) de retenção de 10%, caso ocorra violação contratual pela Prestadora
de Serviço (de instalação, emenda de cabos telefônicos) e em casos em que não
exista perfeita execução dos serviços, pois estabeleceu obrigação abusiva e
incompatível com a boa-fé. Frise-se, na hipótese, a tomadora de serviços queria
reter o importe de 10% quando já tinha sido pago a remuneração, sob a alegação de
que a prestadora de serviços deixou de apresentar guias de FGTS e INSS dos seus
empregados. Segundo cláusula contratual, a tomadora dos serviços teria o direito da
retenção de pagamento quando da liberação do pagamento e não posteriormente
em sede de ação judicial. Até porque não impugnou os serviços da contratada em
nenhum momento. Diante disso, o Tribunal julgou procedente a ação de cobrança
promovida pela empresa prestadora de serviços e não permitiu a retenção de 10%
em sua remuneração.242
(d) de eleição de foro da contratada em contrato de prestação de serviços
de acesso à internet, em razão da excessividade do ônus que poderia acarretar, e a
comprovação que existe uma parte mais fraca (tomadora de serviços) ocasionando
dificuldades de defesa e dispêndio financeiro. Na hipótese, o Tribunal de Justiça
julgou procedente o agravo de instrumento em sede de exceção de incompetência
241
BRASIL.Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 9089094-98.2003.8.26.0000, da 22ª
Câmara de Direito Privado, j. em 25 de agosto de 2011.
242
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n.1046215- 0/0, da 26ª Câmara de
Direito Privado, j. em 28 de janeiro de 2008; BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Embargos de
Declaração n.1046215- 01/2, da 26ª Câmara de Direito Privado, j. em 26 de agosto de 2009.
117
em favor da empresa tomadora de serviços em face da empresa prestadora de
serviços (UOL) para declarar a não prevalência da cláusula do foro de eleição.243
Por outro lado, os Tribunais têm decidido em alguns julgados que não são
abusivas e não transgridem os princípios sociais as cláusulas:
(a) determinando o pagamento mesmo na hipótese de dispensa do
obreiro de cumprimento do pré-aviso, pois a empresa tomadora de serviços é
também responsável pela dispensa, devendo efetuar o reembolso a empresa
prestadora de serviços. “In casu”, o Tribunal manteve a sentença que julgou
procedente a ação de cobrança da empresa prestadora de serviços em face da
tomadora de serviços, incluindo os valores do aviso prévio dos ex-empregados. 244
(b) de eleição de foro em contrato de prestação de serviços empresarial
de vigilância e segurança, por não haver no caso a posição de inferioridade e
estando o contrato em consonância com as normas legais. Dessa forma, o Tribunal
de Justiça do Distrito Federal deu provimento ao agravo de instrumento para
declarar válida a cláusula do foro de eleição em favor da empresa prestadora de
serviços. 245
(c) prevendo a tarifa adicional de administração de estorno de 50% sobre
a comissão estornada (caso haja não ocorra a venda por culpa do comprador em
mais de 30%) em contrato de prestação de serviços de anúncios e leilão na internet.
Na hipótese, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou improcedente a demanda
revisional com repetição de indébito promovida pela empresa tomadora de
serviços.246
(d) estipulando que a simples prestação do serviço de cobrança já prevê a
remuneração, independentemente do efetivo recebimento das mensalidades em
atraso, porquanto essa atividade é de meio e não resultado. E a não remuneração
pelos serviços da contratada pode significar enriquecimento indevido da contratante.
No caso, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul manteve a sentença de
243
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Agravo de Instrumento n. 275.431-0, da 6ª Câmara Cível,
j. em 30 de novembro de 2004.
244
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 1170482- 0/4, da 31ª Câmara de
Direito Privado, j. em 18 de setembro de 2009.
245
BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Agravo de Instrumento n. 20080020155746, da 5ª
Turma Cível, j. em 03 de dezembro de 2008; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
n. 1.084.291-RS, da 3ª Turma, j. em 05 de maio de 2009.
246
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n.0209744-17.2009.8.26.0100, 21ª
Câmara de Direito Privado, j. em 02 de junho de 2011.
118
procedência da ação de cobrança de honorários promovida pela empresa
prestadora de serviços de cobrança de débitos em face da empresa tomadora de
serviços.247
(e) de renovação automática em contrato de prestação de serviços de
publicidade (de adesão), há dois julgados no Tribunal de Justiça de Minas Gerais
decidindo que não se violou os princípios da função social e da boa-fé objetiva. O
Tribunal de Justiça de Minas Gerais nas duas oportunidades manteve a parte da
decisão de primeira instância que julgou improcedente as ações cautela de sustação
de protesto e declaratória de nulidade de título promovidas pela empresa tomadora
de serviços, pois a cláusula de renovação automática é válida.248
(f) de prorrogação em relação ao prazo de contrato de prestação de
serviços de dados e acesso a internet não viola ao artigo 421 CC (princípio da
função social) em razão de que este não se coaduna com contrato eterno. Isto
porque as partes anuíram no contrato e no aditivo com esta prorrogação. Na
circunstância, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve a sentença que julgou
procedente a demanda de cobrança em face da empresa tomadora de serviços,
declarando válida a cláusula de prorrogação do contrato.249
(g) de restrição à utilização da franquia de minutos à área de concessão
da operadora de telefonia em contrato de prestação de serviços de telefonia móvel
celebrado entre empresas. In casu, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais deu
provimento a apelação da empresa prestadora de serviços, para reformar a
sentença em sede de ação declaratória de nulidade de dívida de procedência, pois
sendo não comprovada a ilegitimidade da cobrança, mister reconhecer a
exigibilidade do débito gerado.250
(h) prevendo uma obrigação de meio em contrato de prestação de
serviços de perfuração de poço tubular profundo. Na hipótese, o Tribunal de Justiça
de Minas Gerais, em sede de apelação cível manteve a sentença que julgou
247
BRASIL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Apelação Cível n. 8538 MS 2004.008538-9,
da 1ª Turma Cível, j. em 11 de março de 2008.
248
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0024.05.640773-7/001, da 18ª
Câmara Cível, j. em 17 de abril de 2007; BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação
Cível n.1.0024.05.66052-5/001, da 18ª Câmara Cível, j. em 17 de abril de 2007.
249
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 1.0145.04.141081-5/001, da 10ª
Câmara Cível, j. em 13 de fevereiro de 2007.
250
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0105.04.124924-1/001, da 11ª
Câmara Cível, j. em 23 de janeiro de 2008.
119
procedente a ação de cobrança proposta pela empresa prestadora de serviços em
face da empresa tomadora dos serviços. 251
(i) de não concorrência e confidencialidade em contrato de prestação de
serviços empresarial no ramo imobiliário. No caso, o Tribunal de Justiça de São
Paulo, em sede de apelação manteve a sentença de procedência em parte em ação
de obrigação de não fazer no que se refere à cláusula de não concorrência, em favor
da empresa tomadora de serviços, obrigando a empresa prestadora de serviços a
obedecer ao referido dispositivo contratual. 252
Por fim, anotaremos em quais posturas o Judiciário no âmbito do contrato
de prestação de serviço empresarial tem entendido como violadora da boa-fé
objetiva (primeiro caso)? E quais condutas nessa seara não são consideradas como
transgressoras desse princípio (segundo caso)?
Seguem os julgados do primeiro caso:
(a) o comportamento reiterado da prestadora de serviços no sentido de
nunca exigir o pagamento das diferenças relativas à variação do custo da mão-deobra, inércia qualificada pelo significativo período de tempo transcorrido, gerou na
parte contrária (tomadora de serviços) a justa expectativa de que ela estava
absolutamente quite com suas obrigações contratuais até então. Ou seja, esse
comportamento enseja a “caducidade” ou a impossibilidade de exercício de uma
faculdade/direito subjetivo contratual inicialmente ajustado entre as partes. Referida
alteração do conteúdo obrigacional original recebe da doutrina a denominação de
supressio. Nesta hipótese, ao final, a cobrança da prestadora de serviços foi julgada
improcedente pelo Tribunal. 253
(b) a postura da prestadora de serviços de publicidade em guias
Multilistas que admite ter conhecimento de que a pessoa que assinou o referido
contrato tratava-se de secretária da empresa contratante (violação do dever de
lealdade), que não detinha quaisquer poderes de representação e nem mesmo
quaisquer conhecimentos comerciais a permitir-lhe discernimento suficiente para
assunção de tal encargo perante a empresa contratada, quanto mais autorização
251
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0707.06.122315-2/001, da 13ª
Câmara Cível, j. em 10 de janeiro de 2008.
252
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 9224086-88.2006.8.26.0000, da 29ª
Câmara de Direito Privado, j. em 01 de junho de 2011.
253
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 9176287-78.2008.8.26.0000, da 29ª
Câmara de Direito Privado, j. em 23 de março de 2011. (Alerte-se que foi usado um julgado análogo,
pois o prestador de serviços era pessoa física).
120
para tal ato. E nessa hipótese mesmo assim alegar que o contrato de prestação de
serviços é válido. Nesse caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a
sentença (da ação de nulidade de contrato) de procedência em favor da empresa
tomadora de serviços.254
(c) a postura da tomadora de serviços em alegar a invalidade do
contrato de prestação de serviços de consultoria para implantação do sistema de
Gestão ISO 9001/2000 por não ter sido assinado por representante legal, sendo
que, no momento da pactuação, a mesma entendeu que sua gerente administrativa
tinha poderes para assinar o contrato, tanto que não verberou a contratação. Agora
não pode invalidar o negócio em benefício dela mesma, porque estaria contrariando
o venire contra factum proprium. In casu, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ao
julgar a apelação da tomadora de serviços, manteve a decisão de primeira instância
que julgou improcedente a ação anulatória de contrato de prestação de serviços de
publicidade.255
(d) a postura da prestadora de serviços em fugir de sua obrigação sob o
pretexto de irregularidade formal consistente na falta de expedição de guias de
autorização, porque tal não implicou em inexistência da prestação dos serviços
contratados (de assistência médica) nem em irregularidade na prestação, tudo sob
pena de atuar em dissonância com a boa-fé exigida no cumprimento dos contratos,
com o que não é possível compactuar. Na circunstância, o Tribunal de Justiça de
São Paulo, manteve a sentença que julgou procedente a cobrança da remuneração
pela empresa prestadora de serviços em face da empresa tomadora de serviços. 256
(e) a conduta da prestadora de serviços publicitários em negar a
finalização do catálogo publicitário da tomadora de serviços, condicionando tal
serviço ao pagamento de verba adicional, além da taxa mensal, e o contrato não
prevê esta taxa a maior. No caso, o Tribunal de Justiça do Paraná, em favor da
apelante empresa tomadora de serviços, reformou a sentença para julgar
procedente a ação de rescisão contratual, com base na mencionada conduta da
254
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 7.203.765-9, da 1ª Câmara de Direito
Privado, j. em 15 de outubro de 2008.
255
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0024.07.481082-1/001, da 17ª
Câmara Cível, j.em 19 de agosto de 2010.
256
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 918360- 0/6, da 29ª Câmara de
Direito Privado, j. em 01 de agosto de 2007.
121
empresa prestadora de serviços, e ainda, reformou a sentença da ação de cobrança
da prestadora de serviços para julgar improcedente.257
(f) a postura do prestador de serviços em cobrar honorários advocatícios,
apesar de existir cláusula no contrato de prestação de serviços prevendo a
assistência jurídica a tomadora de serviços sem a incidência desses, inclusive para
a cobrança de taxas condominiais em atraso. In casu, o Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, ao julgar apelação da empresa prestadora de serviços, negou provimento, e
manteve a sentença que julgou procedente a demanda de repetição de indébito da
tomadora de serviços.258
(g) a conduta da prestadora de serviços de instalação de telefones ao não
informar adequadamente à tomadora de serviços os riscos da não instalação dos
ramais, sendo este dever necessário para que o outro negociador possa pautar o
seu comportamento presente e futuro segundo as expectativas criadas pela parte
contrária. Nos autos do processo em discussão, o Tribunal de Justiça do Paraná, ao
julgar a apelação da empresa prestadora de serviços, manteve a parte da sentença
que a condenou a mesma em indenização por danos materiais em razão do
inadimplemento (não instalação dos ramais) a ser paga a empresa tomadora de
serviços.259
(h) a conduta da prestadora de serviços de telefonia móvel ao não
informar à tomadora dos serviços a forma de utilização do bônus e a sua
discriminação no acordo, haja vista que este foi determinante para migração do
plano. Na hipótese, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ao julgar a apelação da
empresa prestadora de serviços de telefonia móvel, manteve a sentença que julgou
procedente a ação declaratória de cumprimento de contrato em favor da tomadora
de serviços.260
(i) a conduta da empresa tomadora de serviços em abster-se de fazer o
pagamento da remuneração do prestador de serviços, apesar de comprovada a
execução dos serviços. Na hipótese, tratava-se de cobrança da remuneração pela
257
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 712252-9, da 12ª Câmara Cível, j. em 15
de dezembro de 2010.
258
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 10024081925547001, da 11ª
Câmara Cível, j. em 21 de julho de 2010.
259
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 519638-3, da 10ª Câmara Cível, j. em 05
de fevereiro de 2009.
260
BRASIL.Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 1.0024.08.981359-6/001, da 12ª
Câmara Cível, j. em 19 de agosto de 2009.
122
prestação de serviços julgada procedente pelo juízo a quo e pelo Tribunal de Justiça
de São Paulo.261
(j) a postura da empresa prestadora de serviços que entabula contrato de
prestação de serviços de assessoria com aquisição de licença de uso de um sistema
cuja perfectibilização sabia ser impossível. Isso, de fato, iniludivelmente atenta
contra o princípio da boa-fé objetiva (dever de lealdade nas relações contratuais).
Nos autos do processo de rescisão contratual cumulada com a devolução da quantia
paga pela tomadora dos serviços, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao
julgar a apelação da prestadora de serviços, negou provimento e manteve a
sentença de procedência em favor da tomadora de serviços.262
(k) a conduta da empresa prestadora de serviços de publicidade em lista
ante à ciência da tomadora de serviços em rescindir o contrato, ainda sim, mesmo
após as duas notificações de rescisão, veiculou a propaganda posteriormente. Neste
caso, há ausência de boa-fé objetiva em cumprir o contrato que previa a
possibilidade de rescindir antecipadamente. O relator da Apelação deu provimento a
apelação da tomadora de serviços quando reformou a sentença de improcedência
da ação anulatória de contrato de prestação de serviços de publicidade.263
(l) a conduta da prestadora de serviços de limpeza que utilizou
ardilosamente da literalidade dos termos da denúncia efetivada pela tomadora dos
serviços, em que constou erroneamente cláusula diversa da que realmente a
embasou, para tirar vantagens da situação ao cobrar uma multa contratual
sabidamente indevida. Nos autos dos embargos à execução opostos pela tomadora
de serviços, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul ao julgar a apelação da
prestadora de serviços, manteve a sentença de procedência dos embargos, eis que
indevida a cobrança de multa contratual.264
Contudo, há também decisão do segundo caso. Na circunstância, a
tomadora de serviços de telefonia móvel alegou depois de anos de cumprimento do
261
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 0381537- 96.2010.8.26.0000, da 21ª
Câmara de Direito Privado, j. em 16 de fevereiro de 2011; BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo.
Apelação Cível n. 990.10.124400-4, da 21ª Câmara de Direito Privado, j. em 24 de novembro de
2010; Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 10024074537101003, da 11ª Câmara
Cível, j.em 07 de julho de 2010.
262
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n.70033207622, da 20ª Câmara
Cível, j. em 11 de maio de 2011.
263
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 1.0105.05.167411-4/001, da 13ª
Câmara Cível, j. em 16 de setembro de 2010.
264
BRASIL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Apelação Cível n. 25150 MS 2009.025150-1,
da 4ª Turma Cível, j. em 23 de fevereiro de 2010.
123
contrato que a conduta de imposição de multa e a suspensão dos serviços violariam
ao princípio da função social. O Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar a
apelação interposta pela tomadora de serviços, manteve a sentença de
improcedência da ação de rescisão contratual proposta por ela. Também o
desembargador entendeu que uma das facetas da função social é justamente o
adimplemento dos contratos, na forma como postos, e desde que as cláusulas
sejam de conhecimento das partes contratantes. E a referida suspensão se deu em
virtude do inadimplemento de acordos pela contratante/tomadora dos serviços.265
265
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 7.146.276-9, da 20ª Câmara de
Direito Privado, j. em 04 de agosto de 2008.
124
CAPÍTULO 4 DA CONCLUSÃO
4.1 Da conclusão Genérica
No escopo desse trabalho foi analisado num primeiro momento de
forma genérica o contrato. No primeiro capítulo foi feita uma breve análise histórica.
Nele foi anotado que segundo a teoria clássica, o contrato tinha por núcleo a
autonomia privada. Essa teoria preconizava o princípio do pacta sunt servanda (os
pactos devem ser cumpridos). Ainda restou falado naquele capítulo que a teoria
clássica (século XX) passou a sofrer um processo de desfragmentação, sendo
reconstruída à luz de outros valores. Finalmente, explanamos que atualmente a
teoria clássica não desapareceu, foi relativizada e nesse contexto, a autonomia
privada poderia chegar até onde os valores sociais permitam.
Diante desse contexto histórico foi definido o contrato como sendo não
simplesmente um instituto individual do direito privado, mas um instituto individual
inserido no contexto social. Ou seja, a socialização do contrato significa que o
contrato é inserido no contexto social. Também se explicou que uma das funções
desse contrato é a de justamente harmonizar interesses contrapostos, servindo
como instrumento de pacificação social porque permite a circulação de riquezas.
Por último, expressou-se a definição das cláusulas gerais (introduzidas com os
princípios da boa-fé objetiva e da função social) e a preocupação do uso indevido
delas pelos julgadores.
Depois das anotações gerais do primeiro capítulo, explanamos no
capítulo posterior especificamente acerca do contrato típico de prestação de
serviços no código civil brasileiro. Definimos que o contrato de prestação de serviços
é aquele no qual alguém coloca seu trabalho à disposição de outra pessoa,
mediante remuneração. Nessa avença, é o serviço em si que interessa ao tomador
de serviços, seja este de ordem pessoal ou patrimonial. Demos diversos exemplos
tais como a prestação de serviços de advogados, de médicos, de dentistas, entre
outros.
125
Ademais, comentamos que aos contratos de prestação de serviços
sempre são aplicadas as normas de obrigação de fazer, com até porque, em geral, a
prestação de serviços é pessoal, devendo ser exercida com exclusividade.
Ainda no segundo capítulo, escrevemos que as regras do Código
Civil têm caráter residual, aplicando-se somente às relações não regidas pela
Consolidação das Leis do Trabalho e pelo Código do Consumidor, sem distinguir a
espécie de atividade prestada pelo locador ou prestador de serviços, que pode ser
profissional liberal ou trabalhador braçal. Lembrando que o Código Civil trata do
contrato de prestação de serviço, no seu objeto e na disciplina, apenas aquele
executado com autonomia técnica e sem subordinação. Ademais, foram explicitados
os principais tópicos do contrato de prestação de serviços, tais como sua
classificação, a remuneração, e os artigos 606 e 608 do Código Civil.
Ao final estudamos os princípios contratuais, tantos os tradicionais como
os sociais, já que toda abordagem de qualquer contrato também depende
obrigatoriamente do entendimento desses cânones.
Apontamos que o princípio da boa-fé objetiva é norma que estabelece um
dever de conduta dos envolvidos em um contrato (artigo 422 do Código Civil
Brasileiro). Estipulamos as diferenças com a boa-fé (estado de ignorância). E
também descrevemos as três funções da boa-fé objetiva, quais sejam a
interpretativa-integrativa (artigo 113 do CC), limitadora (artigo 187 CC) e fonte de
direitos e obrigações (artigo 422 do CC)
Demais, fizemos breves pinceladas sobre o princípio da função social. Tal
como o princípio da boa-fé objetiva, foi incluso na ordem jurídica civil como uma
cláusula geral. Aprendemos que esse princípio parte da premissa de que o contrato
não interessa só às partes contratantes. A troca contratual entre os partícipes
influencia o meio social, como também é influenciada por ele.
Demais no capítulo 3, discutimos em breve relanço o princípio da justiça
contratual, mais especificamente a parte da lesão. Segundo esse princípio deve
existir um equilíbrio entre as prestações contratuais, de forma que uma das partes
não aufira, em face da outra, uma vantagem manifestamente excessiva. Ou seja,
havendo uma correspondência entre a prestação e a contraprestação, o contrato
seguirá esse preceito e será justo. Esse princípio também abrange o princípio da
vulnerabilidade de uma das partes contratantes. Enfatizamos que esse princípio não
está expresso no Código Civil Brasileiro de 2002, no entanto, ele se reflete em
126
dispositivos de proteção ao hipossuficiente, tais como o instituto da lesão, da
onerosidade excessiva e do estado de perigo.
Finalmente, fizemos uma intersecção entre o contrato típico de prestação
de serviços sob enfoque empresarial e os princípios contratuais sociais na visão de
alguns tribunais.
4.2 Da conclusão Específica
Registramos as seguintes conclusões específicas:
(a) na mesma dimensão das vicissitudes históricas e culturais da
humanidade, o conceito de contrato evoluiu de um conceito individual
para outro social/solidário.
(b) nessa mesma evolução, o Estado deve sempre buscar restabelecer o
máximo possível o equilíbrio entre os contratantes, seja pelo dirigismo
contratual, seja pela delimitação de vontade, ou mesmo disponibilizado
àquele em desvantagem, mecanismos de defesa aos seus direitos
ameaçados de transgressão.
(c) o contrato de prestação de serviços empresarial tal como qualquer
outro contrato, também não poderia deixar de sofrer tais mudanças,
notadamente, no que se refere à obediência aos princípios da função
social, da boa-fé objetiva e da justiça contratual.
(d) os princípios modernos auxiliam a aproximar ainda mais o CC e o
CDC. No futuro, é possível paulatinamente sumir ainda mais a diferença
dos regimes jurídicos dos contratos comuns (tais como o estudado) dos
contratos de consumo, principalmente, no que se refere aos seus
cânones fundamentais, tal como já estamos averiguando em alguns
julgados aqui coletados.
(e) registre-se, o CC não poderia estar em oposição ao CDC,
diferentemente disso, deverá haver uma articulação entre eles, um
diálogo de fontes, pois o a unidade do sistema assim exige.
(f) aliás, tanto os princípios, as cláusulas gerais estampadas no CC, CDC
e sob a égide da Magna Carta de certa forma convergem de forma
127
harmônica de forma a resguardar e proteger a parte mais vulnerável nos
contratos.
(g) observe-se, muitos contratos regulados pelo CC, podem também ser
de consumo. Vide que temos um mesmo contrato (tais como prestação de
serviços, compra e venda, seguro) regulado tanto pelo CDC como pelo
CC. Com efeito, a prestação de serviços pode ser civil (se entre duas
pessoas físicas, ou uma pessoa física e outra jurídica), pode ser
empresarial (se entre duas empresas) e ainda pode ser de consumo (se
entre um consumidor e um fornecedor). E os contratos de consumo estão
cada vez mais onipresentes, dado que logicamente abrangem uma gama
muito maior de feixe de envolvidos. Hoje, o reflexo da mass consumption
society é o predomínio de maior quantidade dos contratos de adesão,
acordos de massa ou de consumo em detrimento de contratos civis
paritários, tais como o discutido.
(h) ainda em relação aos princípios sociais (boa-fé objetiva, função social
e justiça contratual) e a sua baixa aplicabilidade na seara estudada, tal
como já exposto no item g mencionado, inclusive nos Tribunais
Superiores (STF e STJ) se deve também pela razão de que estes só
apreciam questões de direito e não questões de fato. E como a boa-fé,
função social e a justiça contratual geralmente são questões de fato,
muito dificilmente serão examinadas por estes tribunais. Contudo, nada
obsta que com muita astúcia, esta análise pode acontecer (como vimos
em dois casos expostos nesse trabalho), e desde que antes se demonstre
de forma cabal que se há in casu problema de qualificação jurídica na
matéria a ser julgada pelos excelsos tribunais.
(i) de outra sorte, mesmo em contratos civis empresariais, o Estado-Juiz
quando se vê diante de certa vulnerabilidade nessa avença em tese
paritário, tal como o discutido, não deixa de intervir de forma a proteger o
mais fraco de maneira a reequilibrar as relações contratuais.
(j) lembrando que nesses casos de paridade, tal como o contrato de
prestação de serviços empresarial, não há qualquer vestígio de
desequilíbrio implícito entre as partes, e, diante disso, a invalidade do
contrato
não acontecerá somente em face de alegadas desequilíbrio
entre as prestações.
128
(k)para se ter uma invalidade, revisão, nulidade ou anulação nessas
hipóteses de prestação de serviços empresarial deverá sempre se apurar
caso a caso, um flagrante abuso cometido na pactuação, e, dessa forma,
haverá de ser em nítida transgressão aos deveres da boa-fé objetiva, e
de valores resguardados pelo ordenamento civil-constitucional, sendo
esta a conclusão no que se refere aos julgados estampados nesse
trabalho.
(l) nos casos analisados no campo dos contratos de prestação de
serviços empresariais, que; diga-se de passagem, são bem de menores
monta se relacionados com o âmbito do consumidor, em razão da lógica
exposta nos itens g e h acima, verifica-se que muitos dos julgados
enfatizaram implicitamente o princípio da justiça contratual como se este
fosse qualificado como um sobre-princípio em relação à boa-fé objetiva e
à função social;
(m) note-se, como já assinalado o equilíbrio entre a prestação e a contraprestação que deve presidir os contratos é quebrado pela lesão ou pela
onerosidade excessiva, sendo que ambas têm previsão legal no CC e no
CDC. Todavia, no âmbito dos Tribunais, muitas vezes, a boa-fé e a
função social também são chamadas para ensejar a revisão contratual
das prestações contratuais.
(n) por oportuno, antes da entrada em vigor do CC, o direito brasileiro,
por exemplo, inseria a boa-fé objetiva na esfera das relações de
consumo. Era a jurisprudência quem estendia a aplicação dela nas
relações contratuais paritárias ainda que de forma excepcional. Na
verdade, os juízes estavam acostumados a aplicar a boa-fé objetiva como
se fosse um princípio reequilibrador e de índole protetivo, e, por este
motivo, resistiam em aplicá-la nas relações em que em tese não existia a
parte mais fraca.
(o) o CC retificou essa inclinação e dispôs de forma explícita a aplicação
do princípio da boa-fé objetiva aos contratos comuns, independentemente
da vulnerabilidade. Gize-se, o conceito de boa-fé, ou mesmo da função
social do contrato não têm de forma ontológica este robusto caráter
protetivo de forma a atribuir uma certa função reequilibradora a estes
institutos.
129
(p) apesar disso (dessa correção do CC), conferimos, data venia, na
maior parte das decisões que a tendência descrita no item n acima ainda
está presente.
(q) parece que no âmago, a boa-fé e a função social serviriam como
apoio lingüístico para soluções encontradas com fulcro em outros
raciocínios, ou como um esquema privilegiado a fim de obter base num
dispositivo legal.
(r) por fim, em que pese, a teoria dos manuais notadamente acerca da
principiologia (da função social, boa-fé objetiva) é farta, e, de extrema
beleza, data venia, contudo, averiguamos que na prática os julgados
pouco fazem uso da aplicação dela, pelo menos nas circunstâncias de
litígios envolvendo prestação de serviços empresarial.
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