Título: A violência nossa de cada dia
1 – Depois que aceitei o convite de Valéria para esta mesa pensei muito se teria alguma
coisa a dizer, mais ainda se teria o que escrever, mas certamente com a certeza quase
paranóica de que algo precisa ser feito em relação ao estado vigente de violência que
assola a todos nós. Isto porque, não creio haver solução o que não quer dizer que respostas
não se façam necessárias.
Vale considerar a pertinência de admitir certo grau de violência implícito nos movimentos
das sociedades de hoje, a meu ver devido à infiltração e supremacia do econômico em todas
as esferas da vida humana. Mas também a violência intrínseca que acompanha os
acontecimentos de corpo, o parto por exemplo, e os demais acontecimentos que forjam
nossa constituição subjetiva.
Não há nada de novo nestas frases mas me preocupam os caminhos que temos criado tanto
à busca de solução – vou deliberadamente mencionar um tema que, em geral, quando
mexido é um
vespeiro: por exemplo, a criação do
ECA que completou 18 anos
recentemente -, quanto à título de resposta na forma da lei 4.8351 de autoria do vereador
Wilson Leite Passos (PP) que obriga o motorista de ônibus parar em qualquer ponto da
cidade, das 23 h às 5h30min com o objetivo de proteger os passageiros dos bandidos da
madrugada –. Uma solução que se faz quase que letra morta e
improviso e pressa não chegam perto do problema.
1
Ediane Merola, Transporte para longe do perigo, Jornal O Globo, 17/05/08.
uma resposta, cujo
Estão em jogo um além da letra morta e uma articulação entre um saber-fazer de uma
resposta. Portanto, é sim preciso falar, falar, falar e escrever, escrever, escrever... bem,
podemos variar os cenários à vontade mas é característica do humano esta imersão na
linguagem apresentada pelas línguas vivas e concretas e pelos textos escritos.
Entre as muitas dúvidas cartesianas e algumas certezas paranóicas resolvi revolver a
memória e, paralelamente, não me ater a uma situação específica... para me aproximar da
violência nossa de cada dia que não é um tema propriamente mas uma evidência.
Mas aceitei também para não me acostumar, para não fazer deste estado vigente um hábito,
um costume, uma degradação da cultura, pois uma certa indignação faz-se necessária no
momento em que “a coisa chegou a um tal ponto que o fracasso das políticas públicas não
escandalizam mais, acostumamo-nos com a violência, com a selvageria urbana, com a
degradação do ambiente...” 2Nestes termos, não falo aqui como especialista e não creio
haver especialidade capaz de dar conta deste estado vigente. Talvez um ato, um ato
político, mas aí caberá reinventarmos a política.
2 - No fim dos anos 70 do século passado eu cursava as aulas iniciais do Mestrado na FGV
(coincidentemente ou não, naqueles anos, iniciava duas carreiras: a acadêmica e a de ser
assaltada nas ruas da cidade).
2
Fernandes, FLF, CAPS a intervenção na cultura, in Revista entre umas e outras – O encontro com a clínica
do alcoolismo e da toxicomania, Publicação interna, ano 1, No. 1, 2006.
Constava no currículo uma disciplina que, naquela época, ainda atravessava toda a grade
escolar das crianças e dos jovens no Brasil. A disciplina se chamava OSPB cujo conteúdo
dizia respeito à doutrinação política presente em toda e qualquer ditadura que se preze
como tal. A disciplina era ministrada através de palestras com diferentes palestrantes e
uma em especial ficou presente em minha memória. Ela foi ministrada por um general e
recebeu o título de Segurança Nacional. Na verdade, o que retive foi a frase de abertura,
disse o general: “Se tanto falamos em Segurança Nacional é porque não existe Segurança
Nacional”.
Recebi esta frase com a revolta e a crítica contidas, porque embora ainda jovem já sabia ser
preciso salvar a própria pele, mas como jovem, naquela época, também sabia ter que ser
contra o general, o que era também, salvar a própria pele. Todavia, ilusoriamente, me
interrogava como um general poderia dizer não existir Segurança! Não sabia eu de nada
do que adviria neste País.
Os anos passaram e muitas vezes esta frase revirou
meus pensamentos. Acabei por
procurar nela razões mesmo que torcidas e retorcidas. Voou apostar em uma: é que falar e
escrever contornam e, às vezes, inventam a existência daquilo, daquela falta de sentido a
cada dia mais compulsivo, daquela coisa que nem sempre é fácil encarar, que nem sempre
se dá à visibilidade. Mas que contudo é preciso encarar e talvez sejam os nossos estilos de
vida, mesmo que aparentemente diversos, aqueles que precisarão de mudanças.
Quando digo aparentemente diverso é porque me pergunto pela diferença entre Yasin de 10
anos, moradora de Belém em Jerusalém que diz: “Ah! Isso aqui não tem jeito não. Os
adultos não querem a paz”. Ou o jovem Ahmed: “Minha mãe levou um tiro quando passava
na hora em que os soldados invadiram a prisão de Jericó. Aqui eu aprendi a ter ódio”. Na
outra banda do planeta diz João morador da Maré: “Já perdi 5 pessoas da minha família na
guerra do tráfico.” 3 Porém, cabe ressaltar que o aparentemente diverso não quer dizer que
respostas específicas e locais não se façam necessárias.
Por outro lado, é também preciso encarar que “à flor da pele e ao fundo da alma – assim é a
violência no cotidiano, uma violência que corre e ricocheteia sobre todas as superfícies de
nossa existência e que uma palavra, um gesto, uma imagem, um grito, uma sombra,
sustenta e relança indefinidamente, e que, no entanto, desta espuma dos dias, abre à alma
vertiginosos abismos em mergulhos de angústia que nos fazem dizer: ‘Sou eu mesmo toda
essa violência’”?4 É, temos que encarar no que a violência nossa de cada dia concerne a
todos nós – em português castiço: o que cada um de nós tem a ver com isso. Seria mais
fácil nega-la contudo há o horror que nos cerca e nos constitui.
3 – A violência é uma constante na história em todas as formas de cultura. Atos sacrificiais,
o quase sacrifício de Isaac por Abrahão, por exemplo, os sacrifícios das jovens virgens aos
deuses, atos que não eram tidos como violentos pelas culturas antigas e obedeciam a
valores coletivos - fundamentais para circunscrever e delimitar a violência -,
3
4
Luciana Savaget. Militantes das palavras, Jornal O Globo, 17/05/08.
Dadoun, R. A violência – Ensaio acerca do “homo violens”, Ed. Difel, 1998.
mesmo
assim, esses atos por estas culturas cultivados não deixaram de ser, posteriormente,
interpretados como violentos.
As sociedades assimilam como razoáveis atos como o recente genocídio de Darfur e, até
certo ponto, no passado recente, a invasão e o extermínio quando da pré-ascensão do
nazismo que precedeu a guerra. Atos que inviabilizam a vida no planeta, violentos com
todas as formas de vida, são considerados impossíveis de evitar levando-se em conta razões
de estado, tais como a necessidade de desenvolvimento econômico, por exemplo. No
entanto, enquanto a população de pingüins diminui devido ao aquecimento global, a cada
dia, uma quantidade considerável de pessoas morre violentada pela miséria, idosos são
espancados por seus cuidadores, pais estupram e matam seus filhos, jovens são vendidas
para uso sexual e outras, as da classe média, têm os longos, lisos, belos e sedosos cabelos
puxados nas baladas das cidades brasileiras pelos boys que assim voltaram a assinar seu
domínio e sua posse.
O diagnóstico da sociabilidade contemporânea revela o sintoma da violência nossa de cada
dia. Segundo Bauman5, a baixa sociabilidade atual é diretamente proporcional ao estilo de
vida consumista o que também contribui para o enfraquecimento da solidariedade humana.
Neste contexto, cabe-nos perguntar o que queremos para nós, para as crianças e os jovens
de hoje.
Ainda é possível a lógica que usei no passado: a de salvar a própria pele? Ou faz-
se necessário o reordenamento entre a política, o econômico e as formas culturais?
5
Bauman, Z. Amor Líquido, Jorge Zahar Editor, 2004.
4 – Este é o ponto de dificuldade. Bauman6, em Em Busca da Política dizia que algo
precisava ser feito restava saber quem, onde e quando. Não seguirei propriamente as
articulações de Bauman, mas ele não deixou de tocar em um ponto importante – a do ato
político necessário -. A reinvenção da política mencionada acima e o reordenamento
proposto precisam levar em conta a promiscuidade atual entre economia e política, este
relacionamento sem interdições e sem leis, ou melhor, a camisa de força imposta à política
pela economia e levar em conta também o retorno da cultura – tornada capaz de
redimensionar com seus instrumentos a realidade social e a vida psíquica - à cena, esta
esfera que por tradição tem a função de afirmar e garantir os valores de um dado grupo
humano e, portanto, de que este grupo faça laço uns com os outros através deste valor. De
modo que, a autonomia da economia garantida pelo binômio produção e consumo de
mercadorias, produtos e objetos sem as barras de atos políticos conseqüentes em função de
valores culturais ratificam a impermanência dos laços e o isolamento de cada sujeito à
deriva de uma satisfação ininterrupta que, em muitos casos, nenhuma palavra pode conter e
aí entra em cena a violência. A esta satisfação ininterrupta e absoluta Freud chamou pulsão
e já nos advertia das dificuldades desta “noção” e, é claro que esta dificuldade diz respeito
a um problema ético.
Em relação à verdade da coisa, à verdade que a pulsão exige, Freud
não renunciou em dize-la.
Muito bem, então como salvar ou não a própria pele? Não dá, para isto não tem solução.
Não seria apenas “politicamente incorreto” salvar a própria pele, é impossível. Como
sempre se disse: estamos todos no mesmo barco. A questão ética em jogo diz respeito à
6
Bauman, Z. Em busca da política, Jorge Zahar Editor, 2005.
lógica que ordena os laços sociais por meio da operação da função que trabalha limitando a
pulsão. Os valores culturais eleitos por um certo grupo, e portanto coletivos, para o
ordenamento dos laços sociais circunscrevem a deriva infinita da pulsão modulando a
satisfação nas linhas do espaço e do tempo – nem tudo em qualquer lugar, a qualquer hora
e, principalmente, a qualquer preço. Essa ação lógica modula a fúria do gozo interferindo
com uma certa orientação e organização. Nesses termos seria politicamente mais do que
necessário que a política retomasse as rédeas da economia e a regulasse, a limitasse em sua
ação desordenada de produção, consumo e mais valia e a cultura reintegrasse sua função de
promotora
de valores a sempre escaparem do gozo infinitamente buscado. Valores
solidários aos homens e ao ambiente planetário num contraponto à devastadora crise de
sociabilidade.
“Não
pode
existir
nenhum
mercado
econômico
sem
ordem
e
regulamentações políticas”.7
Poderíamos passar por qualquer lugar mas retorno aos longos, belos, lisos e sedosos
cabelos das jovens puxados pelos boys nas baladas da cidade: fico me perguntando o que
foi feito das palavras entre os jovens tão bem nascidos e contumazes consumidores?
Sem
palavras... sem texto...
7
Hardt, M e Negri, A – Multidão: Guerra e democracia na era do Império. Ed. Record, RJ e SP, 2005, p.219.
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