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A ESCOLARIZAÇÃO SEGUNDO PROUST: DISTINÇÃO E MODERNIDADE
Elisabete Zardo Búrigo
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
[email protected]
Palavras-chave: história da educação, história e literatura, ensino secundário.
Introdução
Os textos ficcionais produzidos no passado vêm sendo considerados, por parte dos
historiadores, fontes privilegiadas para o acesso ao imaginário da época de sua produção, aos
valores, temas, sensibilidades que transparecem no diálogo de cada autor com seus
contemporâneos (PESAVENTO, 2004). Essa perspectiva abre um amplo leque de
possibilidades de investigação no campo da história da educação, como têm mostrado outros
trabalhos (XAVIER, 2008) e como se quer argumentar neste texto, a partir de uma discussão
de excertos da obra À la recherche du temps perdu de Marcel Proust.
No romance, em que as reminiscências do narrador Marcel se confundem com as do
autor, a escola não se constitui em tema e nem mesmo em cenário eventual da narrativa.
Entretanto, são frequentes as alusões à instituição, e a usos de linguagem, noções e
argumentações que podem ser considerados efeitos de uma formação escolar.
As referências à escola, ao meio acadêmico e aos saberes escolares são recursos dos
quais o autor se vale, ora na composição de um personagem, ora na descrição de um cenário
e, em vários trechos, aparecem como comentários que parecem prescindíveis à narrativa, com
intenções não evidentes. O objetivo deste trabalho não é o de examinar os intuitos ou efeitos
literários dessas menções, mas tratá-las como indícios, de um lado, da experiência singular de
escolarização do autor e, de outro lado, de representações da escola, da universidade e do
conhecimento escolar que circulavam no período de produção do romance, na Paris dos anos
1910.
O trabalho toma como corpus de análise o volume Sodome et Gomorrhe, que tem
como tempo de narrativa os últimos anos do século XIX, em que a sociedade francesa se
encontra polarizada pelo caso Dreyfus. O narrador, já adulto, é admitido nos salões
aristocráticos parisienses e testemunha o encontro de personagens que habitavam, até então,
mundos diferentes, como é o caso, notadamente, do acadêmico Brichot, do Barão de Charlus,
do violinista Morel, e do médico e agora professor Cottard. Os diálogos travados nesses
encontros, densos em referências a erudições e percursos de formação, justificam a opção
pelo exame desse volume.
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Metodologia
Inicialmente, constituiu-se um inventário de trechos de Sodome et Gomorrhe em que
aparecem alusões à escola, à academia, ou aos saberes escolares. Para tanto, partiu-se da
tradução de Mário Quintana, publicada pela Editora Globo em 1992; os trechos dessa versão
em português foram a seguir confrontados com seus correspondentes no texto francês
estabelecido sob a direção de Jean-Yves Tadié e publicado pelas Éditions Gallimard, em
1999. Recorreu-se eventualmente a outros volumes do romance, quando necessário, para a
contextualização dos trechos selecionados.
Dentre os trechos inventariados, foram selecionados aqueles em que podem ser lidas
representações da instituição escolar, aí abarcados o liceu e as faculdades. Em algumas
passagens, foram identificadas referências à vivência escolar do autor; outras são reveladoras
de valores e temas que circulavam na imprensa e nos ambientes aristocráticos por ele
frequentados.
O texto que segue foi construído a partir da análise desses excertos, e do seu
cotejamento com elementos da biografia de Proust e de estudos sobre a educação escolar na
França, na passagem do século XIX para o século XX.
O liceu segundo as reminiscências de Proust
Segundo Gamble (2002), Proust frequentou o Lycée Condorcet, próximo à estação de
trens Saint Lazare, em Paris, de outubro de 1882 a junho de 1889.
O ensino então oferecido nos liceus era o secundário, masculino e pago, destinado às
elites instruídas. Não sucedia o primário, mas constituía uma ordem dele apartada: seriado,
culminando com o exame baccalauréat, seguia a tradição humanista clássica dos antigos
colégios jesuítas, centrada no estudo de textos gregos e latinos (BELHOSTE, 1996). A
matemática e as ciências físicas (incluída a química) ocupavam um lugar menor no currículo,
com finalidades mal definidas, oscilando entre uma visão mais utilitarista e outra centrada no
enfoque dedutivo (GISPERT; HULIN, 2000). Esse quadro seria modificado na virada do
século: um grande debate, desencadeado em 1899, na França, sobre as finalidades do ensino,
culminou com uma ampla reforma do secundário em 1902, em que a matemática e as
ciências, às quais foi atribuído um importante valor formativo, tiveram seu peso ampliado
(GISPERT, 2008).
Proust foi testemunha, então, de embates entre projetos educacionais, e de incipientes
tentativas de modernização do ensino nos liceus, exemplificadas pelos experimentos de
química, aos quais o autor faz alusão:
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Não podia decidir-me a deixar Swann. Tinha ele chegado a esse grau de
fadiga em que o corpo de um enfermo não é mais que uma retorta onde se
observam reações químicas. Seu rosto achava-se cheio de sinaizinhos azuisda-prússia que parecia não mais pertencerem ao mundo vivo e deprendiam
esse gênero de odor que, no liceu, após as “experiências”, torna tão
desagradável ficar numa classe de Ciências. (PROUST, 1992, p. 103)
Je ne pouvais me décider à quitter Swann. Il était arrivé à ce degré de fatigue
où le corps d’un malade n’est plus qu’une cornue où s’observent des
réactions chimiques. Sa figure se marquait de petits points bleu de Prusse,
qui avaient l’air de ne pas appartenir au monde vivant, et dégageait ce genre
d’odeur qui, au lycée, après les « experiences », rend si désagréable de rester
dans une classe de « Sciences ». (PROUST, 1999, p. 1284)
A obrigação de observar a reação química e de permanecer em classe é associada,
nessa passagem, ao dever de cortesia do narrador para com Swann, evitado pelos outros
convivas da recepção oferecida pela princesa de Guermantes, porque judeu e dreyfusista. O
texto indica, de um lado, a singularidade dessas aulas em laboratório, evocadas pela memória
olfativa do narrador, face a outras práticas escolares e, ao mesmo tempo, o desinteresse do
autor pelas aprendizagens visadas com os experimentos.
É também com enfado que o narrador se refere aos “deveres de casa” ou “temas de
casa”, expressão traduzida ao português, com uma certa liberdade, como “redação escolar”:
Foi sem emoção e como quem acrescenta uma última linha a uma aborrecida
redação escolar que tracei no envelope o nome de Gilberte Swann de que
cobria outrora os meus cadernos para ter a ilusão de corresponder-me com
ela (PROUST, 1992, p. 138).
Ce fut sans émotion et comme mettant la dernière ligne a un ennuyeux
devoir de classe, que je traçai sur l’enveloppe le nom de Gilberte Swann
dont je couvrais jadis mes cahiers pour me donner l’illusion de correspondre
avec elle (PROUST, 1999, p. 1314).
O desinteresse no cumprimento da tarefa escolar pode ser comparado com o sono
provocado pela leitura das memórias de Goncourt, transcritas em outro volume (PROUST,
1995), e que contrasta com o engajamento do próprio Proust na escrita do romance.
Em outra passagem, o narrador atribui a previsibilidade do estilo de redação da
Marquesa de Cambremer à sua formação escolar:
[...] a velha marquesa me escrevera uma dessas cartas cujo estilo se
reconhece entre milhares. [...] Dois métodos, ensinados, sem dúvida, por
professores diferentes, se contrapunham nesse estilo epistolar (PROUST,
1992, p. 459).
[...] la vieille marquise m’avait écrit une de ces lettres dont on eût reconnu
l’écriture entre des milliers. [...] Deux méthodes enseignées sans doute par
des maîtres différents se contrariairent dans ce style épistolaire (PROUST,
1999, p. 1572).
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Mas nem sempre os saberes escolares são evocados, no romance, com tédio ou como
efeito da repetição. No trecho que segue, a alusão ao exercício de determinação de um ponto intersecção de duas curvas - com o compasso, é impregnada do encanto da descoberta:
[...] esses círculos cada vez mais próximos que descrevia o automóvel em
torno de uma cidade que fugia em todas as direções, para escapar, e sobre a
qual finalmente ele avança direito, a pique, até o fundo do vale onde ela jaz
por terra; de maneira que essa localização, ponto único, que o automóvel
parece haver despojado do mistério dos trens expressos, dá pelo contrário, a
impressão de o descobrirmos, de o determinarmos nós mesmos com um
compasso, de nos ajudar a sentir com mão mais amorosamente exploradora,
com mais fina precisão, a verdadeira geometria, a bela medida da terra
(PROUST, 1992, p. 386).
[...] ces cercles de plus en plus rapprochés que décrit l’automobile autour
d’une ville fascinée qui fuyait dans tous les sens pour lui échapper et sur
laquelle finalement il fonce tout droit, à pic, au fond de la vallée, où elle
reste gisante à terre ; de sorte que cet emplacement, point unique que
l’automobile semble avoir dépouillé du mystère des trains express, il donne
par contre l’impression de le découvrir, de le déterminer nous-même comme
avec un compas, de nous aider à sentir d’une main plus amoureusement
exploratrice, avec une plus fine précision, la véritable géométrie, la belle
« mesure de la terre ». (PROUST, 1999, p. 1512).
A expressão “verdadeira geometria” merece ainda um comentário. Aqui o autor parece
não apenas se referir à etimologia da palavra, mas à sua predileção por uma geometria
vinculada à experiência sensível, em oposição a uma geometria estritamente dedutiva,
contraposição recorrente nos debates curriculares dos séculos XIX e XX, na França.
Ainda em conexão com a matemática, há uma passagem em que a álgebra é também
evocada como desafio, e não como repetição:
Ora, a figura a que o sr. de Charlus aplicava, e com tamanha contensão,
todas as suas faculdades espirituais e que a falar verdade não era das que
habitualmente se estudam more geometrico, era a que lhe propunham as
linhas da face do jovem marquês de Surgis; parecia, tão profundamente
absorto estava diante dela o barão de Charlus, alguma frase cifrada, alguma
adivinha, algum problema de álgebra de que procurava desvendar o enigma
ou descobrir a fórmula (PROUST, 1992, p. 93).
Or, la figure à laquelle M. de Charlus appliquait et avec une telle contention
toutes ses facultés spirituelles et qui n’était à vrai dire de celles qu’on étude
d’habitude more geometrico, c’était celle que lui proposaient les lignes de la
figure du jeune marquis de Surgis ; elle semblait, tant M. de Charlus était
profondément absorbé devant elle, être quelque mot en losange, quelque
devinette, quelque problème d’algèbre dont il eût cherché à percer ou à
dègager la formule (PROUST, 1999, p. 1276-7)
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A educação escolar em uma sociedade hierarquizada
Uma larga porção da narrativa de Sodome et Gomorrhe tem como cenários o
aristocrático salão da princesa de Guermantes e a casa de veraneio do casal de burgueses
Verdurin, onde se reúne um pequeno grupo de “fiéis”, apreciadores da boa comida e da
música de vanguarda. Os dois ambientes se confundirão no último volume do romance,
transcorrido no pós-guerra, quando Mme. Verdurin virá a ser princesa de Guermantes e as
posições relativas entre os personagens serão invertidas; em Sodome et Gomorrhe essa
aproximação é apenas anunciada, com a presença, nessa propriedade nomeada Raspelière, do
narrador e do Barão de Charlus.
As relações entre os personagens que ali se encontram, tais como descritas pelo
narrador, são marcadas por hierarquias múltiplas que se entrecruzam e sobrepõem, articuladas
segundo linhagens, títulos de nobreza, propriedades e um prestígio mensurável conforme os
convites que uns e outros recebem ou recusam.
O meio acadêmico, refletindo a sociedade francesa tal como é retratada pelo autor,
aparece também atravessado por hierarquias entre instituições, títulos e diplomas.
O final do século XIX foi marcado, na França, por políticas governamentais de
afirmação do ensino estatal e laico frente ao ensino privado e religioso. Na passagem que
segue, o autor se vale de um aposto para observar que mesmo entre os estabelecimentos
estatais havia uma hierarquia de prestígio:
Outras embaixadas procuraram rivalizar com aquela, mas não puderam
disputar-lhe o prêmio (como no concurso geral, em que determinado liceu o
consegue invariavelmente) e foi preciso que se passassem mais de dez anos
até que [...] pudesse uma outra, enfim, arrancar-lhe a funesta palma e
marchar em frente (PROUST, 1992, p. 81).
D’autres ambassades cherchèrent à rivaliser avec celle-là, mais il ne puirent
lui disputer le prix (comme au concours gènèral, où un certain lycée l’a
toujours) et il fallut que plus de dix ans se passassent avant que [...] une autre
pût enfin lui arracher la funeste palme et marcher en tête (PROUST, 1999,
p. 1266).
As posições relativas entre os personagens são expressas também com o recurso às
hierarquias da esfera educativa.
A posição inferior, correlata à dos calouros no liceu, é ocupada por Saniette,
endividado, tímido, que só bebe água e à custa de quem os demais convivas se divertem:
Assim, de medo que ele largasse, tinham o cuidado de convidá-lo com
palavras amáveis e persuasivas, como as têm no liceu e no regimento os
veteranos para um novato que querem aliciar com o único fim de agradar-lhe
então e dar-lhe trotes depois, quando ele não puder mais escapar-se
(PROUST, 1992, p. 288).
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Aussi, de peur qu’il lachât, avait-on soin de l’inviter avec des paroles
aimables et persuasives comme en ont au lycée les vétérans, au régiment les
anciens pour un bleu qu’on veut amadouer afin de pouvoir s’en saisir, à
seules fins alors de le chatouiller et de lui faire des brimades quand il ne
pourra pas s’échapper (PROUST, 1999, p. 1435).
Acima de Saniette está Morel, protegido do Barão de Charlus. O narrador é
surpreendido ao encontrá-lo na casa dos Verdurin, e mais ainda quando o violinista,
pretendendo ocultar que seu pai havia sido empregado do tio de Marcel, pede a este que se
refira ao pai dele, Morel, como “intendente de domínios tão vastos domínios que isso quase o
igualava a seus pais”. Atendido o pedido, Mme. Verdurin não deixa de manifestar ao narrador
seu estranhamento:
“[...] estou muito satisfeita de que o pai do nosso Morel tenha tido tão boa
situação. Eu havia compreendido que ele era professor de liceu, não quer
dizer nada, entendi mal.” (PROUST, 1992, p. 297).
« [...] je suis très contente que le père de notre Morel ait été si bien. J’avais
bien compris qu’il était professeur de lycée, ça ne fait rien, j’avais mal
compris. » (PROUST, 1999, p. 1442)
A fala da personagem explicita a representação da condição de professor de liceu
como inferior não só à figura do intendente mas à figura de professor universitário,
representada na narrativa pelos personagens Brichot e Cottard.
Brichot é filósofo e representante da tradição humanista clássica, em declínio na
Universidade de Paris:
Aliás, tinha pouca simpatia pela Nova Sorbonne, onde as ideias de exatidão
científica, à alemã, começavam a prevalecer sobre o humanismo. Agora,
limitava-se exclusivamente ao seu curso e às bancas de exames [...]
(PROUST, 1992, p. 257).
D’ailleurs il avait peu de sympathie pour la Nouvelle Sorbonne où les idées
d’exactitude cientifique, à l’allemande, commençaient à l’emporter sur
l’humanisme. Il se bornait exclusivement maintenant à son cours et aux jurys
d’examen [...] (PROUST, 1999, p. 1410).
O prestígio de que goza o professor é, sobretudo, interno à instituição, onde a
autoridade de acadêmico é reconhecida e colocada em evidência, nas bancas de exame e de
tese:
Mas Brichot [...], tendo aprendido, nas defesas de tese que ele presidia como
ninguém, que nunca se lisonjeia tanto a juventude como morigerando-a,
dando-lhe importância, fazendo-se tratar por ela de reacionário: - Eu não
desejaria blasfemar os Deuses da Juventude – disse ele, lançando-me esse
olhar furtivo que o orador concede a algum presente no auditório e cujo
nome ele cita (PROUST, 1992, p. 340).
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Mais Brichot [...] ayant retenu des soutenances de thèses qu’il présidait
comme personne, qu’on ne flatte jamais tant la jeunesse qu’en la morigénant,
en lui donnant de l’importance, en se faisant traiter par elle de reactionnaire :
« Je ne voudrait pas blasphémer les Dieux de la Jeunesse », dit-il en jetant
sur moi ce regard furtif qu’un orateur accorde à la dérobée à quelqu’un
présent dans l’assistance et dont il cite le nom (PROUST, 1999, p. 1475).
O professor mora em um apartamento de quinto andar ao qual se acede pelas escadas,
e tem um romance com sua lavadeira, interrompido por Mme. Verdurin. Mas não é apenas a
condição material humilde que o coloca em uma posição inferior à do casal; a ascendência da
burguesia sobre o meio acadêmico é ilustrada pela alegada participação dos Verdurin na sua
nomeação:
“[...] Pois bem, pode perguntar aos outros, mesmo ao lado de Brichot, que
está longe de ser uma águia, apenas um bom professor de segunda que eu fiz
entrar para o Instituto, mesmo assim, Swann não era nada.” (PROUST,
1992, p. 354).
« [...] Hé bien, vous pouvez demander aux autres, même à coté de Brichot
qui est loin d’être un aigle, qui est un bon professeur de seconde que j’ai fait
entrer à l’Institut, tout de même, Swann n’était plus rien. » (PROUST, 1999,
p. 1486).
Observa-se nesse trecho uma imprecisão na tradução, pois a “seconde” mencionada no
texto original é uma das séries finais do ensino secundário. De todo modo, o termo faz
referência a uma hierarquia de prestígio entre os professores de liceu, cujo topo é ocupado
pelos da “première”, da “terminale” e das classes preparatórias aos exames das grandes
“Écoles”.
O declínio da tradição que Brichot representa se expressa na depreciação do seu saber
acadêmico, descrito como livresco, aborrecido e irrelevante pelos Verdurin:
“[...] Diziam dos “avós” das pessoas que recebemos esta noite, dos
emigrados, que eles nada tinham esquecido. Mas tinham pelo menos a
desculpa – disse ela, apropriando-se de uma frase de Swann – de que nada
tinham aprendido. Ao passo que Brichot sabe tudo e nos lança à cabeça,
durante o jantar, pilhas inteiras de dicionários. Creio que o senhor não ignora
mais nada do que quer dizer o nome de tal cidade ou tal aldeia.” (PROUST,
1992, p. 333).
« On disait des « aïeux » des gens que nous avons ce soir, les émigrés, qu’ils
n’avaient rien oublié. Mais ils avaient du moins l’excuse, dit-elle en prenant
à son compte un mot de Swann, qu’ils n’avaient rien appris. Tandis que
Brichot sait tout et nous jette à la tête pendant le dîner des piles de
dictionnaires. Je crois que vous n’ignorez plus rien de ce que veut dire le
nom de telle ville, de tel village » (PROUST, 1999, p. 1469-70).
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Numa trajetória de sentido inverso, Cottard é o médico que vê seu prestígio crescer
com o ingresso na Academia de Medicina:
O orgulho que tinha o sr. Verdurin da sua intimidade com Cottard não fizera
senão crescer desde que o doutor se tornara um professor ilustre (PROUST,
1992, p. 342).
La fierté qu’avait M. Verdurin de son intimité avec Cottard n’avait fait que
grandir depuis que le docteur était devenu un professeur illustre. (PROUST,
1999, p. 1477).
O valor atribuído ao título acadêmico reflete-se no tratamento recebido dos demais. Se
antes era tratado como “doutor Cottard”, agora para sua própria esposa ele é “o professor”:
“[...] E depois o professor tem muito trabalho com os exames e os calores o
cansam muito. Creio que se tem necessidade de um repouso completo
quando se esteve todo o ano na brecha, como ele.” (PROUST, 1992, p. 348).
« [...] Et puis le professeur, avec les examens qu’il fait passer, a toujours un
fort coup de collier à donner et les chaleurs le fatiguent beaucoup. Je trouve
qu’on a besoin d’une franche détente quand on a été comme lui toute l’année
sur la brèche. » (PROUST, 1999, p. 1482).
Em outro volume do romance, Cottard refere-se ao professor Potain, da Academia,
como “um dos príncipes da ciência” (PROUST, 1999b, p. 212). Agora, é a si mesmo que
aplica a expressão.
Mas, mesmo Cottard, em sua trajetória ascendente, refere-se aos Verdurin como
estando situados mais acima, na escala social. O estatuto do casal não é avaliado segundo seu
gosto pelas artes, ou pelas relações que cultivam, mas segundo a fortuna que detêm:
“[...] O senhor com certeza já ouviu falar nos Verdurin. Eles conhecem todo
o mundo. E depois, eles pelo menos não são grã-finos de bobagem. Têm
lastro. Avalia-se geralmente que a sra. Verdurin possui uns 35 milhões.
Diabo! 35 milhões é alguma coisa! Assim, ela não é das que lambem a
colher.” (PROUST, 1992, p. 269)
« [...] Vous avez certainement entendu parler des Verdurin. Ils connaissent
tout le monde. Et puis eux du moins ce ne sont pas des gens chic décatis. Il
ya du répondant. On évalue généralement que Mme Verdurin est riche à
trente-cinq millions. Dame, trente-cinq millions, c’est un chiffre. Aussi elle
n’y va pas avec le dos de la cuiller. » (PROUST, 1999, p. 1420)
Parâmetros bem diversos são os que autorizam o Barão de Charlus a situar-se acima de
todos os convivas. Os vários títulos nobiliárquicos de que é portador, no discurso do
personagem, são expressão da antiguidade de suas linhagens e dos feitos de seus
antepassados. A motivação que o leva a frequentar a casa dos Verdurin, cujas gafes atribui ao
desconhecimento da vida mundana, é o interesse pelo violinista Morel.
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A instrução como componente de ascensão social
Aqueles que se encontram no topo da escala – os Verdurin, com sua fortuna, e o
Barão, com seus títulos de nobreza – não devem sua posição à sua escolaridade ou erudição.
Mas a instrução aparece como componente de ascensão social, notadamente, nos casos
de Cottard e da jovem Mme. Cambremer.
A jovem Mme. Cambremer é uma burguesa instruída que buscou na formação
desinteressada a erudição que, como um capital social agregado à renda, teria franqueado o
acesso, pelo casamento, a uma aristocracia provinciana:
Desde então compreendera que [...] a fortuna considerável e tão
honrosamente recebida que herdara de seu pai, a educação completa que
recebera, sua assiduidade à Sorbonne, tanto nos cursos de Caro como nos de
Brunetière, e aos concertos Lamoureux, tudo isso deveria volatilizar-se,
encontrar sua sublimação última no prazer de dizer um dia: ‘minha tia
d’Uzai’ (PROUST, 1992, p. 211).
Dès lors elle avait compris que [...] la fortune considérable et si
honorablement acquise qu’elle avait reçue, son assiduité à la Sorbonne, tant
aux cours de Caro comme de Brunetière, et aux concerts Lamoureux, tout
cela devait se volatilizer, trouver sa sublimation dernière dans le plaisir de
dire un jour : « ma tante d’Uzai ». (PROUST, 1999, p. 1374).
Cottard, ao contrário, é o filho de camponeses que pôde tornar-se médico e professor
graças aos estudos orientados para a profissão:
[...] digamos que o doutor, chegado a Paris com a magra bagagem dos
conselhos de uma mãe camponesa, depois absorvido pelos estudos quase
exclusivamente materiais a que são obrigados a consagrar-se durante longos
anos os que querem levar avante sua carreira médica, nunca se cultivara [...]
(PROUST, 1992, p. 417).
[...] disons que le docteur, venu à Paris avec le maigre bagage de conseils
d’une mère paysanne, puis absorbé par les études presque purement
matérielles auxquelles ceux qui veulent pousser loin leur carrière medicale
sont obligés de se consacrer pendant un grand nombre d’années, ne s’était
jamais cultivé [...] (PROUST, 1999, p. 1538).
O trecho que segue confirma a precária erudição de Cottard, como a de seus
estudantes na Academia de Medicina:
“ [...] Os homini sublime dedit coelumque tueri – acrescentou, embora isso
não tivesse nenhuma relação com o assunto, mas porque o seu estoque de
citações era bastante pobre, embora suficiente para maravilhar seus alunos.
(PROUST, 1992, p. 446)
« [...] Os homini sublime dedit coelumque tueri » – ajouta-t-il bien que cela
n’eût aucun rapport, mais parce que son stock de citations latines était assez
pauvre, suffisant d’ailleurs pour émerveiller ses éléves (PROUST, 1999,
p. 1562).
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O conhecimento do qual se vale Cottard é, sobretudo, o conhecimento científico, que
ele faz questão de distinguir dos saberes populares ou cotidianos:
“- O senhor não está respondendo à minha pergunta – tornou doutoralmente
o professor que, três vezes por semana, estava ‘de exame’ na faculdade. –
Não lhe pergunto se faz dormir ou não, mas o que é. Pode dizer-me quantas
partes de amila e de etila contém?” (PROUST, 1992, p. 344-5)
« - Vous ne répondez pas à ma question », reprit doctoralement le professeur
qui, trois fois par semaine, à la Faculté, était « d’éxamen ». « Je ne vous
demande pas si ça fait dormir ou non, mais ce que c’est. Pouvez vous me
dire ce qu’il contient de parties d’amyle et d’éthyle ? » (PROUST, 1999,
p. 1479).
Vemos que através dos personagens Brichot e Cottard, Proust assinala uma inversão
de valores, então em curso, com o prestígio crescente das chamadas “ciências” e o declínio de
uma erudição baseada na leitura dos textos clássicos.
Interessante nessa linha é também a menção que o narrador faz a um curso de álgebra,
pretexto evocado pelo violinista Morel para evitar os encontros noturnos com o Barão de
Charlus:
Mas, seguidamente, o sr. de Charlus tinha dúvidas quanto à realidade da
lição de violino, e tanto mais que o músico muita vez invocava pretextos de
outro gênero, de ordem inteiramente desinteressada do ponto de vista
material e, aliás, absurdos. [...] Durante um mês se pôs à disposição do sr. de
Charlus, sob a condição de ter livres as tardes, porque desejava seguir
assiduamente um curso de álgebra. [...] - Mas a álgebra se aprende com igual
facilidade num livro. Até mais facilmente, pois não compreendo grande
coisa numa aula. E, depois, a álgebra não te pode servir para nada. – Mas eu
gosto. Dissipa a minha neurastenia (PROUST, 1992, p. 450).
Mais souvent M. de Charlus avait sur la leçon de violon des doutes d’autant
plus grands que souvent le musicien invoquait des pretextes d’autre genre,
d’un ordre entièrement désinteressé au point de vue matériel, et d’ailleurs
absurdes. [...] Pendant un mois il se mit à la disposition de M. de Charlus à
condition de garder ses soirèes libres, car il désirait suivre avec continuité
des cours d’algèbre. [...] – Mais l’algébre s’apprend aussi facilement dans un
livre. – Même plus facilement, car je ne comprends pas grand-chose aux
cours. – Alors ? D’ailleurs l’algèbre ne te peut servir à rien. – J’aime bien
cela. Ça dissipe ma neurasthénie (PROUST, 1999, p. 1565).
Aqui observamos a menção à álgebra como uma nova modalidade de estudo
desinteressado, e a contraposição de interesses ou gostos entre duas gerações, a do jovem
Morel e do velho Barão, mais interessado na literatura francesa e nos poetas latinos.
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Considerações finais
Os excertos aqui transcritos de Sodome et Gomorrhe nos mostram a educação escolar
do final do século XIX, na França, retratada como elemento constituinte de relações sociais
marcadas, de um lado, pela desigualdade, e, de outro lado, pelos deslocamentos em que ao
declínio da aristocracia e da tradição humanista correspondem o ascenso da burguesia e da
educação científica.
A própria escola, suas regras e práticas não escapam à mordacidade com que Proust
descreve a sociedade parisiense e, notadamente, as elites de sua época. A educação é vista,
sobretudo, sob o prisma daquilo que Bourdieu chamaria, mais tarde, de “capital simbólico”:
percursos, saberes e títulos que se podem ostentar, e que estabelecem distinções entre uns e
outros.
Ao mesmo tempo, há passagens em que a experiência escolar é evocada com uma
nostalgia poética e que nos permitem pensar nos liceus do tempo de Proust como lugares de
práticas contraditórias, em que a repetição e a previsibilidade se alternavam com o encanto do
desafio e da descoberta.
Referências bibliográficas
BELHOSTE, B. Réformer ou conserver ? La place des sciences dans les transformations de
l’enseignement secondaire en France (1900-1970). In : BELHOSTE, B. ; GISPERT, H.;
HULIN, N. Les sciences au lycée – Um siècle de reformes des mathématiques et de la
physique en France et à l´étranger. Paris: INRP, 1996.
GAMBLE, C. J. Proust as interpreter of Ruskin: the seven lamps of translation.
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