[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ CONTEMPORANEIDADE]
Ano 1, n°1 | 2011, inverno
ISSN [2236-4846]
Aspectos da Vida Pós-Moderna em La Zona:
O Gueto Voluntário de Rodrigo Plá*
William Vaz de Oliveira∗∗
Introdução
Cidade do México, México. Alejandro (Daniel Tovar) é um adolescente que vive em
La Zona, um condomínio luxuoso protegido por câmeras de segurança e guardas
particulares vinte quatro horas por dia. No dia de seu aniversário, durante uma tempestade,
a queda de um outdoor, armado do lado de fora, atinge o muro do condomínio
comprometendo seu sistema de segurança. Aproveitando a situação, três jovens da favela
vizinha invadem o condomínio para roubar. Durante o assalto, na primeira casa, matam a
moradora que os surpreende. No entanto, a empregada escapa e aciona o alarme. Os
guardas reagem e conseguem matar dois dos assaltantes enquanto tentavam fugir, mas um
deles, Miguel (Alan Chávez), consegue escapar. Diante da situação, um grupo de
moradores se reúne na casa de Alejandro para decidir o que fazer. Depois de acalorada
discussão em assembléia, fica decidido que nada seria dito à polícia e que eles mesmos, os
moradores, tratariam de resolver o problema com as próprias mãos, realizando uma busca
sistemática pelo invasor nas propriedades do condomínio.
Baseada no conto de Laura Santullo, também principal responsável pela escrita do
roteiro, a história ganha cor e movimento nas mãos do cineasta mexicano Rodrigo Plá. O
diretor aposta na amizade estabelecida entre Alejandro (Tovar) e o invasor Miguel
(Chávez), surpreendido por aquele enquanto se escondia no porão de sua casa, como o
ponto forte do filme. No entanto, La Zona (2007) ganha força ao colocar em evidência
diversos aspectos da vida pós-moderna, em suas contradições e ambivalências, como, por
exemplo: a relação conflituosa entre liberdade e segurança; uma política das incertezas;
território e fronteiras; má distribuição de renda e diferenças sociais; bem como o processo
de “guetificação” da sociedade em “tempos líquidos”.1
*
Artigo recebido em novembro de 2010 e aprovado para publicação em março de 2011.
Psicólogo e historiador. Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e
Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Financiamento: CAPES.
1
O termo “Tempos Líquidos” aqui utilizados faz alusão à obra do sociólogo polonês Zygmunt Bauman
publicada em português, com este mesmo título, em 2007. Nesta obra, o autor coloca em evidência o
problema da insegurança que assola, sobretudo, as grandes cidades. Terrorismo, desemprego, solidão são
∗∗
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WILLIAM VAZ DE OLIVEIRA]
A narrativa criada pelo diretor evidencia uma divisão entre classes muito bem
demarcada, na qual os “de dentro” se separam dos “de fora” por muros de contenção e
cercas de segurança. O longa-metragem começa, assim, com um carro percorrendo
lentamente as ruas enquanto em seus vidros espelhados são refletidas imagens de casas
luxuosas, sem muros aos redores, cercadas apenas por jardins bem cuidados. A dimensão
das ruas e a amplitude do território dão idéia de se tratar de uma cidade comum, ou pelo
menos de um bairro luxuoso como aqueles representados em filmes de Hollywood. No
entanto, em uma perspectiva aérea, a câmera segue varrendo lentamente o espaço
revelando, aos poucos, certas intimidades de alguns moradores indo ao encontro de um
muro alto coberto por arames farpados, cercas elétricas e câmeras de segurança, mostrando
as fronteiras muito bem demarcadas do território.
Fotograma capturado do filme La Zona, Produção de Álvaro Longoria e Direção de Rodrigo Plá,
México, 2007.
O muro coberto por cercas separa a favela, representada como o espaço da pobreza
ou, pelo menos, como o contraponto do universo do condomínio, evidenciado, por sua vez,
como espaço do luxo. Uma cisão entre o “dentro” e o “fora”, entre o “gueto voluntário”, de
onde se pode sair quando quiser, pois o seu propósito principal é impedir a entrada de
estranhos, e o “gueto involuntário”, de onde não se pode sair, pois quem nele vive é
marcado pelo estigma de pobre, decadente e “marginal” 2.
categorias de profunda reflexão na obra de Bauman que busca mostrar como os indivíduos, em tempos
líquidos, estão entregues à própria sorte.
2
Faço uso dos termos “guetos voluntários” e “guetos involuntários” empregados por Zymunt Bauman em
seu livro “Comunidade: a busca por segurança no mundo atual” para marcar as diferenças entre os “guetos
reais” e os “guetos” criados justamente para afastar o medo e a insegurança. Segundo o próprio autor: “os
guetos reais são lugares dos quais não se pode sair [...]. O principal propósito do gueto voluntário, ao
contrário, é impedir a entrada de intrusos – os de dentro podem sair à vontade [...]. Os guetos reais implicam
na negação da liberdade. Os guetos voluntários pretendem servir à causa da liberdade” (BAUMAN, 2003:
106).
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Ano 1, n°1 | 2011, inverno
ISSN [2236-4846]
Fotograma capturado do filme La Zona, Produção de Álvaro Longoria e Direção de Rodrigo Plá,
México, 2007.
Em “Zona do Crime” é possível notar, neste sentido, a necessidade que têm os bemsucedidos, ricaços mexicanos, de permanecerem longe do “refugo” da sociedade, ou
melhor, dos pobres. Partindo da idéia do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, La Zona
aparece como um “gueto voluntário”, construído exatamente para proibir a circulação dos
estranhos e impedir a entrada dos intrusos (v. BAUMAN, 2003). Tem-se um ganho em
segurança, pois dispõem de vigilância constante e proteção vinte quatro horas, mas, em
troca, uma perda em liberdade, ao passo que, são monitorados o tempo todo, pois, em La
Zona, as câmeras percorrem todos os espaços, como um panóptico que tudo vê e tudo
controla3. Em uma sala de monitoramento os guardas se dividem como na torre central do
panóptico, só que agora eles contam com uma forte aliada que amplia os olhares: a
tecnologia
Dessa maneira, o cerco se fecha e as relações de poder se desenrolam. No filme de
Rodrigo Plá, as hierarquias sociais são muito bem demarcadas e, neste jogo, os donos do
capital são aqueles que ditam as regras. Desacreditados nas políticas públicas e na justiça,
resolvem manter a polícia fora e resolver o problema com as próprias mãos. Uma vez
explorado pelos intrusos, o espaço perde a sua inocência. Os moradores percebem que sua
segurança não está totalmente garantida e, por isso mesmo, o invasor não pode sair; pelo
menos, não pode sair vivo.
Uma realidade que, no início, pode até parecer inverossímil - e o filme é uma ficção aos poucos, vai apresentando um lugar comum, pelo menos para a grande maioria dos
3
A palavra "panopticon" foi usada por Jeremy Bentham, filósofo e jurista inglês. Ele concebeu o panóptico
(sistema de vigilância) no século XVIII. Era um projeto de prisão modelo para reformar encarcerados.
Também foi um plano para todas as instituições educacionais, de assistência e de trabalho. Uma solução
econômica para os problemas, o esboço de uma sociedade racional. Segundo Foucault (filósofo francês),
Bentham confiava na força do olhar. No caso, na força do olhar do poder. Assim, sistemas de vigilância
observavam as pessoas. As autoridades passaram a acreditar que as pessoas só se tornariam virtuosas pelo
simples fato de serem vigiadas (v. FOUCAULT, 1987).
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países da América Latina; - e qualquer semelhança com o Brasil não é mero acaso.
Evidencia, dessa forma, uma sociedade cindida, onde o capital é o principal distintivo de
classe. Afinal de contas, é o próprio capital que possibilita aos moradores do condomínio
manter sua autonomia em relação à política local. La Zona tem suas próprias leis e suas
próprias regras de funcionamento. Ninguém entra sem autorização. Muito embora as
decisões sejam tomadas em assembléias; e cada morador tenha direito à voz e a voto, o
regime é quase ditatorial, sendo que os “mini-ditadores”, como são os casos dos
personagens Daniel (Daniel Giménez Cacho), Mariana (Maribel Verdú) e Gerardo (Carlos
Bardem), que detêm um poder maior que os outros moradores, manipulam informações,
ocultam cadáveres e impõem o toque de recolher, compondo, dessa maneira, uma distopia
que remete diretamente à história recente de tantos países da América Latina (incluindo-se,
aí, o Brasil).
Este é um elemento que chama bastante atenção, pois reforça a idéia de que na
contemporaneidade para se ter segurança é necessário abrir mão da liberdade. No entanto,
nenhuma segurança, por mais que pareça, é eterna e, de certa forma, os moradores
percebem isto com areia no fundo dos olhos. A certeza de um lugar totalmente protegido
dos intrusos é desmantelada com a invasão; e Miguel traz o perigo para dentro gerando um
imenso mal-estar nos moradores que abriram mão da liberdade individual em troca da
segurança comunitária. Eliminar o invasor parece ser, neste sentido, a única maneira de
alcançar um ponto de equilíbrio e restabelecer a ordem no local.
Neste sentido, Zona do Crime traz a tona elementos bastantes presentes na
atualidade, tais como: o medo da violência, a busca por segurança, a corrupção, o
descrédito nas autoridades e políticas públicas, bem como as misérias sociais presentes não
somente no México e outros países da América Latina, mas em diversos países de
“Terceiro Mundo” ou “em desenvolvimento”.
Aspectos estes que são foco principal deste artigo, que busca compreender a relação
existente entre estes anseios por segurança e liberdade, presentes no filme de Rodrigo Plá,
e as mudanças ocorridas com o advento da pós-modernidade, que torna líquido tudo aquilo
que antes era sólido.
La Zona e o sonho de comunidade
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Em seu livro Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, Bauman mostra
como o processo de dissolução da comunidade deixou o indivíduo entregue a si mesmo,
provocando um sentimento de insegurança, incerteza e mal-estar (BAUMAN, 2003).
Não obstante, este mal-estar tem relações diretas com as mudanças ocorridas no
período moderno. Com o advento da modernidade, as comunidades foram dissolvidas em
nome da individualidade. Na passagem para a modernidade, houve um ganho de liberdade
pessoal o que tornou possível, diferentemente dos tempos feudais, ascender e descer na
escala social, independentemente de condições de nascimento e herança. A autoridade da
igreja católica de interferir na liberdade de pensamento e na investigação científica foi
afastada, e, nesse processo, a sociedade passou de estamental para uma sociedade
fundamentalmente meritocrática. Em todos os campos da arte, o formalismo deu lugar ao
individual, ao estranho, ao exótico e, finalmente, ao puramente subjetivo, como vemos
hoje. O homem tornou-se o centro do universo, o único ser capaz de, a partir do uso da
razão, conhecer as coisas.
Dessa forma, o indivíduo alcançou a sua emancipação sendo seduzido pela promessa
de liberdade. No entanto, tornou-se o único responsável pelas suas escolhas e, por isto
mesmo, pela sua sobrevivência. Entregue a si mesmo, o indivíduo, que antes vivia em
comunidade, teve que vender a sua própria força de trabalho para sobreviver.
Para os capitalistas, este processo de dissolução da comunidade em detrimento da
liberdade individual foi uma estratégia, pois quanto mais “desenraizados” estivessem os
indivíduos de seus laços familiares e comunitários, seria melhor. A guerra contra a
comunidade, neste sentido, foi uma maneira de incitar no indivíduo a necessidade do
trabalho para a sua sobrevivência, destituindo o trabalho de seu significado e o tornando
alienado. Segundo Bauman, “para o empresário, a separação entre negócio e lar foi uma
verdadeira emancipação”, pois o trabalhador não teria mais aquele significado que tinha na
comunidade. Agora, “os homens e mulheres deviam ser separados da teia de laços
comunitários que tolhia seus movimentos, para que pudessem ser mais tarde predispostos
como equipes de fábrica” (BAUMAN, 2003: 33). A este processo de desmantelamento dos
laços
comunitários
e
emancipação
do
indivíduo,
Bauman
deu
o
nome
de
“desenraizamento” 4.
4
Segundo Bauman, foi justamente esta emancipação de alguns em detrimento da supressão de outros, da
desarticulação da comunidade, símbolo da segurança, que possibilitou a Revolução Industrial. Dessa maneira
“’as massas’ tiradas da velha e rígida rotina (a rede da interação comunitária governada pelo hábito) para
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No entanto, o processo de “desenraizamento” não fez com que os indivíduos se
dedicassem ao trabalho da fábrica como faziam antes. O trabalho alienado não combinava
com o “trabalho bem feito” justamente porque havia sido destituído de seus significados.
Segundo Bauman, “destruídos os laços comunitários que a mantinham em seu lugar, essa
maioria viria a ser submetida a uma rotina inteiramente diferente, ostensivamente artificial,
sustentada pela coação nua e sem sentido em termos de ‘dignidade, mérito e honra”
(BAUMAN, 2003: 33).
Como os trabalhadores não abraçaram o trabalho da fábrica com a mesma placidez
que costumavam abraçar os trabalhos comunitários, “um regime disciplinar rigoroso e
supervisionado de perto preencheu o vazio aberto pelo desaparecimento da ‘compreensão
natural’ e do consentimento que outrora regulavam o curso da vida humana” (BAUMAN,
2003: 34). E assim:
Durante a maior parte de sua história a modernidade se desenvolveu sob
os auspícios do poder ‘panóptico’, obtendo a disciplina pela vigilância
contínua. O principio essencial do panóptico é a crença dos internos de
que estão sob observação contínua e de que nenhum afastamento da
rotina, por minúsculo e trivial que seja, passará despercebido. Para
manter essa crença, os supervisores tinham que passar a maior parte do
tempo nos postos de observação, do mesmo modo que os pais não podem
sair de casa por muito tempo sem temer travessuras dos filhos. O modelo
panóptico de poder prendia os subordinados ao lugar, aquele lugar onde
podiam ser vigiados e punidos por qualquer quebra de rotina (BAUMAN,
2003: 35).
Neste regime de vigilância e controle constantes, não apenas o trabalhador ficava
preso ao seu local de trabalho, mas também os supervisores e, às vezes, os próprios
patrões, pois o controle era feito corpo a corpo. A este regime disciplinar, Bauman chamou
de a grande era do “engajamento”, pois “para o bem ou para o mal, os dois lados estavam
amarrados entre si e nenhum deles podia com facilidade sair do impasse – por difícil ou
repulsivo que fosse” (BAUMAN, 2003: 35).
Não obstante, a rotina cansativa das fábricas e a submissão ao trabalho alienado, a
partir do controle e da vigilância, despertavam no trabalhador o desejo de retorno à vida
comunitária. Foi então que os donos do capital, a fim de aumentar a produtividade,
tentaram recriar na fábrica um ambiente comunitário. No começo do século XX, Frederick
Taylor propôs uma “organização científica do trabalho que pretendia separar o
serem espremidas na nova e rígida rotina (o chão da fábrica governado pelo desempenho de tarefas), quando
sua supressão serviria melhor à causa da emancipação dos supressores” (BAUMAN, 2003: 30).
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desempenho produtivo dos motivos e sentimentos dos trabalhadores” (BAUMAN, 2003:
36-37). Dessa maneira:
Em lugar de confiar exclusivamente nos poderes coercitivos da máquina,
apostavam nos padrões morais dos trabalhadores, sua piedade religiosa,
na generosidade de sua vida familiar e sua confiança no chefe-patrão. As
cidades modelo construídas em torno das fábricas estavam equipadas com
moradias decentes, mas também com capelas, escolas primárias, hospitais
e confortos sociais básicos – todos projetados pelos donos das fábricas
junto com o resto do complexo e produção (BAUMAN, 2003: 37).
A idéia era realmente a recriação da comunidade em torno do local de trabalho para,
a partir daí, incentivar o trabalhador a realizar “o trabalho bem feito”. A partir da década de
1930, a “escola das relações humanas”, que seguia os experimentos de Elton Mayo nas
Empresas Hawtorne, traria um elemento de grande importância para o aumento da
produtividade nas fábricas. Ao contrário do que pensava Taylor, Mayo descobriu que:
Os bônus e aumentos de salários, bem como a minuciosa (e custosa)
supervisão minuto a minuto, não seriam tão importantes – desde que os
patrões conseguissem evocar entre seus empregados o sentimento de que
‘estamos todos no mesmo barco’, promover a lealdade à empresa e
convencê-los do significado do desempenho individual para o esforço
conjunto numa palavra, desde que eles respeitassem o anseio dos
trabalhadores por dignidade, mérito e honra e seu desprezo inato pela
rotina fútil e sem sentido (BAUMAN, 2003: 38-39).
Agindo dessa forma o patrão não precisaria mais ficar preso à fábrica e nem deixar
supervisores para promover o controle e a disciplina corpo a corpo, pois o próprio
trabalhador realizava o seu autocontrole. Os bem-sucedidos puderam, então, fazer o seu
“desengajamento” tornando-se “extraterritoriais”, pois a supervisão poderia ser feita,
agora, à distância. Por outro lado, não somente os donos do capital se desengajaram, mas
também os próprios trabalhadores, visto que os próprios lugares de trabalho tornaram-se
quebradiços e liquefeitos 5.
O trabalhador ficou ainda mais entregue a si mesmo e a liquidez do mundo deixou o
sujeito pós-moderno ainda mais inseguro. Não somente as coisas tornaram-se voláteis e
passageiras, mas também as pessoas, pois o indivíduo tornou-se totalmente prescindível e
descartável como quaisquer outros objetos. Dessa forma, os laços afetivos tornaram-se
5
Com estas transformações na forma de administração e governabilidade, os indivíduos não precisavam mais
permanecer presos ao território. Com o avanço da tecnologia e das redes de comunicação, o controle e a
vigilância passaram a ser possíveis mesmo à distância. As fronteiras foram bombardeadas e a distância
diminuída, o que possibilitou aos “bem-sucedidos” viverem no universo da “extraterritorialidade”.
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frágeis, nada é garantido por muito tempo e a comunidade ficou ainda mais distante, visto
que as lealdades pessoais diminuíram com o “enfraquecimento sucessivo dos laços
nacionais, regionais, comunitários, de vizinhança, de família e, finalmente, dos laços que
nos ligam a uma imagem coerente de nós mesmos” (STEIN; apud BAUMAN, 2003: 48).
Em outras palavras, a comunidade entra em colapso e a identidade individual é
inventada. O sujeito ficou entregue à própria sorte, livre, mas sem segurança, pois “a
chance de desfrutar da liberdade sem pagar o preço da insegurança é para poucos. Somente
os ricos têm este privilégio” 6. Os bem-sucedidos, neste sentido, a fim de se livrarem dos
perigos procuram não se misturar com o “refugo” vivendo em lugares fechados com
segurança vinte quatro horas por dia. No entanto:
As ‘comunidades cercadas’, pesadamente guardadas eletronicamente
controladas, que eles compram no momento em que têm dinheiro ou
crédito suficiente para manter distância da ‘confusa intimidade’ da vida
comum da cidade são ‘comunidades’ só no nome. O que seus moradores
estão dispostos a comprar ao preço de um braço ou uma perna é o direito
de manter-se à distância e viver livre dos intrusos (BAUMAN, 2003: 52).
Em La Zona, por exemplo, nota-se claramente que o interesse dos moradores não
está em reconstruir o sentimento da comunidade perdida, mas unem-se por interesses
comuns que é manter a segurança e a distância dos “intrusos”. Trocaram a liberdade de
viverem suas vidas da forma que quiserem, pela segurança de um lugar fechado. A idéia do
“gueto voluntário” é impossibilitar a entrada dos intrusos. A “comunidade” que estas
pessoas procuram é, segundo Bauman, “um ‘ambiente seguro’ sem ladrões e à prova de
intrusos. ‘Comunidade’ quer dizer isolamento, separação, muros protetores e portões
vigiados” (BAUMAN, 2003:103).
Em Zona do Crime, a instalação de câmeras de segurança, cercas elétricas e guardas
vinte quatro horas não são o suficiente para manter os intrusos distantes. Além disso, se
dispõe de uma liminar que proíbe a entrada de qualquer pessoa não autorizada. Nem
mesmo a polícia pode entrar no condomínio sem um mandado de segurança. É o que se
pode perceber na passagem do filme em que a polícia vai até o condomínio para apurar
uma denúncia feita por telefone que falava de barulhos de tiros e acionamento de alarmes
6
A liberdade e a segurança são muito difíceis de serem conciliadas sem que haja atritos. Isto porque “a
promoção da segurança sempre requer o sacrifício da liberdade, enquanto esta só pode ser ampliada à custa
da segurança. Mas segurança sem liberdade equivale à escravidão; e a liberdade sem segurança equivale a
estar perdido e abandonado (...). A segurança sacrificada em nome da liberdade tende a ser segurança dos
outros; e a liberdade sacrificada em nome da segurança tende a ser a liberdade dos outros” [grifos do autor]
(BAUMAN, 2003: 24).
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na mesma noite que aconteceu o assalto. Nesta passagem, o comandante Rigoberto (Mario
Zaragoza) pergunta aos moradores o que havia acontecido naquela noite e Mariana
(Maribel Verdú) responde que o outdoor havia provocando uma queda de energia e que,
por, isso, os alarmes dispararam. Não convencido, o comandante disse que a “ligação falou
de tiros”, e Mariana responde irredutível que deveriam ter sido “do outro lado do muro,
como sempre”. Ainda não convencido com a versão dada pela moradora, o comandante
pede para entrar no condomínio para dar uma olhada, mas Mariana interrompe dizendo:
“desculpe, mas para entrar aqui precisa de um mandado”. Diante da situação, Rigoberto
alega que “a rua é pública” e Mariana responde de forma ríspida: “esta não” 7.
Nota-se nesta passagem a existência de uma total autonomia dos moradores em
relação ao espaço privado. Autonomia esta alcançada através da compra de uma liminar
que proibia a entrada de pessoas não autorizadas, mesmo em situações como aquela. Além
disso, não confiavam na polícia e sabiam que se esperassem justiça pública as coisa nunca
seriam resolvidas. É o que se pode notar na fala de Daniel (Daniel Gimenez Cacho) em
uma cena em que tenta explicar para o filho Alejandro os motivos de ter votado a favor da
procura de Miguel, o invasor:
Vi você no ginásio – votei como votei porque a polícia não serve para
nada. Lá fora, tudo é mais complicado. Meu irmão levou um tiro em
pleno dia. A polícia levou horas para aparecer. Ele sangrou até a morte na
calçada. Pegaram uns caras e eu os identifiquei. Falei na cara deles: “são
esses”. Foram presos por homicídio, mas saíram três meses depois. Me
procuraram e me encontraram. Quem deu a eles o meu endereço?
Quebraram três costelas deste lado, a clavícula, esmagaram os dedos
desta mão, me bateram no olho, tive descolamento de retina. Não estou
morto graças aos vizinhos (Fala do personagem Daniel, La Zona, 2007).
A falta de segurança foi o motivo não apenas de Daniel resolver morar em La Zona,
mas de todos os outros moradores do condomínio. Durante uma conversa com o policial,
Mariana também deixa muito claro: “Moro aqui pela segurança”. O que corrobora a idéia
de Bauman de que estas comunidades não são “reais”, mas “comunidades cabides”, onde
7
Este é um elemento interessante no universo criado por Rodrigo Plá, pois nos incita a pensar a
reconfiguração dos espaços públicos e privados em tempos de “guerra”. Durante o filme é possível perceber
que aquele espaço é privado ao passo que se configura em um espaço criado e mantido por aqueles
moradores. No entanto, um espaço que não pode ser ultrapassado nem mesmo pelas autoridades policiais do
local. Em outras palavras, é o local construído como tentativa de solucionar problemas gerados por uma
desordem que é global.
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os indivíduos podem depositar as suas angústias, medos e ansiedades, gerados pela grande
insegurança dos espaços públicos.
Ao contrário do que Freud dizia sobre a modernidade em seu O mal-estar na
civilização (1925), nos dias atuais, caracterizados pelo autor Pierre Ansart como “o fim dos
amores políticos” (ANSART, 2002) em que os estados são mínimos e a felicidade nunca é
garantida, mas sempre incerta, a civilização não cumpre com o seu papel de dar segurança
e livrar a sociedade de seus medos cotidianos.
Bauman, por sua vez, mostra que nos dias de hoje essa segurança é mais sacrificada,
enquanto a liberdade individual encontra-se em expansão, sendo, a cada dia, mais
almejada. Em outras palavras, cada um está entregue a si mesmo e “salve-se quem puder”.
Em O mal-estar da pós-modernidade (1998), o autor faz uma revisão da obra de Freud
mostrando que depois de 70 anos, se o psicanalista ainda estivesse vivo, com certeza, teria
que mudar o seu diagnóstico, pois nestes tempos líquidos, a única coisa que a civilização
garante ao individuo é a incerteza.
Desacreditadas com as promessas de que a segurança será garantida, as pessoas
procuram a todo instante um “porto seguro” onde possam se esconder do vazio e da
solidão do espaço público, quer dizer, há uma fuga do público opressor e desgovernado e
uma corrida massiva em busca do individual, das particularidades. Em outras palavras, é o
privado em lugar do público, pois esse público não garante a segurança, mas só aumenta as
incertezas tão presentes no cotidiano do homem pós-moderno.
Nesse sentido, é possível entender o motivo de as pessoas procurarem se unir em
“comunidades”, mesmo que sejam comunidades imaginárias, como as “comunidades
estéticas”, “cabides” ou “guetos voluntários”. O que elas procuram, na verdade, é um lugar
onde possam depositar os seus medos e inseguranças, mesmo que seja apenas por um
tempo. Quando estas “comunidades” deixam de responder aos seus anseios ou atender os
seus interesses, procuram outras e assim por diante. No caso de La Zona, o principal
interesse dos moradores é a segurança, quando esta começar a ser efetivamente
comprometida, certamente procurarão outro espaço. Não é a toa que o mercado de
segurança tem crescido tanto, não só em países desenvolvidos, mas, também, em países em
desenvolvimento, sofisticando os seus veículos de marketing e propaganda. Vendem-se
não apenas condomínios de luxo, mas, sobretudo, a promessa de segurança, bem-estar e
felicidade. Segundo Bauman:
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‘Desocupados’ e pessoas ‘à espreita’ são objetos do temor e ódio dos Don
Giovannis de hoje, e é a distância em relação a esses tipos, prometida
pela guarda fortemente armada em constante ronda e pela densa rede de
câmeras espiãs que torna as ‘comunidades cercadas’ tão atraentes e
procuradas e acaba por ser o ponto mais destacado pelos agentes
imobiliários, acima de qualquer outro traço, em seus anúncios
(BAUMAN, 2003:53).
É um equívoco pensar que as imobiliárias vendem casas, condomínios, etc. Na
verdade, o que elas vendem são segurança e promessa de felicidade materializadas em
formas de comunidades cercadas e vigiadas a todo o tempo.
A criação e anulação dos estranhos
A expansão global e as novas formas de organização dos espaços sociais, além da má
distribuição da renda, colocam a maior parte da população mundial em situação de extrema
pobreza. Destituídos de formas e meios de sobrevivência, estes seres humanos
transformaram-se naquilo que Bauman chama de “refugo” social. São pessoas que não
servem nem mesmo para reserva de mercado, sendo totalmente descartáveis, justamente
por não terem condições de participarem do jogo do consumo.
Dispersos pelas cidades tornam turvo o que deveria ser claro; estranhos, fazem
crescer ainda mais a sensação de medo e insegurança. Na cidade, não é possível reconhecer
o inimigo, pois está solto no emaranhado de gente que cruza as ruas em um vai e vem
permanente. O medo é maior porque o perigo é difícil de ser localizado, não há nele
nenhum distintivo de identificação. Como mostra Bauman:
[...] O medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto,
desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivos claros;
quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a
ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em
lugar algum se pode vê-la. ‘Medo’ é o nome que damos a nossa incerteza:
nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do
que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além
do nosso alcance (BAUMAN, 2008:8).
O que mais amedronta é, neste sentido, “a ubiqüidade dos medos”, pois eles podem
estar à espreita em qualquer canto do mundo e até mesmo em nossos lares. Podem vazar a
qualquer momento:
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Das ruas escuras ou das telas luminosas dos televisores. De nossos
quartos e de nossas cozinhas. De nossos locais de trabalho e do metrô que
tomamos para ir e voltar. De pessoas que encontramos e de pessoas que
não conseguimos perceber. De algo que ingerimos e de algo com o qual
nossos corpos entraram em contato [...] (BAUMAN, 2008: 11).
A luta contra o medo é ininterrupta e para a vida inteira. Em tempos líquidos, viver
sem medo é algo quase impossível. É por isto mesmo que alguns medos surgem
juntamente com seus remédios, pois o mercado cria mecanismos capazes de tornar os
medos mais toleráveis.
Nessa luta contra o medo, evitar os estranhos parece ser a melhor das estratégias. Os
condomínios fechados, com sistemas de segurança vinte e quatro horas, são procurados por
aqueles que pretendem manter os estranhos afastados, muito embora sejam apenas para
aqueles que têm capacidade de pagar. A segurança é para poucos, ou seja, somente para
aqueles que ocupam o “clube” dos consumidores ativos; que possuem poder de aquisição
dos bens dispostos no mercado. Assim, é possível perceber que “o mercado prospera em
condições de insegurança; ele aproveita os medos e o sentimento de desamparo dos seres
humanos” (BAUMAN, 2008: 176).
Segundo Bauman, os “medos modernos” tiveram início com a redução do controle
estatal (a chamada desregulamentação) e suas conseqüências individualistas. Dessa forma,
os vínculos amigáveis existentes na comunidade foram fragilizados ou totalmente
rompidos. Os vínculos de confiança e solidariedade cederam lugar à desconfiança do outro.
A dissolução dos laços comunitários fez crescer o rancor pelos “estranhos” (BAUMAN,
2008). Nas palavras de Gumpert e Drucker:
Quanto mais nos separamos de nossas vizinhanças imediatas, mais
confiança depositamos na vigilância do ambiente. ... Existem, em muitas
áreas urbanas, um pouco no mundo todo, casas construídas para proteger
seus habitantes, e não para integrá-los nas comunidades às quais
pertencem (GUMPERT & DRUCKER apud BAUMAN, 2009: 7).
As pessoas querem, dessa forma, manter-se à distância dos estranhos. Estabelecem
espaços, zonas e fronteiras, para afastar os intrusos. A segurança do corpo é preservada a
partir do mínimo de contato possível com os estrangeiros. Dessa forma:
Uma das características mais relevantes dos condomínios é seu
isolamento e sua distância da cidade... Isolamento que dizer
separação de todos que são considerados socialmente inferiores, e –
como os construtores e as imobiliárias insistem em dizer – o fator-
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chave para obtê-lo é a segurança. Isso significa cercas e muros ao
redor dos condomínios, guardas (24 horas por dia) vigiando os
acessos e uma série de aparelhagens e serviços... que servem para
manter os outros afastados (BAUMAN, 2009: 15).
As cercas separam o espaço entre “dentro” e “fora”, mas o que é “dentro” para quem
está de um lado da cerca é “fora” para o outro. Em La Zona, as cercas demarcam muito
bem estes espaços mantendo os seus moradores fora da perturbadora e ameaçadora vida
urbana, recheada pelo medo e o perigo com os quais se esbarram o tempo todo nos
cruzamentos e esquinas. Por outro lado, mantêm os demais fora dos lugares decentes e
seguros; e estão empenhados em defender com unhas e dentes este padrão de vida. “A
cerca separa o ‘gueto voluntário’ dos arrogantes dos muitos condenados a nada ter”
(BAUMAN, 2009).
Nesta divisão social, muito bem demarcada entre o “dentro” e “fora”, não somente o
espaço fora do muro se configura enquanto perigoso e ameaçador, mas, como mostra
Rodrigo Plá, a recíproca também é verdadeira. Acredito que uma das cenas mais
interessantes do filme seja a cena em que Miguel, após ser percebido pelas câmeras de
segurança do condomínio, é perseguido por homens armados. Entra em um bueiro e foge
pelos canais de esgoto conseguindo dispersar os perseguidores. Não obstante, após
percorrer todo o canal se depara, no final, com uma tela de arame que o mantém ainda
preso no condomínio. Segurando na tela, ele olha nostalgicamente para as luzes que
iluminam a favela, sua comunidade, seu “gueto involuntário”, de onde nunca poderia ter
saído. Nesta cena, o “dentro” se torna o “fora” para Miguel; é lá fora dos muros que ele
visualiza a segurança. Em La Zona sente-se preso, perseguido e impossibilitado de sair. O
espaço da segurança para os moradores é, para Miguel, o espaço do perigo, da ameaça e do
medo constante. Miguel quer sair, enquanto os moradores querem anular o estranho criado
no próprio jogo do poder e nos processos de organização social.
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Fotograma capturado do filme La Zona, Produção de Álvaro Longoria e Direção de Rodrigo Plá,
México, 2007.
Partindo dessa idéia: “comunidade significa mesmice; e a “mesmice” significa a
ausência do Outro, especialmente o outro que teima em ser diferente; e precisamente por
isso capaz de causar surpresas desagradáveis e prejuízos. No caso de La Zona, existe um
inimigo muito evidente, mas dada a intensidade do medo em tempos “líquido-modernos”,
se esse estranho não existe de fato, ele é construído, pois é mais fácil combater ou se
prevenir daquilo que é identificado do que daquilo que é desconhecido:
E eles são inventados, ou construídos, diariamente: pela vigilância do
bairro, pela tevê de circuito fechado, guardas armados até os dentes. A
vigilância e as façanhas defensivas/agressivas que ela engendra criam seu
próprio objeto. Graças a elas, o estranho é metamorfoseado em
alienígena, numa ameaça (BAUMAN, 2003: 105).
Neste processo de construção dos estranhos, as diferenças são fatores decisivos.
Diferenças, neste caso, não apenas econômicas ou de classes sociais, mas também políticas
e culturais. Na configuração dos espaços de pertencimento, “os de dentro” precisam ser
semelhantes, pelo menos em seus interesses, enquanto os “diferentes” devem ocupar o
lugar “de fora”. É, segundo Bauman, “a homogeneidade dos de dentro, em contraste com a
heterogeneidade dos de fora” (BAUMAN, 2003:105).
Os espaços de “dentro” nunca devem ser ultrapassados pelos habitantes “de fora”,
sob pena de retaliação e hostilização. Já os moradores dos “guetos voluntários”, caso
queiram, podem sair quando quiserem e percorrer outros espaços sem que sejam coagidos,
o máximo que pode acontecer é serem assaltados ou perseguidos por estranhos que ficam à
solta. No entanto, os habitantes do “gueto voluntário” acabam se prendendo muito aos seus
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condomínios, pois eles dispõem de todos os meios para suprirem as suas necessidades.
Possuem bares, restaurantes, escolas, supermercados, farmácias, academias de ginástica e,
até mesmo, postos de saúde. Só precisam sair para trabalhar, quando não trabalham ali
mesmo, ou para viajar, o que é comum entre os bem-sucedidos. No caso de La Zona, a
saída do condomínio só ocorre em casos de emergência. A grande maioria das crianças
nunca atravessou e talvez nunca atravesse os muros do seu “gueto”.
Sendo assim, fica claro que os estranhos são criados pela sociedade. E mais, cada
sociedade cria os seus estranhos que, geralmente são as pessoas que não se encaixam no
mapa cognitivo, moral ou estético do mundo. Em outras palavras, são aqueles que deixam
turvo o que devia ser transparente e confuso o que deveria ser claro. É justamente por isto
que eles precisam ser anulados, pois, segundo Bauman, “os estranhos exalam incerteza
onde a certeza e a clareza devia ter imperado”. Dessa forma, “os seres humanos que
transgridem os limites se convertem em estranhos...” e, sendo o contraponto da “norma”,
devem ser anulados, pois “(...) onde quer que a planejada ordem de constituição esteja em
andamento, certos habitantes do território a ser ordeiramente feito de maneira nova
convertem-se em estranhos que precisam ser eliminados” (BAUMAN, 1998: 30).
Nesse sentido, o que faz certas pessoas estranhas e, por isso, “irritantes”,
“enervantes”, “desconcertantes” e “incômodas” é, reiteradamente, “sua tendência a
obscurecer e eclipsar as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas” (BAUMAN,
1998). É por isto que Miguel precisa ser perseguido, capturado e eliminado, pois ele coloca
incerteza naquilo que antes era certo e torna turvo aquilo que antes era transparente. Além
disso, sua presença revela que o perigo não está tão distante como se presumia, gerando
incerteza e insegurança nos moradores; o quê por sua vez, desencadeia em uma profunda
sensação de mal-estar. Daí a necessidade de anulação desses estranhos construídos pela
própria sociedade em suas relações de poder constantes.
Considerações Finais
Como foi visto anteriormente, o universo contemporâneo caracteriza-se pela
volatilização das coisas e pela sensação constante da incompletude e do vazio. Regida
pelas leis do mercado e movimentada pelo que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de
“economia política da incerteza”, a pós-modernidade transformou o sujeito em um “sujeito
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[ASPECTOS DA VIDA PÓS-MODERNA EM LA ZONA: O GUETO VOLUNTÁRIO DE RODRIGO PLÁ *
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da falta”, solto em um universo onde liberdade e segurança tornaram-se valores
diametralmente opostos.
Nesse sentido, liberdade e segurança são privilégios de poucos. Geralmente, é
preciso abrir mão de um em detrimento do outro. E como toda escolha implica perda, o
sujeito em “tempos líquidos” torna-se um sujeito cindido e perdido em um emaranhado de
incertezas em que “a liberdade sem segurança não é menos perturbadora e pavorosa do que
a segurança sem liberdade” (BAUMAN, 2001:18).
Entregue a si mesmo e sem ter como escapar das forças que o pressionam de todos os
lados, este sujeito, construído no processo de desenvolvimento líquido-moderno, é
acometido por uma forte e presente sensação de mal-estar de se estar perdido no mundo.
Assim:
Você ganha alguma coisa e, em troca, perde alguma outra coisa: a antiga
norma mantém-se hoje tão verdadeira quanto o era então. Só que os
ganhos e as perdas mudaram de lugar: Os homens e as mulheres pósmodernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por
um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de
uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na
busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade
provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma
segurança individual pequena demais [grifos do autor] (BAUMAN, 1998:
10)
O homem pensa que algum dia poderá alcançar a felicidade completa, mas ao longo
da vida percebe que esta felicidade é ilusória e se contenta com o fato de apenas evitar a
dor. Desamparado como está pelo mundo que torna líquido tudo o que antes era sólido,
sonha com um retorno à solidariedade comunitária, onde possa depositar os seus medos,
angústias e ansiedades nem que seja por um momento. No entanto, aos poucos percebe
também que, uma vez morta, o retorno à comunidade de outrora é também ilusório. Como
o personagem da mitologia grega, Tântalo, que, preso até o pescoço em um regalo de água,
se agoniza ao ver a água desaparecer sempre que tenta saciar a sua sede, o homem pósmoderno também se agoniza ao ver a comunidade escorrer pelos dedos sempre que tenta
alcançá-la 8.
8
Segundo a Mitologia Grega Tântalo, filho de Zeus e de Plota, era rei da Frígia. Muito querido entre os
deuses, freqüentemente era convidado a partilhar das suas refeições no Olimpo. Durante um desses
banquetes, Tântalo abusou da confiança dos deuses roubando-lhes um pouco de néctar e ambrosia, alimentos
que davam a imortalidade, porém um privilégio somente do Olimpo. Era casado com Dione e tinha três
filhos: Níobe, Dascilo e Pélops.
Tântalo julgou que também era um deus poderoso e convidou os deuses para um jantar em sua casa,
servindo-lhes como refeição, o seu próprio filho Pélops em pedaços, para testar a divindade dos deuses. Os
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Ilustração do Mito de Tàntalo
(Disponível em: http://serra-da-leba.blogspot.com/2010/05/suplicio-de-tantalo.html no dia 09 de maio
de 2011).
Diante disso, qualquer forma de se evitar o desprazer e o mal-estar gerado pela
sensação de vazio, incerteza e insegurança é válida. A procura por comunidades fechadas e
seguranças particulares vinte e quatro horas por dia faz parte do dispositivo utilizado pelos
poderosos para evitarem a convivência com os estranhos no meio urbano e sanar os medos
e mal-estares gerados pela incerteza e insegurança. As “comunidades estéticas”,
“comunidades cabides”, bem como “os guetos voluntários”, surgem dessa necessidade de
manter os estranhos distantes, além de ser uma tentativa de construção de identidade e
lugares de pertencimento.
Foi seguindo esta perspectiva; que La Zona, o condomínio luxuoso presente no filme
de Rodrigo Plá, foi pensado neste artigo como um “gueto voluntário”, conceito tomado de
empréstimo do sociólogo Zygmunt Bauman. Em contraposição ao “gueto involuntário”, ou
“real”, o gueto voluntário serve para impedir a entrada de estranhos. Assim: “Para aqueles
convidados deram conta do crime de Tântalo, mas Deméter comeu o ombro de Pélops. Zeus ordenou que o
corpo de Pélops fosse atirado a um caldeirão, onde Cloto, uma das Moiras, lhe devolveria a vida, substituindo
o ombro por um marfim.
Tântalo foi condenado ao suplício de fome e de sede eternas. Mergulhado em águas até ao pescoço, quando
ele se debruçava para beber água, esta desaparecia. Por cima de sua cabeça, pendiam ramos de árvores com
frutos saborosos, porém o vento retirava do seu alcance sempre que tentava apanhá-los. O aviso dos deuses
ficou na memória de todos: todo ser humano que provar da ambrosia dos deuses seria condenado ao suplício
de Tântalo.
A família de Tântalo e seus descendentes foram amaldiçoados. Sua filha Níobe que tivera sete pares de
gêmeos, perdeu todos os filhos devido a doenças terríveis. De tanto chorar ela se transformou numa gruta de
pedras de onde descia uma cachoeira de água salgada. Depois de resuscitado, Pélops foi entregue a Poseidon
que o criou até tornar-se um grande herói. Porém a profecia dizia que ele se tornaria um rei, mas jamais se
livraria da maldição lançada sobre todos os descendentes de Tântalo.
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que vivem num gueto voluntário, os outros guetos são espaços, ‘nos quais não entrarão
jamais’. Para aqueles que estão nos guetos ‘involuntários’, a área a que estão confinados
(excluídos de qualquer outro lugar) é um espaço ‘do qual não lhes é permitido sair’
(BAUMAN, 2009: 16).
Evidencia-se, dessa forma, um processo de apartheid social, onde os bem-sucedidos
e o “refugo” ocupam pólos opostos. A partir de um acordo social, político, econômico e
cultural, os espaços de “dentro” não podem ser ultrapassados pelos “de fora” e vice-versa,
sob pena de retaliação e hostilização. A perseguição de Miguel, neste sentido, segue a
lógica dessa luta ininterrupta contra o medo, contra a diferença e, portanto, o perigo e a
ameaça. A anulação do estranho, intruso, é percebida como uma maneira de restabelecer a
ordem e a segurança dentro dos muros.
No entanto, convém lembrar que o filme peca em seu desfecho moralista que, num
tom ofensivamente condescendente, representa o amadurecimento do protagonista
Alejandro (Tovar) ao mostrá-lo compartilhando a comida e a bebida com Miguel (Chávez),
representante da massa empobrecida, como se descer temporariamente de seu pedestal de
luxo e pisar na lama da miséria fosse o bastante para superar toda a distância entre sua vida
de luxo (à qual sem dúvida retornará em breve) e o cotidiano desgraçado de quem nunca
viverá em “La Zona”. A tentativa de Plá de reforçar os laços de amizade entre os dois
personagens, transformando o “bandido” em “mocinho”, perde sua complexidade diante
das diferenças sociais gritantes e muito bem demarcadas durante todo o filme. Além disso,
há uma inversão entre os papéis onde aqueles deveriam ser os “mocinhos” se tornam os
“bandidos” e aquele que, pela lógica, deveria ser o “bandido” foi transformado em
“mocinho”. Mas, nem por isto deixa de ser um grande filme.
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Blog Serra da Leba: http://serra-da-leba.blogspot.com/2010/05/suplicio-de-tantalo.html.
Disponível em 09 de maio de 2011
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