O pacto federativo e a autonomia dos municípios Marília Campos Prefeita de Contagem Dalmy Freitas de Carvalho Professor da PUC.MG Auditor Fiscal do município de Contagem Mestre em Ciências Contábeis pela UFRJ Podemos afirmar que os municípios só exercerão sua autonomia como ente federado se a sua autonomia financeira for uma conquista permanente. A gestão municipal sofreu os reflexos das mudanças ocorridas nos princípios do pacto federativo contemplados na Constituição de 1988. O objetivo era promover um equilíbrio na distribuição das receitas da União entre os entes subnacionais com implicações relevantes na busca da autonomia dos entes federados (capacidade de atender aos interesses públicos). As mudanças constitucionais modificaram as normas de distribuição da receita tributária da União, com incremento de aporte de recursos aos municípios e, em contrapartida, novas atribuições foram transferidas para a responsabilidade dos entes federados conforme determinadas no capítulo IV da Constituição. Mudanças de natureza estruturais e conjunturais surgiram como dificultadores nesse processo de busca de autonomia financeira dos municípios proposto pela Carta Magna. As modificações estruturais ocorridas no período pós-Constituinte proporcionaram uma intensificação da urbanização, gerando, pela população do município, um incremento na demanda por serviços e equipamentos sociais em saúde, educação, habitação e segurança. Dentre as alterações de natureza conjuntural, destacam-se a retração econômica gerada pela política recessiva do governo federal nos anos seguintes à promulgação da Constituição e a conseqüente redução da base de cálculo das receitas do Fundo de Participação dos Municípios, tendo como resultado prático a redução da arrecadação federal e, por conseqüência, as transferências de recursos aos municípios. Delineava-se assim uma situação contraditória em que, apesar da Constituição destinar mais recursos aos municípios, estes acabavam sendo insuficientes em virtude da recessão econômica ou de um crescimento da economia inferior ao crescimento das demandas por serviços e equipamentos públicos. A União, perdendo participação nas receitas tributárias, procurou reverter essa situação criando contribuições e/ou majorando as já existentes, visto essas não serem distribuídas aos entes federados. O Finsocial, iniciado em 1982 com alíquota de 0,5% da receita das empresas, após vários aumentos, foi, em 1992, substituído pela Cofins —indo para 3%, no regime de cumulatividade. Em fevereiro de 2003 esse regime foi extinto e a alíquota passou para 7,6% da receita e importações das empresas, sendo que as instituições financeiras passaram a pagar 4%. No ano da promulgação da Constituição, a receita do Finsocial representava 0,64% do PIB e em 2005 o Cofins já representava 4,53% do PIB, com uma arrecadação de quase 88 bilhões, com estimativa de arrecadar R$ 95 bilhões em 2006. A mesma estratégia foi utilizada para incrementar a contribuição do PIS que, criado em 1970 com alíquota de 0,35% sobre a receita das empresas, hoje se encontra em 1,65%. Em 1989 representava somente 0,67% do PIB, representou 1,14% em 2005 e a previsão é que represente 1,15% em 2006, com uma receita de R$ 24 bilhões. A CPMF, criada em 1993, é outra contribuição para abastecer os cofres da união. A alíquota inicial era de 0,25% sobre os saques na rede bancária, perdeu sua validade em 1995 e retornou em 1997 com alíquota de 0,20%, quando representava 0,79% do PIB com uma arrecadação de aproximadamente R$ 7 bilhões. Em 2000 a alíquota foi para 0,38%, caindo para 0,30% em 2001 e voltando a 0,38% em 2002, quando a receita já representava 1,51% do PIB, ou seja, uma arrecadação de R$ 20 bilhões/ano, triplicou em cinco anos. As estimativas para o ano de 2006 são de uma receita de R$ 32 bilhões, ou 1,53% do PIB. Mais recentemente (2002), foi criada pelo governo federal a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, cobrada sobre o consumo de combustíveis e derivados e destinada a programas de infra-estrutura de transportes, com uma arrecadação prevista de R$ 8 bilhões em 2006. Do valor arrecadado, 25% são destinados aos Estados e Distrito Federal que redistribuem 25% aos municípios. Com o objetivo de incrementar as exportações, a Lei Complementar 87/1996 modificou o texto constitucional, impedindo a tributação do ICMS aos produtos semi-elaborados destinados à exportação, tornando-os mais competitivos no mercado internacional. Esta desoneração atingiu seu objetivo, pois o Brasil ultrapassou a barreira dos US$ 100 bilhões de exportações. Entretanto, o ônus foi absorvido pelos entes federados exportadores com uma expressiva renúncia fiscal de ICMS, com enormes prejuízos aos municípios, aos quais são destinados 25% da receita deste tributo. Nos últimos três anos, as receitas de contribuições da União não partilhadas com os municípios totalizaram R$ 810 bilhões, enquanto as receitas tributárias, partilhadas com os entes federados, somam R$ 398 bilhões, causando enormes distorções, que não foram proporcionadas pelo atual governo, mas que, de qualquer forma, possuem fortes doses de perversidades fiscais na medida em que acentuam a concentração de renda nos cofres da União em lugar de distribuí-la. O descompasso entre o incremento da receita de contribuições da União e a redução relativa da receita tributária, que é distribuída aos entes federados, é uma contradição que vem deformando o espírito da Constituição “Cidadã”, que teve como objetivo o equilíbrio fiscal federativo. O País possui um dos sistemas tributários mais perversos e regressivos do mundo, na medida em que proporciona uma distribuição de renda altamente concentrada, onde uma arrecadação que era para ser acessória e específica (contribuições) já ultrapassou a principal (tributária). O encolhimento da participação dos municípios no bolo da União, combinado com um elevadíssimo estoque de dívidas que, não auditadas e calculadas através de fórmula de atualização monetária imposta pela União, proporcionou, no decorrer dos anos, um crescimento enorme no saldo devedor, tornando-a impagável. Os municípios vêm, mensal e compulsoriamente, desembolsando recursos para pagamento de dívidas que inviabilizam suas administrações. Os fatores mencionados e políticas econômicas equivocadas quanto ao desenvolvimento do País vêm causando enormes deformações e dificuldades no equilíbrio das contas públicas dos entes federados. Devemos retornar aos princípios da Constituição de 1988, envolvendo toda a classe política para que ela assuma os compromissos de resgate do pacto federativo e de uma reforma tributária justa, que destine aos municípios os recursos na mesma proporção das atribuições que lhes foram determinadas pela Constituição e demandadas pela população que neles reside.