INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA DE SÃO PAULO LLM- Direito dos Contratos GRACIANA MAUTARI NIWA Anotações acerca do contrato de prestação de serviços empresarial à luz do novo Código Civil SÃO PAULO 2011 2 GRACIANA MAUTARI NIWA Anotações acerca do contrato de prestação de serviços empresarial à luz do novo Código Civil Monografia apresentada ao Curso LLM Direito dos Contratos, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Pós-Graduação Lato Sensu. Orientador: Prof.Daniel Martins Boulos 3 Catalogação na publicação Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa LLM- Direito dos Contratos Niwa, Graciana Mautari. Anotações acerca do contrato de prestação de serviços empresarial à luz do novo Código Civil/ Graciana Mautari Niwa; orientador: Prof. Daniel Martins Boulos. São Paulo, 2011. Monografia (Programa de Pós-graduação em Direito. Área de concentração: Direito dos Contratos) – Insper – Instituo de Ensino e Pesquisa de São Paulo. 1. Anotações acerca do contrato de prestação de serviços empresarial à luz do novo Código Civil. I. Título. 4 FOLHA DE APROVAÇÃO GRACIANA MAUTARI NIWA Anotações acerca do contrato de prestação de serviços empresarial à luz do novo Código Civil. Monografia apresentada ao Programa de LLM em Direito dos Contratos, como requisito parcial para a obtenção do título de pós-graduado em Direito. Área de concentração: Direito dos Contratos BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Daniel Martins Boulos Instituição: Insper Assinatura:______________________ Prof. Instituição: Insper Assinatura:______________________ Prof. Instituição: Insper Assinatura:______________________ 5 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a minha mãe Aracy, pessoa que amo muito e sempre esteve presente em todos os momentos de minha vida de forma incondicional. 6 AGRADECIMENTOS Ao meu professor orientador, um grande conhecedor das ciências jurídicas, pelo qual tenho grande apreço. Aliás, de fato me mostrou diversas grandes luzes não só nesse meu trabalho, mas também durante o percurso do curso LLM Direito dos contratos, quando inclusive pude muito aplicar essas no meu dia a dia prático. A minha querida Cássia, que durante tempos difíceis, me deu as mãos e me ensinou a vencer o caminho das pedras. Ao meu paizinho Massamiti, por todo o suporte necessário quando mais precisei. A minha irmã Ane, quem eu amo muito. A minha querida Sueli, que vem me dando dicas preciosas para que eu possa enfrentar mais uma etapa difícil de minha vida. A todos os meus amigos, que me incentivaram a finalizar este trabalho de forma positiva. Por fim, agradeço a Deus por todas as forças que ele tem me proporcionado. 7 RESUMO NIWA, Graciana Mautari. Anotações acerca do contrato de prestação de serviços empresarial à luz do novo código civil. São Paulo, 2011. LLM Direito dos Contratos. Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa. A presente monografia tem a finalidade de analisar o contrato de prestação de serviços sob enfoque empresarial. Para isso, faz-se o estudo do contrato, a evolução histórica, a classificação, a alegada crise, e os princípios contratuais, bem como, explanada a ideia das cláusulas gerais. Para que fosse possível a análise foi estudado o contrato de prestação de serviços sob a ótica do Código Civil, seu histórico e seus principais aspectos. Após este estudo preliminar, foram analisados os princípios contratuais (tradicionais e os modernos). Ao final, enfatizamos o estudo de como seriam aplicados os princípios contratuais sociais no contrato de prestação de serviços empresariais, de acordo com a Jurisprudência. Palavras-chave: Contrato – Prestação Serviços – Empresarial – Código Civil – Princípios contratuais – Sociais – Jurisprudência. 8 ABSTRACT NIWA, Graciana Mautari. Anotações acerca do contrato de prestação de serviços empresarial à luz do novo código civil. São Paulo, 2011. LLM Direito dos Contratos. Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa. The present monograph has the purpose to analyze the corporate service agreement. For this, studies were made on contract, historical evolution, classification, his alleged crisis, contractual principles, as well as it has explained the idea of the General clauses. So that such analysis was made possible it was studied service agreement from the perspective of the Civil Code, its history and its main aspects. After this preliminary study, we analyzed the contractual principles (traditional and modern). At the end, we emphasize the study of how the principles would apply in corporate service agreement, in compliance with the case law. Key- words: Contract – Service – Corporate – Civil Code - Contractual Principles – Social – Case law. 9 ABREVIATURAS E SIGLAS USADAS abr.abril abr/jun abril/junho ago. agosto art. artigo arts. artigos BA Bahia CC. Código Civil cit. citado coord. Coordenação DF Distrito Federal DJ Diário de Justiça DJE Diário de Justiça Eletrônico ed. edição EDcl. Embargos de Declaração ES Espírito Santo jan. janeiro jan/mar janeiro/março j. julgado jun/fev junho/fevereiro mar. março MG Minas Gerais nov.novembro n° número 10 n°s números op.cit. obra citada out. outubro out/dez outubro/dezembro p. página PR Paraná REsp Recurso Especial r. respeitável RT Revista dos Tribunais RJ Rio de Janeiro set/dez setembro/dezembro SP São Paulo STJ Superior Tribunal de Justiça trad. Tradução vol. volume 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................... 13 CAPÍTULO 1 DO CONTRATO EM GERAL 1.1 Evolução Histórica do Contrato............................................................... 15 1.2 Conceito de contrato............................................................................... 20 1.3 Panorama resumido da classificação dos Contratos: destaque para os contratos típicos e atípicos...................................................................... 22 1.4 Dos Princípios e dos Princípios Contratuais.......................................... 26 1.5 Das cláusulas gerais, do código civil de 2002 e dos riscos de sua aplicação abusiva pelos operadores do direito ............................................ 28 1.6 A crise do contrato.................................................................................. 33 CAPÍTULO 2 DO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À LUZ DO CÓDIGO CIVIL 2.1 Breve antecedente histórico da concepção do Contrato de Prestação de Serviços adotado pelo Código Civil de 2002........................................... 2.2 Conceito e caracteres............................................................................ 2.3 Dos principais aspectos do contrato de prestação de serviços............ 2.3.1 A esfera de aplicação das normas do Código Civil de 2002.............. 2.3.2 Do objeto e da Remuneração.............................................................. 2.3.3 Do tempo de duração.......................................................................... 35 36 37 38 40 41 2.3.4 Da distinção existente do contrato de prestação de serviços com o contrato de empreitada e com o contrato de trabalho................................. 43 2.3.5 Da relação de alguns dispositivos do Código Civil com o princípio da função social e da boa-fé objetiva........................................................... 45 CAPÍTULO 3 DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS E O CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EMPRESARIAL 3.1 Introdução preliminar e classificação dos princípios contratuais............ 51 3.1.1 A não exclusão dos princípios contratuais tradicionais: momento de hipercomplexidade........................................................................................ 51 3.1.2 Do Princípio da Autonomia da Vontade e do Princípio da Autonomia Privada e as suas distinções........................................................................ 52 12 3.1.3 Do princípio da força obrigatória dos contratos (Pacta Sunt Servanda) ou Do princípio da força vinculante das convenções................ 55 3.1.4 Do princípio da relatividade dos efeitos contratuais............................ 58 3.1.5 Do princípio do consensualismo.......................................................... 60 3.2 Do princípio da boa-fé objetiva............................................................... 61 3.2.1 O surgimento no ordenamento jurídico brasileiro do princípio da boa-fé objetiva e o fundamento do princípio................................................ 61 3.2.2 Do conceito de boa-fé objetiva............................................................ 63 3.2.3 Distinção entre Boa-fé Objetiva e Boa-Fé Subjetiva........................... 67 3.2.4 As três funções da Boa-Fé Objetiva.................................................... 69 3.2.5 Efeitos da violação ao princípio da boa-fé objetiva............................. 81 3.3 Do princípio da Função Social................................................................ 82 3.3.1 Da noção preliminar e do fundamento constitucional do princípio da função social do contrato.............................................................................. 82 3.3.2 Do princípio da função social e o seu conteúdo.................................. 85 3.3.3 Artigo 421 CC: natureza da Norma de Ordem Pública....................... 86 3.3.4 Da função social e os aspectos internos e externos........................... 87 3.3.5 Alguns casos de aplicação da função social....................................... 90 3.4 Do princípio da justiça contratual............................................................ 92 3.4.1 Aspectos objetivos e subjetivos do princípio da justiça contratual...................................................................................................... 95 3.4.2 Da lesão............................................................................................... 96 3.5 Da jurisprudência específica no contrato de prestação de serviços empresarial e os princípios contratuais sociais............................................ 99 CAPÍTULO 4 DA CONCLUSÃO 4.1 Da conclusão Genérica.......................................................................... 4.2 Da conclusão específica......................................................................... Referências................................................................................................... 124 126 130 13 INTRODUÇÃO Durante a minha prática profissional notei uma maior demanda em relação aos contratos de prestação de serviços sob a ótica empresarial. E aliada a esta necessidade, durante o curso de LLM–Direito dos Contratos tive uma aula sobre princípios contratuais que me fez começar a indagar muitas questões, notadamente, na esfera empresarial. Imaginava como poderiam ser resolvidas na prática as demandas dos casos de contrato de prestação de serviços empresarial no que se refere a estes princípios da boa-fé objetiva, função social e da justiça contratual? Ainda notei durante as aulas que realmente o tema era bastante teórico e árido, e pouco a pouco, foi surgindo uma maior curiosidade de estudar o contrato de prestação de serviços empresarial mais com um toque nos princípios contratuais. E mais como se não bastasse isso, de fato, atualmente é crescente a utilização dos contratos de prestação de serviços no âmbito corporativo. Com este aumento do uso deste tipo de contratação, sobre outro aspecto, também proporcionalmente se incrementaram os problemas nesta seara. E apesar disto, há pouca doutrina especializada nesse assunto. Sobre outro aspecto, com a promulgação do Código Civil de 2002 foi trazido à tona uma maior discussão sobre os princípios, tais como da função social do contrato, da boa-fé objetiva, e da justiça contratual. Estes princípios mencionados buscaram melhor nortear os conflitos surgidos nos contratos, dentre eles também o contrato de prestação de serviços sob enfoque empresarial. O intuito do presente estudo, é, enfim, tentar delinear os aspectos principais do contrato de prestação sob enfoque empresarial, não podendo se olvidar, logicamente, os princípios contratuais que norteiam qualquer avença. Para tanto, foram utilizados na confecção da monografia os métodos comparativos e do caso. E ainda para se alcançar o almejado, foi esboçada uma trajetória com técnicas de coleta de documentos indiretos. Ou seja, foi feita pesquisa documental de sentenças, acórdãos e pareceres que serão encontrados nas bibliotecas. Como também foi feita uma pesquisa bibliográfica em livros, artigos e revistas periódicas. 14 Enfatiza-se, buscando entender melhor o contrato estudado, foi delineada no Capítulo 1, genericamente, a evolução histórica de qualquer contrato. Como também, no primeiro capítulo discorremos sobre o conceito, classificação, dos princípios contratuais, da alegada crise dos contratos e acerca da idéia das cláusulas gerais. No Capítulo 2, tratamos especificamente do contrato de prestação de serviços, seu histórico, suas principais características, e seus aspectos principais. Finalizamos o capítulo fazendo uma interface entre alguns dispositivos legais do Código Civil do contrato de prestação de serviços com os princípios da função social e da boa-fé objetiva. No Capítulo 3, explanamos de forma genérica sobre os princípios contratuais tradicionais e os modernos. Ao final do capítulo, pincelamos como estes princípios sociais são aplicados pelos juízes. O presente trabalho encerra em considerações finais (Capítulo 4), nas quais serão apresentadas de forma genérica e de forma específica. A consideração genérica explicará de forma resumida todo o objeto do estudo, já a específica tecerá uma análise sob uma ótica mais acurada do problema. Convém enfatizar, que a dificuldade do tema, deu-se em razão da pouca doutrina especializada sobre o contrato estudado. Depois, também houve dificuldade em relação aos poucos julgados no âmbito do contrato de prestação de serviços empresarial, já que hoje a maior demanda do Judiciário está nos litígios do âmbito do consumidor, conforme inclusive pudemos notar durante a pesquisa. 15 CAPÍTULO 1 DO CONTRATO EM GERAL 1.1 Evolução Histórica do Contrato Num primeiro momento, é importante traçarmos um esboço histórico do contrato. Em verdade, consoante demonstrado nos próximos parágrafos, o contrato, seu conceito e seus princípios ao longo do tempo foram sendo moldados de acordo com as vicissitudes históricas. O conceito de contrato foi sendo formulado mediante o tempo desde o direito romano. Nessa época, o contrato era visto como instrumento de pacificação social visando à superação da apropriação violenta da res, já que esta era uma fator que frequentemente desencadeava conflitos sociais. Logicamente, que ainda não existia um instituto jurídico que abrangesse as diversas operações econômicas. No entanto, já existia entre eles uma ideia de convenção, que era o gênero. As espécies do gênero convenção eram os pactos e os contratos. Também o contrato era definido como a situação na qual nascia o vínculo jurídico em que consiste a obrigação. Para serem considerados como contratos, os acordos precisavam de certas formalidades, tais como nexum, sponsio e estipulatio. Outro ponto importante a ser anotado sobre o contrato, este era provido de actio para a sua proteção como expressão do vínculo obrigacional. Essa característica distinguia-se dos pactos, os quais geravam obrigações naturais, e não eram protegidos por ações. Nessa hipótese (pactos), só poderiam ser arguidas as exceções na defesa do demandado. Para o direito romano, os pactos são acordos de vontade que não geram efeito jurídico imediato, de modo que não produziam nem proporcionavam ação para exigir o cumprimento do convencionado1. Tal conceito evoluiu, e gradativamente mitigou-se o rigor formal para se aproximar a sua expressão clássica, qual seja a plena manifestação da vontade que vincula os indivíduos, gerando direitos e deveres. Tudo isso ocorreu no início da Idade Moderna. Nessa evolução, é de suma relevância a influência do direito 1 DIEZ-PICAZO, Luis. Fundamentos del derecho civil patrimonial: introducction y teoria del contrato. 5ª ed. Madrid: Civitas,1996. p.119; LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria Geral dos contratos no novo código civil. São Paulo: Método, 2002, p.27-28. 16 canônico, o qual confere valor fundamental ao consenso, e estipulava a ideia de que a vontade é fonte de obrigação, fundado em considerações de ordem ética e moral, impondo a obrigação de observar o cumprimento das convenções realizadas. 2 Durante a Idade Média até o século XIX, o Estado impôs limitações no plano contratual. A partir do século XIX, o liberalismo individualista firmou-se e com ele se defendia a interferência mínima do Estado, ampliando-se, com essa postura estatal, a liberdade contratual e ao mesmo tempo fazendo do contrato um instrumento jurídico que possibilitou a circulação de riquezas, essencial na economia capitalista.3 O surgimento do Estado Liberal está intrinsecamente ligado à ascensão da burguesia (nova classe detentora do poder econômico e político com a queda da aristocracia feudal). Visando a transferência de titularidade das propriedades pertencentes ao clero e à nobreza para a burguesia emergente, fez-se imprescindível o uso de um instrumento técnico-jurídico que regulasse de maneira segura e adequada essas transações. O contrato, concebido com base na ampla liberdade de contratar, foi a peça-chave nesse processo. Nesse sentido, importante anotar Enzo Roppo relatando sobre esta passagem histórica na França em sua obra “O contrato”4: “(...) Símbolo e simultaneamente manifestação concreta da vontade revolucionária de realizar um tal objectivo, foi a deliberação, tomada pela Assembleia Nacional na histórica “noite de 4 de agosto” (1789), de suprimir todos os privilégios e os direitos feudais que impendiam sobre a terra; a sua coroação foi a definição legislativa do direito de propriedade, que o código de 1804 solenemente esculpiu como “o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta” (art.544.) (e, com esta, o princípio da tipicidade – ou “numerus clausus” dos direitos reais menores susceptíveis de comprimir a sua plenitude). 2 STIGLITZ, Rúben S. (Org). Contratos: teoria general. vol.2. Buenos Aires: Depalma,1994, p.24. WALD, Arnoldo. Obrigações e Contratos, vol.2, 14ª ed.rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.184. 4 ROPPO, ENZO. O contrato. Tradução: Ana Coimbra e M. Januário C.Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, p.45. 3 17 Mas isto não era suficiente: urgia ainda uma deslocação significativa da disponibilidade dos recursos econômicos (portanto da propriedade imobiliária) das classes – nobreza e clero – que eram tradicionalmente os seus titulares, e cujo papel político e econômico aparecia agora em declínio, para a burguesia, a classe vitoriosa, que era chamada pela história a fundar a sua hegemonia sobre aquela riqueza e sobre a sua capacidade de multiplicá-la. E igualmente a realização de tal objectivo teve lugar nos anos imediatamente seguintes à Revolução: com as vendas abundantes de “bens nacionais”, antes pertencentes ao clero e adquiridos, na sua maior parte, por representantes do “terceiro estado”, começou, de facto, aquele processo de transferência da riqueza das classes vencidas para a nova classe nascente, que, depois de várias formas, se desenvolveria e aperfeiçoaria, até reunir nas mãos da burguesia – e confiar às suas capacidades e iniciativas empresariais – a grande massa dos recursos produtivos. Mas para que este processo de transferência da riqueza pudesse efectivar-se da forma melhor e mais segura e de molde a não provocar desperdícios, atritos e lesões demasiado graves, era necessário um instrumento técnico-jurídico adequado. Este foi justamente o contrato, e a disciplina contratual peculiar codificada pelo legislador de 1804: liberdade de contratar, baseada no consenso dos contraentes – poderia ser o slogan que o resume.(...)” (g.n) Convém ressaltar que nessa época o Estado deixou de ter um poder absoluto para passar a ter um poder limitado ao mínimo necessário para o desenvolvimento das relações. Havia uma restrição do poder estatal como reflexo no plano jurídico do desenvolvimento do liberalismo econômico. Depois da Revolução Francesa, no âmbito contratual, é o império da autonomia privada e do pacta sunt servanda. Sob a influência do liberalismo, o contrato acaba manifestando o fim do regime particularista vigente até então. As aspirações da burguesia mudam a ótica aristocrática do direito, e a liberdade passa 18 a ser o elemento essencial.5 Nesse panorama jurídico, a teoria da autonomia da vontade era a base do direito contratual.6 Para essa teoria não existia uma preocupação em se atingir a efetiva justiça nos contratos firmados; o que era primordial nessas relações era a observância da ampla liberdade das partes. Obedecia-se ao pensamento qui dit contractuel dit juste, retrato da igualdade formal instituído pelo Estado liberal, se as partes contrataram livremente e eram iguais, ali existia justiça e o contrato deveria ser cumprido.7 Dessa teoria resultam outros dois princípios fundamentais na concepção clássica de contrato, a liberdade contratual e a obrigatoriedade do contrato, já que apenas existe vinculação nas obrigações assumidas de forma voluntária.8 Nesse passo, importante notar que os códigos que nasceram a partir do século XIX não mudaram a concepção clássica de contrato. Vide, por exemplo, o Código Civil Francês de 1804, o Código Civil Italiano de 1865, o Código Civil Português de 1867, o Código Civil Espanhol de 1889, o Código Civil Alemão de 1896 e o próprio Código Civil Brasileiro de 1916. Dentro desse pensamento acima descrito (princípio da igualdade formal), triunfo da Revolução Francesa, fundamentou-se a omissão do Estado no momento da formação do contrato.9 Todavia a presumida igualdade formal das partes apresentou-se deficiente para o equilíbrio contratual, ocasionando descontentamento em grande parte da população. 5 ROPPO, ENZO. O contrato. Tradução: Ana Coimbra e M. Januário C.Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, p.45. 6 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, 18ª ed., 2. Tiragem, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.83. 7 Neste sistema, fundado na mais ampla liberdade de contratar, não havia lugar para a questão da intrínseca igualdade, da justiça substancial das operações económicas de vez em quando realizadas sob a forma contratual. Considerava-se e afirmava-se, de facto, que a justiça da relação era automaticamente assegurada pelo facto de o conteúdo deste corresponder à vontade livre dos contraentes, que, espontânea e conscientemente, o determinavam em conformidade com os seus interesses, e, sobretudo, o determinavam num plano de recíproca igualdade jurídica (dado que as revoluções burguesas, e as sociedades liberais nascidas destas, tinham abolido os privilégios e as discriminações legais que caracterizavam os ordenamentos em muitos aspectos semifeudais do “antigo regime” afirmando a paridade de todos os cidadãos perante a lei): justamente nesta igualdade de posições jurídico-formais entre os contraentes consistia a garantia de que as trocas, não viciadas na origem pela presença de disparidades nos poderes, nas prerrogativas, nas capacidades legais atribuídas a cada um deles, respeitavam plenamente os cânones da justiça comutativa. Liberdade de contratar e igualdade formal das partes eram portanto os pilares – que se completavam reciprocamente – sobre os quais se formavam a asserção peremptória, segundo a qual dizer “contratual” equivale a dizer “justo” (“qui dit contractuel dit juste”).(g.n) (ROPPO, Enzo, Op.cit., p.35) 8 SILVA, Agathe E. Schimdt da. Cláusula geral de boa-fé nos contratos de consumo. Revista de Direito do Consumidor, n.17, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan/mar. 1996, p.147. 9 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria Geral dos contratos no novo código civil. São Paulo: Método, 2002, p.38. 19 Nesse instante relatado acima, houve a transição do Estado Liberal para o Estado Social, cujo surgimento deu-se em razão da premente necessidade de ele não ser mais mero espectador para passar a ser mais preocupado com as demandas sociais. Foi no século XX que este Estado Social nasceu com as particularidades de um poder limitado e com a função de assegurar os direitos individuais, políticos, sociais e econômicos. O Welfare State tem o intuito de proteger os mais fracos, e se revela pela intervenção legislativa, administrativa e judicial nas atividades privadas.10 No âmbito do direito dos contratos, esse Estado Social começou também a intervir para mitigar as diferenças nas contratações. Observa-se o dirigismo contratual caracterizado pela “redução da liberdade de contratar em benefício da ordem pública”, tanto que Josserand chega mesmo a considerá-lo a “publicitação do contrato”.11 Isso significa dizer que o Estado Social não só intervém, como também dirige, regulamenta e fiscaliza.12 Foi nesse momento que o Estado Social editou diversas normas protetoras de categorias antes prejudicadas pela utopia da igualdade formal, para com essa conduta tentar estabelecer maior equilíbrio nas relações, bem como estimulando que as partes mais hipossuficientes se organizassem em grupos visando encarar com maior igualdade as partes mais fortes economicamente ou socialmente. Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com a denominada sociedade de consumo, fica ainda mais nítido o insucesso do liberalismo econômico como forma de regular os contratos. A partir desse instante, buscou-se harmonizar o liberalismo com o dirigismo contratual. Os anseios por maiores recursos, a necessidade de tutelar os mais fracos nas relações jurídicas e de impedir o surgimento de interesses privados que colidissem com os interesses públicos foram elementos causadores que provocaram a intervenção cada vez mais intensa do Estado na esfera da economia, e mais especialmente nas relações contratuais.13 10 LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípios sociais dos contratos no código de defesa do consumidor e no novo código civil. Revista de Direito do Consumidor n.42, São Paulo: Revista dos Tribunais, abr/jun. 2002, p.187. 11 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil cit. vol.3, 11ª ed. rev.atual., Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.13. 12 LOBO, Paulo Luiz Netto. Do contrato no estado social: crise e transformações. Maceió: Edufal, 1983, p.51. 13 WALD, Arnoldo. Obrigações e Contratos, vol.2, 14. ed.. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.190. 20 Atualmente, após as mudanças sociais e econômicas estabelecidas pela Revolução Industrial e as duas guerras mundiais, exigiram do Estado uma conduta nova e a revisão do modelo clássico de contrato. Os particulares exigem a segurança do Estado que agora era obrigado a assegurar a igualdade com a proteção do mais fraco e com isto valorizar o interesse coletivo. Nesse pano de fundo de transformações históricas, a função social do contrato começa a ganhar amplitude em conjunto com o elemento ético boa-fé, sendo este fator essencial para o equilíbrio na expressão da vontade humana. O contrato progride de rígido, imutável de ontem para flexível e dinâmico, que prefere ao interesse comum e a função social ao invés do benefício particular das partes envolvidas. Dessa forma, era indispensável uma reformulação dogmática da ideia clássica de contrato, passando o absoluto para o relativo, sem abdicar da segurança jurídica necessária ao desenvolvimento da economia, tendo em vista que o direito deve almejar o equilíbrio entre a segurança e a justiça contratual.14 1.2 Do conceito de contrato Num segundo momento, após uma breve noção histórica do contrato, passaremos ao conceito de contrato. Destaque-se, o Código Civil Brasileiro de 2002 e o Código Civil Brasileiro de 1916 preferiram não conceituar o instituto do contrato por entenderem que esta função caberia à doutrina. Note-se, interessantemente que o Código Civil de 2002 definiu diversas figuras contratuais, todavia não expressou o significado de contrato. Após essas preliminares constatações, convém enfatizar que almejando preencher a lacuna da lei, a doutrina procura esclarecer o conceito de contrato. Senão vejamos. Aliás, para entender o conceito de contrato, mister se faz compreender primeiro a definição de negócio jurídico. Antonio Junqueira de Azevedo assevera que o: 14 WALD, Arnoldo. Aspectos controvertidos no novo código civil. Escritos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. In, A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 67 e 70. 21 “negócio jurídico é todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele incide.” (g.n)15 Já conceituando o contrato, Orlando Gomes entende que este é o “negócio jurídico bilateral ou plurilateral, que sujeita as partes à observância de conduta idônea à satisfação dos interesses que a regularam.”16 (g.n) Marco Aurélio Bezerra de Melo preleciona a noção de contrato e também enfatiza a visão dele com base nos princípios sociais dele, no seguinte sentido: “o contrato é negócio jurídico bilateral pelo qual as pessoas, naturais ou jurídicas, se obrigam com o objetivo de obterem do direito algum bem da vida ou a defenderem determinado interesse, devendo observar a função social e econômica do mesmo, preservando, em todas as fases do pacto, a probidade e a boa-fé.” 17 (g.n) Depois dessa exposição breve, apenas para situar sobre a definição de contrato, podemos compreendê-lo como acordo de vontades das partes visando criar, modificar e extinguir uma relação jurídica patrimonial. E mais, é um negócio jurídico bilateral, e em razão dessa sua natureza naturalmente se aplicam a Parte Geral dos Negócios Jurídicos estipulados nos artigos 104 até 184 do Código Civil Brasileiro de 200218, adicionados a Parte especial dos contratos fixada nos artigos 421 até 480 do Código Civil Brasileiro de 2002. Especificamente no que tange ao contrato estudado, aplicam-se os artigos 15 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio Jurídico – Existência, Validade e Eficácia, apud MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos –Tomo I. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.2. 16 GOMES, Orlando. Contratos, 17ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 1996, p.10. 17 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts. 421 a 652), III. vol. ~Contratos – Tomo I. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.3. 18 ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo código civil. Revista Forense, vol. n. 371, Ano 100, Rio de Janeiro: Forense, jan/fev.2004, p.54-56; NERY JUNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil. Apontamentos Gerais. In: FRANCIULLI NETTO, Domingos; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva (Coord.) O Novo Código Civil. Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. 2ª ed., São Paulo: Editora LTr, 2003, p.434. 22 acima mencionados acrescentando os artigos 593 até 609 do Código Civil Brasileiro de 2002. Sobre outro aspecto, indubitável lembrar que os contratos são instrumentos de circulação de riquezas e, nesse ponto, importante anotar a lição de Enzo Roppo ao entender que o contrato é a veste jurídica das operações econômicas.19 No mesmo sentido, a definição de Humberto Theodoro Júnior ao conceituar o contrato como “um instrumento de jurisdicionalização dos comportamentos e das relações humanas no campo das atividades econômicas.”20 Logicamente que consoante já demonstrado no histórico (1.1) desta monografia, não podemos olvidar: o contrato não pode mais ser visto como instrumento regulatório dos interesses dos contratantes, mas deve ser analisado como instrumento de utilidade social. Nesse ponto, conforme entende Miguel Reale, o contrato surge de uma correlação fundamental entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade: “O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida.”21 1.3 Panorama resumido da classificação dos Contratos: destaque para os contratos típicos e atípicos Neste tópico não ousamos em fazer uma classificação exaustiva, pois isto fugiria do escopo do trabalho. Preferimos adotar uma classificação bem mais sucinta com ênfase para os contratos típicos e atípicos, e outras classificações que repercutem na ótica do contrato de prestação de serviços. (vide Capítulo 2, item 2.2 deste trabalho). 19 ROPPO, ENZO. O contrato. Tradução: Ana Coimbra e M. Januário C.Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, p.9-10. 20 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Contrato e seus Princípios. 3ª ed., Rio de Janeiro: Aide, 2001, p.61. 21 REALE, Miguel. O projeto do Código Civil – Situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1984, p.10. 23 Os contratos podem ser classificados em diversas categorias de acordo com a ótica do operador de direito. No que se refere a sua designação22, os contratos podem ser típicos ou atípicos. A “tipicidade significa presença, e atipicidade ausência de tratamento legislativo específico.”23 E mais, Álvaro Villaça Azevedo ensina a diferença entre ambos os institutos: “Os contratos típicos recebem do ordenamento jurídico uma regulamentação particular, e apresentam-se com um nome, ao passo que os atípicos, embora possam ter um nome, carecem de disciplina particular, não podendo a regulamentação dos interesses dos contratantes contrariar a lei, a ordem pública, os bons costumes e os princípios gerais de direito.”24 Daniel M. Boulos sobre a definição de contratos atípicos e típicos preleciona: “São considerados contratos típicos aqueles que possuem regulamentação específica na lei e contratos atípicos aqueles que não encontram na lei um modelo de regulamentação próprio e exclusivo. Convém esclarecer que, para ser considerado típico, não basta que o contrato seja de qualquer forma regulamentado pela lei. Mister se faz que haja, efetivamente, na especificamente lei, um destinado modelo àquele de tipo regulamentação contratual que proporcione as partes ao menos, uma disciplina básica do contrato.” (g.n)25 Como exemplos de contratos atípicos citamos os elucidados pelo doutrinador Marco Aurélio Bezerra de Melo: 22 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Teoria Geral das obrigações contratuais e extracontratuais, vol.3, 13ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p.85. 23 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos. Curso de Direito Civil. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p.137. 24 Ibid. p.138. 25 BOULOS, Daniel M. A importância e a disciplina dos contratos atípicos. São Paulo: News Ibmec Direito, agosto, edição 23, n. 3. 24 “À guisa de exemplificação de contratos atípicos, imaginemos uma prestação de serviços gratuita, uma permuta de obrigação de fazer pela entrega de determinado objeto, contrato bancário de abertura de conta corrente com disponibilização de um limite de crédito, contrato bancário de depósito de uma jóia em que se tem um misto de depósito e locação, contrato de cartão de crédito em que se tem uma prestação de serviços cumulada com o financiamento, uma doação onerosa em que o encargo supera a vantagem criada pela liberalidade, o contrato de estacionamento de veículos, o engineering, que é um misto de cessão do know-how com empreitada e venda da indústria que se elaborou para o outro contratante.” 26 (sic) (g.n) O artigo 425 do Código Civil de 2002, aliás, autoriza os particulares a criarem figuras contratuais, desde que estas não violem as normas do código civil, a ordem pública e aos bons costumes. E o regime jurídico desses contratos atípicos seriam os dispositivos constantes do Código Civil que disciplinam os negócios jurídicos e os contratos em geral (artigos 104 ao 184 e 421 e 480 do Código Civil)27 No que se refere à obrigação assumida pelos contratantes28, os contratos podem ser unilaterais ou bilaterais. Os unilaterais são os contratos que criam obrigações somente para cada uma das partes, tal como, por exemplo, a doação (art.538 a 564 CC), e o mútuo (art.586 a 592 CC).29 Os bilaterais são aqueles contratos que geram obrigações para ambas as partes, em um autêntico vínculo de reciprocidade, vide, por exemplo, o contrato de prestação de serviços (art.593 a 609 CC).30 No que se refere ainda à obrigação assumida pelos contratantes31, os contratos podem ser onerosos ou gratuitos. 26 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos – Tomo I. 2ª ed., Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2004, p.32. 27 BOULOS, Daniel M. A importância e a disciplina dos contratos atípicos. São Paulo: News Ibmec Direito, agosto, edição 23, n. 3. 28 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos – Tomo I. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.12. 29 Ibid., p.12. 30 Ibid, p.12. 31 Ibid, p.13. 25 Os onerosos segundo Sílvio de Salvo Venosa são: “aqueles em que ambos têm direitos e deveres, vantagens e obrigações; a carga ou responsabilidade contratual está repartida entre eles, embora nem sempre em igual nível. As partes concedem-se reciprocamente direitos e reciprocamente contraem obrigações. A onerosidade identifica-se primordialmente pela contraprestação que segue à prestação, pela vantagem que decorre de um sacrifício do contratante. Pode ocorrer que o dever de um dos contratantes esteja em âmbito maior que o do outro. Como contratos onerosos temos a permuta, compra e venda, empreitada, etc.”32 Já os gratuitos na visão do referido mestre abaixo transcrita: “Nos contratos gratuitos, toda a carga da responsabilidade contratual fica por conta de um dos contratantes; o outro só pode auferir benefícios do negócio. Daí a denominação também consagrada de contratos benéficos. Inserem-se nessa categoria a doação sem encargo, o comodato, o mútuo sem pagamento de juros, o depósito e o mandato gratuitos.” 33 No que se refere ainda à obrigação assumida pelos contraentes 34, os contratos podem ser comutativos ou aleatórios. Os comutativos segundo Marco Aurélio Bezerra de Melo: “são pactos onerosos em que as partes se obrigam a realizar prestações e contraprestações adredemente definidas e razoavelmente equivalentes.”35 32 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações.Teoria Geral dos Contratos, vol.2.,8ª ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 389. 33 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações.Teoria Geral dos Contratos, vol.2., 8ª ed., São Paulo: Atlas, 2008, p.387. 34 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos – Tomo I. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.14. 35 Ibid., p.14. 26 Por sua vez, o mesmo doutrinador conceitua contrato aleatório na seguinte forma transcrita: “(...) os contrato aleatórios são igualmente onerosos, mas os contratantes não sabem de antemão as vantagens e desvantagens do negócio jurídico que está sendo entabulado. O regramento dos contratos aleatórios está positivado no art.458 do Código Civil.”36 No que se refere à forma37, os contratos podem ser consensuais e solenes ou formais. Os consensuais são aqueles que se formam com o simples acordo de vontades dos contratantes.38 Já os formais são aqueles em que a observância da forma é da substância do negócio jurídico.39 Por fim, no que se refere à pessoa do contratante40, os contratos podem ser pessoais (intuito personae) e contratos impessoais. Os primeiros são aqueles em que a pessoa do contraente é considerada pelo outro como elemento determinante de sua conclusão; já os segundos são aqueles em que a pessoa do contratante é juridicamente indiferente.41 1.4. Dos Princípios e dos Princípios Contratuais Neste tópico, convém lembrar preliminarmente que não há um consenso sobre uma definição unitária de princípios, e não iremos discutir a fundo esta questão para não perdermos o foco do tema. Apesar disso, podemos afirmar que as normas jurídicas mais importantes de um ordenamento jurídico são os princípios. Princípios podem ser definidos de forma bastante simples como regras que norteiam o Direito. Pode-se dizer que são a “tábua axiológica” do Direito. Para 36 Ibid., p.14. Ibid., p.15-16. 38 Ibid., p.16. 39 Ibid., p.15. 40 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Teoria Geral das obrigações contratuais e extracontratuais, vol.3, 13ª edição, São Paulo: Saraiva, 1998, p.89. 41 Ibid., p.89. 37 27 melhor entendermos do tema, explicitaremos a visão doutrinária sobre os princípios jurídicos. Conforme Judith Martins Costa42a acepção de princípio: “pode indicar, também, determinados guias ou diretrizes dirigidas ao legislador, em geral com caráter exortatório ou programático, como determinadas normas constitucionais das quais entre nós é exemplo paradigmático a do art.206, I, da Constituição Federal, ou ainda, referir-se a máximas que provém da tradição jurídica, como o princípio que veda o enriquecimento injustificado em matéria obrigacional.” Já consoante o critério do fundamento de validade de WOLLFBACHOF e FORSTHOFF, os princípios seriam diferentes das regras por serem dedutíveis objetivamente do princípio do Estado de Direito, da ideia de Direito ou do princípio da justiça. Eles funcionariam como fundamentos jurídicos para as decisões. Ainda que com caráter normativo, não possuiriam a qualidade de normas de comportamento, dada a sua falta de determinação.43 Na mesma toada dessa doutrina, Larenz define os princípios como normas de grande relevância para o ordenamento jurídico, na medida em que estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do Direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente normas de comportamento.44 No sistema pátrio há autorização expressa para que o juiz ao dirimir a controvérsia use dos princípios gerais de direito estampado no artigo 4° da Lei de Introdução ao Código Civil. Contudo, segundo consagrado por Paulo Lobo, resta cristalino que: “A utilização de princípios e cláusulas gerais sempre foi vista com muita reserva entre os juristas, ante a sua inevitável indeterminação de conteúdo e, no que concerne ao hegemônico individualismo jurídico do Estado Liberal, o receio 42 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais,1999, p.317. 43 ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, Bahia, Ano I, vol. I, n. 4, julho de 2001. 44 Idem. 28 da intervenção do Estado nas atividades privadas, por meio do juiz. Todavia, para a sociedade em mudanças e para a realização da justiça social, constituem eles ferramentas hermenêuticas indispensáveis e imprescindíveis.”45 (g.n) Em razão do importante aspecto (ferramenta hermenêutica e de interpretação) acima mostrado, a doutrina tem reconhecido a importância dos princípios como forma de melhor aplicar e compreender o direito. Feitas estas considerações, lembramos que abordaremos no Capítulo 3 os princípios contratuais. 1.5 Das cláusulas gerais, do código civil de 2002 e dos riscos de sua aplicação abusiva pelos operadores do direito Para adentrarmos no mérito dos princípios estipulados no código civil de 2002, é importante num primeiro lanço entendermos o conceito de cláusulas gerais. Na definição de Teresa Arruda Alvim Wambier, cláusulas gerais são: “normas em que vêm explicitados princípios jurídicos e que têm por função dar ao Código Civil aptidão para acolher (=passar abranger) hipóteses que a experiência social ininterruptamente cria e que demandam disciplina. Assim, estas cláusulas, podese dizer, têm um potencial de abrangência infinitamente maior do que as regras jurídicas de estrutura tradicional, mais minuciosas e que contém em si mesmas descrita sua hipótese de incidência. (...) As cláusulas gerais utilizam em sua formulação linguagem intencionalmente aberta, fluida ou vaga, e esta técnica tem diversas funções. Às vezes, a lei se serve de conceitos precisos (por exemplo: um ano) e, por outras vezes, cada vez mais frequentemente, de conceitos que linguisticamente têm sido chamados de 45 LÔBO NETTO, Paulo Luiz. Princípios Sociais dos Contratos no CDC e no Novo Código Civil. Revista do Direito do Consumidor n.42, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.36. 29 conceitos vagos ou indeterminados (por exemplo: união estável, bom pai de família, interesse público etc.) Esses conceitos aparecem, aliás, muito comumente na formulação de princípios jurídicos. São expressões linguísticas (signos) cujo referencial semântico não é tão nítido, carece de contornos claros.(...). E princípios jurídicos aparecem nas chamadas cláusulas gerais.”46 Segundo já alertado acima, esta definição é relevante. O Código Civil de 2002 adotou o modelo de cláusulas gerais como técnica legislativa que foi muito importante, pois permitiu uma abertura e mobilidade no sistema jurídico. Essa última, sob a ótica externa, significou uma abertura no sistema jurídico para inserção de elementos extrajurídicos, viabilizando a “adequação valorativa”.47 Porém, ao lado dessa função da cláusula geral de “oxigenar” o sistema, prolongando a sua vida útil, criou-se o problema da “dose razoável de insegurança”. Indubitável que antes que haja um “amadurecimento” da jurisprudência acerca dos conceitos vagos e indeterminados constantes da formulação dos princípios assumidos pela cláusula geral, haverá o referido problema.48 Sobre o tema e focalizando-se mais no perigo do uso abusivo das cláusulas gerais, importante descrevermos a lição de Humberto Theodoro Júnior: “O grande risco, nesse momento de aplicação do conceito genérico da lei, está na visão sectária do operador, que, por má-formação técnica ou por preceito ideológico, escolhe, dentro do arsenal da ordem constitucional apenas um de seus múltiplos e interdependentes princípios, ou seja, aquele que lhe é mais simpático às convicções pessoais. Com isto, o valor eleito se torna muito superior aos demais formadores da principiologia constitucional. Toda a ordem infraconstitucional, 46 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais” do Código Civil de 2002 – A Função Social do Contrato. Revista dos Tribunais n.831, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan. de 2005, p.60-79. 47 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais,1999, p.341. 48 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais” do Código Civil de 2002 – A Função Social do Contrato. Revista dos Tribunais n.831, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan. de 2005, p.60-79. 30 graças à superideologização do operador, passa a se alimentar apenas e tão-somente de forma sectária, unilateral e pessoal, muito embora aparentando respaldo em princípio ético prestigiado pela Constituição. (....) (...). E esse risco que não se pode, de maneira alguma, correr, nos tempos atuais, com a aplicação distorcida de cláusulas gerais e normas vagas. Nenhuma cláusula ou norma da espécie pode resumir-se a si própria, nem pode ser interpretada apenas em face do valor que ela mesma traduz. Tudo haverá de ser enfocado a partir do sistema maior e dos valores superiores que formam a ordem constitucional como um todo. Não há lugar para sectarismo e paixões, quando se trata de realizar uma ordem constitucional por inteiro. Urge, por isso, evitar o excesso de ideologia, máxime a ideologia pessoal do juiz ou intérprete.(...). O aplicador pode suprir lacunas do ordenamento jurídico por meio de invocação de princípios éticos, pode aperfeiçoar a regra do legislador, interpretando-a à luz de dados éticos, pode recorrer à equidade quando autorizado pela lei; não pode, entretanto, ignorar o direito positivo, para criar regras judiciais diversas ou contrárias às dispostas pelo legislador. Não cabe, em suma, à Justiça, transformar-se em fonte primária da norma jurídica, colocandose acima do Poder Legislativo.(...). O julgamento segundo cláusulas gerais autorizadas pela lei não é, em hipótese alguma, „uma tarefa arbitrária‟.” (g.n)49 Eros Roberto Grau discordando dessa posição escreveu: “Por mais que isso revolte a doutrina, o fato é que a segurança e a previsibilidade dos contratos passam, necessariamente, pela interpretação que as cortes dão às avenças. Não é a lei, 49 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.153-158. 31 em última instância, que dá segurança e permite o cálculo e a previsibilidade aos agentes econômicos, mas o Poder Judiciário. Os textos [= as leis] nada dizem; eles dizem o que os intérpretes dizem que eles dizem. Por isso apenas uma Jurisprudência firme pode legar aos agentes econômicos a segurança e a previsibilidade de que necessitam.”50 Sob qualquer ângulo acima exposto, entendemos que a introdução de cláusulas gerais no Código Civil Brasileiro de 2002 acabou outorgando uma “responsabilidade social” aos juízes quando de sua interpretação e aplicação ao caso concreto, e caso haja omissão ou má aplicação delas, a sociedade poderá cobrá-los mediante o respaldo dos limites estampados no ordenamento constitucional. Convergindo com este raciocínio, interessante transcrever a lição de Ruy Rosado Aguiar: “Tenho para mim que cláusula geral é a norma que deixa em aberto a descrição da conduta devida. Assim acontece, por exemplo, com o tipo penal aberto do art. 121, par. 3º, do CPenal: causar a morte de alguém por culpa. Sabendo-se que a culpa consiste no descuido, na violação a um dever de cuidado, a norma positivada não descreve que cuidado deveria ser observado na situação concreta.(...). Assim também acontece ao quando a norma determinar contratante comportar-se de acordo com a boa-fé, mas não lhe diz qual o comportamento esperado nas circunstâncias do negócio. Havendo o litígio, fixará o juiz o comportamento que deveria ter sido observado quanto ao prazo, modo, lugar, quantidade, qualidade da prestação, etc. Evidentemente que isso gera insegurança, pois o contratante não sabe o que o juiz entenderá como sendo o comportamento devido; a descrição dessa conduta não está na lei. 50 GRAU, Eros Roberto. Um novo paradigma dos contratos? Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 5, Rio de Janeiro: Padma, jan/mar. 2001, p.73-82. 32 Disso sobressai a responsabilidade do juiz de agir com extremo cuidado ao estabelecer tal norma de dever, que ele usará como parâmetro para resolver o caso. (...). É de natureza social a responsabilidade do juiz que emprega mal os poderes que lhe concede a cláusula geral, ou que não a usa nos casos em que deveria fazê-lo. (...) Não havendo sanção jurídica prevista em lei, aplicável ao juiz que deixa de fazer o devido uso da cláusula geral, estamos diante de um caso de responsabilidade social. Em resumo, a cláusula geral impõe ao julgador o uso de uma técnica judicial especial de julgar, estando o seu exercício limitado pelo ordenamento constitucional; o desempenho arbitrário ou omisso gera a responsabilidade social do juiz.” (g.n)51 Indubitável que essas cláusulas gerais outorgam um imenso poder aos juízes, tal como já afirmou as palavras de Joseph Esser: “como regla general, podemos afirmar: donde existe un principio o cláusula general, la responsabilidad de „dar forma a la regla‟ recae sobre la jurisprudencia.”52 E se esse mencionado poder for mal utilizado, pode até desfigurar o intuito da própria norma, e até acarretar efeitos negativos para o sistema como um todo.53 É um dos muitos desafios que os operadores do direito e a coletividade deverão paulatinamente enfrentar. Sob outro ponto de vista, essas cláusulas gerais poderá auxiliar na aproximação do sistema jurídico da civil law ao da common law, já que com elas serão gerados “catálogos de decisões fazendo com que haja uma verdadeira sistematização do Direito Privado.”54 51 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Revista de Direito Renovar, n. 18, Rio de Janeiro: Renovar, set./dez. 2000, p.11-19. 52 ESSER, Joseph. Principio y norma em la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Trad.esp. de Eduardo V. Fiol. Barcelona: Bosch, 1961, p.344. 53 NERY JUNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil. Apontamentos gerais. In:FRANCIULLI NETTO, Domingos; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva (Coord.) O Novo Código Civil. Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. 2ª ed., São Paulo: Editora LTr, 2003, p.418-464; FONSECA, Rodrigo Garcia da. A função social do contrato e o alcance do artigo 421 do Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.19-20. 54 BOULOS, Daniel Martins. Abuso de Direito no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2006, p.78. 33 1.6. A crise do contrato. A intervenção estatal na liberdade de contratar seja mediante a imposição de normas cogentes quanto pela inserção de princípios gerais que possibilitem a modificação das bases do contrato pelo Estado-Juiz, ou seja, esta flexibilização do contrato trouxe uma preocupação com o declínio dele. Estará o contrato em crise, ou estará morrendo, tal como afirmou provocativamente o autor norte-americano Grant Gilmore.55 Luiz Gastão Paes de Barros Leães relata sobre a tal crise: “há alguns anos, a decadência do direito contratual é apregoada num tom fúnebre, que anuncia iminente desenlace. Há inclusive quem já tenha lavrado a sua certidão de óbito. Grant Gilmore, em 1974, publicou um livro com título provocador – The Death of Contract (Columbus, Ohio) – onde assinalou a ação demolidora dos novos tempos no edifício conceitual do contrato. O fenômeno da padronização das transações, decorrente de uma economia de mass production, teria subvertido inteiramente o princípio da liberdade contratual, transformando o „contrato‟ numa norma unilateral imposta pela empresa situada numa posição dominante. Teria ocorrido assim um retorno ao status.”56 Em sentido oposto, Caio Mário da Silva Pereira entende que o “mundo moderno é o mundo do contrato”, eis que: “a vida moderna o é também, e, em tal alta escala que, se fizesse abstração por um momento do fenômeno contratual na civilização de nosso tempo, a consequência seria a estagnação da vida social. O homo aeconomicus estancaria as suas 55 GILMORE, Grant. The death of contract, Columbus: Ohio Universidade Press, 1974. Para Gilmore: “contract is being reabsorbed into the mainstream of „tort‟.” 56 STRENGER, Irineu. Contratos internacionais do comércio, 3ª ed., São Paulo: LTr, 1999, p.17. Prefácio. 34 atividades. É o contrato que proporciona a subsistência de toda gente. Sem ele, a vida individual regrediria, a atividade do homem limitar-se-ia aos momentos primários.”57 Em que pese o raciocínio acima exposto (da alegada crise dos contratos), ousamos opinar que o declínio do contrato não há. Diversamente disso, o contrato é hoje um “fenômeno cada vez mais onipresente na vida de cada um”, nas palavras de Paulo Luiz Netto Lôbo.58 De fato, apenas ocorreu uma transformação do instituto em sua estrutura. Com efeito, o que está ocorrendo com o contrato seria mais uma renovação dos pressupostos e dos princípios da teoria geral dos contratos. Sobre este ponto de renovação dos princípios da teoria geral dos contratos, estará centralizado nosso estudo com foco no contrato de prestação de serviços na seara do Código Civil brasileiro de 2002. Outro ponto de vista importante a destacar, a alegada “morte do contrato”, na verdade, significaria o fim da teoria clássica, que na ótica de Guido Alpa, cede ante a necessidade da análise dos interesses concretos que o acordo entre as partes expressa, análise conduzida não segundo o método formal, mas mediante o exame dos interesses substanciais – ao que corresponde a objetivação e despersonalização do contrato.59 Concluindo este ponto, não se pode falar em extinção do contrato, mas do ressurgimento de um novo instituto com caráter mais “socializado” e “publicizado”. 57 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil cit. vol. 3, 11ª ed., rev.atual., Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.9. 58 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios dos Contratos e Mudanças Sociais. Revista Jurídica n. 329, vol.53, São Paulo: Notadez, mar. de 2005, p.9-17. 59 GRAU, Eros Roberto. Um novo paradigma dos contratos? Revista Trimestral de Direito Civil, vol. n. 5, Rio de Janeiro: Padma, jan/mar. 2001, p.73-82. 35 CAPÍTULO 2 DO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À LUZ DO CÓDIGO CIVIL 2.1 Breve antecedente histórico da concepção do Contrato de Prestação de Serviços adotado pelo Código Civil de 2002 No Direito Romano Clássico, foi na dogmática do Digesto a referência a três contratos pelos quais se podia regular uma prestação de atividade humana: o mandato, o depósito e a locação-condução. Na época, só receberia o preço pela prestação de serviços (em sentido amplo) quem celebrasse o contrato de locação. No caso do depósito e do mandato, não existia uma contrapartida remuneratória. Outro ponto interessante a ser notado da época era que só podiam ser objeto de locação as atividades denominadas de operae locari solitae; em contrapartida as atividades designadas de artes liberales (atividades de profissionais liberais, tais como advogados) eram só negociadas mediante mandato. Mesmo o labor subordinado de pessoa livre era equiparado a qualquer outra res e não constituíam no objeto do contrato, mas eram apenas os frutos da locação.60 A Escola de Direito Natural Moderna, não admitindo uma figura contratual que suprimisse a liberdade de uma pessoa, como era o caso da locatio do trabalhador livre, acabou construindo um conceito único e também estipulando uma classificação do contrato de locação. A partir daí, o contrato de locação comportou duas modalidades: a locação de coisas e a locação de serviços ou de obras. Esta classificação serviria para deixar nítida a diferença entre a res e a atividade humana. Na locação de serviços ou obra não havia qualquer subordinação de uma parte à outra.61 Foram os pandectistas (sucessores da Escola de Direito Natural) quem estipularam uma separação entre os contratos de mandato, depósito e locação. Nos contratos de locação ainda fizeram uma subdivisão nas seguintes três subespécies: locação de coisas, locação de serviços e locação de obra (empreitada). Também os 60 TIMM, Luciano Benetti. A prestação de serviços do Código Civil ao Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.14-19. 61 Ibid., p.29. 36 pandectistas ordenaram o antigo contrato de locação romano inserindo seus valores modernizantes, notadamente a concepção burguesa de liberdade contratual (autonomia da vontade)62. Ademais, convém recordar que foram os pandectistas quem prepararam uma categoria contratual única, isto é, para eles a locação (em sentido amplo) significaria “aquele acordo por meio do qual o locador promete ao locatário (condutor) a concessão do uso de uma coisa ou de uma energia de trabalho, ao passo que este último promete, em contrapartida, uma remuneração.”63 No século XIX, os elaboradores do Código Civil de 1916 seguiram as noções estipuladas pela ciência dos pandectas, e por essa razão, o modelo de sistematização da prestação de atividade humana proveniente da escola pandectista foi recepcionado pelo referido código. Este molde foi parcialmente copiado no Código Civil de 2002, no entanto, novos contratos foram disciplinados, tais como a “comissão”, “corretagem”, “agência”, etc.64 2.2 Conceito e caracteres Conforme Sílvio de Salvo Venosa, a prestação de serviços pode ser conceituada como um contrato sinalagmático pelo qual uma das partes, denominada prestador, obriga-se a prestar serviços à outra, denominada dono do serviço, mediante remuneração.65 Orlando Gomes conceituou o contrato de prestação como sendo o que: “uma pessoa se obriga a prestar serviços à outra, eventualmente, em troca de determinada remuneração, executando-os com independência técnica e sem subordinação hierárquica.”66 Destes conceitos defluem características fundamentais do contrato de prestação de serviços descritas pela lição de Jorge Lages Salomo: 62 TIMM, Luciano Benetti. A prestação de serviços do Código Civil ao Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p.30. 63 Idem. 64 Ibid., p.33. 65 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em espécie. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2010, p.209. 66 GOMES, Orlando. Contratos, 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.343. 37 “Assim, a prestação de serviços contém as seguintes características fundamentais: a) a realização de uma atividade lícita de serviço especializado; b) a liberdade técnica por parte de quem executa o serviço; c) a ausência de subordinação entre o prestador e o contraente; e d) o pagamento de certa retribuição.”67 Quanto a seus caracteres, o contrato de prestação de serviços é típico, bilateral, oneroso, consensual, comutativo e geralmente intuitu personae. Senão vejamos. 1°) A tipicidade do contrato decorre de que é disciplinado no Código Civil nos artigos 593 até 609 do Código Civil Brasileiro de 2002; 2°) a bilateralidade do contrato decorre do fato de que o contrato gera obrigações e direitos a ambas as partes; 3°) a onerosidade do contrato, porque origina vantagens para os contratantes, mediante contraprestações recíprocas68; 4°) a consensualidade do contrato, pois se aperfeiçoa com o simples acordo de vontade das partes, independentemente de qualquer materialidade externa. Como todo contrato, requer emissão volitiva, embora não exija forma especial. É, portanto, contrato não-solene, podendo ser verbal ou escrito. Trata-se, pois de contrato de forma livre69; 5°) o contrato é comutativo, pois há equivalência de prestações70; 6°) o caráter do contrato geralmente é personalíssimo (intuito personae), já que na maioria das vezes, o serviço deve ser realizado pelo próprio contratado.71 2.3. Dos principais aspectos do contrato de prestação de serviços. 67 SALOMO, Jorge Lages. Contratos de Prestação de Serviços. Manual Teórico e Prático. 3ª ed., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p.7 68 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais,vol.3, 23ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p.288. 69 Idem. 70 SALOMO, Jorge Lages. Contratos de Prestação de Serviços. Manual Teórico e Prático. 3ª ed., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p.8. 71 Idem. 38 Após a definição e a apresentação dos caracteres do contrato de prestação de serviços, abordaremos em seguida um resumo de alguns tópicos que achamos mais relevantes para o foco do presente estudo. 2.3.1 A esfera de aplicação das normas do Código Civil de 2002 O artigo 593 do Código Civil de 2002, de forma expressa e clara, excluiu de sua tutela a prestação de serviços que é disciplinada pelo ordenamento jurídico trabalhista. (Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT) Dessa forma, estariam incluídas do âmbito de sua aplicação as hipóteses de prestação de serviços entre particulares em que não exista um vínculo de subordinação (de contrato de trabalho). O intuito do legislador foi exatamente demonstrar que dependendo do tipo de relação do caso, e se esta for mais vulnerável (tal como a relação de emprego), há uma tutela específica na legislação. Nesse passo, importante transcrever a lição de Nelson Rosenvald sobre o tema de aplicação do código civil e da CLT e sobre a definição de subordinação: “No Brasil, a Consolidação das Leis Trabalhistas é um desdobramento do direito civil, alcançando a autonomia pela necessidade de tutela ao trabalhador, visto como vulnerável. O Código Civil só incidirá quando o serviço realizado não detiver a característica da subordinação hierárquica que atrai a incidência da CLT (art.3°). Toda relação de emprego é qualificada por uma subordinação jurídica (funcional), com sujeição do empregado às ordens legítimas emanadas do empregador. O prestador de serviços não se emprega nem se faz empregado, pois não se afirma o estado de dependência econômica e submissão a ordens. Inexiste direção técnica e 39 controle sobre o modo de execução do serviço prestado, pois a sua natureza é eventual.(...)”72 (g.n) É válido lembrar que o Código Civil também exclui de seu objeto de tutela as relações de consumo. Estas relações estão disciplinadas no Código de Defesa do Consumidor (arts.2º, 3º, 14, 20 e 22 da Lei n° 8.078/1990). Anote-se que se enquadra em serviço sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”73 Acerca do âmbito de aplicação das normas do Código Civil, Teresa Ancona Lopez destaca que “os serviços de telecomunicações em geral, especialmente de telefonia, os de internet, os de TV a cabo, TV via satélite, têm legislação especial”.74 Ademais, Teresa Ancona Lopez destaca que os serviços bancários, por necessitarem de autorização especial estatal, bem como os demais, tais como estacionamento e hotelaria, não se incluiriam nos dispositivos relacionados à prestação de serviços.75 Ainda sobre o mesmo assunto, Nelson Rosenvald anotou que: “A prestação de serviços compreende uma ampla gama de atividades lícitas realizadas por aquele que pratica um serviço especializado e eventual, abrangendo o exercício remunerado de um ofício (v.g. bombeiro, carpinteiro); de um profissional liberal (v.g. advogado, médico); e de empresas especializadas (v.g. dedetização, vigilância) que terceirizam serviços. Em síntese, obrigações de fazer, alcançando condutas físicas (materiais) ou intelectuais (imateriais).” 76 72 ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro Cezar Peluso. 5ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2011, p.632. 73 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos – Tomo I. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.285. 74 LOPEZ, Teresa Ancona. Comentários ao código civil: parte especial: das várias espécies de contratos (arts.565 a 652), vol.7. São Paulo: Saraiva, 2003, p.190. 75 Idem. 76 ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro Cezar Peluso. 5ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2011, p.633. 40 Ou seja, conclui-se da leitura do dispositivo legal e da doutrina acima que o Código Civil tem uma função residual, destinada a uma gama mais restrita de negócios jurídicos, na medida em que o grande universo da prestação de serviços se encontra regulado pela CLT, legislação trabalhista em geral e pelo Código de Defesa do Consumidor.77 Na hipótese em estudo, mais notadamente, no capítulo 3, daremos mais ênfase a alguns julgados aplicados aos princípios contratuais na seara do contrato de prestação de serviços enquanto empresarial (ou seja, o acordo celebrado entre duas pessoas jurídicas). Nesta seara estudada, convém registrar que não há presunção de vulnerabilidade, muito pelo contrário o regime é de paridade entre as partes. Logicamente que, no capítulo 3, num primeiro plano, abordaremos de forma genérica os princípios contratuais, tais como preceitos aplicados a qualquer contrato, até porque para o estudo de qualquer contrato, seja ele típico ou atípico, devemos obrigatoriamente também compreender os princípios contratuais sob a égide do Código Civil de 2002. Posteriormente, num segundo momento, explicaremos como estes princípios têm sido aplicados por alguns julgadores no que se refere ao contrato de prestação de serviços empresariais, tal como, por exemplo, uma empresa contratando os serviços de um escritório de advocacia (outra empresa); ou, por exemplo, uma empresa contratando os serviços de outra empresa de publicidade, entre outros. 2.3.2 Do objeto e da Remuneração Consoante Maria Helena Diniz, o objeto do contrato de prestação de serviços: “é uma obrigação de fazer, ou seja, a prestação de atividade lícita, não vedada em lei e pelos bons costumes, oriunda da 77 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado. Conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2006, p.320. 41 energia humana aproveitada por outrem, e que pode ser material ou imaterial (CC, art.594). Infere-se daí que qualquer espécie de serviço, seja qual for a sua natureza, pode ser objeto de locação: material ou imaterial, braçal ou intelectual, doméstico ou externo; apenas se exige que seja lícito, isto é, não proibido por lei e pelos bons costumes.” (g.n) 78 Na mesma vertente, entende Sílvio de Salvo Venosa, no sentido que o objeto do contrato é uma obrigação de fazer, uma conduta, tanto material como intelectual.79 No que tange ao aspecto da remuneração, esta é um elemento essencial da prestação de serviços.80 Presume-se a onerosidade dos serviços prestados. Em regra, essa remuneração é em dinheiro, mas nada impede a que parte dela seja em alimentos, vestuário, condução, moradia, etc.81 2.3.3 Do tempo de duração Em razão da inalienabilidade da liberdade humana, o legislador estipulou um limite temporal de duração de quatro anos em relação aos contratos de prestação de serviços. (artigo 598 do Código Civil) Todavia, nada obsta que findo o prazo de 4 anos, um novo contrato seja celebrado pelos contraentes por tempo igual ou inferior. Caso, porventura, as partes convencionarem prazo superior ao legal, não existirá a nulidade da convenção, mas apenas ajustamento da cláusula contratual ao prazo estipulado no ordenamento 78 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais, vol.3, 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p.289. 79 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em espécie. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2010, p.213. 80 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais, vol.3, 23ª ed., 2007, São Paulo: Saraiva, p.290; BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0479.05.087162-9/001, da 14ª Câmara Cível, julgado em 10 de janeiro de 2008. 81 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais, vol.3, 23ª ed., 2007, São Paulo: Saraiva, p.292. 42 jurídico. Sobre o tema (excesso de prazo no contrato de prestação de serviços não ocasionar nulidade), a lição de Maria Helena Diniz: “Se porventura o contrato for celebrado por mais de quatro anos, o juiz poderá, ante o princípio da conservação dos contratos, reduzir o prazo, a pedido do interessado, reajustando-o ao período legal. Logo, o excesso do prazo não acarretará nulidade desse contrato locatício (RT, 165:752), mas tão-somente a sua redução pelo magistrado.” (g.n)82 Na mesma vertente da doutrina de Maria Helena Diniz os seguintes julgados: Apelação Cível n. 1.205.020- 0/7, da 36ª Câmara de Direito Privado, do Tribunal de Justiça de São Paulo, julgado em 28 de novembro de 2008; Apelação Cível n. 7164714-2, da 17ª Câmara de Direito Privado, do Tribunal de Justiça de São Paulo, julgado em 05 de março de 2008. Em que pese o raciocínio legal e o entendimento de alguns doutrinadores83, entendo que esta norma não está mais condizente com a realidade, e tem pouca aplicação prática. Defendendo essa tese, Nelson Rosenvald, ao comentar o artigo 598 do Código Civil, criticou este dispositivo no seguinte sentido: “Todavia, nos tempos atuais, a norma não mais se justifica por duas razões, quais sejam: Primeiro, haverá uma probabilidade de a prestação de serviço de quatro anos ser considerada um contrato de trabalho, diante de sua frequência e habitualidade, o que poderia inferir em subordinação jurídica de uma parte à outra. Segundo, esgotado o quadriênio, nada impede que as partes ajustem novo contrato: por igual período, ou inferior. Ademais, fixado o contrato por prazo superior a quatro anos, reduzir-se-á 82 Ibid. p.293. TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de, Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. vol. II. Teoria Geral dos Contratos. Contratos em Espécie. Atos Unilaterais. Títulos de Crédito. Responsabilidade Civil. Preferências e Privilégios Creditórios. (arts. 421 a 965). Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2006, p.328. 83 43 o prazo excedente ante sua ineficácia, mas o negócio jurídico será válido.”84 Destaca-se, o intuito do legislador foi proteger a liberdade da pessoa física. Porém, olvidou-se que o instituto do contrato da prestação de serviços abrange diversas outras situações, tais como, por exemplo, os contratos de prestação de serviços celebrado entre as empresas, e nessa hipótese, o limite temporal não tem qualquer propósito.85 2.3.4 Da distinção existente entre o contrato de prestação de serviços com o contrato de empreitada e com o contrato de trabalho. Uma das grandes complicações da Doutrina seria a diferença entre o contrato de prestação de serviços e o contrato de empreitada, tendo em vista que ambos possuem o mesmo objeto (trabalho humano). Para Sílvio de Salvo Venosa: “Na empreitada ou contrato de obra, busca-se a obra perfeita e acabada dentro do que foi contratado. Trata-se de critério finalístico. A prestação de serviços não destaca o fim da obra, mas a atividade do obreiro, em favor do dono do serviço, durante certo lapso de tempo. (...) Outro critério leva em conta a forma de retribuição. Se a remuneração é feita em relação ao tempo de duração de trabalho, há prestação de serviços. Se o pagamento tem relação com a obra em si, seus vários estágios ou o resultado final, haverá empreitada. (...) Também deve ser ponderada a relação de dependência do prestador em relação ao patrão, encomendante ou dono do serviço. Em princípio, existirá prestação de serviços quando o obreiro executar 84 ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro Cezar Peluso, 5ª ed.,São Paulo: Editora Manole, 2011, p.633. 85 SALOMO, Jorge Lages. Contratos de Prestação de Serviços. Manual Teórico e Prático. 3ª ed., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p.42. 44 trabalho sob dependência e fiscalização do outro contratante. Na atividade dos profissionais liberais e em outras situações, não fica caracterizada a relação de dependência. Haverá empreitada se o que executa o serviço o faz de forma independente, por sua conta e responsabilidade, sem ingerência do dono da obra. É justamente a subordinação hierárquica trabalhista.” do trabalhador que caracteriza a relação 86 (g.n) Com referência à diferença entre contrato de prestação de serviços de índole civil e o contrato de trabalho, ontologicamente não existe esta, segundo a doutrina.87 Sobre outro prisma, a doutrina especializada entende que o contrato de trabalho tem características peculiares diversas do contrato de prestação de serviços civil, tais como: o vínculo de subordinação, a continuidade, não eventualidade. Nesse ponto, concordamos com a doutrina de Arnaldo Sussekind que identifica a diferença entre os contratos de trabalho e o de prestação de serviços na subordinação jurídica. E menciona a lição de Paul Colin: “(...) por subordinação jurídica entende-se um estado de dependência real criado por um direito, o direito do empregador de comandar, dar ordens. Eis a razão pela qual se chamou a esta subordinação jurídica, para opô-la principalmente à subordinação econômica e à subordinação técnica que comporta também uma direção a dar os trabalhos do empregado, mas direção que emanaria apenas de um especialista.(...). Direção e fiscalização, tais são então os dois pólos de subordinação jurídica.” (sic)88 86 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em espécie. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2010, p.211-212. 87 Ibid. p.212. 88 Süssekind, Arnaldo Lopes. Curso de Direito do Trabalho, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.212. 45 2.3.5 Da relação de alguns dispositivos do Código Civil com o princípio da função social e da boa-fé objetiva Neste tópico, abordaremos mais particularmente os artigos 603, 606 e 608 do Código Civil de 2002, já que estão relacionados com alguns princípios estudados neste trabalho. O artigo 603 do Código Civil Brasileiro de 2002 trata da denúncia imotivada do contrato pelo tomador de serviços. Em outras palavras, caso o dono dos serviços decida sem justo motivo finalizar o contrato antes do prazo, deverá pagar ao prestador sua retribuição vencida e uma indenização a título de perdas e danos. O montante dessa indenização seria de metade de sua remuneração em relação ao prazo que faltaria para o término do contrato.89 O Colendo Superior Tribunal de Justiça sobre o tema decidiu: “Contrato de locação de serviços. Ocorrendo a rescisão unilateral, sem justa causa, terá direito o locador às prestações vencidas e metade das vincendas (Código Civil – art.1228). Essa segunda parcela corresponde à indenização e não se acumula, em princípio, com a condenação decorrente de cláusula penal. (...) A ora embargante obteve fosse a parte contrária condenada ao pagamento das prestações vencidas e metade das vincendas, nos termos no artigo 1.228 do Código Civil. A importância relativa às primeiras poderá referir-se a trabalho efetuado, visando a remunerá-lo. A outra parcela, entretanto, corresponde a indenização, em virtude da rescisão do contrato.”(g.n) 90 89 Nesse sentido, aplicando o artigo 603 do CC, os julgados: BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70018979104, da 9ª Câmara Cível, j. 02 de maio de 2007; BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 720398-5, da 12ª Câmara Cível, j. em 09 de fevereiro de 2011. 90 EDcl. no REsp. n. 39.569, Relator Ministro Eduardo Ribeiro, 3ª Turma, j. 24/02/1994, DJ.21/03/1994, p.5483, Revista dos Tribunais, vol.719, p.275. 46 E ante a inexistência de cláusula penal no contrato de prestação de serviços, a indenização deve ser calculada de acordo com o artigo 603 do Código Civil de 2002, antigo dispositivo 1.228 do Código Civil de 1916.91 Teresa Ancona Lopez, comentando este artigo, opina no sentido de que, em decorrência do princípio da boa-fé objetiva existente entre as partes contratantes, o prestador de serviços poderá pedir indenização com fundamento no artigo 187 do Código Civil, caso comprove danos maiores.92 Passaremos agora ao comentário do artigo 606 do Código Civil de 2002. Este é um artigo novo que não tinha um correspondente no Código Civil de 1916. Se se constatar no caso concreto que o prestador de serviços não tem título de habilitação ou este não satisfaça outros requisitos legais, mas averiguada a boa-fé e o benefício do tomador de serviços, o magistrado estipulará retribuição razoável, que não favorece, no entanto, aquele que presta serviço proibido por lei de caráter de ordem pública. Enfatiza-se a necessidade de retribuir o serviço prestado até para se evitar o enriquecimento injusto do dono do serviço, ainda que inexistente a habilitação técnica exigida, e, concomitantemente, o legislador no parágrafo único tentou obstar e punir o exercício irregular de profissão. Os exemplos adotados por Sílvio de Salvo Venosa são ilustrativos: “Assim, por exemplo, pode ocorrer com corretores não credenciados; agentes não autorizados; técnicos não diplomados; artesãos informais como encanadores, eletricistas, pedreiros, mecânicos etc. em situações cuja atividade exige habilitação ou credenciamento legal.”93 Todavia, na hipótese de a concretização dos serviços sem habilitação for proibida mediante lei de ordem pública, tal como acontece com o médico, advogado 91 BRASIL, Apelação Cível n. 938.840-00/9, Relator Paulo Ayrosa, 31ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, SP, j. em 29 de abril de 2008, Tribunal de Justiça de São Paulo; BRASIL, Apelação Cível n. 990.714-00/7, Relator Pereira Calças, 29ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, SP, j. em 30 de janeiro de 2008, Tribunal de Justiça de São Paulo. 92 LOPEZ, Teresa Ancona. Comentários ao código civil: parte especial: das várias espécies de contratos (arts.565 a 652), vol.7, São Paulo: Saraiva, 2003, p.224. 93 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em espécie. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2010, p.215 47 e engenheiro, esse prestador de serviços não poderá cobrar o que gastou para realizar os serviços. Nesses casos não haverá fixação de remuneração razoável. Interessante notar a visão de Sílvio de Salvo Venosa ao defender a ideia de que existindo a boa-fé do prestador de serviços, tal como, por exemplo, o advogado, mesmo que desprovido da carteira da Ordem dos Advogados do Brasil, houvesse obtido um resultado útil ao seu cliente, caberia ainda sim neste caso a remuneração de acordo com os princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do enriquecimento sem causa. Nesse ponto, concessa venia, ousamos em concordar com o Professor Sílvio de Salvo Venosa. Para melhor exemplificar a tese exposta, segue a lição do ilustre Sílvio de Salvo Venosa: “(...) Por outro lado, como enfatiza o parágrafo único, quando a proibição resulta de lei de ordem pública, a remuneração “razoável” é obstada. Não se aplica a segunda parte desse artigo. Assim, em princípio, não pode ser remunerado quem exerce indevidamente, por exemplo, a medicina ou a advocacia. A lei diz que a segunda parte do artigo não é aplicada, ou seja, nesses casos não há que se atribuir remuneração razoável. No entanto, pela dicção legal, a primeira parte do artigo tem aplicação, ainda que haja proibição legal de ordem pública para a atividade. Nessa primeira parte diz-se que não pode ser atribuída a retribuição normalmente correspondente ao trabalho executado. Contudo, não se nega integralmente a retribuição; doutro modo ficaria sem alcance a dicção do parágrafo único. Não existindo má-fé do contratante e perante os princípios da boa-fé objetiva e da finalidade social dos contratos, se houve resultado útil para o encomendante do serviço não pode ser negada a remuneração, ainda que fora dos parâmetros do razoável. A nosso ver, nessa hipótese devem ser aplicados os princípios do enriquecimento sem causa.” (g.n) 94 94 Idem. 48 Por fim, comentaremos o artigo 608 do Código Civil de 2002. Este é um artigo de maior reverberação no capítulo da prestação de serviços, pois tutela a função social externa do contrato.95 Versa o dispositivo sobre quando certa pessoa recrute outra ou outras já comprometidas por um contrato, para realização de serviços, distanciando os prestadores da função contratada anteriormente. Para se caracterizar o aliciamento descrito neste dispositivo legal, são imprescindíveis os seguintes elementos: 1) o terceiro tenha induzido o prestador de serviços a trabalhar com ele; 2) o dono do serviço (locatário/tomador de serviços) sofra prejuízo decorrente do contrato desfeito; 3) o prestador de serviços estivesse subordinado a um contrato de prestação de serviços por escrito. Se o prestador de serviços estiver desempregado, ou se o prestador de serviços oferecer os seus serviços a terceiros, não se presumirá que haja caracterização do aliciamento. Também é importante na configuração do aliciamento os aspectos da especialidade e a exclusividade nessa prestação de serviços, tendo em vista que se não houver cláusula de exclusividade, e o prestador continuar a atender de forma eficaz a ambos os contratantes, não haverá, em tese, o cabimento de indenização. 96 O aliciamento acarreta que o terceiro que o concretiza deverá indenizar o dono dos serviços prejudicado pelo valor correspondente a dois anos de remuneração devida ao prestador de serviços, estipulando o legislador uma prefixação de perdas e danos. E nesse caso, não há um limite legal para se exigir uma importância a maior desde que o locatário dos serviços comprove que o fim do contrato de prestação de serviços acarretou uma perda maior do que a exposta no artigo 608 do Código Civil de 2002. Também o aliciamento poderá repercutir em responsabilidade penal (artigo 207 do Código Penal), configurando, inclusive em crime de concorrência desleal, na forma da Inteligência emprestada ao artigo 195, inciso IV, da Lei n° 9.279/1998. Saliente-se, relevante a discussão do aliciamento e da função social externa do contrato transcritas por Nelson Rosenvald: 95 ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro Cezar Peluso, 5ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2011, p.640. 96 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em espécie, 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2010, p.214. 49 “Cuida-se da tutela à função social externa do contrato. As relações contratuais produzem obrigações restritas às partes – princípio da relatividade contratual -, mas geram oponibilidade erga omnes, pois a sociedade deve se comportar de modo a respeitar as relações jurídicas em curso, permitindo que alcancem o seu desiderato pela via adequada do adimplemento. Nesse instante, os contratantes retomam a sua liberdade e estão aptos a contrair novos negócios jurídicos, preservando o clima de estabilidade nas relações econômicas e propiciando uma confiança generalizada no cumprimento dos contratos. Jogadores de futebol, artistas de emissoras de televisão, técnicos especializados, enfim, uma gama de pessoas recebe – e aceita – propostas de concorrentes, menos pelo interesse específico do ofertante na aquisição do profissional e mais pelo simples propósito comercial de esvaziar o contrato alheio, naquilo que pode ser registrado como uma espécie de concorrência desleal. Portanto, não é justo que terceiros atuem como se desconhecessem os contratos, desrespeitando-o apenas para a satisfação de seus interesses pessoais, mas de modo ofensivo às finalidades éticas do ordenamento jurídico. O terceiro ofensor não será punido isoladamente, pois o prestador de serviços também poderá ser responsabilizado, seja em virtude de cláusula penal compensatória (art.411 do CC), seja em sua ausência, mediante a fixação, pelo magistrado, de perdas e danos em decorrência do inadimplemento contratual.”(g.n) 97 Por derradeiro, ainda relacionada a este artigo, algumas decisões judiciais têm entendido pela não abusividade de multa imposta à tomadora de serviços por 97 ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro Cezar Peluso, 5ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2011, p.641. 50 contratação de ex-empregado da prestadora durante a vigência do contrato e após a rescisão durante um prazo fixado na avença. 98 98 BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Apelação Cível n. 20050111191657APC, da 1ª Turma, j. em 16 de setembro de 2009; BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 9182720-98.2008.8.26.0000, da 33ª Câmara de Direito Privado, j. em 07 de fevereiro de 2011; BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 1.169.627-0/6, da 36ª Câmara de Direito Privado, j. em 10 de julho de 2008. 51 CAPÍTULO 3 DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS E O CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EMPRESARIAL 3.1. Introdução preliminar e classificação dos princípios contratuais As obrigações contratuais são dirigidas pelos princípios denominados liberais ou tradicionais e pelos princípios denominados sociais ou modernos.99 São classificados como princípios liberais ou tradicionais os seguintes: da autonomia da vontade, da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) e o da relatividade dos efeitos contratuais. Por outro lado, são classificados como princípios sociais ou modernos o princípio da função social, da boa-fé objetiva e da justiça contratual. Vamos abordar cada um deles a seguir. 3.1.1 A não exclusão dos princípios contratuais tradicionais: momento de hipercomplexidade Antes da análise dos princípios, raciocinando sobre os princípios, Antonio Junqueira de Azevedo assevera que, atualmente, vive-se um momento de “hipercomplexidade”, pois os princípios clássicos não se opõem aos princípios sociais. Antes, verifica-se uma mescla entre as tendências axiológicas, que mesmo distintas, não podem se excluírem uma a outra. Sobre estas afirmações, transcrevemos Antonio Junqueira de Azevedo: “(...) Hoje, diante do toque de recolher do Estado intervencionista, o jurista com sensibilidade intelectual percebe que está havendo uma acomodação das camadas fundamentais do direito contratual – algo semelhante ao ajustamento subterrâneo das placas tectônicas. Estamos em 99 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.41. 52 „época‟ de hipercomplexidade, os dados se acrescentam, sem se eliminarem, de tal forma que, aos três princípios que gravitam em volta da autonomia da vontade e, admitido como princípio, ao da ordem pública, somam-se outros três – os anteriores não devem ser considerados abolidos pelos novos tempos, mas, certamente, deve-se dizer que viram seu número aumentado pelos três novos princípios. Quais são esses novos princípios? A boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico do contrato e a função social do contrato.”100(g.n) Isso significa dizer que o modelo clássico e o modelo contemporâneo, cada um com seus princípios, devem concomitantemente conviverem. A função do operador do direito diante dessa hipercomplexidade será reconstruir o sistema contratual à luz do Código Civil de 2002, de maneira a harmonizar os princípios tradicionais (caráter liberal) com os princípios modernos (caráter social), como também, resguardando de forma equilibrada os anseios constitucionais. 3.1.2 Do Princípio da Autonomia da Vontade e do Princípio da Autonomia Privada e as suas distinções O princípio da autonomia da vontade está intimamente relacionado ao princípio da liberdade, o qual está previsto na Magna Carta e impregnado em todo nosso ordenamento jurídico. A autonomia da vontade significa a liberdade das partes em dispor e regular suas esferas de direito, que podem se expressar de três formas: (1) liberdade de contratar no que tange à opção de celebrar um contrato, (2) liberdade contratual no que se refere ao conteúdo do contrato, mais especificamente, no que 100 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do Novo Direito Contratual e Desregulamentação do Mercado – Direito de Exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – função social do contrato e responsabilidade aquiliana de terceiro que contribui para inadimplemento contratual (Parecer), Revista dos Tribunais n. 750, Ano 87, São Paulo: Revista dos Tribunais, abr./1998, p.115116. 53 se refere às regras internas mediante negociação de cláusulas contratuais e (3) liberdade de escolher com quem contratar (quem será o outro contraente). O princípio da autonomia da vontade ou da liberdade de contratar, ensina Teresa Ancona Lopez, pode ser visto sob três aspectos principais: “1) liberdade de contratar ou não, de participar da celebração de um contrato; 2) liberdade da escolha da outra parte (com quem contratar); 3) liberdade de fixar o conteúdo dos contratos (liberdade contratual).” 101 Esta liberdade de contratar encontra os limites nas normas de ordem pública (que vedam acordos que lhe sejam contrários a elas) e nos bons costumes.102 Este princípio teve seu ápice na época do Estado Liberal, em que não era interessante a ingerência estatal na vida privada, especialmente nas relações contratuais; e em que se acreditava que cada pessoa, ao contratar livremente, buscaria o melhor para si e indiretamente para a sociedade. Verifica-se na época que esse princípio partia do pressuposto de que existiria uma relação de equilíbrio e paridade entre os contratantes, já que esses poderiam fazer contratos em igualdade de condições de acordo com sua livre vontade, sem qualquer atuação de interesse exterior. Ou seja, as próprias partes eram os melhores juízes e desconsideravam as desigualdades fáticas até hoje vigentes. Fernando Noronha retrata bem esta visão liberal ao se inspirar no filósofo Kant: “para quem a dignidade da pessoa humana não se compadece com a submissão a leis outras que não aquelas que dê a si mesma.”103 Pouco a pouco, observou-se que a alegada igualdade entre os contratantes era somente formal, já que, na maioria das vezes, uma das partes era quem ditava as regras internas do contrato. Nesse momento, essa autonomia da vontade acaba sendo invadida pelo Estado Intervencionista que, mediante a lei, e até mesmo por meio do Poder Judiciário, atua em favor dos princípios 101 LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.11. 102 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais, vol.3, 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p.23 103 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.112. 54 constitucionais. Enzo Roppo explana que a autonomia da vontade se vê relançada em novas bases e para desempenho de um novo papel.104 Após esses breves comentários esclarecedores sob o princípio da autonomia da vontade, passaremos ao ponto do princípio da autonomia privada e se existe alguma diferença entre este e aquele. Há doutrina que defenda que as duas expressões seriam sinônimas, nessa vertente, Paulo Lôbo a seguir transcrito: “A esse respeito, afirmamos nosso entendimento de absoluta indistinção entre autonomia privada, de um lado, e autoregramento ou autonomia da vontade, de outro. Para alguns, autonomia privada capta o momento jurídico da exteriorização da vontade, sendo esta, enquanto intenção íntima, uma instância pré-jurídica. Para outros, autonomia evoca significação normativa e não podem os particulares ser autores de normas jurídicas, diante do monopólio legislativo do Estado. Essas distinções são inócuas e procuram escapar, sem sucesso, à origem e à natureza políticas que se imputam à autonomia privada (ou da vontade) ou ao caráter imperativista que se atribuiu à vontade.” (g.n) 105 Por outro lado, outros doutrinadores se esforçam para traçar a diferença entre autonomia da vontade e autonomia privada.106 Luigi Ferri afirma de forma contundente que a autonomia da vontade distingue-se da autonomia privada, pois a primeira refere-se à vontade interna como mola propulsora da relação contratual enquanto a segunda refere-se ao poder reconhecido aos particulares de criar normas jurídicas. E completa o referido autor explicando que a autonomia privada não corresponde à iniciativa privada, pois esta 104 ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução Ana Coimbra e M.Januário C. Gontes, Coimbra: Almedina, 1988, p.335. 105 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Condições Gerais dos contratos e cláusulas abusivas. São Paulo: Saraiva, 1991, p.10. 106 GOMES, Orlando. Decadência do voluntarismo jurídico e novas figuras jurídicas, in Transformações gerais do direito das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967; NANNI, Giovanni Ettore. A evolução do direito civil obrigacional: a concepção do direito civil constitucional e a transição da autonomia privada, in Cadernos de direito civil constitucional – Caderno 2, Renan Lotufo (Coordenador), Curitiba:Juruá, 2001; TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.143. 55 se limita ao aspecto econômico.107 Francisco Amaral observou o significado do princípio da autonomia privada no seguinte sentido: “A autonomia privada é o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações que participam, estabelecendo-lhe o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. Sinônimo de autonomia da vontade para grande parte da doutrina contemporânea, com ela porém não se confunde existindo entre ambas sensível diferença. A expressão „autonomia da vontade‟ tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder da vontade do direito de um modo objetivo, concreto e real.” 108 Apesar de existirem poucos doutrinadores que tracem essa diferença, nos filiamos a esta corrente minoritária. Na verdade, na minha visão, a autonomia privada nada mais seria que um reflexo da nova ótica contratual e, por essa razão, o princípio da autonomia da vontade foi substituído pelo princípio da autonomia privada.109 3.1.3 Do princípio da força obrigatória dos contratos (Pacta Sunt Servanda) ou Do princípio da força vinculante das convenções Segundo esse princípio, se a convenção tiver todos os elementos essenciais, plano de existência, como também obedecidos os requisitos de validade, esta vinculará os contratantes, sendo considerada como lei entre estes. Isto é, uma vez celebrado o contrato, as partes têm o dever de respeitá-lo tal como foi pactuado. 107 FERRI, Luigi. La autonomia privada. Tradução Luiz Sancho Mendizzábal. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1969, p.5-6. 108 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução, 5ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.348. 109 TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.143. 56 Lembrando que esse nítido caráter vinculante é oriundo do princípio da autonomia da vontade. Orlando Gomes sobre esse princípio ensina que: “o princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes. Celebrado que seja, com observância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os contratantes, sejam quais forem as circunstâncias em que tenha de ser cumprido. Estipulado validamente o seu conteúdo, vale dizer, definidos os direitos e obrigações de cada parte, as respectivas cláusulas têm, para os contratantes, força obrigatória.”110 De acordo com tal princípio, o pactuado é intangível e não passível de modificação por qualquer dos contratantes, tampouco por terceiros, exceto se disposto em contrário no contrato. Sob essa ótica, nem mesmo o juiz poderia rever independentemente do fundamento alegado por qualquer dos contratantes. Apenas se a parte se enquadrasse em uma dos casos de permissivo legal de intervenção do Poder Judiciário, poderia ser decretada a nulidade ou resolução, todavia, jamais a modificação contratual. Nesse ponto, importante lembrar Maria Helena Diniz que leciona sobre isto: “(...) da obrigatoriedade da convenção, pelo qual as estipulações feitas no contrato deverão ser fielmente cumpridas (pacta sunt servanda), sob pena de execução patrimonial contra o inadimplente. Isto é assim porque o contrato, uma vez concluído livremente, incorpora-se ao ordenamento jurídico, constituindo uma verdadeira norma de direito, autorizando, portanto, o contratante a pedir a intervenção estatal para assegurar a execução da obrigação porventura não cumprida segundo a vontade que a constituiu. 110 GOMES, Orlando. Contratos. 17ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1996, p.36. 57 À idéia de auto-regulamentação dos interesses dos contratantes, baseada no princípio da autonomia da vontade, sucede a da necessidade social de proteger a confiança de cada um deles na observância da avença estipulada, ou melhor, na subordinação à lex contractus. O contrato é intangível, a menos que ambas as partes o rescindam voluntariamente ou haja a escusa por caso fortuito ou força maior (CC, art.393, parágrafo único). Fora dessas hipóteses, ter-se-á a intangibilidade ou imutabilidade contratual. Esse princípio da força obrigatória funda-se na regra de que o contrato é lei entre as partes, desde que estipulado validamente. (RT, 543:243, 478:93), com observância dos requisitos legais. Se os contratantes ajustaram os termos do negócio jurídico contratual, não se poderá alterar o seu conteúdo, nem mesmo judicialmente, qualquer que seja o motivo alegado por uma das partes, e o inadimplemento do avençado autoriza o credor a executar o patrimônio do devedor por meio do Poder Judiciário, desde que não tenha havido força maior ou caso fortuito.” (sic) (g.n)111 Hordiernamente, esse princípio, assim como os demais tradicionais, é mantido na ordem jurídica, entretanto, foi mitigado pela ciência jurídica visando atender às aspirações de uma sociedade mais justa, com maior destaque para a teoria da imprevisão (artigo 478 do Código Civil). Orlando Gomes, em seu livro Transformações Gerais do Direito das Obrigações, bem destacou essa atenuação do princípio da pacta sunt servanda: “O princípio da intangibilidade dos contratos nas relações patrimoniais não resiste aos solavancos de novas concepções, já se admitindo alteração dos efeitos do contrato, no curso de 111 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais,vol.3, 23ª ed., 2007, São Paulo: Saraiva, p.31. 58 sua expressão, teorizada na doutrina da imprevisão ou da base do negócio, que abalam a regra pacta sunt servanda.”112 E não é só: o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) também foi flexibilizado pelos princípios modernos contratuais, tais como, o da boa-fé, da função social do contrato e da justiça contratual. Importante notar que o princípio em questão de fato foi relativizado, todavia, não foi retirado de nosso ordenamento jurídico, já que ainda tem sua função de estabilizar as relações contratuais. Na realidade, podemos afirmar que este princípio da força obrigatória do contrato constitui exceção à regra geral da socialidade.113 Concluindo este tópico, anotamos o Enunciado n. 22 do Conselho Superior da Justiça Federal aprovado na I Jornada de Direito Civil, de 2002, que também adota este posicionamento de forma similar: “a função social do contrato, prevista no artigo 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.” 3.1.4 Do princípio da relatividade dos efeitos contratuais Conforme o princípio da relatividade dos efeitos contratuais, o contrato obriga tão somente os contratantes. Isto significa dizer que o acordo só produz efeitos para aqueles que participaram dele, não prejudicando nem beneficiando terceiros. Maria Helena Diniz, ao explicar o princípio in tela, diz: “(...) da relatividade dos efeitos do negócio jurídico contratual, visto que não aproveita nem prejudica terceiros, vinculando exclusivamente as partes que nele intervieram. O contrato somente produz efeitos entre os contratantes. O ato negocial deriva de acordo de vontade das partes, sendo lógico que apenas as vincule, não tendo eficácia em relação a terceiros. 112 GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p.80. 113 TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.158. 59 Assim, ninguém se submeterá a uma relação contratual, a não ser que a lei o imponha ou a própria pessoa o queira.”114 De fato, este princípio também sofre limitações. Flávio Tartuce citando Maria Helena Diniz descreveu exemplos demonstradores de que esse princípio pode ser mitigado: “Na verdade, entendemos que o princípio da relatividade dos efeitos contratuais também encontra limitações, na própria codificação privada ou mesmo na legislação extravagante aplicável aos contratos. Maria Helena Diniz aponta como exceções a tal princípio a responsabilidade dos herdeiros do contratante (art.1792 do novo CC), bem como a estipulação em favor de terceiro, a qual „estende seus efeitos a outras pessoas, criando-lhes direitos e impondo deveres, apesar de elas serem alheias à constituição da avença‟ (arts.436 a 438 do novo CC).‟ Acreditamos que, na estipulação em favor de terceiro, os efeitos são „de dentro para fora do contrato‟ ou „endógenos‟, já que a conduta de um estranho ao contrato repercute dentro deste.”115 Um aspecto polêmico que merece atenção refere-se a quando um contrato afeta de forma negativa a esfera de terceiro e a partir daí aparecem os interesses divergentes. Darcy Bessone mostra exemplos de confrontos de interesses, como: vender mercadorias abaixo do preço de custo com o fim de obstar a concorrência. In casu, esta conduta do agente afeta não só os concorrentes (que poderão até falir), como também todo o mercado consumidor. (trata-se de concorrência desleal).116 Não se pode olvidar, atualmente, que esse princípio foi atenuado, tendo em vista que o contrato não atinge só as esferas jurídicas dos contratantes, ainda mais diante de relações tão frequentemente interligadas. A publicização dos 114 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais, vol.3, 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007 p.32. 115 TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.162. 116 BESSONE, Darcy. Do contrato – teoria geral. São Paulo: Saraiva, 1997, p.164. 60 contratos e a sua massificação demonstram o quanto os acordos hoje estão interligados e não podem atingir apenas as partes. Também, o princípio da função social corrobora para que esse princípio seja flexibilizado. Sobre este prisma, e pertinente à questão exposta, transcrevemos o Enunciado n. 21 emitido pelo Conselho Superior da Justiça Federal aprovado na I Jornada de Direito Civil de 2002: “art.421: a função social do contrato, prevista no art.421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.” 3.1.5 Do princípio do consensualismo Alguns doutrinadores117 não incluem esse princípio entre um dos principais do direito contratual, outros o fundem ao princípio da força obrigatória dos contratos.118 Contudo, de qualquer forma, discorremos brevemente sobre esse tema, pois achamos importante. Segundo tal princípio, o mero consenso já é suficiente para criar um contrato. Ou seja, para se aperfeiçoar um contrato não era preciso o formalismo. Fernando Noronha, ao conceituar esse princípio, entende que é corolário do princípio da autonomia da vontade e conceitua o princípio em debate de forma resumida no seguinte sentido: “Consensualismo: se as partes são livres para contrair obrigações, então, ficarão vinculadas apenas pela manifestação dada nesse sentido, sem necessidade de se subordinarem a quaisquer formalidades.” 119 Na atual conjuntura, o artigo 104, inciso III do Código Civil de 2002, estipula que os contratantes podem celebrar contratos da forma como preferirem, prevalecendo esse princípio, salvo se a lei determinar de forma em contrário. Por exemplo, do exposto, para que se concretize a compra a venda de um imóvel, é necessário o registro e não basta apenas o consenso. 117 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – dos contratos e das declarações unilaterais de vontade, vol.3, 26ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p.15. 118 TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.154. 119 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.43. 61 3.2. Do princípio da boa-fé objetiva 3.2.1 O surgimento no ordenamento jurídico brasileiro do princípio da boa-fé objetiva e o fundamento do princípio Num primeiro momento, para entendermos melhor o princípio da boa-fé objetiva, abordaremos quando esse princípio apareceu no direito brasileiro. A boa-fé objetiva somente apareceu no Código de Defesa do Consumidor nos artigos 4°, inciso III e 51, inciso IV. Antes do mencionado Código, a boa-fé era ressaltada apenas em seu aspecto subjetivo.120 Registre-se, a regra do artigo 131, inciso I do antigo Código Comercial (hoje revogado pelo Código Civil de 2002) tinha um preceito interpretativo conforme o qual, nas interpretações de cláusulas contratuais, deveria ser usado inteligência adequada que fosse mais condizente à boa-fé e ao espírito do contrato em detrimento da significação das palavras.121 Contudo, esse dispositivo não foi muito utilizado no mundo prático.122 Nesse mesmo sentido, transcrevemos Flávio Alves Martins: “(...) Embora à época, ante a extrema influência do direito francês em nossa doutrina e em nossos Tribunais, não se tenha conferido importância à aplicação da boa-fé como limite autonomia das vontades das partes, os comercialistas sempre defenderam que uma interpretação dos contratos não se pode limitar a uma simples análise literal das palavras ou das expressões utilizadas, mas sim a uma reconstituição do que 120 LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.43; NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p.174. 121 LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.43. 122 TEPEDINO, Gustavo. Introdução: crise de fontes normativas e técnicas legislativa na parte geral do Código Civil de 2002, in (Coordenador). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional, 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.XIX. 62 motivou as partes na celebração do contrato, que deve seguir os usos locais e a boa-fé” (g.n) 123 Teresa Negreiros explica que não houve efetividade da boa-fé estipulada no Código Comercial de 1850, em decorrência de que a boa-fé tenha sido restringida a mera função de interpretação/integração do contrato, sem que fosse reconhecido o seu papel de criadora de deveres. Dessa forma, a boa-fé foi colocada em contraposição ao sentido literal das cláusulas contratuais, o que é criticado pela autora, na medida em que deveria incidir não apenas na relação entre o declarado e o suposto, "mas igualmente sobre o núcleo mesmo da vontade intencionada, podendo inclusive redundar em sua desconsideração".124 Destaca-se, para o doutrinador Flávio Tartuce o princípio da boa-fé objetiva já estaria expresso no artigo 131, inciso I do Código Comercial de 1850; e mais, que nesse dispositivo também já estaria implícito o princípio da função social: “Ao contrário do que muitos podem imaginar, já existia previsão expressa anterior quanto à boa-fé objetiva, de cunho contratual, em nosso ordenamento jurídico. Com efeito, esta era a previsão do art.131, I, do CCom/1850, constante na parte que foi revogada pelo novo Código Civil (...) Entendemos que o comando legal em questão, ao consagrar a boa-fé objetiva como cláusula geral, também trazia implícito o princípio da função social do contrato, já que afastava a validade das palavras que constavam do instrumento contratual, em benefício do verdadeiro espírito do contrato.” 125 Em que pese o raciocínio acima exposto, data venia, ousamos entender que o Código Comercial em seu artigo 131, inciso I, ainda não vislumbrava a ideia de boa-fé objetiva de forma contundente, e isso só passou a acontecer a partir da promulgação do Código de Defesa do Consumidor. 123 MARTINS, Flávio Alves. A Boa-fé Objetiva e sua Formalização no Direito das Obrigações Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.92. 124 NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 75-76. 125 TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.168. 63 Num segundo momento, destaca-se que: “O princípio da boa-fé objetiva tem fundamento constitucional na cláusula geral de dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático (art.1º, III, da CF/88) e no art.3º, I, que determinou ser objetivo fundamental da República uma sociedade livre, justa e solidária. É precisamente essa solidariedade que embasa a cláusula geral de boa-fé.”126 Para elucidar melhor esta questão acima, transcrevemos Teresa Negreiros: “A fundamentação constitucional do princípio da boa-fé assenta na cláusula geral de tutela da pessoa humana – em que esta se presume parte integrante de uma comunidade, e não um ser isolado, cuja vontade em si mesma fosse absolutamente soberana, embora sujeita a limites internos. Mais especificamente, é possível reconduzir o princípio da boa-fé ao ditame constitucional que determina como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade solidária, na qual o respeito pelo próximo seja um elemento essencial de toda e qualquer relação jurídica. Nesse sentido „a incidência da boa-fé objetiva sobre a disciplina obrigacional determina uma valorização da dignidade da pessoa, em substituição à autonomia do indivíduo, na medida em que se passa a encarar as relações obrigacionais como um espaço de cooperação e solidariedade entre as partes e, sobretudo de desenvolvimento da personalidade humana.”127 3.2.2 Do conceito de boa-fé objetiva 126 LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.45. 127 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002, p.117-118. 64 Em razão da importância da boa-fé dentro do âmbito do direito dos contratos, seria importante iniciar esta abordagem com uma definição exata dele. Ocorre que esta não é uma tarefa fácil, pois é um conceito bastante rico 128, de grande magnitude e aberto.129 Todavia, na configuração da boa-fé, estão intrinsecamente ligadas também as noções de probidade, honestidade, lealdade, confiança que devem regrar o padrão de comportamento das partes em todas as fases contratuais.130 Sobre o conceito da boa-fé objetiva citamos Paulo Luiz Netto Lôbo: “A boa-fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de 131 comportamento.” (g.n) A boa-fé objetiva é um padrão de conduta social, standard jurídico, segundo o qual as partes, no contrato devem agir com lealdade e correção.132 Fernando Noronha, em sua lição, descreveu bem três notas relevantes na boa-fé objetiva a seguir transcritas: “Para finalizar esta parte relativa da caracterização da boa-fé objetiva, importa destacar três notas. 128 MARTINS, Flávio Alves. A Boa-fé Objetiva e sua Formalização no Direito das Obrigações Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.7. 129 LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.45. 130 STIGLITZ, Rúben S. Contratos: teoría geral, Bueno Aires: Depalma, 1994, vol.2, p.251. 131 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios dos Contratos e Mudanças Sociais. Revista Jurídica n. 329, vol.53, São Paulo: Notadez, mar. de 2005, p.9-17. 132 STIGLITZ, Rúben S. Op. cit., p.254. 65 Primeira. A boa-fé objetiva pressupõe que haja duas pessoas ligadas por uma determinada relação jurídica, que lhes imponha especiais deveres de conduta, de cada uma delas em relação à outra, ou pelo menos de uma delas em relação à outra. Como diz Larenz, ela „pressupõe uma vinculação especial e uma determinada confiança entre as pessoas que intervêm. Ela não é, porém, „a boa-fé ausência de intenção malevolente‟, de que já falava Lyon-Caen, porque pode não haver intenção malévola e, apesar disso, não se respeitar a boa-fé, como se explicitará adiante. Segunda. Quando no conceito são referidos padrões de conduta socialmente recomendados, pensa-se no comportamento exigível do bom cidadão, do profissional competente, de um modelo abstrato de pessoa, razoavelmente diligente, o que costuma tudo ser traduzido pela noção de fumus pater famílias. (...) Terceira. Se a boa-fé objetiva é dever de agir de acordo com determinados padrões, nela é preciso verificar também a situação da contraparte. Em cada caso é necessário ver se estavam reunidas as condições suficientes para criar na contraparte um estado de confiança no negócio celebrado: só então a expectativa desta será tutelada. Melhor dizendo, enquanto na boa-fé subjetiva se atende apenas à situação da pessoa que confiou, na objetiva considera-se, ao mesmo tempo, a posição de ambas as partes que estão em relação (ou de todas elas, se forem mais de duas). Por um lado, é preciso que uma delas, aquela sobre quem incumbia o dever de informar, esclarecer, ou agir com lisura, tenha procedido com a correção e a lealdade exigíveis no tráfico jurídico. Por outro lado, é preciso que a contraparte tenha confiado na estabilidade e segurança do negócio jurídico que celebrava, porque podia legitimamente alimentar a expectativa de que a outra parte procederia com correção e lealdade. O procedimento de uma parte, o respeito pelos padrões de 66 conduta exigíveis, é que justifica a confiança da contraparte.” 133 (g.n) Antes de adentrar no mérito da distinção entre a boa-fé objetiva e a subjetiva, cumpre esclarecer que, apesar de o artigo 422 do Código Civil não ter expressamente contemplado a aplicação da boa-fé objetiva após a fase de conclusão e execução contratual e nem na fase preliminar, isto coube à doutrina e à jurisprudência interpretar de forma extensiva.134 Sobre esse aspecto específico, citamos os Enunciados n°s 25 do Conselho Federal de Justiça na I Jornada de Direito Civil e 170 do Conselho Federal de Justiça na III Jornada de Direito Civil que esclarecem este ponto: “Enunciado n° 25 do Conselho Federal de Justiça I Jornada de Direito Civil - Art. 422: o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós-contratual.135 Enunciado n° 170 do Conselho Federal de Justiça III Jornada de Direito Civil – Art. 422: A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato.”136 Ainda acerca das fases contratuais que devem presidir a boa-fé objetiva, anotamos a lição de Marco Aurélio Bezerra de Melo: “O art.merece ser criticado, pois faz referência apenas à necessidade da boa-fé na conclusão e na execução do pacto, quando a melhor doutrina há muito tempo já aponta para a necessidade de o princípio da boa-fé ser observado em todas as fases contratuais, inclusive após a execução contratual (fase 133 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.138-139. 134 REHDER, Paulo Dóron, Tratamento Contemporâneo da boa-fé objetiva nos contratos, In, PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge. Contratos, vol. II. 1ª ed., São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.315. 135 Disponível em: http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf. Acesso em: 24 out. 2011. 136 Disponível em: http://www.cjf.jus.br/revista/enunciados/IIIjornada.pdf. Acesso em: 24. out. 2011. 67 pós-contratual). Diante desta falta de atualização do artigo, que na época em que foi confeccionado era um primor de precisão, não evitará que afirmemos ser a boa-fé um princípio que deva ser respeitado nas meras tratativas, no momento da proposta, na formação do contrato, assim como na antevista para depois do próprio exaurimento do pacto.”137(g.n) 3.2.3 Distinção entre Boa-fé Objetiva e Boa-Fé Subjetiva A boa-fé pode ter duas concepções jurídicas138, uma objetiva e outra subjetiva. A primeira já foi explanada acima. Vamos à segunda boa-fé. Consoante Fernando Noronha, a boa-fé subjetiva pode ser conceituada na forma abaixo transcrita: “A boa-fé subjetiva, ou boa-fé crença, é um estado – um estado de ignorância sobre características da situação jurídica que se apresenta, suscetíveis de conduzir à lesão de direitos de outrem. (...) Na situação de boa-fé subjetiva, uma pessoa acredita ser titular de um direito, que na realidade não tem, porque só existe na aparência. A situação de aparência gera um estado de confiança subjetiva, relativa à estabilidade da situação jurídica, que permite ao titular alimentar expectativas, que crê legítimas.” 139 Judith Martins-Costa explica a ideia da boa-fé subjetiva, como também em quais campos do direito esta é aplicada: 137 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado (arts.421 a 652), III. vol. ~Contratos – Tomo I, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.22-23. 138 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.131. 139 Ibid., p. 132. 68 “A expressão „boa-fé subjetiva‟ denota „estado de consciência‟, ou convencimento individual de obrar [a parte] em conformidade ao direito [sendo] aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Dizse „subjetiva‟ justamente porque, para sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.(...) A boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a ideia de ignorância, de crença errônea, ainda que escusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e ignorância escusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da ignorância (as hipóteses do casamento putativo, da aquisição da propriedade alheia mediante a usucapião), seja numa errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro aparente, etc.). Pode denotar, ainda, secundariamente, a ideia de vinculação ao pactuado, no campo específico do direito contratual, nada mais aí significando do que um reforço ao princípio da obrigatoriedade do pactuado, de modo a se poder afirmar, em síntese, que a boa-fé subjetiva tem o sentido de uma condição psicológica que normalmente se concretiza no convencimento do próprio direito, ou na ignorância de estar lesando direito alheio, ou na adstrição „egoística‟ à literalidade do pactuado.” (g.n)140 Enfatiza-se neste tópico que, apesar da boa-fé objetiva ser distinta da subjetiva, podem existir relações entre elas. Fernando Noronha bem explana esta relação: “Existem, é claro, algumas relações entre as duas boas-fés. 140 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. Sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais,1999, p.411-412. 69 A inexistência de boa-fé subjetiva caracteriza sempre uma atuação dolosa (concepção psicológica), ou pelo menos culposa (concepção ética), e, portanto, sempre uma atuação não conforme aos deveres de conduta impostos pela boa-fé objetiva: quem não está em estado de ignorância (aspecto subjetivo) e, apesar disso, age, sabendo ou devendo saber que vai prejudicar direitos alheios, procede (aspecto objetivo) necessariamente de má-fé. Já, porém, o fato de a pessoa estar em estado (subjetivo) de boa-fé não significa que não possa estar infringindo o dever (objetivo) de agir de boa-fé. Se ela não conhece, nem tinha a obrigação de conhecer a verdadeira condição da situação jurídica que tinha diante de si, e assim age, violando sem saber direito de outrem, estará de boa-fé (subjetiva) e também procederá de boa-fé (objetiva). Se, todavia, não conhece, mas tinha a obrigação de conhecer, o seu estado de ignorância será irrelevante, e ela, ao proceder, infringirá o dever (objetivo) de respeitar a boa-fé; não se poderá, porém, dizer que esteja necessariamente agindo de má-fé, porque a boa-fé subjetiva pode persistir, mesmo havendo culpa, se o caso for daqueles em que baste a mera boa-fé psicológica.” 141 3.2.4 As três funções da Boa-Fé Objetiva A Boa-Fé objetiva tem três funções, estando estas também estampadas no Código Civil de 2002. A primeira função é de paradigma interpretativo na teoria dos negócios jurídicos (artigo 113 do Código Civil). A segunda função é de assumir índole de controle, obstando o abuso do direito subjetivo, qualificando-o como ato ilícito (artigo 187 do Código Civil); e a terceira função é a integrativa, já que da boafé objetiva disseminam deveres que serão inventariados pela jurisprudência. 141 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.141. 70 Teresa Ancona Lopes, na mesma vertente, assim dispôs: “Os doutrinadores apontam três funções principais para a boafé objetiva. Essas funções aparecem também no Código Civil de 2002, a saber: a) como regra de conduta obrigatória dos dois contratantes (art.422); b) como regra de interpretação dos negócios jurídicos (art.113); c) como limitadora de direitos subjetivos (art.187).”142 Em relação ao artigo 422 do Código Civil depreende-se a função de criação de deveres instrumentais (secundários, laterais, anexos)143 Com efeito, a doutrina tem entendido que em cada relação contratual há os deveres principais e os deveres secundários. Os primeiros constituem o núcleo da relação obrigacional definindo o tipo contratual, tal como, por exemplo, o dever de remunerar o prestador de serviços no contrato de prestação de serviços. 144 Já os segundos são “meios para garantir a consecução do fim do contrato” e “caracterizam a correção do comportamento dos contratantes, um em relação ao outro, tendo em vista que o vínculo obrigacional deve traduzir uma ordem de cooperação, (...)” 145 O princípio da boa-fé objetiva nessa função opera como uma verdadeira fonte de direitos e obrigações, não restrita à vontade ou à lei.146 Judith Martins-Costa lista os principais deveres oriundos pela incidência da boa-fé objetiva: “a) deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres 142 LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.51-52. 143 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.437. 144 Idem. 145 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002, p.149-150. 146 SILVA, Clóvis V. do Couto, apud MARTINS-COSTA, Judith, A Boa-Fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.440. 71 de aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de escolha para satisfação de seu desideratum, o do consultor financeiro, de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer o paciente sobre a relação custo/benefício do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, o do sujeito que entra em negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da declaração negocial; c) os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC, arts.12, in fine, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor; f) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte, como, v.g., o dever do proprietário de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações preliminares, pagamento, por parte do devedor, etc.”(g.n) 147 Nesse passo, interessante mencionar o julgado que com base nesta função da boa-fé objetiva criou o dever da prestadora de serviços em fornecer peças 147 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.439. 72 de reposição e assistência técnica em relação à tomadora de serviços, apesar de inexistência de cláusula contratual.148 Ainda no que tange a esta função, ressalta-se que a boa-fé fez alargar o conteúdo do contrato, já que junto com as obrigações contratuais e fora do âmbito contratual, existe o dever geral de não causar dano.149 Será explicado em segundo, a função interpretativa da boa-fé. Esta função tem o intuito de determinar o sentido das estipulações contidas no contrato celebrado, permitindo até a sua reconstrução pelo juiz. Este julgador pode até intervir nos direitos e deveres das partes envolvidas na relação jurídica obrigacional.150 Fernando Noronha ao explicar esta função entende dois desdobramentos: “(...) primeiro, os contratos (e os negócios jurídicos unilaterais) devem ser interpretados de acordo com o seu sentido objetivo, aparente, salvo quando o destinatário da declaração conheça a vontade real do declarante, ou quando devesse conhecê-la, se agisse com razoável diligência; segundo, quando o próprio sentido objetivo suscite dúvidas, dever-se-á preferir significado que a boa-fé aponte como mais razoável.”(g.n) 148 o 151 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n.158642-7, da 5ª Câmara Cível, julgado em 16 de novembro de 2004: “Ementa: (...) Embora não haja no contrato celebrado entre as partes cláusula expressa prevendo a obrigação da empresa ABB Ltda. de fornecer peças de reposição e assistência técnica a IBEMA, essa obrigação é ínsita à pactuação, razão pela qual, determina-se, como providência cautelar, o seu cumprimento, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais)(...) Analisando o processo, verifica-se que não há no contrato celebrado entre as partes cláusula expressa prevendo a obrigação da empresa ABB Ltda. de fornecer peças de reposição e assistência técnica permanente a IBEMA, porém essa obrigação é ínsita à pactuação, posto que efetivamente só a ora agravante é quem dispõe, com exclusividade, da tecnologia empregada na construção e montagem do denominado Grupo Elétrico desse maquinário, sendo natural o desgaste do equipamento diante do seu contínuo funcionamento. Os artigos 113, 421 e 422 do novo Código Civil tratam da função social dos contratos e do princípio da boa-fé objetiva, estabelecendo o último dos dispositivos que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boafé. (...)Assim sendo, embora inexista cláusula contratual obrigando a agravante a fornecer peças de reposição e os serviços necessários ao funcionamento do maquinário, entendo que deve fazê-lo, tendo em vista os institutos acima referidos, informadores do novo sistema jurídico de Direito Privado.”(g.n) 149 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002, p.153. 150 MARTINS, Flávio Alves. A Boa-fé Objetiva e sua Formalização no Direito das Obrigações Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.20. 151 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.152. 73 Em nosso ordenamento jurídico sobre esta função da boa-fé, convém anotar o artigo 113 do Código Civil de 2002: “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Este dispositivo adotou a teoria da confiança, a qual segundo Silvio Rodrigues, representa: “uma fuga da posição individualista original. Tal entendimento demonstra deliberado abandono daquela posição individualista original, de ilimitado respeito ao dogma da vontade, para acolher uma concepção que mais atenda ao interesse geral. Isso a despeito de fugir à lógica do sistema, cujo pressuposto básico é o de que o elemento medular do ato jurídico se encontra na vontade.” (g.n)152 E conforme Teresa Ancona Lopez, o juiz, ao interpretar o negócio jurídico em seu conteúdo, deve levar em consideração a lealdade e a correnttezza que se espera. E explica a referida douta doutrinadora sobre a conciliação com o artigo 112: “Por outro lado, o art.112 do Código Civil, que contém regra interpretativa carregada da teoria da vontade, e que é aparentemente antinômica ao art.113, só pode ser interpretado segundo as luzes da teoria da declaração, na subespécie teoria da confiança. Em outras palavras, quando a lei diz que „nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem‟, devemos ter presente que essa intenção consubstanciada no texto negocial vem das declarações das partes e essas declarações não podem ser contra a boa-fé objetiva. Portanto, é perfeitamente possível conciliar os dois dispositivos, desde que tenhamos em mente que a intenção das partes só pode 152 RODRIGUES, Sílvio. Dos Vícios do Consentimento, 3ª ed., São Paulo: Saraiva,1989, p.38. 74 ser avaliada objetivamente e segundo a boa-fé, pois estamos diante de Código que adotou a teoria da confiança.”153 Ainda sobre essa função interpretativa da boa-fé objetiva, transcrevemos a lição de Flávio Tartuce: “Seguindo tendência ético-socializante, o art.113 do novo CC prevê que „os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da sua celebração‟. Nesse dispositivo a boa-fé é consagrada como meio auxiliador do aplicador do direito para a interpretação dos negócios, particularmente dos contratos. Entendemos, na verdade, que o aludido comando legal não poderá ser interpretado isoladamente, mas em complementaridade com o dispositivo anterior, que traz regra pela qual nas „declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem‟ (art.112 do novo CC). Quando esse dispositivo menciona a intenção das partes, traz em seu bojo o conceito de boa-fé subjetiva, por nós já apresentado. (...) Encerrando a presente abordagem, opinamos no sentido de que a boa-fé deve ser entendida como ferramenta auxiliar a guiar o magistrado na aplicação da norma ao contrato, dentro da equidade e das regras de razão que se espera do Poder Judiciário.” (g.n)154 Em relação a essa função, convém por derradeiro anotar que se trata de uma norma cogente que não pode ser afastada pelas partes ou pelo juiz. 153 LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador Wanderley Fernandes, São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.53. 154 TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil, São Paulo: Método, 2005, p.173-175. 75 E mais, alguns doutrinadores entendem que essa função deveria ser vista em conjunto com a função interpretação-integração.155 Em tal função, o princípio da boa-fé tem a finalidade nítida de completar, fornecer soluções e adequar a lei ao caso concreto. Judith Martins-Costa sobre essa função explana: “Com efeito, a primeira função, hermenêutico-integrativa, é a mais conhecida: atua aí a boa-fé como kanon hábil ao preenchimento de lacunas, uma vez que a relação contratual consta de eventos e situações, fenomênicos e jurídicos, nem sempre previstos ou previsíveis pelos contratantes. (...) A boa-fé atua, como cânone hermenêutico, integrativo frente à necessidade de qualificar esses comportamentos, não previstos, mas essenciais à própria salvaguarda da fattispecie contratual e à plena produção dos efeitos correspondentes ao programa contratual objetivamente posto.” 156 No que se refere à função controladora, esta significa inserir limites ao exercício dos direitos subjetivos. Nessa hipótese, esta função está diretamente ligada ao abuso de direito descrito no artigo 187 do Código Civil Brasileiro de 2002. Sobre esta função, descrevemos Fernando Noronha: “A função de controle corresponde ao terceiro comando em que se desdobra o princípio da boa-fé (e também relativo, como o comando subjacente à função integrativa, à execução das obrigações): o credor no exercício do seu direito, não pode exceder os limites impostos pela boa-fé, sob pena de proceder ilicitamente ou, pelo menos, antijuridicamente.”157 155 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas, Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002, p.135; MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.428. 156 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.428. 157 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Saraiva, 1994, p.167. 76 E mais adiante Fernando Noronha leciona sobre o abuso de direito e o princípio da boa-fé: “(...) Realmente importante é saber que o verdadeiro critério do abuso de direito parece estar no princípio da boa-fé: o que importa assinalar é, primeiro, que a boa-fé exige que cada parte que, ao exercer os seus direitos, haja com moderação e, segundo, que se a discricionariedade concedida aos particulares constitui a sua esfera de autonomia privada, a boafé, agora, terá uma função de limite a tal autonomia. Na verdade, se bem atentarmos nos atos geralmente apontados como de abuso de direito, veremos como em todos está presente uma violação do dever de agir de acordo com a boa-fé. Esta violação é patente desde logo nos casos de abuso de direito reconhecidos pelas concepções subjetivistas: quando se escolhe, com o propósito de prejudicar, o modo de exercício do direito que é mais danoso para a contraparte, é manifesta a violação do dever de agir com moderação, imposto pela boa-fé. Mas a violação do mesmo dever de agir conforme a boa-fé é visível também nos demais casos de abuso de direito, caracterizados apenas por desvio da sua finalidade, independentemente de qualquer propósito de prejudicar. Nestes casos, é preciso, todavia, sermos cautelosos antes de dar como verificado um abuso de direito, porque a boa-fé não exige que ninguém proceda de modo altruísta em relação à contraparte.” (g.n) 158 Teresa Negreiros sobre abuso de direito e princípio da boa-fé objetiva entende: “Inspira-se neste artigo do Código português o atual art.187 do Código Civil, o qual, contudo, em lugar da ilegitimidade, se 158 Ibid., p.173. 77 refere diretamente à ilicitude do exercício de direitos em contrariedade aos ditames da boa-fé (...). Diante da ordenação contratual, o princípio da boa-fé e a teoria do abuso de direito complementam-se, operando aquela como parâmetro de valoração do comportamento dos contratantes: o exercício de um direito será irregular, e nesta medida abusivo, se consubstanciar quebra de confiança e frustração de legítimas expectativas. Nesses casos, o comportamento formalmente lícito, consistente no exercício de um direito, é, contudo, um comportamento contrário à boa-fé e, como tal, sujeito ao controle da ordem jurídica.”159 Outra relevante particularização da boa-fé objetiva nessa sua função controladora encontra-se na teoria do adimplemento substancial. Sobre essa teoria e o princípio da boa-fé objetiva, importante transcrever a lição de Anelise Becker: “O princípio da boa-fé objetiva aí atua de forma a proteger o devedor frente a um credor malicioso, inflexível (boa-fé eximente ou absolutória), como causa de limitação ao exercício de um poder jurídico, no caso, do direito formativo de resolução, do qual é titular o credor de obrigação não cumprida.”160 Na forma dessa teoria, mesmo que a resolução esteja prevista expressamente no contrato, ou seja, presumida pela lei, esta não será permitida, pois viola a boa-fé, sempre que este adimplemento basear-se “em um resultado tão próximo do esperado, que não chega a abalar a reciprocidade, o sinalagma das prestações correspectivas.”161 Nessa hipótese, o credor receberá perdas e danos, mas não se justificará a resolução, tendo em vista que a comutatividade do contrato não chegou a ser abalada na sua essência. 159 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas, Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002, p.141. 160 BECKER, A. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, n. 1, vol. 9, nov. 1993, p.70. 161 Ibid., p.63. 78 Ainda sobre a visualização prática da teoria do adimplemento substancial, enfatizamos a lição de Daniel Martins Boulos: “(...) analisa-se a teoria da seguinte perspectiva: em contratos de longa duração nos quais existe a obrigação de pagamento de prestações, não raro ocorre que uma das partes contratuais efetuar o pagamento de parcela substancial das prestações contratuais e, por ter deixado de pagar uma ou duas parcelas, a contraparte pleitear a resolução do contrato por inadimplemento. Neste caso, doutrina e jurisprudência pátrias têm entendido que a prestação de resolução contratual por inadimplemento fere o princípio da boa-fé objetiva eis que houve “adimplemento substancial das obrigações 162 contratuais.” Na Europa, no desempenho dessa função controladora da boa-fé objetiva, surgiu a teoria dos atos próprios. Essa teoria tem dois prismas pela doutrina: (1) regra do tu quoque; e, (2) regra do venire contra factum proprium.163 Sobre a materialização da tu quoque e o princípio da boa-fé objetiva, anotamos a lição de Teresa Negreiros: “A respeito do tu quoque, a ideia básica é a de que atenta contra a boa-fé o comportamento inconsistente, contraditório com comportamento inconsistente, contraditório com comportamento anterior, e, especificamente, que resulte em desequilíbrio entre os contratantes, na medida em que permita que contratantes igualmente faltosos sejam, não obstante, tratados de forma desigual. (...) No caso específico da regra do tu quoque, a boa-fé objetiva atua como guardiã do sinalagma contratual, impedindo que o contratante que descumpriu norma legal ou contratual venha a exigir do outro que, ao contrário, 162 BOULOS, Daniel Martins. Abuso de Direito no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2006, p.182. MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.461. 163 79 seja fiel ao programa contratual: é o caso do contratante, em mora quando da ocorrência de circunstância que alteram a base do negócio, pretender então que o negócio seja extinto; ou ainda o caso do condômino, violando ele próprio a convenção do condomínio, pretender exigir dos outros condôminos que a respeitem.” (g.n) 164 Em relação à regra venire contra factum proprium, Teresa Negreiros bem exemplifica quando acontece a sua configuração: “Mais complexa é a regra do venire contra factum proprium, que, de forma geral, proscreve o comportamento contraditório que importe quebra de confiança, revertendo legítimas expectativas criadas na outra parte contratante. É mais complexa porque, neste caso, não se exige sequer que o comportamento impugnado se realize na sequência de um ato objetivamente indevido (como se viu em relação tu quoque), bastando que se configure um desvio de conduta em relação à linha de atuação que aquele contratante vinha assumindo como padrão. (...) A complexidade desta noção ligada aos valores da veracidade e de confiança, reside, como se percebe facilmente, no estabelecimento de critérios de valoração aptos a determinar quais as contradições da conduta humana que devem e quais as que não devem ser consideradas contrárias à boa-fé. (...) Na verdade, não são todas as expectativas, mas somente aquelas que, à luz das circunstâncias do caso, estejam devidamente fundadas em atos concretos (e não somente indícios) praticados pela outra parte, os quais, conhecidos pelo contratante, o fizeram confiar na manutenção da situação assim gerada. Mais que isso, o comportamento contraditório só 164 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002, p.143. 80 será alcançado pela boa-fé objetiva quando não for justificável e, ainda, quando a reversão de expectativas assim ocorrida gere efetivos prejuízos à outra parte cuja confiança tenha sido traída.” 165 Esmiuçando ainda mais o tema, identifica a doutrina outras formas de abuso de direito, dentre as quais a figura da supressio (ou Verwirkung como preferem os alemães). Este instituto cabe dentro da categoria em que o titular de um direito adota atitudes deslealmente contraditórias, criando primeiro na contraparte uma confiança justificada em que não-exercerá o seu direito e depois fazendo valer este.166 Segundo Menezes de Cordeiro “diz-se supressio a situação do direito que não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa-fé.”167 Isto é, a supressio é o fenômeno da perda de certa faculdade jurídica pelo decurso do tempo, tendo em vista que gerou a outra parte uma legítima expectativa de não exercício do respectivo direito pelo titular. Em outra oportunidade, um julgado decidindo uma questão relacionada ao contrato de mútuo e fornecimento de energia elétrica, a Desembargadora relatora Maria Isabel de Azevedo Souza bem anotou os requisitos necessários para a sua configuração, quais sejam; “(i) decurso de prazo sem exercício do direito com indícios objetivos de que o direito não mais seria exercido e; (ii) desequilíbrio, pela ação do tempo, entre o benefício do credor e o prejuízo do devedor.”168 Como também, no mesmo voto, reconheceu quando se aplica este instituto, no seguinte sentido: “A supressio constitui em limitação ao exercício de direito subjetivo que paralisa a pretensão em razão do princípio da boa-fé objetiva.” Após estes esclarecimentos sobre a tripartição das funções do princípio da boa-fé objetiva, de fato, realçamos que na prática elas se complementam, sendo 165 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002, p.146-148 166 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual), São Paulo: Editora Saraiva, 1994, p.183. 167 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1984, vol.2, p.797. 168 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70001911684, da 2ª Câmara Cível, j. em 04 de dezembro de 2000. 81 trabalhoso, numa hipótese concreta, saber qual papel o princípio da boa-fé estaria desempenhando.169 3.2.5 Efeitos da violação ao princípio da boa-fé objetiva Se o juiz considerar que o contrato teria violado o princípio da boa-fé objetiva, qual seria o efeito na prática dessa sentença em uma relação jurídica não regida pelo Código Consumidor, tal como a ora estudada (contrato de prestação de serviços empresarial)? O juiz poderia declarar a nulidade, haja vista que teria sido transgredida uma norma cogente? Nosso entendimento seria de que neste caso teria se violado uma norma cogente, e, logo, a consequência jurídica seria a decretação da nulidade do contrato. Ou, dependendo do caso, poderia ocorrer uma revisão do contrato, de forma a equilibrar melhor a relação contratual. Entendo também serem aplicáveis as consequências descritas no item 3.3.3 desse trabalho, as quais, inclusive são aplicáveis em relação ao princípio da função social. A doutrina de Teresa Negreiros, citando um precedente jurisprudencial, corrobora com esse raciocínio da nulidade.170 Algumas decisões do Colendo Superior Tribunal de Justiça, ao mencionar sobre normas cogentes em outros assuntos e inclusive citando o entendimento de Nelson Nery Júnior (nos Comentários ao Código Civil, item 3.3.3 desse trabalho), já foram cristalinas ao consagrar que os princípios da boa-fé objetiva, da função social estão em normas de caráter cogente.171 Inclusive sobre o assunto específico (natureza de ordem pública dos princípios da boa-fé objetiva e da função social no contrato de prestação de serviços empresarial) há a decisão monocrática proferida 169 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002, p.140. 170 Ibid., p.138-139. 171 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Decisão Monocrática em Recurso Especial n. 1086197-SP, da 3ª Turma, Brasília, DF, data da publicação no “DJE” 25 de maio de 2011; BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.1.112524-DF, Corte Especial, Brasília, DF, data de publicação no “DJE” 01 de setembro de 2010. 82 no Agravo de Instrumento n. 1.163482-PR proferida pelo Ministro João Otávio Noronha.172 3.3 Do princípio da Função Social 3.3.1 Da noção preliminar e do fundamento constitucional do princípio da função social do contrato O artigo 421 do Código Civil Brasileiro de 2002 dispõe: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” Este texto explicitou expressamente a função social do contrato. Segundo este postulado se declara que o contrato não pode mais ser visto pela visão meramente individualista, tendo em vista que tem um sentido social de utilidade para toda a sociedade. Isto não significa dizer na dicção da norma que a função social do contrato proíba a liberdade de contratar, porém, legitima a liberdade contratual.173 Exemplificando este princípio, Paulo Luiz Netto Lobo afirma: “O princípio da função social determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles, pois os interesses sociais são prevalentes. Qualquer contrato repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.” (g.n) 174 172 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 1163482-PR, da 4ª Turma, Brasília, DF, data da publicação no “DJE” 17 de fevereiro de 2011. 173 ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro Cezar Peluso. 5ª ed., São Paulo: Editora Manole, 2011, p.485. 174 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios dos Contratos e Mudanças Sociais. Revista Jurídica n. 329, vol.53, São Paulo: Notadez, mar. de 2005, p.9-17. 83 Tal como o princípio da boa-fé objetiva, este dispositivo (artigo 421 do Código Civil) é uma típica cláusula geral, permitindo ao intérprete um certo grau de mobilidade na sua concretização diante dos fatos. No que tange à base desse princípio, não é um consenso na doutrina. Para alguns, a base da função social estaria no princípio da igualdade substancial.175 Para outros, a base da função social estaria no artigo 170, caput, da Constituição Federal da República, de forma que os contratos não podem trazer prejuízo para a sociedade, devendo estabelecer-se em uma ordem social harmônica.176 Existe doutrina que raciocina que a função social do contrato teria base na dignidade da pessoa humana e da livre iniciativa, pois o contrato deverá harmonizar esses dois cânones constitucionais, almejando a justiça social e o desenvolvimento nacional.177 Paulo Nalin defende que o fundamento mais sólido da função social seria a solidariedade.178 Já Daniel Martins Boulos entende que a função social estaria fundamentada na solidariedade social e na dignidade da pessoa humana.179 Nosso entendimento é de que a cláusula geral deriva de forma lógica do princípio constitucional dos valores decorrentes da solidariedade, da dignidade da pessoa humana e da construção de uma sociedade mais justa (artigo 3°, inciso I da Constituição Federal). Isso porque esse preceito embasa no exato sentido de que se os indivíduos querem contratar, eles têm a liberdade para tanto, devendo, contudo, também atentarem em preservar os valores da dignidade da pessoa humana, da 175 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. A função social do contrato. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, n. 45, São Paulo, 1983, p.141. 176 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do Novo Direito Contratual e Desregulamentação do Mercado – Direito de Exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – função social do contrato e responsabilidade aquiliana de terceiro que contribui para inadimplemento contratual. (Parecer), Revista dos Tribunais n. 750, Ano 87, São Paulo: Revista dos Tribunais, abr./1998, p.116. 177 HORA NETO, João. O princípio da função social do contrato no código civil de 2002. Revista de Direito Privado, n° 14, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.46. 178 NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional. Curitiba: Juruá, 2001, p.223. 179 BOULOS, Daniel Martins. A autonomia privada, a função social do contrato e o novo Código Civil. In: ALVIM, Arruda; CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira; ROSAS, Roberto (Coordenador), Escritos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.131. 84 solidariedade (verdadeira dicção de que o homem vive na medida em que convive), do interesse coletivo, para com essas posturas alcançarem de forma indireta uma justiça mais distributiva. Ademais, além dos fundamentos expostos, concordamos plenamente com a visão de Teresa Ancona Lopez ao dizer que: “O fundamento do princípio da função social do contrato é constitucional e somente pode ser entendida tamanha limitação à autonomia privada, princípio básico dos contratos, à luz do texto constitucional. Os dispositivos que diretamente fundamentam a função social do contrato na Constituição Federal são: a) art.1°, III – cláusula geral que contém o princípio da dignidade humana, como um dos pilares da República do Brasil. Porém, mesmo tendo o contrato a função social como pressuposto de sua validade que impõe respeito à coletividade e a terceiros, não pode, de forma alguma deixar de proteger e promover as pessoas que dele participam, ou seja, não pode deixar de lado o valor fundante da dignidade da pessoa humana; b) art.1°, IV – dispõe como fundamento para um Estado Democrático os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. A Lei Maior consagra expressamente o valor social da livre iniciativa. Eis aí a importância do contrato como fato social, principal instrumento de circulação das riquezas e, com isso, do progresso econômico de um país. A disposição do art.1°, inciso IV, „impõe, ao jurista, a proibição de ver o contrato como átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais.‟ c) art.3°, I – por ele a função social do contrato vai ajudar a „construir uma sociedade livre, justa e solidária‟. É o princípio da solidariedade social consagrado por todas as constituições modernas e que deve ser observado por toda a legislação 85 infraconstitucional. Sem isso, impossível a construção de uma sociedade justa na qual o bem comum é o seu fim último; d) os artigos antecedentes são completados pelo art.170 da CF, que abre o capítulo dos „Princípios gerais da atividade econômica‟ e que determina que a „a ordem econômica‟, fundada na valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social...‟ O dispositivo repete o valor que tem para a sociedade não só o trabalho humano mas também a livre iniciativa, sendo esta, inclusive, a principal geradora de empregos.” (g.n)180 3.3.2 Do princípio da função social e o seu conteúdo O contrato só terá o conteúdo da função social se os contraentes amoldálo aos valores da solidariedade, da justiça social, da dignidade da pessoa humana. Não estará se atendendo a esta função quando: “a) a prestação de uma das partes for exagerada ou desproporcional, extrapolando a álea normal do contrato; b) quando houver vantagem exagerada para uma das partes; c) quando quebrar-se a base objetiva ou subjetiva do contrato, etc.”181 O princípio da função social está intrinsecamente ligado ao princípio da boa-fé objetiva. Lembre-se, a boa-fé objetiva deriva da função social, de forma que tudo o que se disser acerca da primeira poderá ser considerada integrante, também da segunda.182 180 LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador Wanderley Fernandes. São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.61-62. 181 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.531. 182 Idem. 86 3.3.3 Artigo 421 CC: Natureza da Norma de Ordem Pública Na forma expressa do parágrafo único do artigo 2.035 do Código Civil Brasileiro de 2002, a função social é um preceito de ordem pública e de interesse social. Em razão dessa natureza, o juiz pode conhecê-la de ofício, a qualquer momento e em qualquer grau de jurisdição. Sobre esse tema, transcrevemos Nelson Nery Júnior: “A norma ora comentada é de ordem pública e de interesse social (CC 2035 par.ún.). Constitui-se como cláusula limitadora da autonomia privada. Como é de ordem pública, o juiz deve aplicá-la de ofício (sua aplicação não exige a iniciativa da parte), a qualquer tempo e grau de jurisdição (não está sujeita à preclusão). Como consequência, quanto à cláusula geral de função social do contrato, não incide a regra da congruência entre pedido e sentença (CPC 128 e 460), de modo que é imune ao vício da decisão extra ou ultra petita. Tem função instrumentalizadora, propiciando ao juiz transformar a expressão abstrata e estática da lei em situação e normatização concreta: o juiz integra o (faz parte do) contrato.” (g.n) 183 E mais, se o contrato violar esse preceito, o julgador poderá expedir decisão para: a) declarar a nulidade dele; b) convalidar ato anulável; c) determinar a sua resolução se configurada a onerosidade excessiva; d) revisar o contrato reduzindo a prestação de umas das partes se esta estiver exagerada ou desproporcional; e) diminuir o percentual dos juros estipulados na relação contratual. 183 Ibid., p.530. 87 E mais, se o contrato violar este preceito, o julgador poderá expedir decisão para: a) declarar a nulidade dele; b) convalidar ato anulável; c) determinar a sua resolução se configurada a onerosidade excessiva; d) revisar o contrato reduzindo a prestação de umas das partes se esta estiver exagerada ou desproporcional; e) diminuir o percentual dos juros estipulados na relação contratual.184 Finalmente, é importante consignar que o princípio da função social, tal como o da boa-fé objetiva, pode ser aplicado em contratos firmados antes de 1º de janeiro de 2003. É a ordem pública retroagindo em nome da solidariedade social (função social) e da eticidade (boa-fé objetiva) visando à construção de uma sociedade mais justa.185 3.3.4 Da função social e os aspectos internos e externos Neste tópico, em um primeiro momento, iremos discorrer brevemente sobre esses dois aspectos internos e externos. O aspecto interno é pertinente entre os partícipes da relação contratual, por outro lado, o externo é referente ao terceiro que não é parte do contrato. Aliás, sobre esses aspectos foram editados enunciados aprovados pelo Conselho da Justiça Federal, a seguir transcritos: 184 DELGADO, José Augusto. O contrato no Código Civil e a sua Função Social. Revista Jurídica, São Paulo: Síntese, ago./2004, n.322, ano 52, p.7-25. 185 LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador Wanderley Fernandes. São Paulo: Saraiva, 2009, Série GV Law, p.62. Corroborando com este raciocínio Fatima Nancy Andrighi preleciona: “(..) O art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil de 2002, como já visto, trata da validade dos negócios e atos jurídicos, dispondo que nenhum negócio ou ato jurídico prevalecerá, quanto aos seus efeitos, se,quando da ocorrência destes houver afronta aos preceitos fundamentais de ordem pública introduzidos pelo Novo Diploma Civil, como a função social da propriedade, do contrato e a boa-fé objetiva. Tais preceitos de índole constitucional, hoje incorporados à Lei Civil, imprimem caráter cogente ao dispositivo de Direito Privado sobredito, vindo a permitir a salvaguarda dos interesses jurídicos de caráter prevalentemente social, superando, de certa forma, a regra também posta pela Lei Fundamental no que tange à irretroatividade de leis.” (g.n) (ANDRIGHI, Fatima Nancy. Aplicação do Novo Código Civil: Direito Intertemporal. Brasília: Bdjur-STJ: 14/05/2003. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/652. Acesso em: 18 out.2011) 88 “Enunciado n° 21 do Conselho Federal de Justiça – I Jornada de Direito Civil Art.421: a função social do contrato, prevista no art.421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.186 Enunciado n. 360 do Conselho Federal de Justiça – IV Jornada de Direito Civil– Art. 421. O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes.”187 Paulo Nalin preleciona que a função social manifesta-se em dois aspectos/níveis: um intrínseco e outro extrínseco. O primeiro (o contrato sob a ótica da relação jurídica dos contratantes) significa que a função social estaria intimamente ligada à obediência aos princípios da boa-fé objetiva, da equidade188, da igualdade material, pelos partícipes contratuais, “todos decorrentes da grande cláusula constitucional de solidariedade, sem que haja um imediato questionamento acerca do princípio da relatividade dos contratos.”189 Já o segundo nível (o contrato contra a coletividade) significa quebrar com o princípio da relatividade dos efeitos do contrato. Sob o prisma de Humberto Theodoro Júnior, para quem: “a função social do contrato consiste em abordar a liberdade contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das relações entre as partes que o estipulam (contratantes). Já o princípio da boa-fé fica restrito ao relacionamento travado entre os próprios sujeitos do negócio jurídico. Nessa ótica, sem serem partes do contrato, terceiros têm de respeitar seus efeitos no meio social, porque tal modalidade de 186 Disponível em: http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf. Acesso em: 21 out. 2011. Disponível em: http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IVJornada.pdf. Acesso em: 21 out. 2011. 188 NALIN, Paulo. A função social do contrato no futuro Código Civil Brasileiro. Revista de Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, vol.12, p.54, out./dez/2002. 189 Idem. 187 89 negócio jurídico tem relevante papel na ordem econômica indispensável ao desenvolvimento e aprimoramento da sociedade. Têm também os terceiros direito de evitar reflexos danosos e injustos que o contrato, desviado de sua natural função econômica e jurídica, possa ter na esfera de quem não participou de sua pactuação.”190 Em relação ao aspecto externo, relevante notar que este princípio é o que mais interfere no princípio da relatividade das convenções191; ou seja, o princípio da função social é o que mais ponderações suscita acerca dos contornos do princípio da relatividade.192 Com efeito, embora o princípio da relatividade dos efeitos do contrato seja ainda um princípio que rege as relações contratuais, ele não autoriza que estes terceiros possam ser indiferentes ao contrato, nem tampouco que as partes sejam indiferentes ao terceiro. Ainda em relação ao aspecto externo, cria-se uma situação jurídica que vincula não só os contratantes, mas também terceiros, que tenham conhecimento do contrato, dessa forma, ampliando a sua oponibilidade. Exemplificando esta oponibilidade advinda do princípio da função social do contrato, mencionamos Teresa Negreiros: “O princípio da função social condiciona o exercício da liberdade contratual e torna o contrato, como situação jurídica merecedora de tutela, oponível erga omnes. Isto é, todos têm o dever de se abster da prática de atos (inclusive a celebração de contratos) que saibam prejudiciais ou comprometedores da satisfação de créditos alheios. A oponibilidade do contrato traduz-se, portanto, nesta obrigação de não fazer, imposta àquele que conhece o conteúdo do contrato, embora não seja parte. Isto não implica tornar as obrigações contratuais 190 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.31-32. 191 LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador Wanderley Fernandes. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, Série GV Law, p.71. 192 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002, p.223. 90 exigíveis em face de terceiros (é o que a relatividade impede), mas impõe aos terceiros o respeito por tais situações jurídicas, validamente constituídas e dignas da tutela do ordenamento (é o que a oponibilidade exige).” (g.n)193 Isto significa dizer que, pelo princípio da função social, o contratante é civilmente responsável perante terceiros que foram prejudicados em razão do desvio da função do contrato; e, por outro lado, o terceiro é responsável civilmente pelos danos que causar aos contratantes devido a sua intervenção indevida. Isto é, em outras palavras, o aspecto externo da função social, com essa cara de oponibilidade, pode fazer surgir uma responsabilidade civil aquiliana se for violada pelos partícipes contratuais ou por terceiros. 3.3.5 Alguns casos de aplicação da função social O próprio Código Civil de 2002 tem artigos que indicam que têm como regra de fundo a realização do princípio in casu. Alguns exemplos desses dispositivos: artigo 144, 157, Parágrafo 2° (lesão), 170, 473, 608, 1.488.194 Humberto Theodoro Júnior, de forma interessante em sua obra, tentou listar alguns exemplos de ocorrência de desvio da função social no contrato: “Embora seja difícil reunir ou sintetizar todas as possibilidades de desvio da função social do contrato, alguns exemplos podem ser aventados, para ilustrar a tese, como: a) induzir a massa de consumidores a contratar a prestação ou aquisição de certo serviço ou produto sob influência de propaganda enganosa; b) alugar imóvel em zona residencial para fins comerciais incompatíveis com o zoneamento da cidade; 193 Ibid., p.264-265. LOPEZ, Teresa Ancona. Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais, Coordenador Wanderley Fernandes. São Paulo : Saraiva, Série GV Law, 2009, p.69. 194 91 c) alugar quartos de apartamento de prédio residencial, transformando-o em pensão; d) ajustar contrato simulado para prejudicar terceiros; e) qualquer negócio de disposição de bens em fraude de credores; f) qualquer contrato que, no mercado, importe o exercício de concorrência desleal; g) desviar-se a empresa licitamente estabelecida em determinado empreendimento, para contratação de operações legalmente não permitidas, como v.g., uma fatorizadora que passa a contratada depósitos como se fosse instituição bancária; ou instituição financeira que, em lugar das garantias reais permitidas pela lei, passa a adotar o pacto de retrovenda ou o compromisso de compra e venda, burlando assim a vedação legal do pacto comissário; h) agência de viagens que sob a aparência de prestação de serviços de seu ramo, contrata na realidade o „turismo sexual‟, ou a mediação no contrabando ou em atividades de penetração ilegal em outros países; i) enfim, qualquer tipo de contrato que importe desvio ético ou econômico de finalidade, com prejuízo para terceiros.”195 Luiz Guilherme Loureiro também exemplifica casos em que a função social do contrato não foi cumprida: “A título de exemplo, seriam contrários à sua função social os contratos que violassem a ordem econômica, seja determinando o aumento arbitrário de lucro, seja causando o domínio de mercado relevante por parte de uma empresa cocontratante, seja possibilitando o exercício abusivo de posição dominante de uma das partes; bem como contratos em que houvesse desproporcional vantagem patrimonial de uma das 195 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.73-74. 92 partes, em detrimento de outra, por força de circunstâncias tais como o estado de perigo, o estado de necessidade e a inexperiência da outra parte.”196 Interessante mencionar um caso prático do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que, revisando o contrato de prestação de serviços empresarial de publicidade com base na função social, diminuiu a remuneração do prestador de serviços em 25%, já que prestou de forma tardia os serviços.197 3.4 Do princípio da justiça contratual Este princípio exprime-se com a busca da efetiva igualdade entre as partes. Mediante esse preceito, busca-se conciliar os interesses dos contratantes, e concretizar o equilíbrio real das prestações em todo o processo obrigacional. Sobre esse aspecto, transcrevemos a lição de Paulo Luiz r Lôbo que neste caso apelidou o princípio como princípio da equivalência material: “O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos no contrato, antes, durante e após a sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças das circunstâncias pudessem ser previsíveis.”198 196 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria geral dos contratos no novo código civil. São Paulo: Método, 2002, p.56. 197 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0024.03.101440-0/001, da 14ª Câmara Cível, j. em 16 de novembro de 2006. 198 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios dos Contratos e Mudanças Sociais. Revista Jurídica n. 329, vol.53, São Paulo: Notadez, mar. de 2005, p.15. 93 A importância desse princípio na teoria contratual começou quando a igualdade jurídico-formal (na concepção clássica liberal de contrato) não era suficiente para garantir o equilíbrio das prestações no contrato. Esse cânon flexibiliza o princípio clássico do pacta sunt servanda, pois hoje o que interessa é se na execução do contrato não existirá um desequilíbrio nas prestações, e não mais uma exigência cega de simples cumprimento de contrato. 199 Com efeito, isto significa dizer que o princípio do pacta sunt servanda foi mitigado, mas não foi extinto do ordenamento jurídico. Aliás, isto nem seria possível, dado o valor da segurança jurídica das relações contratuais. O que ocorre é que este princípio não justifica que se possa haver proveito injustificado de uma das partes em detrimento da outra. Teresa Negreiros, sobre este aspecto, diz sobre apelidado princípio do equilíbrio econômico (aqui chamado princípio da justiça contratual): “A ênfase no tratamento paritário, em substituição à ênfase na liberdade, não deixa de representar uma escolha com colorações valorativas. No domínio das relações contratuais, a concepção de justiça, outrora formulada em termos de autonomia e liberdade, altera-se profundamente à luz do princípio do equilíbrio econômico. (...) Com efeito, a noção de equilíbrio no contrato traz para o seio da teoria contratual a preocupação com o justo como sendo um critério paritário de distribuição dos bens. Justo é o contrato cujas prestações de um e de outro contratante, supondo-se interdependentes, guardam entre si um nível razoável de proporcionalidade. Uma vez demonstrada a exagerada ou a excessiva discrepância entre as obrigações assumidas por cada contratante, fica configurada a injustiça daquele ajuste, exatamente na medida em que configurada está a inexistência de paridade. O princípio do equilíbrio econômico do contrato remete, portanto, a uma dada definição filosófica de justiça, sintetizada 199 Ibid., p.14. 94 na ideia de “meio termo”. (...) Este meio termo, este ponto intermediário, resta comprometido, na relação contratual, sempre que se verificar um certo nível de desproporção entre prestações que se supõem minimamente equivalentes.” (g.n) 200 Fernando Noronha entende que a justiça contratual é a “relação de paridade, ou equivalência, que se estabelece nas relações de troca, de forma que nenhuma das partes dê mais nem menos do valor que recebeu” 201 E mais adiante, explica que: “se a justiça costuma ser representada pela balança de braços equilibrados, a justiça contratual traduz precisamente a ideia de equilíbrio que deve haver entre direitos e obrigações das partes contrapostas numa relação contratual.” Nesse ponto, importante mencionar Leonardo Mattietto, que, sobre esse preceito assim denominado princípio do equilíbrio contratual, diz: “O princípio do equilíbrio contratual enseja, por um lado, a renegociação, pelas próprias partes, dos termos inicialmente avençados, como também, por outro lado, abre a via, nem sempre desejável, mas frequentemente adotada, conducente à revisão do contrato ou mesmo à sua resolução. (...) Dado que o equilíbrio contratual remete à igualdade, como princípio constitucional, a resolução ou revisão do contrato em razão da alteração de circunstâncias são expressões de uma exigência fundamental do ordenamento. O princípio da 200 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos Contratos. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2002, p.166-167. 201 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994, p.214-215. 95 igualdade é a ratio que enseja o equilíbrio nas relações jurídicas contratuais.” (g.n) 202 Esta preocupação em manter o equilíbrio das prestações está também estampada no Código Civil Brasileiro de 2002 em seus artigos 317, 478, 480 (teoria da imprevisão), 156 (instituto do estado de perigo), 157 (instituto da lesão), e, por isso, estes dispositivos permitem a revisão das condições contratadas e em alguns casos até a sua resolução. Vejamos o instituto lesão de forma resumida no item 3.4.2. 3.4.1 Aspectos objetivos e subjetivos do princípio da justiça contratual O postulado estudado pode ser visto sobre dois aspectos diferentes: o objetivo e o subjetivo. O primeiro leva em consideração o efetivo desequilíbrio de direitos e deveres contratuais que já pode estar presente quando na celebração do contrato ou este (desequilíbrio) surge posteriormente (onerosidade excessiva de um dos contratantes). Nesses casos, discutiremos a lesão de forma resumida, e deixaremos de abordar o estado de perigo, a onerosidade excessiva para evitar a fuga do tema. Já o segundo leva em consideração o poder contratual dominante de uma dos contraentes e a presunção legal de vulnerabilidade. Este segundo caso, a lei presume juridicamente e de forma absoluta serem vulneráveis o trabalhador, o consumidor e o aderente de contrato de adesão.203 Antes de adentrar nos institutos da lesão, importante mencionar que esses, além de serem esboçados pelo princípio da justiça contratual, devem, por outro lado, não se olvidarem das reflexões do princípio da boa-fé objetiva, já que se relacionam também com esse cânon. Sobre isso, assevera Fernando de Noronha: “Se, porém, o princípio da justiça contratual é fundamental no delineamento destas figuras da lesão (...), é preciso nunca 202 MATTIETTO, Leonardo. O Princípio do Equilíbrio Contratual. Disponível em: http://download.rj.gov.br/documentos/10112/392202/DLFE26513.pdf/11OPrinci-piodoEquilibrio.pdf. Acesso em: 22 out.2011. 203 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios dos Contratos e Mudanças Sociais. Revista Jurídica n. 329, vol.53, São Paulo: Notadez, mar. de 2005, p.15. 96 esquecer que a elas também não pode ficar alheia a ponderação do princípio da boa-fé – para tutela de eventual boa-fé da parte que tem interesse na manutenção do negócio, quando se funde numa expectativa legítima de atuação correta e leal, no momento de contratar, da outra parte, que agora está interessada na rescisão. A necessidade da tutela da confiança dessa parte interessada na manutenção do negócio, quando legítima, irá, portanto, aqui, atuar em sentido contrário ao princípio da justiça contratual. Cremos mesmo que, se na lesão, além da manifesta disparidade entre prestação e contraprestação (elemento objetivo), é de exigir também, como sustenta o Prof.Caio Mário, um aproveitamento consciente, ainda que não intencional, da situação de inexperiência, ou de leviandade, ou ainda do estado de necessidade da outra parte (elemento subjetivo), é exatamente para a tutela da eventual boa-fé desta. Aliás, se a contraparte se aproveitou da inexperiência, leviandade ou situação de necessidade da parte lesada, ela, além de infringir o dever de agir com correção e lealdade impostas pela boa-fé objetiva, ainda estará de má-fé objetiva. (...) a atuação de quem não esteja em situação de boa-fé subjetiva será sempre conduta infringente do dever de agir de acordo com o princípio da boa-fé objetiva.” (g.n)204 3.4.2 Da lesão Esse instituto é visualizado no aspecto objetivo do princípio, conforme explicado acima. 204 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994, p.236-237. 97 Sobre a lesão, esta pode ser “caracterizada como uma situação de desequilíbrio entre a prestação e contraprestação que, sendo, grave, autoriza o prejudicado a rescindir o contrato.”205 Maria Helena Diniz, ao comentar o artigo 157 do Código Civil, define o instituto da lesão: “É um vício de consentimento decorrente do abuso praticado em situação de desigualdade de um dos contratantes, por estar sob premente necessidade, ou por inexperiência, visando protegê-lo, ante o prejuízo sofrido na conclusão do contrato comutativo, devido à desproporção existente entre as prestações das duas partes, dispensando-se a verificação do dolo, ou má-fé, da parte que se aproveitou.” (g.n) 206 O instituto da lesão manifesta o princípio da justiça contratual, e foi uma das formas que o legislador arranjou em proteger uma parte que se encontra em nítido estado de inferioridade. Carlos Alberto Bittar Filho assevera que a luta em face da lesão representa: “a consagração da democracia contratual, garantindo a igualdade nas contratações e o equilíbrio relativo de poder no âmbito negocial, tendo por objetivo último a manutenção da homeostase contratual, consagrando a democracia no microcosmo negocial.” (g.n) 207 Após a concepção de lesão, convém explanar que a doutrina classifica a lesão em três modalidades: lesão enorme, lesão qualificada (usurária) e a lesão especial. A primeira é aquela que simplesmente verse sobre a desigualdade genética entre a prestação e a contraprestação. A segunda é aquela que além da desigualdade inicial entre a prestação e contraprestação, ainda decorrem a inexperiência e a leviandade do devedor, acrescidas do dolo de aproveitamento do 205 Ibid., p.233. DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 15ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p.185. 207 FILHO BITTAR, Carlos Alberto. A lesão no direito brasileiro atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.3. 206 98 credor. Por derradeiro, a terceira exige a inexperiência ou necessidade de contratar do assuntor e a desigualdade nascente de prestações.208 O artigo 157 do Código Civil Brasileiro positivou a lesão na modalidade de lesão especial, eis que exige o requisito objetivo (desproporção entre prestação e contraprestação) e o subjetivo (inexperiência ou necessidade do assuntor da obrigação) para a configuração do instituto.209 Comungando desse entendimento, foi emitido o Enunciado n. 290 pelo Conselho Federal da Justiça na IV Jornada de Direito Civil, a seguir exposto: “A lesão acarretará a anulação do negócio jurídico quando verificada, na formação deste, a desproporção manifesta entre as prestações assumidas pelas partes, não se presumindo a premente necessidade ou a inexperiência do lesado.”210 A lesão também não exige o dolo de aproveitamento, tal como ficou definido pelo Enunciado n. 150 emitido pelo Conselho Federal da Justiça na III Jornada de Direito Civil: “A lesão que trata o CC 157 não exige dolo de aproveitamento.”211 No que se refere a sua natureza, a lesão é um vício do negócio jurídico, e, por essa razão, é causa de anulação, conforme inteligência emprestada ao artigo 171, inciso II, do Código Civil, exceto no caso do artigo 157, Parágrafo Segundo do Código Civil. O prazo para pedir a anulação é decadencial de 4 anos contados da celebração do negócio. (artigo 178 do Código Civil) 212. O Enunciado n° 149 do Conselho Federal da Justiça, emitido na III Jornada de Direito Civil, e o Enunciado n° 291 do Conselho Federal da Justiça, emitido na IV Jornada de Direito Civil, falam acerca da anulação do negócio jurídico quando dispõem: “Enunciado n° 149 do Conselho Federal da Justiça emitido na III Jornada de Direito Civil - Em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá 208 LOTUFO, Renan. Código Civil comentado: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003, p.440. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.361. 210 Ibid., p.362. 211 Idem. 212 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.361. 209 99 conduzir, sempre, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do art.157, §2° do Código Civil de 2002.213 Enunciado n° 291 do Conselho Federal da Justiça emitido na IV Jornada de Direito Civil – Nas hipóteses de lesão prevista no art.157 do Código Civil, pode o lesionado optar por não pleitear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde logo, pretensão com vista à revisão judicial do negócio por meio da redução do proveito do lesionador ou do complemento do preço.”214 3.5 Da jurisprudência específica no contrato de prestação de serviços empresarial e os princípios contratuais sociais Em uma análise perfunctória, e sem fazer qualquer prévia consulta jurisprudencial, entende-se de forma lógica que o motivo dos litígios nessas searas estaria mais especificamente em casos de resilição antecipada unilateral de uma das partes quando foram feitos investimentos por uma delas, e cláusulas abusivas que levariam a um desequilíbrio em favor de um contratante em detrimento de outro. Ou, tal como já alertado pela doutrina (item 2.3.4), no caso do artigo 608 do Código Civil, que trata da consequência do aliciamento do prestador de serviços por terceiro. Nesses três casos, imaginaria uma intersecção mínima entre os princípios da boa-fé objetiva e o da função social do contrato. Vamos a estes casos que imaginamos. Imagine-se que o prestador de serviços (como Pessoa Jurídica) em seu negócio fizesse investimentos consideráveis para atender a demanda do tomador de serviços (como empresa). Durante o prazo contratual, o tomador de serviços em qualquer justificativa, notifica a prestadora de serviços com intuito de resilir o 213 214 Ibid., p.362. Idem. 100 contrato com fundamento em cláusula contratual. Neste caso, a empresa prestadora de serviços poderia alegar que esta cláusula de possibilidade de resilição violaria ao princípio da boa-fé objetiva e da função social do contrato em face da outra empresa tomadora de serviços? E nessa hipótese seria possível o juiz manter o contrato de prestação de serviços? Verificando os julgados nas hipóteses abaixos, notamos que somente em casos excepcionais, tais como risco de fato de encerrar um empreendimento em razão da cláusula de exclusividade, e danos à saúde da população, os desembargadores entendem em manter o contrato. A regra ainda continua com a prevalência do “pacta sunt servanda”, haja vista o posicionamento cauteloso dos julgadores em aplicar os princípios sociais. Parece-nos que estes princípios são aplicados com bastante parcimônia, e somente nas circunstâncias que existe nítida relação de vulnerabilidade da parte solicitante, e mais com fundamento no princípio da justiça social com nítido intuito de promover o equilíbrio das prestações. É como se os dois princípios (boa-fé objetiva e função social) fossem embasados tão só no cânon da justiça contratual. Em caso similar ao exposto, em pesquisa no Colendo Tribunal de Justiça do Paraná, este entendeu que a cláusula de denúncia unilateral seria contrária aos princípios do equilíbrio contratual, da boa-fé objetiva e da função social do contrato, e dessa forma em sede de concessão de tutela antecipada obstou a resolução do contrato de prestação de serviços. Seguem as principais partes das razões do V.Acórdão: “EMENTA: AGRAVO POR INSTRUMENTO - AÇÃO DE PROCEDIMENTO ORDINÁRIO COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA ARTIGO 273, INCISO I DO CPC - PRESTAÇÃO DE SERVIÇO - RESILIÇÃO UNILATERAL - DENÚNCIA REALIZADA COM BASE EM CLÁUSULA CONTRATUAL DISCUSSÃO A RESPEITO DA VALIDADE DA CLÁUSULA POSSIBILIDADE DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO EQUILÍBRIO CONTRATUAL, DA BOA-FÉ OBJETIVA E FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO - PRESENTES OS REQUISITOS - RECURSO PROVIDO. 1. A tutela requerida pela agravante é uma forma de proteção a um direito que alega existente (vigência do contrato até o prazo 101 estipulado ante a possível declaração de nulidade da cláusula que prevê a resilição imotivada antecipadamente, pelo caráter abusivo da mesma), tendo a ora agravante demonstrado nestes autos a plausibilidade do direito alegado, ou seja, a verossimilhança das alegações. 2. A possibilidade de dano irreparável ou de difícil reparação demonstra-se nos prejuízos irreparáveis que a agravante possa ter eis que a ausência da concessão da medida pode importar, como já asseverado, na ineficácia do pleito feito pelo agravante na ação de procedimento ordinário, pois uma vez desfeito o vínculo contratual, já terá comprometido uma imensa estrutura, que possui um grande número de funcionários e de equipamentos adquiridos para a execução do serviço. Cumpre observar ainda que tal medida pode importar na dissolução da empresa agravante, ante a existência de cláusula de exclusividade que impede a agravante de prestar serviços a outras empresas concorrentes das agravadas (cláusula 4.1 XXXII, fl. 119 - TJ).” (g.n) 215 Em caso análogo, o Agravo de Instrumento n° 360702-3 proferido pelo Relator Clayton Camargo da 19ª Câmara de Direito Cível do Colendo Tribunal de Justiça do Paraná.216 Nesse tópico, interessante a decisão que manteve o contrato de prestação de serviços médicos de uma prestadora de serviços (Hospital) em face da pleiteada rescisão unilateral de contrato de prestação de serviços pelo Plano de Saúde, com fundamento no princípio da função social (direito subjetivo à saúde dos clientes da “Unimed”): “A agravante, por ora, pretende a suspensão da decisão, ficando mantida a rescisão do contrato com a agravada até o julgamento da lide, alegando que não há verossimilhança nos 215 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 361214-2, da 12ª Câmara de Direito Cível, Comarca de Curitiba, Curitiba, PR, DJ: 7309, 23 de fevereiro de 2007, DJ: 7309. 216 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 360702-3, da 19ª Câmara de Direito Cível, Comarca de Curitiba, PR, de 25 de agosto de 2006, DJ:7151. 102 fatos alegados pela agravada, e que não há no contrato firmado qualquer proibição de rescisão. De fato, verifica-se que não há no contrato previsão de cláusula penal para o caso de rescisão unilateral, pelo qual a agravante sustenta a legalidade da rescisão pretendida, aduzindo, ademais, que não pode ser eternamente obrigada a vincular-se ao contrato. Imperioso reconhecer que a ordem jurídica brasileira consagra o princípio da autonomia da vontade, ou seja, o da liberdade de contratar. Entretanto, esta concepção clássica vem se modificando, tornando fundamental a função social do contrato e o interesse público. (...) Nesse contexto, observa-se que a matéria discutida envolve muito mais que os interesses das partes em litígio, mas também o direito subjetivo à saúde dos clientes da agravante. Em que pese os argumentos lançados no presente recurso, entendo que o contrato que contenha norma de interesse social e que tem por objeto resguardar a saúde do ser humano, não pode ser preterida em virtude de resolução unilateral do contrato. A tutela requerida envolve questão de saúde pública, pois é notório que a agravada presta serviço médico-hospitalar a milhares de pessoas, cuja cessação ou comprometimento da plena atividade dará causa a possíveis danos até irreparáveis à população que depende de tais serviços. .(...) As alegações da agravada se mostram relevantes, eis que a agravante pretende, de fato, rescindir o contrato celebrado. O receio de dano irreparável também restou configurado, vez que a rescisão do contrato fará com que os médicos cooperados da Unimed, que prestam serviços ao hospital da agravante, suspendam seus serviços, prejudicando a eles próprios e à população em geral que se utilizam de seus serviços. (...) Dessa forma, revelando-se plausíveis as alegações feitas na peça vestibular da agravada, haja vista todos os fundamentos 103 acima expostos, presentes os requisitos autorizadores para a antecipação dos efeitos da tutela, e, não havendo nenhuma comprovação de lesão grave ou de difícil reparação pela continuidade do pacto até ulterior decisão judicial, tenho que há que prevalecer a decisão que deferiu a antecipação da tutela requerida, garantindo a manutenção do contrato até a solução final da lide.” (g.n) 217 Em alguns julgados, os Egrégios Tribunais de Justiça do Espírito Santo, da Bahia, do Rio de Janeiro e de São Paulo, já entenderam similarmente ao julgado acima, qual seja pela continuidade do contrato de prestação de serviços de assistência médica hospitalar em regime de Plano Coletivo para empregados das empresas (tomadoras de serviços)218 Nessas demandas os desembargadores alegaram que esta denúncia unilateral pela prestadora de serviços atentaria a boafé objetiva e a função social. No entanto, em caso similar ao do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o Tribunal de Justiça de São Paulo já entendeu que a cláusula de denúncia unilateral é válida entre as partes, e que a continuidade da prestação de serviços contra a vontade da tomadora de serviços violaria ao princípio da liberdade dos contratos. E “in casu” vigoraria o preceito do pacta sunt servanda. Nessa hipótese, diversa da acima exposta, era um prestador de serviços médicos no estabelecimento hospital, e este último rescindiu unilateralmente a avença.219. No mesmo sentido, os julgados do Colendo Tribunal de Justiça do Paraná. 220 217 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Agravo de Instrumento n. 1.0521.07.064209-0/002, da 13ª Câmara Cível, Ponte Nova, MG, Publicação em 08 de março de 2008. 218 BRASIL. Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Agravo de Instrumento n. 30069000930, da 2ª Câmara Cível, Vitória, ES, publicado em 26 de março de 2008; BRASIL. Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Agravo de Instrumento n. 24089002364, da 2ª Câmara Cível, Vitória, ES, publicado em 13 de junho de 2008; BRASIL. Tribunal de Justiça da Bahia. Apelação Cível n.31978-2/2007, da 4ª Câmara Cível, Jaguaquara, BA, j. em 19 de novembro de 2008; BRASIL. Tribunal de Justiça da Bahia. Agravo de Instrumento n. 25178-0/2009 da 3ª Câmara Cível, Salvador, BA, j. em 22 de maio de 2009; BRASIL.Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento n. 2009.002.29211, da 7ª Câmara Cível, j. em 21 de outubro de 2009; BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo, Agravo de Instrumento n. 994.06.120717-4, da 1ª Câmara de Direito Privado, j. em 20 de abril de 2010. 219 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 915312-0/1, da 25ª Câmara de Direito Privado, Comarca de São Paulo, São Paulo, SP, j. em 30 de agosto de 2005. 220 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 312281-2, da 17ª Câmara Cível, Comarca de Curitiba, Curitiba, PR, j. em 13 de janeiro de 2006, DJ: 7037; BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 338751-9, da 12ª Câmara Cível, Comarca de Curitiba, Curitiba, PR, j. em 02 de março de 2007, DJ: 1314. 104 Nesse passo, importante notar que em hipóteses que não envolviam uma real vulnerabilidade da empresa tomadora de serviços, tem se decidido que a cláusula de rescisão unilateral não viola aos princípios da função social e da boa-fé objetiva.221 E mais, a tal tipo de cláusula implica em exercício regular de direito e não configura ato ilícito, tal como já julgou o Desembargador Gilberto Leme do Tribunal de Justiça de São Paulo.222 Nesse tópico, em que pese o juízo do ilustre Desembargador, ousamos divergir, e entender tal como o voto vencedor do Desembargador Emanuel Oliveira.223. Nessa vertente, o julgado da mesma lavra do Desembargador Emanuel Oliveira: Apelação Cível n. 1022228-0/6.224 Enfatiza-se que a ruptura de contrato de prestação de serviços sem a prévia notificação por escrito, quando este já estava tacitamente renovado, caracteriza inobservância da boa-fé objetiva contratual, como já entendeu o seguinte julgado do Egrégio Tribunal de Justiça do Paraná.225 Perceba-se que nessa situação há um desequilíbrio de uma das partes em detrimento da outra parte. Ainda vislumbramos outro ponto de discórdia judicial no artigo 608 do Código Civil (aliciamento de prestador de serviços), e sua relação clara com o princípio da função social (aspecto externo), conforme já anotado pela Doutrina inclusive. (item 2.3.5 desse trabalho) 221 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível sem Revisão n. 987.387-0/5, da 35ª Câmara de Direito Civil, j. em 03 de novembro de 2008 (caso de contrato prestação de serviços de cobrança de débitos de um Banco); BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 331.490-3, da 10ª Câmara Cível, Curitiba,PR, j. em 22 de junho de 2006. (caso de contrato de prestação de serviços de assistência técnica); BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 1.0024.05.628276-7/00, da 17ª Câmara Cível, Belo Horizonte, MG, j. em 14 de dezembro de 2006. (de forma similar contrato de prestação de serviços de transporte de jornais) 222 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível sem Revisão n. 992.05.097070-3, da 27ª Câmara de Direito Civil, São Paulo, SP, j. em 30 de março de 2010. 223 Idem. Principais termos da fundamentação: “(...) De fato, a denúncia que extingue os contratos „antes tempus‟, não exime o denunciante de sujeitar-se às perdas e danos, se não houver justa causa, observando-se o princípio da boa-fé contratual e o fim econômico e social do contrato (CC 2002, arts.113, 421 e 422). Ressalta-se que a função do princípio da boa-fé nos contratos é impor aos contratantes a condição de agir de maneira não-arbitrária, impedindo-se que se façam uso de seus direitos de forma desequilibrada, gerando prejuízos desproporcionais à parte contrária.(...)Emerge clara das cláusulas contratuais que o acionante se obrigou, por ocasião do ajuste, à aquisição de materiais e equipamentos de ponta de expressivo valor, locação de imóvel mais amplo, contratação de inúmeros funcionários para fazer frente às imposições contratuais, na certeza de que o ajuste teria como termo pelo menos os sessentas meses fixados inicialmente. Essa expectativa frustrada, que o levou a diminuição do seu patrimônio material é de ser reparada, com os elementos probatórios já existentes nos autos.” 224 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível sem Revisão n. 1022228-0/6, da 34ª Câmara de Direito Civil, São Paulo, SP, j. em 03 de outubro de 2007. 225 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 638008-9, da 8ª Câmara Cível, Curitiba, PR, j.em 18 de novembro de 2010, Publicação DJ: 555 em 24 de janeiro de 2011. 105 Imagine que uma pessoa jurídica (tomadora de serviços) seduz outra pessoa física (obreiro e empregado de empresa prestadora de serviços) já comprometida por contrato de prestação de serviços escrito (com outra empresa) para que ela (pessoa física/obreira) trabalhe para si (sedutor/tomador de serviços). E neste contrato já se estipula cláusula inclusive fixando multa no sentido de que a empresa tomadora de serviços não contrate seus obreiros durante certo prazo (cláusula de não concorrência). Esta cláusula deverá ainda ter validade mesmo quando rescindido o contrato de prestação de serviços entre as empresas? A conduta da empresa tomadora de serviços após a rescisão do contrato é contrária a algum princípio social? O Tribunal de Justiça já decidiu em caso de prestação de serviços de engenharia clínica a validade dessa cláusula mesmo após a rescisão. E a conduta da tomadora de serviços violaria ao princípio da boa-fé objetiva: “EMENTA - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE ENGENHARIA CLÍNICA MULTA POR INFRAÇÃO CONTRATUAL CONTRATAÇÃO DE EX-FUNCIONÁRIOS DA PRESTADORA DO SERVIÇO EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA IMPEDITIVA DE CONTRATAÇÃO POR PERÍODO DE TRÊS ANOS - CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA VALIDADE CONTRATO EXTINTO BOA FÉ OBJETIVA EFEITOS PÓS-CONTRATUAIS RECURSO DESPROVIDO. Cabível a imposição da multa contratual à requerida que contrata ex-empregados de empresa prestadora de serviços de tecnologia, após a extinção do contrato, em afronta ao prazo previsto na cláusula de não concorrência. As partes devem guardar a boa-fé objetiva antes, durante e após a execução do contrato (CC, art. 422). Ainda que extinto o contrato, remanesce válida a cláusula de não concorrência firmada no bojo de contratos, à luz da eficácia pós-contratual decorrente do princípio da boa-fé objetiva prevista no art. 422 do CC/02. A vedação de não contratação pelo prazo de três anos, além de não se afigurar abusiva ou desarrazoada, visa preservar o interesse comercial da prestadora do serviço em manter seu investimento em mão de obra especializada, bem como em 106 evitar a concorrência desleal, no caso justificada, frente à tecnologia por ela desenvolvida.” (g.n) 226 Em sentido similar, o julgado também entendeu que houve o descumprimento do contrato pelo prisma da cláusula da boa-fé objetiva quando a tomadora de serviços alicia os empregados que prestavam serviços para outra empresa e passa a integrar o quadro funcional dela.227 Ainda no que se refere ao tópico da não contratação por terceiros de prestador de serviços já comprometidos com contrato de prestação por escrito, interessante mencionar as decisões em três instâncias (Vara Cível de Brasília, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Superior Tribunal de Justiça) de um caso de Brasília, Estado do Distrito Federal. Tratava-se de uma ação de cobrança promovida pela empresa prestadora de serviços de limpeza Speed Clean em face da empresa tomadora de serviços Kyoto Star, com pedido de condenação da segunda na quantia de R$10.408,37, ao argumento de que a ré-Kyoto Star infringiu cláusula contratual que a impossibilitava de contratar, pelo período de 120 dias, qualquer ex-empregado da autora (diretamente ou indiretamente mediante outra prestadora de serviços). Em sede de contestação, a Ré invocou a prevalência da função social do contrato em detrimento do cumprimento dos pactos, além da observância que se deve ter ao princípio do asseguramento do pleno emprego, até porque este critério teria ingente penetração do interesse público. O juiz entendeu em favor da Ré julgando improcedente a demanda, pois a cláusula restritiva era contra os princípios legais e constitucionais da função social, do valor social do trabalho, da livre concorrência e da busca do pleno emprego.228 226 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação com Revisão n. 0002496-95.2009.8.26.0451, da 35ª Câmara de Direito Privado, Piracicaba, SP, j. em 29 de agosto de 2011. 227 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 992.05.107291-1, da 25ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, SP, j. em 23 de fevereiro de 2010. 228 BRASIL. 13ª Vara Cível. Processo n. 2007.01.1.107805-2, Brasília, DF, j. em 20 de fevereiro de 2008. Eis abaixo, os principais pontos do fundamento da sentença: “(...) Enxergo presente na presente hipótese um conflito aparente envolvendo a função social do contrato, esculpido no art. 421 do Código Civil e o princípio de que os pactos devem ser observados. Quanto a esta tônica, não vejo como dar supremacia ao princípio de que os pactos devem ser observados, em toda a sua plenitude, em detrimento do princípio da função social do contrato, eis que segundo a tábua axiológica estipulada pela Constituição Federal em seu art. 1º, inciso IV, privilegia-se o valor social do trabalho. Isto quer dizer que, ainda que as partes tenham entabulado a cláusula restritiva constante do ajuste, ela não pode prevalecer se qualquer das partes decide ofertar emprego para os ex-empregados da 107 A Autora, inconformada com a sentença, apelou e o Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal reformou-a ao entender que não ofende o princípio da função social do contrato a cláusula que prevê o pagamento de multa caso o contratante empregue um dos ex-empregados durante a vigência do acordo ou após decorridos 120 (cento e vinte) dias de sua extinção, porquanto não existe proibição a tal contratação, encontrando-se ausente qualquer interesse coletivo.229 Insatisfeita com o V. Acórdão, a Autora interpôs Recurso Especial no Superior Tribunal de Justiça, e este manteve a decisão de segunda instância, ao raciocinar que: 1) esta cláusula restritiva não viola ao princípio da função social, e, 2) também a validade da cláusula se impõe, justamente em cumprimento ao princípio da boa-fé objetiva, com a seguinte ementa: “Ementa. Civil e Processo Civil. Contrato. Rescisão. Cláusula contratual que prevê multa em face da contratação de exempregado da autora durante a vigência do acordo ou até 120 (cento e vinte) dias após o término do ajuste. Possibilidade. parte adversa, seja com a finalidade de proteger reserva de mercado, ou seja lá porque motivo for. Aliás, este Juízo não enxergou motivação plausível para a existência da apontada cláusula restritiva na medida em que aqui se está tratando de oferta de emprego para trabalhadores que haviam encerrado seu contrato de trabalho com um das empresas e que não detinham nenhuma qualificação profissional especial, posto que não eram detentores de qualquer tipo de segredo que pudesse vir a importar em quebra de segredo profissional. Consta dos autos que os empregados da autora que foram readmitidos pela ré, seja diretamente em seus quadros, seja por intermédio de outra prestadora de serviços que foi contratada (Grupo Mastro), eram todos eles servidores de limpeza e percebiam no máximo R$ 400,00 por mês. Admitindo-se a aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas por intermédio de sua eficácia horizontal, pode-se inferir que a Constituição Federal alçou a erradicação da pobreza como um de seus objetivos fundamentais (CF, art. 3º, II e III) e constituiu a valorização do trabalho humano como princípio da ordem geral da atividade econômica (CF, art. 170). Logo, não seria razoável dar validade e aplicabilidade à invocada cláusula restritiva, apenando injustamente a ré porque contratou diretamente um dos empregados da autora ou porque contratou outra empresa prestadora de serviços de limpeza que tinha em seus quadros ex-empregados da autora no prazo de 120 da rescisão do contrato entabulado entre as partes. Ademais, observa-se, ainda, que a cláusula restritiva fere outro princípio constitucional, qual seja, o da livre concorrência, na medida em que se os empregados da autora conseguiram melhores condições de trabalho e melhores salários em outra empresa, não haveria porque impor sanção à ré. Muito pelo contrário, a única sanção imputável á ré seria a premial por estar fomentando a livre concorrência e dando melhor oportunidade e expectativa de vida para os ex-empregados da autora que foram contratados. Por fim, uma derradeira aplicação imediata dos direitos fundamentais às relações privadas reside no artigo 170, inciso VIIII da Constituição Federal que prima pelo princípio da busca do pleno emprego. Desta forma, nenhuma razão haveria para, na presente controvérsia, dar primazia ao princípio da observância dos pactos em detrimento dos demais princípios legais e constitucionais já ventilados (da função social do contrato, do valor social do trabalho, da livre concorrência e da busca do pleno emprego) porque não seria minimamente razoável. (...)Posto isto, julgo improcedente o pedido.” (g.n) 229 BRASIL. Tribunal de Justiça de Brasília. Apelação Cível n. 2007.01.1.107805-2, da 4ª Turma Cível, j. em 02 de julho de 2008, publicado em 08 de setembro de 2008, DJ-e página 105. 108 1. A falta de prequestionamento em relação ao art. 122 do CC impede o conhecimento do recurso especial. Incidência da súmula 211/STJ. 2. A cláusula contratual que estipula o pagamento de multa caso o contratante empregue um dos ex-funcionários ou representantes da contratada durante a vigência do acordo ou após decorridos 120 (cento e vinte) dias de sua extinção, não implica em violação ao princípio da função social do contrato, pois não estabelece desequilíbrio social e, tampouco, impede o acesso dos indivíduos a ele vinculados, seja diretamente, seja indiretamente, ao trabalho ou ao desenvolvimento pessoal. 3. Recurso especial não conhecido.”(g.n) 230 Frise-se, de fato, na nossa ótica, o entendimento dos dois Tribunais estão em plena consonância com o real significado dos princípios sociais (da função social e da boa-fé objetiva), em que pese, data venia, o juízo do MM. Juiz. Antes de abordar outros aspectos que podem ser observados aos princípios contratuais, indaga-se ainda se seria possível o juiz promover a revisão contratual em contrato de prestação de serviços empresarial em razão dos princípios da função social e da boa-fé objetiva? O Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais na decisão abaixo julgou pela possibilidade desta revisão, com fundamento no princípio da função social (artigo 421 CC) e o Código de Defesa do Consumidor (artigo 29 CDC, consumidor equiparado), apesar de o juiz da primeira instância ter extinto o processo sem julgamento do mérito em razão de impossibilidade jurídica do pedido: “Ementa: Ação Revisional de Contrato – Aplicação dos Capítulos V e VI do Código de Defesa do Consumidor – Consumidor equiparado – função social do contrato. Revela-se viável a revisão de contrato de prestação de serviços 230 firmado entre pessoas jurídicas, aplicando-se, BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n°1.127.247 – DF, da 4ª Turma, Brasília, DF, Julgado em 04 de março de 2010, Publicado em 19 de março de 2010, DJ-e. 109 somente, as disposições dos capítulos V e VI do Código de Defesa do Consumidor, devido ser a empresa considerada consumidor-equiparado, a teor do artigo 29 do CDC, bem como em face da observância da cláusula geral da função social do contrato, prevista no artigo 421 do Código Civil, que permite a revisão das cláusulas contratuais. (...) Colhe-se dos autos que a r. sentença julgou extinta a presente ação, sem resolução do mérito, nos termos do art. 267, VI, do CPC, por ter entendido o MM. Juiz pela impossibilidade jurídica do pedido de revisão contratual firmado entre a empresa apelante e a empresa apelada. Não obstante o entendimento firmado pelo ilustre Magistrado primevo, tenho posicionamento firmado no sentido de ser absolutamente viável a revisão contratual de avença firmada entre empresas, quando uma delas presta serviço à outra, equiparando-se, assim, a consumidor equiparado, nos termos do art. 29 do CDC, decorrendo, daí, a viabilidade de se buscar equilíbrio contratual entre as partes. A situação descrita nos autos à luz do princípio da probidade e da boa-fé objetiva, bem como da extensão do conceito de consumidor inserta no artigo 29 do Código de Defesa do Consumidor, autoriza a incidência dos capítulos V e VI do referido mandamento legal, para regular a relação jurídica estabelecida entre pessoas jurídicas. (...) Ademais disso, imperioso registrar, também, que a cláusula geral da função social dos contratos, prevista no artigo 421 do Código Civil permite a revisão das cláusulas contratuais contidas em contrato de adesão firmado entre empresas, de forma a assegurar o equilíbrio contratual entre as partes. Por fim, e não menos importante, é de se frisar que o princípio do pacta sunt servanda restou absolutamente flexibilizado, quando da observância interpretação à das necessidade relações de contratuais, equilíbrio contratual em e 110 reprimenda do abuso da posição econômica de uma das partes, suscetível de causar onerosidade excessiva à contraparte. Desta sorte, entendo imperiosa a cassação da sentença que extinguiu o feito, sem resolução do mérito, a que os autos retornem seu regular fluxo, à conclusão de sua instrução e julgamento.” (g.n) 231 Agora que já esclarecida a possibilidade de revisão nos contratos de prestação de serviços entre empresas quando estes não observam os princípios sociais, abordaremos outra fonte de litígios. Passaremos a discutir quais cláusulas contratuais dessas avenças em que podem ser declaradas a abusividade, em razão de inobservância dos princípios contratuais sociais da boa-fé objetiva, da função social e da justiça contratual (aspecto da lesão). Primeiramente, discutiremos sobre as multas contratuais. Já alertamos que nesse terreno, a Jurisprudência só as diminui quando essa sanção é tão dimensionada de forma a afetar o equilíbrio contratual. Dados os parcos julgados, foi analisada a questão levando em consideração o Tribunal de Justiça de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro. Já foi declarada abusiva cláusula penal que previa desconto de 50% a 100% sobre a remuneração do prestador de serviços. Tratava-se da hipótese de prestação de serviços de vistoria prévia de carros realizada pela empresa Javali Vistórias Prévias para a tomadora de serviços Vera Cruz Seguradora. O contrato entre as partes continha uma cláusula penal abusiva que previa o desconto de 50% a 100% da remuneração pelos serviços prestados. Foi considerada abusiva pela inobservância dos princípios da função social e da boa-fé objetiva, e reduzindo-se o percentual da multa para 20%, com a seguinte ementa do Colendo Tribunal de Justiça de São Paulo: “Ementa – Prestação de Serviços de Vistoria Prévia – Abusividade da cláusula penal que prevê desconto de 50% a 100% da remuneração pelos serviços prestados – incidência 231 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação n.1.0105.05.151303-1/002, da 12ª Câmara de Direito Privado, Valadares, MG, j. em 17 de setembro de 2008. 111 do princípio da boa-fé e da função social do contrato – redução para o limite máximo de 20% - incidência de correção monetária pela tabela deste Tribunal a partir de cada vencimento – juros de mora de 1% ao mês e desde a citação sem a incidência da taxa Selic – honorários mantidos – sentença de procedência parcial mantida.” (g.n) 232 Interessante notar que os desembargadores e as partes preferiram mencionar aos princípios da função social e da boa-fé objetiva, ao invés de citar o artigo 413 do Código Civil. Também o Tribunal de Justiça de Minas Gerais já reduziu uma multa contratual de rescisão antecipada de 20% para 10% de um contrato de prestação de serviços de consultoria celebrado entre empresas, tanto com o fundamento do artigo 413 do CC e do princípio da boa-fé objetiva. Lembrando que na questão fática, poucos dias após a assinatura do contrato, a tomadora de serviços pediu a rescisão, e a prestadora de serviços não comprovou nenhum prejuízo de ordem material com a rescisão antecipada do contrato.233 Convém ressaltar que em sentido oposto, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que a multa compensatória pela resilição unilateral sem justa causa de 30% sobre as remunerações a vencer em contrato de prestação de serviços empresarial de publicidade é legítima, e como esta é imputada a ambos os contratantes, atende aos princípios da função social e da boa-fé objetiva. Ademais, o fato de a tomadora de serviços ter encontrado serviço idêntico ao prestado pela ré com preço menor não constitui fato superveniente apto a ensejar o reconhecimento da excessiva onerosidade, já que esta só é cabível em evidente desequilíbrio causado por situação nova.234 Em outro julgado do Tribunal de Justiça do Paraná, discutindo sobre a abusividade de cláusula contratual de penalidade em contrato de prestação de serviços educacionais, celebrado entre empresas em que se previa o pagamento de multa no importe de 20% (vinte por cento) sobre o total contratado mais o pagamento integral dos valores acordados por curso. Na hipótese, o tribunal de 232 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n. 0141770-11.2005, da 34ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, SP, j. em 12 de setembro de 2011. 233 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 1.0024.07.481082-1/001, da 17ª Câmara Cível, Belo Horizonte, MG, j. em 19 de agosto de 2010. 234 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 0000210-58.2009.8.26.0318, 22ª Câmara de Direito Privado, Leme, SP, j. em 21 de julho de 2011. 112 ofício reconheceu que essa cláusula deveria ser interpretada de acordo com o princípio da função social, condenando a tomadora de serviços a somente pagar a multa contratual de 20% sobre o total dos cursos prestados ou não (já que é uma multa compensatória), e excluindo da condenação o valor dos cursos que não foram efetivamente realizados.235 O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu que a multa em caso de cancelamento pelo tomador de serviços correspondente a 50% do valor total do contrato, multiplicado pelo número de meses faltantes (cláusula de fidelização), era abusiva em um contrato de prestação de serviços de telefonia entre empresas. Isto porque a multa foge ao equilíbrio contratual e agride a boa-fé objetiva.236 Demais, discutindo-se sobre cláusulas contratuais, apreciaremos um outro caso interessante que foi apreciado inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça em relação à matéria processual (natureza de ordem pública os artigos 421 e 422 CC). Tratava-se de contrato de prestação de serviços de consultoria tributária firmado entre duas empresas. No contrato existia uma cláusula que previa a estipulação da incidência dos honorários sobre os valores apurados e não sobre a base dos valores efetivamente aproveitados pela empresa tomadora dos serviços. O Tribunal de Justiça do Paraná entendeu que essa cláusula era abusiva, pois violava a boa-fé e a função social do contrato, e, inclusive, foram conhecidas sem a provocação de qualquer das partes: “Ementa: Apelação Cível. Cautelar de Sustação de Protesto, Ordinária e Declaratória de Inexistência de débito. Prestação de Serviços Consultoria Tributária. Recurso. 02. Levantamento de créditos. Honorários sobre valores apurados. Previsão contratual. Violação à boa-fé. Matéria de Ordem Pública. Apreciação ex-officio. Proporcionalidade. Incidência dos honorários sobre os valores efetivamente aproveitados pela contratante. Recurso. 01. Honorários advocatícios. Majoração. Cabimento.1. Em contrato de prestação de serviço de 235 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 429112-5, da 11ª Câmara Cível, Curitiba, PR, j. em 24 de outubro de 2007, publicado em DJ: 7502, em 30 de novembro de 2007. 236 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 2009.001.66941, da 15ª Câmara Cível, Julgado em 08 de março de 2010. 113 assessoria tributária consistente no levantamento de créditos passíveis de aproveitamento pela contratante, considera-se abusiva a estipulação da incidência dos honorários sobre os valores apurados, sendo devida a cobrança com base nos valores efetivamente aproveitados pela empresa contratante. 2. Por se tratar de ordem pública, as matérias referentes à função social do contrato (artigo 421 do Código Civil) e sua variante intrínseca, qual seja a boa-fé objetiva (artigos 113 e 422 do CC), podem ser conhecidas de ofício pelo julgador a qualquer tempo ou grau de jurisdição. 3. Incumbe ao julgador-intérprete, instrumentalizar os princípios da função social e boa-fé objetiva, e, por meio da relativização do pacta sunt servanda, fazê-los incidir no interior da relação contratual, visando à proteção da confiança legítima despertada pela declaração de vontade da contraparte, além da tutela do equilíbrio das prestações contratuais. 4. Recurso 02. Conhecido e nãoprovido. 5. Recurso 01. Conhecido e provido para majorar os honorários advocatícios.”237(g.n) A Prestadora de Serviços sucumbente interpôs Agravo de Instrumento para a subida de seu Recurso Especial, alegando que o Tribunal tinha decidido de forma “ultra petita” ao julgar matéria que sequer foi ventilada pelas partes e apontou divergência jurisprudencial. Em sede de decisão monocrática, o Ministro João Otávio Noronha negou provimento ao recurso. Em suas razões, em breve síntese explanou que os princípios da função social e da boa-fé objetiva são de ordem pública, podendo ser conhecidas de ofício, sendo este posicionamento mantido na decisão do Agravo Regimental.238 Também ainda na esfera da análise de cláusulas contratuais, no que se refere ao dispositivo contratual que estipula honorários iniciais (10% do valor atribuído à causa) mais “honorários de êxito” (15% da diferença entre o valor 237 BRASIL.Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 384991-2, Curitiba, PR, da 11ª Câmara Cível, j. em 20 de junho de 2007, publicado em DJ:7411, em 20 de julho de 2007. 238 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 1.163.482 – PR, da 4ª Turma, j. em 29 de novembro de 2010; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n.1.163.482 – PR, da 4ª Turma, j. em 22 de março de 2011. 114 atribuído à causa e o valor da efetiva condenação) fixados em contrato de prestação de serviços advocatícios firmados entre escritório de advocacia e empresa, o Colendo Superior Tribunal de Justiça, apreciando a demanda, decidiu que não se configura o instituto da lesão, pois em resumo: “(...) não há como vislumbrar a aplicabilidade do art.157 do CC/02 à hipótese dos autos, visto que o referido dispositivo legal cuida da lesão, instituto que se caracteriza quando uma pessoa, sob premente necessidade ou por inexperiência, obriga-se à prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. No particular, não se cogita da urgência da contratação tampouco da inexperiência dos representantes da recorrente, uma sociedade anônima cujo capital social, em 2002, era de R$40.000.000,00 (fl. 425) e que certamente está habituada a celebrar contratos de elevado valor. Ao contrário do que procura fazer crer a recorrente, o fato de os seus representantes não serem advogados não “torna extremamente difícil a compreensão da efetiva dimensão que poderia atingir estas cláusulas contratuais” (fl. 1.311). As cláusulas em questão foram transcritas pelo TJ/RS (fls. 1.274/1.275), evidenciando que a fixação dos honorários fora estipulada de maneira clara e precisa, exigindo tão somente a realização de cálculos aritméticos, atividade corriqueira para empresários. Ademais, é de se supor que a recorrente tenha nomeado pessoas competentes e preparadas para a negociação frente à recorrida, sobretudo considerando que, conforme ela própria admite, “pagava mensalmente à recorrida o importe aproximado de R$40.000,00” (fl. 1.312). Também não se constata desproporção entre os valores pagos pela recorrente e as obrigações assumidas pela recorrida. Não procede a alegação de que “levando-se em consideração os valores cobrados pela recorrida atinentes às duas reclamatórias trabalhistas, seria muito mais vantajoso para a 115 recorrente pagar diretamente aos reclamados do que quitar os honorários advocatícios” (fl. 1.310). Com efeito, inexistindo circunstância geradora de onerosidade excessiva, o equilíbrio entre os encargos assumidos pelas partes deve ser analisado à luz da situação existente no momento da celebração do acordo e não a posteriori , como faz a recorrente. É evidente que, depois de confirmada a improcedência dos pedidos formulados nas reclamações trabalhistas objeto desta ação de cobrança, pode considerar-se elevado o valor dos honorários, correspondente a um quarto da pretensão dos reclamantes. Todavia, deve-se ter em mente que, no ato da contratação, existia o risco da recorrente ser condenada ao pagamento de todas as verbas pleiteadas, de sorte que a atuação da recorrida resultou, na realidade, numa economia para a recorrente de 75% do valor dessas verbas.” (g.n) 239 Convém ressaltar que os Tribunais têm entendido que são abusivas as seguintes cláusulas e diante das circunstâncias abaixo, eis que violam o princípio da boa-fé objetiva e da função social: (a) cláusula autorizando a tomadora de serviços a reter, do valor das faturas, importância correspondente ao valor da causa de eventuais ações trabalhistas que contra ela vierem a ser ajuizadas pelos empregados da contratada (empresa prestadora de serviços de vigilância), foi flexibilizada em decorrência da função social. “In casu”, a contratante anunciou a retenção do valor de R$1.000.000,00 (um milhão de reais) correspondente ao valor da causa da reclamação trabalhista, situação esta capaz de em tese arruinar a empresa contratada. O desembargador Ricardo Pessoa de Mello, com fundamento na cláusula, limitou o valor da retenção a 10% de cada fatura, não inferior a R$50.000,00 (cinquenta mil reais).240 239 BRASIL.Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.1.117.137, da 3ª Turma, j. em 17 de junho de 2010, DJ: 30 de junho de 2010. 240 BRASIL.Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 990.10.184548-2, da 25ª Câmara de Direito Privado, j. em 18 de maio de 2010. 116 (b) de previsão contratual de que, os postos de vigilância poderiam ser excluídos, sem direito à contratada de indenização, reparação ou compensação. No caso, a tomadora de serviços (Banco), apesar de comunicar com antecedência de 60 (sessenta) dias a rescisão do contrato, no mesmo dia excluiu os postos de vigilância da maioria de suas agências, tornando, assim, inócua a previsão contratual de prévio aviso da rescisão. O desembargador entendeu que na situação caracterizou-se o desvirtuamento da real vontade das partes, da quebra do equilíbrio contratual, da ruptura do princípio da boa-fé dos contratos, da desobediência do dever anexo de cooperação, bem como, a violação do artigo 187 do CC (Abuso de direito). E em razão disso, condenou o Banco (tomador de serviços) ao pagamento de aviso prévio previsto em cláusula, do contrato entabulado entre as partes em valor correspondente aos serviços contratados pelo período de 60 (sessenta) dias, calculado segundo a média do que foi pago nos 3 (três) meses anteriores .241 (c) de retenção de 10%, caso ocorra violação contratual pela Prestadora de Serviço (de instalação, emenda de cabos telefônicos) e em casos em que não exista perfeita execução dos serviços, pois estabeleceu obrigação abusiva e incompatível com a boa-fé. Frise-se, na hipótese, a tomadora de serviços queria reter o importe de 10% quando já tinha sido pago a remuneração, sob a alegação de que a prestadora de serviços deixou de apresentar guias de FGTS e INSS dos seus empregados. Segundo cláusula contratual, a tomadora dos serviços teria o direito da retenção de pagamento quando da liberação do pagamento e não posteriormente em sede de ação judicial. Até porque não impugnou os serviços da contratada em nenhum momento. Diante disso, o Tribunal julgou procedente a ação de cobrança promovida pela empresa prestadora de serviços e não permitiu a retenção de 10% em sua remuneração.242 (d) de eleição de foro da contratada em contrato de prestação de serviços de acesso à internet, em razão da excessividade do ônus que poderia acarretar, e a comprovação que existe uma parte mais fraca (tomadora de serviços) ocasionando dificuldades de defesa e dispêndio financeiro. Na hipótese, o Tribunal de Justiça julgou procedente o agravo de instrumento em sede de exceção de incompetência 241 BRASIL.Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 9089094-98.2003.8.26.0000, da 22ª Câmara de Direito Privado, j. em 25 de agosto de 2011. 242 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n.1046215- 0/0, da 26ª Câmara de Direito Privado, j. em 28 de janeiro de 2008; BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Embargos de Declaração n.1046215- 01/2, da 26ª Câmara de Direito Privado, j. em 26 de agosto de 2009. 117 em favor da empresa tomadora de serviços em face da empresa prestadora de serviços (UOL) para declarar a não prevalência da cláusula do foro de eleição.243 Por outro lado, os Tribunais têm decidido em alguns julgados que não são abusivas e não transgridem os princípios sociais as cláusulas: (a) determinando o pagamento mesmo na hipótese de dispensa do obreiro de cumprimento do pré-aviso, pois a empresa tomadora de serviços é também responsável pela dispensa, devendo efetuar o reembolso a empresa prestadora de serviços. “In casu”, o Tribunal manteve a sentença que julgou procedente a ação de cobrança da empresa prestadora de serviços em face da tomadora de serviços, incluindo os valores do aviso prévio dos ex-empregados. 244 (b) de eleição de foro em contrato de prestação de serviços empresarial de vigilância e segurança, por não haver no caso a posição de inferioridade e estando o contrato em consonância com as normas legais. Dessa forma, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal deu provimento ao agravo de instrumento para declarar válida a cláusula do foro de eleição em favor da empresa prestadora de serviços. 245 (c) prevendo a tarifa adicional de administração de estorno de 50% sobre a comissão estornada (caso haja não ocorra a venda por culpa do comprador em mais de 30%) em contrato de prestação de serviços de anúncios e leilão na internet. Na hipótese, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou improcedente a demanda revisional com repetição de indébito promovida pela empresa tomadora de serviços.246 (d) estipulando que a simples prestação do serviço de cobrança já prevê a remuneração, independentemente do efetivo recebimento das mensalidades em atraso, porquanto essa atividade é de meio e não resultado. E a não remuneração pelos serviços da contratada pode significar enriquecimento indevido da contratante. No caso, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul manteve a sentença de 243 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Agravo de Instrumento n. 275.431-0, da 6ª Câmara Cível, j. em 30 de novembro de 2004. 244 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 1170482- 0/4, da 31ª Câmara de Direito Privado, j. em 18 de setembro de 2009. 245 BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Agravo de Instrumento n. 20080020155746, da 5ª Turma Cível, j. em 03 de dezembro de 2008; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.084.291-RS, da 3ª Turma, j. em 05 de maio de 2009. 246 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n.0209744-17.2009.8.26.0100, 21ª Câmara de Direito Privado, j. em 02 de junho de 2011. 118 procedência da ação de cobrança de honorários promovida pela empresa prestadora de serviços de cobrança de débitos em face da empresa tomadora de serviços.247 (e) de renovação automática em contrato de prestação de serviços de publicidade (de adesão), há dois julgados no Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidindo que não se violou os princípios da função social e da boa-fé objetiva. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais nas duas oportunidades manteve a parte da decisão de primeira instância que julgou improcedente as ações cautela de sustação de protesto e declaratória de nulidade de título promovidas pela empresa tomadora de serviços, pois a cláusula de renovação automática é válida.248 (f) de prorrogação em relação ao prazo de contrato de prestação de serviços de dados e acesso a internet não viola ao artigo 421 CC (princípio da função social) em razão de que este não se coaduna com contrato eterno. Isto porque as partes anuíram no contrato e no aditivo com esta prorrogação. Na circunstância, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve a sentença que julgou procedente a demanda de cobrança em face da empresa tomadora de serviços, declarando válida a cláusula de prorrogação do contrato.249 (g) de restrição à utilização da franquia de minutos à área de concessão da operadora de telefonia em contrato de prestação de serviços de telefonia móvel celebrado entre empresas. In casu, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais deu provimento a apelação da empresa prestadora de serviços, para reformar a sentença em sede de ação declaratória de nulidade de dívida de procedência, pois sendo não comprovada a ilegitimidade da cobrança, mister reconhecer a exigibilidade do débito gerado.250 (h) prevendo uma obrigação de meio em contrato de prestação de serviços de perfuração de poço tubular profundo. Na hipótese, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em sede de apelação cível manteve a sentença que julgou 247 BRASIL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Apelação Cível n. 8538 MS 2004.008538-9, da 1ª Turma Cível, j. em 11 de março de 2008. 248 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0024.05.640773-7/001, da 18ª Câmara Cível, j. em 17 de abril de 2007; BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0024.05.66052-5/001, da 18ª Câmara Cível, j. em 17 de abril de 2007. 249 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 1.0145.04.141081-5/001, da 10ª Câmara Cível, j. em 13 de fevereiro de 2007. 250 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0105.04.124924-1/001, da 11ª Câmara Cível, j. em 23 de janeiro de 2008. 119 procedente a ação de cobrança proposta pela empresa prestadora de serviços em face da empresa tomadora dos serviços. 251 (i) de não concorrência e confidencialidade em contrato de prestação de serviços empresarial no ramo imobiliário. No caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de apelação manteve a sentença de procedência em parte em ação de obrigação de não fazer no que se refere à cláusula de não concorrência, em favor da empresa tomadora de serviços, obrigando a empresa prestadora de serviços a obedecer ao referido dispositivo contratual. 252 Por fim, anotaremos em quais posturas o Judiciário no âmbito do contrato de prestação de serviço empresarial tem entendido como violadora da boa-fé objetiva (primeiro caso)? E quais condutas nessa seara não são consideradas como transgressoras desse princípio (segundo caso)? Seguem os julgados do primeiro caso: (a) o comportamento reiterado da prestadora de serviços no sentido de nunca exigir o pagamento das diferenças relativas à variação do custo da mão-deobra, inércia qualificada pelo significativo período de tempo transcorrido, gerou na parte contrária (tomadora de serviços) a justa expectativa de que ela estava absolutamente quite com suas obrigações contratuais até então. Ou seja, esse comportamento enseja a “caducidade” ou a impossibilidade de exercício de uma faculdade/direito subjetivo contratual inicialmente ajustado entre as partes. Referida alteração do conteúdo obrigacional original recebe da doutrina a denominação de supressio. Nesta hipótese, ao final, a cobrança da prestadora de serviços foi julgada improcedente pelo Tribunal. 253 (b) a postura da prestadora de serviços de publicidade em guias Multilistas que admite ter conhecimento de que a pessoa que assinou o referido contrato tratava-se de secretária da empresa contratante (violação do dever de lealdade), que não detinha quaisquer poderes de representação e nem mesmo quaisquer conhecimentos comerciais a permitir-lhe discernimento suficiente para assunção de tal encargo perante a empresa contratada, quanto mais autorização 251 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0707.06.122315-2/001, da 13ª Câmara Cível, j. em 10 de janeiro de 2008. 252 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 9224086-88.2006.8.26.0000, da 29ª Câmara de Direito Privado, j. em 01 de junho de 2011. 253 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 9176287-78.2008.8.26.0000, da 29ª Câmara de Direito Privado, j. em 23 de março de 2011. (Alerte-se que foi usado um julgado análogo, pois o prestador de serviços era pessoa física). 120 para tal ato. E nessa hipótese mesmo assim alegar que o contrato de prestação de serviços é válido. Nesse caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a sentença (da ação de nulidade de contrato) de procedência em favor da empresa tomadora de serviços.254 (c) a postura da tomadora de serviços em alegar a invalidade do contrato de prestação de serviços de consultoria para implantação do sistema de Gestão ISO 9001/2000 por não ter sido assinado por representante legal, sendo que, no momento da pactuação, a mesma entendeu que sua gerente administrativa tinha poderes para assinar o contrato, tanto que não verberou a contratação. Agora não pode invalidar o negócio em benefício dela mesma, porque estaria contrariando o venire contra factum proprium. In casu, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ao julgar a apelação da tomadora de serviços, manteve a decisão de primeira instância que julgou improcedente a ação anulatória de contrato de prestação de serviços de publicidade.255 (d) a postura da prestadora de serviços em fugir de sua obrigação sob o pretexto de irregularidade formal consistente na falta de expedição de guias de autorização, porque tal não implicou em inexistência da prestação dos serviços contratados (de assistência médica) nem em irregularidade na prestação, tudo sob pena de atuar em dissonância com a boa-fé exigida no cumprimento dos contratos, com o que não é possível compactuar. Na circunstância, o Tribunal de Justiça de São Paulo, manteve a sentença que julgou procedente a cobrança da remuneração pela empresa prestadora de serviços em face da empresa tomadora de serviços. 256 (e) a conduta da prestadora de serviços publicitários em negar a finalização do catálogo publicitário da tomadora de serviços, condicionando tal serviço ao pagamento de verba adicional, além da taxa mensal, e o contrato não prevê esta taxa a maior. No caso, o Tribunal de Justiça do Paraná, em favor da apelante empresa tomadora de serviços, reformou a sentença para julgar procedente a ação de rescisão contratual, com base na mencionada conduta da 254 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 7.203.765-9, da 1ª Câmara de Direito Privado, j. em 15 de outubro de 2008. 255 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n.1.0024.07.481082-1/001, da 17ª Câmara Cível, j.em 19 de agosto de 2010. 256 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 918360- 0/6, da 29ª Câmara de Direito Privado, j. em 01 de agosto de 2007. 121 empresa prestadora de serviços, e ainda, reformou a sentença da ação de cobrança da prestadora de serviços para julgar improcedente.257 (f) a postura do prestador de serviços em cobrar honorários advocatícios, apesar de existir cláusula no contrato de prestação de serviços prevendo a assistência jurídica a tomadora de serviços sem a incidência desses, inclusive para a cobrança de taxas condominiais em atraso. In casu, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao julgar apelação da empresa prestadora de serviços, negou provimento, e manteve a sentença que julgou procedente a demanda de repetição de indébito da tomadora de serviços.258 (g) a conduta da prestadora de serviços de instalação de telefones ao não informar adequadamente à tomadora de serviços os riscos da não instalação dos ramais, sendo este dever necessário para que o outro negociador possa pautar o seu comportamento presente e futuro segundo as expectativas criadas pela parte contrária. Nos autos do processo em discussão, o Tribunal de Justiça do Paraná, ao julgar a apelação da empresa prestadora de serviços, manteve a parte da sentença que a condenou a mesma em indenização por danos materiais em razão do inadimplemento (não instalação dos ramais) a ser paga a empresa tomadora de serviços.259 (h) a conduta da prestadora de serviços de telefonia móvel ao não informar à tomadora dos serviços a forma de utilização do bônus e a sua discriminação no acordo, haja vista que este foi determinante para migração do plano. Na hipótese, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ao julgar a apelação da empresa prestadora de serviços de telefonia móvel, manteve a sentença que julgou procedente a ação declaratória de cumprimento de contrato em favor da tomadora de serviços.260 (i) a conduta da empresa tomadora de serviços em abster-se de fazer o pagamento da remuneração do prestador de serviços, apesar de comprovada a execução dos serviços. Na hipótese, tratava-se de cobrança da remuneração pela 257 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 712252-9, da 12ª Câmara Cível, j. em 15 de dezembro de 2010. 258 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 10024081925547001, da 11ª Câmara Cível, j. em 21 de julho de 2010. 259 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 519638-3, da 10ª Câmara Cível, j. em 05 de fevereiro de 2009. 260 BRASIL.Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 1.0024.08.981359-6/001, da 12ª Câmara Cível, j. em 19 de agosto de 2009. 122 prestação de serviços julgada procedente pelo juízo a quo e pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.261 (j) a postura da empresa prestadora de serviços que entabula contrato de prestação de serviços de assessoria com aquisição de licença de uso de um sistema cuja perfectibilização sabia ser impossível. Isso, de fato, iniludivelmente atenta contra o princípio da boa-fé objetiva (dever de lealdade nas relações contratuais). Nos autos do processo de rescisão contratual cumulada com a devolução da quantia paga pela tomadora dos serviços, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao julgar a apelação da prestadora de serviços, negou provimento e manteve a sentença de procedência em favor da tomadora de serviços.262 (k) a conduta da empresa prestadora de serviços de publicidade em lista ante à ciência da tomadora de serviços em rescindir o contrato, ainda sim, mesmo após as duas notificações de rescisão, veiculou a propaganda posteriormente. Neste caso, há ausência de boa-fé objetiva em cumprir o contrato que previa a possibilidade de rescindir antecipadamente. O relator da Apelação deu provimento a apelação da tomadora de serviços quando reformou a sentença de improcedência da ação anulatória de contrato de prestação de serviços de publicidade.263 (l) a conduta da prestadora de serviços de limpeza que utilizou ardilosamente da literalidade dos termos da denúncia efetivada pela tomadora dos serviços, em que constou erroneamente cláusula diversa da que realmente a embasou, para tirar vantagens da situação ao cobrar uma multa contratual sabidamente indevida. Nos autos dos embargos à execução opostos pela tomadora de serviços, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul ao julgar a apelação da prestadora de serviços, manteve a sentença de procedência dos embargos, eis que indevida a cobrança de multa contratual.264 Contudo, há também decisão do segundo caso. Na circunstância, a tomadora de serviços de telefonia móvel alegou depois de anos de cumprimento do 261 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 0381537- 96.2010.8.26.0000, da 21ª Câmara de Direito Privado, j. em 16 de fevereiro de 2011; BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 990.10.124400-4, da 21ª Câmara de Direito Privado, j. em 24 de novembro de 2010; Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 10024074537101003, da 11ª Câmara Cível, j.em 07 de julho de 2010. 262 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n.70033207622, da 20ª Câmara Cível, j. em 11 de maio de 2011. 263 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 1.0105.05.167411-4/001, da 13ª Câmara Cível, j. em 16 de setembro de 2010. 264 BRASIL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Apelação Cível n. 25150 MS 2009.025150-1, da 4ª Turma Cível, j. em 23 de fevereiro de 2010. 123 contrato que a conduta de imposição de multa e a suspensão dos serviços violariam ao princípio da função social. O Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar a apelação interposta pela tomadora de serviços, manteve a sentença de improcedência da ação de rescisão contratual proposta por ela. Também o desembargador entendeu que uma das facetas da função social é justamente o adimplemento dos contratos, na forma como postos, e desde que as cláusulas sejam de conhecimento das partes contratantes. E a referida suspensão se deu em virtude do inadimplemento de acordos pela contratante/tomadora dos serviços.265 265 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 7.146.276-9, da 20ª Câmara de Direito Privado, j. em 04 de agosto de 2008. 124 CAPÍTULO 4 DA CONCLUSÃO 4.1 Da conclusão Genérica No escopo desse trabalho foi analisado num primeiro momento de forma genérica o contrato. No primeiro capítulo foi feita uma breve análise histórica. Nele foi anotado que segundo a teoria clássica, o contrato tinha por núcleo a autonomia privada. Essa teoria preconizava o princípio do pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos). Ainda restou falado naquele capítulo que a teoria clássica (século XX) passou a sofrer um processo de desfragmentação, sendo reconstruída à luz de outros valores. Finalmente, explanamos que atualmente a teoria clássica não desapareceu, foi relativizada e nesse contexto, a autonomia privada poderia chegar até onde os valores sociais permitam. Diante desse contexto histórico foi definido o contrato como sendo não simplesmente um instituto individual do direito privado, mas um instituto individual inserido no contexto social. Ou seja, a socialização do contrato significa que o contrato é inserido no contexto social. Também se explicou que uma das funções desse contrato é a de justamente harmonizar interesses contrapostos, servindo como instrumento de pacificação social porque permite a circulação de riquezas. Por último, expressou-se a definição das cláusulas gerais (introduzidas com os princípios da boa-fé objetiva e da função social) e a preocupação do uso indevido delas pelos julgadores. Depois das anotações gerais do primeiro capítulo, explanamos no capítulo posterior especificamente acerca do contrato típico de prestação de serviços no código civil brasileiro. Definimos que o contrato de prestação de serviços é aquele no qual alguém coloca seu trabalho à disposição de outra pessoa, mediante remuneração. Nessa avença, é o serviço em si que interessa ao tomador de serviços, seja este de ordem pessoal ou patrimonial. Demos diversos exemplos tais como a prestação de serviços de advogados, de médicos, de dentistas, entre outros. 125 Ademais, comentamos que aos contratos de prestação de serviços sempre são aplicadas as normas de obrigação de fazer, com até porque, em geral, a prestação de serviços é pessoal, devendo ser exercida com exclusividade. Ainda no segundo capítulo, escrevemos que as regras do Código Civil têm caráter residual, aplicando-se somente às relações não regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho e pelo Código do Consumidor, sem distinguir a espécie de atividade prestada pelo locador ou prestador de serviços, que pode ser profissional liberal ou trabalhador braçal. Lembrando que o Código Civil trata do contrato de prestação de serviço, no seu objeto e na disciplina, apenas aquele executado com autonomia técnica e sem subordinação. Ademais, foram explicitados os principais tópicos do contrato de prestação de serviços, tais como sua classificação, a remuneração, e os artigos 606 e 608 do Código Civil. Ao final estudamos os princípios contratuais, tantos os tradicionais como os sociais, já que toda abordagem de qualquer contrato também depende obrigatoriamente do entendimento desses cânones. Apontamos que o princípio da boa-fé objetiva é norma que estabelece um dever de conduta dos envolvidos em um contrato (artigo 422 do Código Civil Brasileiro). Estipulamos as diferenças com a boa-fé (estado de ignorância). E também descrevemos as três funções da boa-fé objetiva, quais sejam a interpretativa-integrativa (artigo 113 do CC), limitadora (artigo 187 CC) e fonte de direitos e obrigações (artigo 422 do CC) Demais, fizemos breves pinceladas sobre o princípio da função social. Tal como o princípio da boa-fé objetiva, foi incluso na ordem jurídica civil como uma cláusula geral. Aprendemos que esse princípio parte da premissa de que o contrato não interessa só às partes contratantes. A troca contratual entre os partícipes influencia o meio social, como também é influenciada por ele. Demais no capítulo 3, discutimos em breve relanço o princípio da justiça contratual, mais especificamente a parte da lesão. Segundo esse princípio deve existir um equilíbrio entre as prestações contratuais, de forma que uma das partes não aufira, em face da outra, uma vantagem manifestamente excessiva. Ou seja, havendo uma correspondência entre a prestação e a contraprestação, o contrato seguirá esse preceito e será justo. Esse princípio também abrange o princípio da vulnerabilidade de uma das partes contratantes. Enfatizamos que esse princípio não está expresso no Código Civil Brasileiro de 2002, no entanto, ele se reflete em 126 dispositivos de proteção ao hipossuficiente, tais como o instituto da lesão, da onerosidade excessiva e do estado de perigo. Finalmente, fizemos uma intersecção entre o contrato típico de prestação de serviços sob enfoque empresarial e os princípios contratuais sociais na visão de alguns tribunais. 4.2 Da conclusão Específica Registramos as seguintes conclusões específicas: (a) na mesma dimensão das vicissitudes históricas e culturais da humanidade, o conceito de contrato evoluiu de um conceito individual para outro social/solidário. (b) nessa mesma evolução, o Estado deve sempre buscar restabelecer o máximo possível o equilíbrio entre os contratantes, seja pelo dirigismo contratual, seja pela delimitação de vontade, ou mesmo disponibilizado àquele em desvantagem, mecanismos de defesa aos seus direitos ameaçados de transgressão. (c) o contrato de prestação de serviços empresarial tal como qualquer outro contrato, também não poderia deixar de sofrer tais mudanças, notadamente, no que se refere à obediência aos princípios da função social, da boa-fé objetiva e da justiça contratual. (d) os princípios modernos auxiliam a aproximar ainda mais o CC e o CDC. No futuro, é possível paulatinamente sumir ainda mais a diferença dos regimes jurídicos dos contratos comuns (tais como o estudado) dos contratos de consumo, principalmente, no que se refere aos seus cânones fundamentais, tal como já estamos averiguando em alguns julgados aqui coletados. (e) registre-se, o CC não poderia estar em oposição ao CDC, diferentemente disso, deverá haver uma articulação entre eles, um diálogo de fontes, pois o a unidade do sistema assim exige. (f) aliás, tanto os princípios, as cláusulas gerais estampadas no CC, CDC e sob a égide da Magna Carta de certa forma convergem de forma 127 harmônica de forma a resguardar e proteger a parte mais vulnerável nos contratos. (g) observe-se, muitos contratos regulados pelo CC, podem também ser de consumo. Vide que temos um mesmo contrato (tais como prestação de serviços, compra e venda, seguro) regulado tanto pelo CDC como pelo CC. Com efeito, a prestação de serviços pode ser civil (se entre duas pessoas físicas, ou uma pessoa física e outra jurídica), pode ser empresarial (se entre duas empresas) e ainda pode ser de consumo (se entre um consumidor e um fornecedor). E os contratos de consumo estão cada vez mais onipresentes, dado que logicamente abrangem uma gama muito maior de feixe de envolvidos. Hoje, o reflexo da mass consumption society é o predomínio de maior quantidade dos contratos de adesão, acordos de massa ou de consumo em detrimento de contratos civis paritários, tais como o discutido. (h) ainda em relação aos princípios sociais (boa-fé objetiva, função social e justiça contratual) e a sua baixa aplicabilidade na seara estudada, tal como já exposto no item g mencionado, inclusive nos Tribunais Superiores (STF e STJ) se deve também pela razão de que estes só apreciam questões de direito e não questões de fato. E como a boa-fé, função social e a justiça contratual geralmente são questões de fato, muito dificilmente serão examinadas por estes tribunais. Contudo, nada obsta que com muita astúcia, esta análise pode acontecer (como vimos em dois casos expostos nesse trabalho), e desde que antes se demonstre de forma cabal que se há in casu problema de qualificação jurídica na matéria a ser julgada pelos excelsos tribunais. (i) de outra sorte, mesmo em contratos civis empresariais, o Estado-Juiz quando se vê diante de certa vulnerabilidade nessa avença em tese paritário, tal como o discutido, não deixa de intervir de forma a proteger o mais fraco de maneira a reequilibrar as relações contratuais. (j) lembrando que nesses casos de paridade, tal como o contrato de prestação de serviços empresarial, não há qualquer vestígio de desequilíbrio implícito entre as partes, e, diante disso, a invalidade do contrato não acontecerá somente em face de alegadas desequilíbrio entre as prestações. 128 (k)para se ter uma invalidade, revisão, nulidade ou anulação nessas hipóteses de prestação de serviços empresarial deverá sempre se apurar caso a caso, um flagrante abuso cometido na pactuação, e, dessa forma, haverá de ser em nítida transgressão aos deveres da boa-fé objetiva, e de valores resguardados pelo ordenamento civil-constitucional, sendo esta a conclusão no que se refere aos julgados estampados nesse trabalho. (l) nos casos analisados no campo dos contratos de prestação de serviços empresariais, que; diga-se de passagem, são bem de menores monta se relacionados com o âmbito do consumidor, em razão da lógica exposta nos itens g e h acima, verifica-se que muitos dos julgados enfatizaram implicitamente o princípio da justiça contratual como se este fosse qualificado como um sobre-princípio em relação à boa-fé objetiva e à função social; (m) note-se, como já assinalado o equilíbrio entre a prestação e a contraprestação que deve presidir os contratos é quebrado pela lesão ou pela onerosidade excessiva, sendo que ambas têm previsão legal no CC e no CDC. Todavia, no âmbito dos Tribunais, muitas vezes, a boa-fé e a função social também são chamadas para ensejar a revisão contratual das prestações contratuais. (n) por oportuno, antes da entrada em vigor do CC, o direito brasileiro, por exemplo, inseria a boa-fé objetiva na esfera das relações de consumo. Era a jurisprudência quem estendia a aplicação dela nas relações contratuais paritárias ainda que de forma excepcional. Na verdade, os juízes estavam acostumados a aplicar a boa-fé objetiva como se fosse um princípio reequilibrador e de índole protetivo, e, por este motivo, resistiam em aplicá-la nas relações em que em tese não existia a parte mais fraca. (o) o CC retificou essa inclinação e dispôs de forma explícita a aplicação do princípio da boa-fé objetiva aos contratos comuns, independentemente da vulnerabilidade. Gize-se, o conceito de boa-fé, ou mesmo da função social do contrato não têm de forma ontológica este robusto caráter protetivo de forma a atribuir uma certa função reequilibradora a estes institutos. 129 (p) apesar disso (dessa correção do CC), conferimos, data venia, na maior parte das decisões que a tendência descrita no item n acima ainda está presente. (q) parece que no âmago, a boa-fé e a função social serviriam como apoio lingüístico para soluções encontradas com fulcro em outros raciocínios, ou como um esquema privilegiado a fim de obter base num dispositivo legal. (r) por fim, em que pese, a teoria dos manuais notadamente acerca da principiologia (da função social, boa-fé objetiva) é farta, e, de extrema beleza, data venia, contudo, averiguamos que na prática os julgados pouco fazem uso da aplicação dela, pelo menos nas circunstâncias de litígios envolvendo prestação de serviços empresarial. 130 REFERÊNCIAS ANDRIGHI, Fatima Nancy. Aplicação do Novo Código Civil: Direito Intertemporal. Brasília: Bdjur-STJ: 14/05/2003. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/652. Acesso em: 18 out.2011. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Revista de Direito Renovar, n. 18, set./dez. 2000. ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo código civil. 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