Educação e moral na sociedade
capitalista em crise
Newton Duarte*
Posto que este trabalho integra uma mesa redonda intitulada
Ética e Magistério, convém iniciar esclarecendo o que entendo por
ética. Não pretendo formular aqui uma definição inquestionável do
que seja ética nem mesmo considerar equivocados outros usos desse
termo. Explicitarei qual o significado por mim adotado apenas por
uma questão de clareza das idéias que aqui apresentarei. Vejo a ética
como a reflexão filosófica sobre a moral, sobre as ações morais,
sobre os comportamentos morais. Faço aqui analogia com a
epistemologia a qual vejo como a reflexão filosófica sobre o
conhecimento humano e mais especificamente sobre o conhecimento
científico. Então, a reflexão que desenvolverei nesta apresentação é
uma reflexão ética ou, dizendo a mesma coisa com outras palavras,
uma reflexão filosófica sobre a questão da moral. Entretanto, se assim
entendo o que seja a ética, devo agora esclarecer qual definição de
moral aqui adotarei. Para isso recorrerei a algumas reflexões sobre a
moral desenvolvidas pela filósofa Ágnes Heller, no escopo de sua
teoria sobre a vida cotidiana, teoria essa desenvolvida ainda na fase
marxista do pensamento dessa autora (Heller, 1992 e 1994). Em
sua teoria da vida cotidiana, Heller analisa as várias esferas de atuação
social, desde a esfera da vida cotidiana até as esferas do trabalho, da
ciência, da arte, da filosofia, da política etc. Para Heller a moral não
constitui uma esfera específica do agir humano, mas sim um tipo de
relação que o indivíduo estabelece com algo que faça parte de seu
agir em qualquer uma das esferas da vida social. Assim, para Heller
(1994, p. 132), “a moral é a relação entre o comportamento particular
e a decisão particular, por um lado, e as exigências genérico-sociais
* Universidade Estadual de São Paulo (UNESP).
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Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa
por outro”. Convém explicar um pouco mais essa definição de moral.
Toda vez que um indivíduo age, ele o faz numa situação específica,
particular, localizada. Ao mesmo tempo ele é um indivíduo com
suas particularidades que, ao tomar decisões sobre determinados
problemas em situações concretas, está tomando decisões particulares
no sentido de que são decisões que ele tomou naquela situação
particular perante aquele problema particular. Por outro lado existem
as exigências que Heller chama de genérico-sociais, isto é, aquelas
exigências relativas ao coletivo, relativas não apenas ao “eu”, mas
também ao “nós”, podendo esse nós variar de amplitude, limitando-se
ao grupo social imediato ao qual pertença o indivíduo, ou abarcando
coletivos mais amplos como a classe social e, no limite, chegando ao
coletivo máximo que é o gênero humano, a humanidade como um
todo. Essas exigências são de natureza objetiva e subjetiva. Elas são
objetivas porque tanto a situação na qual age o indivíduo como as
ações por ele realizadas a partir de decisões por ele tomadas,
constituem-se objetivamente em parte de uma realidade sóciohistórica mais ampla, isto é, o fato de uma situação ter suas
particularidades não a isola do todo social. Isso põe exigências
objetivas para a ação individual nas situações particulares. E essas
exigências genérico-sociais são também subjetivas porque o indivíduo
pensa, sente e age a partir de conhecimentos, imagens, símbolos
etc., dos quais o indivíduo se apropriou ao longo de sua vida
realizando o que Marx chamou de transformação dos órgãos
imediatamente sociais em órgãos da individualidade.
Se a moral na definição aqui apresentada é a relação entre, por
um lado, as exigências genérico-sociais e, por outro, o comportamento
e as decisões do indivíduo numa situação concreta, então toda ação
moral é sempre uma ação concreta, com um conteúdo historicamente
determinado, mesmo quando tal ação venha a se constituir em modelo
do agir moral para um grande número de pessoas ao longo de grandes
período histórico. Isso significa que o grau de universalidade do
conteúdo moral de uma ação não é inversamente proporcional ao
seu enraizamento num momento histórico específico.
Ao adotar essa distinção entre ética e moral, não estou
postulando que a ética, enquanto reflexão filosófica sobre a moral,
Educação e moral na sociedade capitalista em crise
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seja algo que interesse apenas aos filósofos, algo que não deva estar
presente na vida do homem comum. Se o desenvolvimento moral
de um indivíduo não tem como condição indispensável (e eu diria
nem suficiente) a de que este se torne um filósofo, isso não significa,
entretanto, que a presença da reflexão filosófica na vida dos indivíduos
não seja necessária ao seu desenvolvimento moral. Creio ser aqui
válida aquela tese defendida por Dermeval Saviani (1987), segundo
a qual a educação deva ser constituir em processo de passagem do
senso comum à consciência filosófica.
Feitas essas considerações introdutórias, passarei agora ao tema
desta apresentação, o das relações entre educação e moral na
sociedade capitalista em crise. Ressalto já de início que estou partindo
de um pressuposto: o de que o capitalismo passa pela mais profunda
e grave de todas as suas crises. Afirmo tratar-se de um pressuposto
por não ter aqui tempo e espaço para analisar tal crise. Esse
pressuposto leva-me a concordar com o que escreveu Saviani (1991,
p. 103 e 1996, p. 181) acerca da escolha que essa crise exige de todos
nós: a escolha entre o socialismo ou a barbárie, isto é, a escolha entre
lutar de forma coletiva e organizada pelo socialismo ou ficar, a cada
ano que passa, em estado de cada vez maior perplexidade perante o
crescimento da barbárie. Não seria justamente esse crescimento que
estaria produzindo o crescente apelo por um pretenso “resgate” de
determinados valores morais? Não seria esse crescimento da barbárie
que estaria tornando temas como educação e ética tão recorrentes
na retórica dos governantes, dos empresários e dos meios de
comunicação?
Desde o final da década de oitenta tornou-se lugar comum
entre os apologistas do capitalismo a afirmação de que o socialismo
teria morrido, sido extirpado enquanto alternativa social e isso teria
deixado perplexa a esquerda no mundo todo. A falsidade desse lugar
comum é denunciada por duas atitudes daquelas próprias pessoas
que anunciam o fim do socialismo. A primeira atitude que denuncia
o fato dos próprios apologistas do capitalismo não estarem
convencidos do que eles apregoam, é o fato deles não perderem
nenhuma oportunidade, em nenhum tipo de situação, de desfecharem
ataques violentos ao socialismo e difundirem todo tipo de
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Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa
preconceitos e informações inverídicas. Se o Sr. Roberto Campos
estivesse assim tão convencido da vitória de suas posições políticas e
econômicas não teria gasto tanto tempo atacando o socialismo ao
tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Se o Sr. Boris Casoy
estivesse tão convencido que a democracia de cunho liberal triunfou
na luta contra o socialismo, não precisaria aproveitar uma entrevista
com um prêmio Nobel da literatura, o escritor português José
Saramago, para tentar atacar o socialismo. Afinal, porque os
defensores do liberalismo não se dão o direito de usufruírem o sabor
da vitória que tanto apregoam e, ao invés disso, perdem tanto tempo
“chutando cachorro morto”? A segunda atitude que denuncia o
quanto os ideólogos do capitalismo blefam quando apregoam vitória
final, está na mal disfarçada perplexidade desses ideólogos perante
as muitas manifestações no crescimento da barbárie produzida pela
crise do capitalismo. Talvez seja justamente para desviar as atenções
dessa sua perplexidade, que esses ideólogos do capitalismo repetem
tanto que a esquerda do mundo todo está em estado de perplexidade
desde a queda do muro de Berlim. Eles se aproveitam do fato de que
realmente, uma parte da esquerda tenha aproveitado a queda do
regime soviético para se mostrar perplexa e abandonar a bandeira
do socialismo que segurou de forma pouco firme enquanto isso lhe
rendia algum dividendo político. Mas o que esses ideólogos tentam
desesperadamente esconder é que a luta pelo socialismo nunca deixou
de existir e, ao contrário começa a ganhar novo vigor em várias partes
do mundo pois a população começa a perceber que se antes o
capitalismo tinha a URSS como um bode expiatório para todos os
problemas fundamentais da humanidade, há mais de uma década
esse bode expiatório deixou de existir e o capitalismo não foi capaz
de sequer minimizar, menos ainda resolver, nenhum desses problemas
fundamentais. Ao contrário, alguns deles estão se agravando de tal
forma, como o problema da miséria, que chegam a ser tema de
discurso de despedida de ex-presidente do Fundo Monetário
Internacional (FMI).
Admitido como pressuposto o fato da sociedade capitalista
passar por uma profunda e aguda crise, desenvolverei minha
apresentação em torno de três afirmações: 1. a sociedade capitalista
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é, em sua essência, oposta ao desenvolvimento moral dos indivíduos;
2. a crise atual do capitalismo vem acentuando os processos de
alienação da moral; 3. a ideologia da classe dominante, para esconder
o fato de que o capitalismo não tem condições de resolver os
principais problemas da humanidade nos dias de hoje, vem utilizando
como elemento de retórica a difusão da idéia de que a grande
responsável pela eliminação da barbárie crescente seria a educação e,
em especial, a educação moral dos indivíduos, muitas vezes também
chamada de educação para a cidadania.
Passarei agora aos argumentos nos quais apoio cada uma das
afirmações acima formuladas. Vejamos então primeiramente, porque
entendo ser o capitalismo, em sua essência, oposto ao
desenvolvimento moral dos indivíduos.
O capitalismo é uma sociedade produtora de mercadorias. Marx
mostrou que a mercadoria é constituída por seu valor de uso e seu
valor de troca. Se o valor de uso tem características particulares em
cada mercadoria (uma caneta serve a finalidades distintas às de uma
camisa, por exemplo), já o valor de troca independe dessas
características concretas, particulares e se traduz simplesmente por
uma relação quantitativa na troca entre as várias mercadorias.
O mesmo raciocínio aplica-se em relação ao trabalho contido em
cada mercadoria. No valor de uso estão contidas as características
específicas, particulares, do tipo de trabalho necessário à produção
de uma determinada mercadoria. No valor de troca está contida uma
quantidade de trabalho humano abstrato, de trabalho em geral. Marx
também mostrou que o dinheiro nada mais é do que uma mercadoria
em última instância desprovida de seu valor de uso, transformada
em puro valor de troca, em pura relação quantitativa entre
mercadorias. Por essa razão o dinheiro torna-se, no capitalismo,
a riqueza em sua forma universal, o objetivo universal da produção,
a mediação universal entre os homens. Tudo no capitalismo
transforma-se em mercadoria, até o trabalho humano. O trabalhador,
que não possui os meios de produção, possui apenas sua força de
trabalho e a vende por uma determinada quantidade de dinheiro.
O comprador desse trabalho passa a ter o direito de apropriar-se de
todos os produtos gerados pela atividade do trabalhador, mesmo
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Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa
que esses produtos excedam, em muito, o valor que foi pago pelo
trabalho. Essa é a apropriação, pelo capital, da mais-valia, do valor a
mais gerado pelo trabalho vendido pelo trabalhador e comprado
pelo capital. O capital, por sua vez, é indiferente à forma ou às formas
assumidas por essa quantidade a mais de valor que o trabalho produza.
Em outras palavras, o capital é indiferente ao valor de uso da
mercadoria. Tanto faz produzir alimentos como produzir drogas
legalizadas, produzir roupas ou armas etc. Para se reproduzir o capital
precisa constantemente ampliar-se, precisa transformar-se em mais
valor, o que requer a ampliação dos mercados, o crescimento do
poder do capital, o surgimento de novos tipos de mercadoria,
de novos processos produtivos etc. E para que isso ocorra é
indispensável a reprodução das relações capitalistas de produção.
Não há capitalismo sem a reprodução da relação entre capital e
trabalho. Aí reside a razão pela qual é um engodo a idéia tão difundida
pela mídia atualmente, de que o problema do desemprego pode ser
resolvido desde que cada desempregado abra seu próprio negócio,
seja seu próprio patrão. Não existe um capitalismo onde todos sejam
patrões, onde não exista a apropriação da mais valia. Nesse seu
processo reprodutivo o capitalismo é voraz e indiferente às questões
morais. Não estou afirmando que as pessoas, na sociedade capitalista,
não se preocupem com as questões morais, mas sim que a lógica de
reprodução do capital é indiferente a essas questões. O capital se
reproduz com ou sem a sanção da moral. É claro que as lutas sociais
acabam muitas vezes criando restrições à exploração desmedida do
capital e essas lutas podem, em última instância, estabelecer alguns
limites morais para a reprodução do capital. Mas o fato é que o
capital cedo ou tarde encontra formas de superar esses limites.
Quando isso não pode ser feito por meios legais, o capital acaba se
reproduzindo também através de práticas ilegais (não estou afirmando
que uma prática legal seja necessariamente uma prática justa ou
moralmente justificável). Embora o tráfico de certas drogas ser algo
ilegal, ele é totalmente lógico do ponto de vista econômico. A grande
força do tráfico vem justamente da lógica econômica capitalista e
por isso que todas as tentativas de combatê-lo fracassaram e
continuarão a fracassar enquanto nos mantivermos no âmbito das
Educação e moral na sociedade capitalista em crise
181
relações sociais capitalistas. Mais contraditória ainda é a atitude da
sociedade perante o consumo de drogas cuja produção e
comercialização é legalmente permitida, como é o caso das bebidas
alcoólicas. Durante o período do carnaval intensificaram-se as
propagandas de cerveja e de cachaça, estabelecendo uma relação
diretamente proporcional entre a quantidade de alegria e a quantidade
de álcool ingerida. Os mesmos meios de comunicação que mostram
essas propagandas, mostram as campanhas que alertam para os
problemas causados pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
Todo os anos e durante todo o ano, pessoas morrem e matam em
conseqüência do consumo dessas bebidas. Entretanto o aumento da
produção das mesmas é comemorado pela sociedade por aquecer a
economia, por gerar mais empregos, mais arrecadação de impostos
etc. Do ponto de vista da economia capitalista essa comemoração é
totalmente lógica. O mesmo raciocínio pode ser feito em muitas
outras situações como, por exemplo, no que se refere à poluição do
ar e à produção de automóveis. A sociedade comemora o aquecimento
da economia com o aumento da produção de automóveis que
significa, ao mesmo tempo, aumento da poluição com todas as
conseqüências mais do que conhecidas. O aumento da produção de
automóveis aquece não só a economia como também a temperatura
de nosso planeta através do chamado efeito estufa.
Com esses exemplos estou procurando mostrar que essas
contradições são conseqüência inevitável da lógica econômica do
capitalismo. Marx (1978, p. 19), nos Manuscritos EconômicoFilosóficos de 1844, descreveu de forma particularmente clara esse
fato da lógica da produção capitalista ser contraditória com certos
valores morais pregados no interior da própria sociedade burguesa:
Se pergunto ao economista: obedeço às leis econômicas se consigo
dinheiro com a entrega, com a venda de meu corpo ao prazer alheio?
(os operários fabris em França chamam a prostituição de suas esposas e
filhas de enésima hora de trabalho, o que é literalmente certo); não atuo
de modo econômico ao vender meu amigo aos marroquinos? (e a venda
direta dos homens na qualidade de comércio de recrutas etc., tem lugar
em todos os países civilizados), assim o economista me responde: não
ages contra minhas leis, mas olha o que dizem a senhora Moral e a senhora
Religião; minha moral e minha religião econômicas não têm nada que
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Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa
censurar-te. Mas em quem tenho eu que acreditar então, na economia
política ou na moral? A moral da economia política é o ganho, o trabalho
e a poupança, a sobriedade, mas a economia política promete satisfazer
as minhas necessidades. A economia política da moral é a riqueza de boa
consciência, de virtude etc. Mas como posso ser virtuoso, se não sou?
Como posso ter boa consciência, se não sei nada? Tudo isso está fundado
na essência da alienação: cada uma aplica-me uma medida diferente e
oposta, a moral aplica-me uma e a economia política outra, porque cada
uma destas é uma determinada alienação do homem e fixa um círculo
particular da atividade essencial alienada; cada uma delas se relaciona de
forma alienada com a outra alienação (...) Assim o senhor Michel Chevaüer
acusa Ricardo de fazer abstração da moral. Ricardo, no entanto, deixa a
economia política falar sua linguagem própria. Se esta não fala
moralmente, a culpa não é de Ricardo. M. Chevalier faz abstração da
economia política enquanto moraliza, mas necessária e efetivamente,
faz abstração da moral, enquanto pratica a economia política. A relação
da economia política com a moral, quando não é arbitrária, casual e por
isso infundada e não científica, quando não é uma aparência, mas quando
é considerada essencial, não pode ser senão a relação das leis econômicas
com a moral. Que pode fazer Ricardo se esta relação não existe ou se o
que existe é antes o contrário?
Como se pode ver na citação apresentada, Marx criticava a
hipocrisia daqueles que acusavam aos economistas de não se
preocuparem com as questões da moral e de se aterem apenas à
lógica econômica e mostra que a sociedade capitalista produz a
alienação que aplica aos indivíduos exigências conflitantes. Assim,
do ponto de vista da lógica econômica do capital, não há nada a
censurar na prostituição pois ela é uma venda de si próprio tanto
quanto a venda da força de trabalho daquele que é explorado e sugado
ao máximo pelo capital. No romance Mãe, de Máximo Gorki (1982),
a certa altura aparece um personagem que está gravemente doente,
aproximando-se de sua morte. Ele então narra a outras pessoas como
chegou àquela situação pela exploração de seu trabalho que lhe sugou
toda a vitalidade e fala também de sua revolta ao ler em um jornal
que seu rico patrão havia mandado fazer um urinol de ouro para sua
amante. Esse ex-trabalhador às vésperas da morte via tudo isso como
um processo no qual seu sangue lhe foi retirado em troca de um
urinol de ouro. Qual a diferença entre essa situação e a prostituição?
Nenhuma a não ser a hipocrisia da sociedade.
Educação e moral na sociedade capitalista em crise
183
Passarei agora à segunda parte da explicação de minha
afirmação, isto é, porque afirmo estar aumentando a alienação da
moral à medida que se torna mais aguda a crise da sociedade capitalista
atual. As políticas neoliberais têm procurado administrar as crises
econômicas através de medidas recessivas, como todos sabem. Luis
Carlos de Freitas (1995, p. 120-121), afirma que a recessão não é
apenas um instrumento econômico, mas um “instrumento político
disciplinador da classe trabalhadora”, através da desmobilização.
Apresentando argumento similar, os autores do livro intitulado
Neoliberalismo: a tragédia do nosso tempo (Malaguti, Carcanholo &
Carcanholo, 1998, p. 8) afirmam que as políticas neoliberais
produzem “o individualismo e o egoísmo exacerbados”, induzindo
os indivíduos “à passividade, à segurança dos lares e à indiferença”.
Ora, é óbvio que nesse contexto prevalece o salve-se quem puder.
Fica claro então porque a crise aumenta a alienação da moral, porque
ela leva à radicalização da competição intrínseca à lógica da sociedade
capitalista. Com o aumento da exclusão, o pesadelo de todos passa a
ser o de amanhã vir a fazer parte do crescente contingente dos
excluídos.
Talvez alguém diga que estou misturando assuntos diferentes:
um é a questão da moral e outro da mobilização política. Bem, minha
resposta é de que tal objeção é, por si mesma, um fruto do contexto
acima descrito pois só a alienação da moral é que pode levar os
indivíduos a pensarem que possa existir desenvolvimento moral sem
mobilização política. Com isso chegamos ao ponto central de minha
apresentação, o do papel da educação nesse contexto.
A educação tem sido apontada, na retórica dos governantes e
das classes dominantes, como a grande responsável pela superação
do que eles chamam de crise de valores pela qual estaria passando
nossa sociedade. Como já mostrei acima, esses defensores do
capitalismo não admitem que este esteja em profunda crise e tratam
a chamada crise dos valores como se ela nada tivesse a ver com a
lógica intrínseca à sociedade capitalista. Aliás, esses senhores e
senhoras evitam até mesmo utilizar o termo capitalismo, preferindo
empregar outras denominações como democracia, sociedade
democrática etc. Mas como está cada vez mais difícil convencer a
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Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa
todos que tudo vai bem, como é preciso admitir que algo cheira mal,
fala-se em crise de valores e os educadores são conclamados a
preocuparem-se com a formação do cidadão do futuro e com a
formação moral dos indivíduos, além, é claro, da formação de
profissionais aptos a disputarem um lugar ao sol no competitivo
mercado de trabalho. A contradição da retórica dominante na
sociedade atual é sintetizada nessa fórmula que procura unir formação
do trabalhador apto a lutar com unhas e dentes por um trabalho e
formação do cidadão solidário, que participa de forma construtiva
(o que nesse contexto significa ausência de questionamentos críticos)
e que se une à sua comunidade para resolver os problemas sociais
(inclusive o da educação) através da filantropia.
Um exemplo bastante ilustrativo desse tipo de retórica na qual
a educação é apontada como a chave para a superação dessa crise de
valores pela qual passaria nossa sociedade, é o já bastante conhecido
relatório da comissão internacional da UNESCO, presidida por
Jacques Delors, comissão essa que durante o período de 1993 a 1996
trabalhou na elaboração de diretrizes para a educação mundial do
século XXI. Esse relatório foi publicado no Brasil em 1998 (Delors,
1998), com apoio do Ministério da Educação e com apresentação
assinada pelo ministro Paulo Renato Souza. No capítulo primeiro de
meu livro intitulado Vigotski e o “Aprender a Aprender”: crítica às
apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana (Duarte, 2000)
analisei algumas das contradições existentes nas idéias defendidas
por esse relatório dessa comissão internacional da UNESCO. Uma
dessas contradições diz diretamente respeito ao tema desta
apresentação: trata-se da contradição entre a idéia de uma educação
que prepare os indivíduos para a competitividade própria da sociedade
atual e a idéia de uma educação que forme os indivíduos segundo
valores morais voltados para uma existência humana não limitada ao
progresso econômico. Essa comissão, assim como boa parte da
retórica educacional contemporânea, acredita superar a mencionada
contradição através da idéia de que uma educação que desenvolva
no indivíduo o “aprender a aprender”, de forma que esse indivíduo
se torne capaz de se adaptar às constantes mudanças no processo
produtivo, pode ser ao mesmo tempo um processo de educação
Educação e moral na sociedade capitalista em crise
185
permanente que tenha como objetivo último não apenas o
desenvolvimento econômico mas também e principalmente o
desenvolvimento humano (Delors, 1998, p. 69-85). A equação
parece simples: formar o trabalhador requisitado pela “sociedade
da informação”, capaz de constante adaptação a um mundo em
rápida mudança e, nesse mesmo processo, alcançar o ideal da
formação plena do ser humano:
A educação não serve, apenas, para fornecer pessoas qualificadas ao mundo
da economia: não se destina ao ser humano enquanto agente econômico,
mas enquanto fim último do desenvolvimento. Desenvolver os talentos e
as aptidões de cada um corresponde, ao mesmo tempo, à missão
fundamentalmente humanista da educação, à exigência de eqüidade que
deve orientar qualquer política educativa e às verdadeiras necessidades
de um desenvolvimento endógeno, respeitador do meio ambiente humano
e natural, e da diversidade das tradições e culturas. E mais especialmente,
se é verdade que a formação permanente é uma idéia essencial dos nossos
dias, é preciso inscrevê-la, para além de uma simples adaptação ao
emprego, na concepção mais ampla de uma educação ao longo de toda a
vida, concebida como condição de desenvolvimento harmonioso e
contínuo da pessoa (Delors, 1998, p. 85).
Nada mais idílico: uma educação que fornece pessoas
qualificadas para o mundo econômico, para o emprego e, de quebra,
conduz os indivíduos a um desenvolvimento harmonioso e produz
um desenvolvimento humano que respeita a natureza e a diversidade
das tradições e culturas. E a comissão chega a essa conclusão depois
de constatar que na segunda metade do século XX o processo social
esteve todo ele voltado prioritariamente para o desenvolvimento
econômico, gerando profundas desigualdades entre os países e dentro
de cada país e gerando também problemas ecológicos graves.
A pergunta óbvia do ponto de vista lógico é a seguinte: o que teria
levado, segundo a comissão, a que o desenvolvimento tenha sido
todo ele direcionado para o progresso econômico? Como alterar
esse quadro? A resposta é simples: para a comissão, a ciência e a
educação foram os motores principais do progresso econômico
ocorrido na segunda metade do século XX. Então educação e ciência
não devem mais ter como objetivo apenas o desenvolvimento
econômico e devem visar o desenvolvimento humano. A inversão
186
Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa
ideológica existente nessa análise é por demais evidente: para a
comissão não são as relações capitalistas de produção que limitaram
os objetivos da ciência e da educação mas sim estas que limitaram o
desenvolvimento social ao progresso econômico. Basta, portanto,
que educadores, cientistas e demais membros da sociedade
abandonem suas antigas concepções e abracem um concepção mais
ampla de desenvolvimento e dos objetivos da educação.
Mas não basta constatar a inconsistência de análises como a
elaborada por essa comissão, é necessário entender qual função esse
tipo de análise desempenha no quadro ideológico atual. A tese que
tenho defendido é a de que esse tipo de análise tem o papel de lançar
uma cortina de fumaça sobre a realidade da crise pela qual passa a
sociedade capitalista. Por essa razão a educação tem ocupado cada vez
mais lugar de destaque na mídia e na retórica das classes dominantes e
dos dirigentes das políticas neoliberais. Mas os defensores desse tipo
de discurso não deixam de perceber de forma mais ou menos clara
que a lógica objetiva da reprodução do capital em escala mundial está
produzindo a desagregação do tecido social, está produzindo a barbárie.
Justamente por perceber de alguma forma esse processo é que
presidente da citada comissão internacional sobre educação para o
século XXI, Jacques Delors, no prefácio ao mencionado relatório faz
uma exortação singela, beirando o pieguismo, para que a educação
fomente os valores morais nas pessoas:
Muitas vezes, sem sequer se aperceber disso ou sem ter capacidade para
o exprimir, o mundo tem sede de ideal ou de valores a que chamaremos
morais, para não ferir ninguém. Cabe à educação a nobre tarefa de
despertar em todos, segundo as tradições e convicções de cada um,
respeitando inteiramente o pluralismo, esta elevação do pensamento e
do espírito para o universal e para uma espécie de superação de si mesmo.
Está em jogo - e aqui a Comissão teve o cuidado de ponderar bem os
termos utilizados - a sobrevivência da humanidade (idem, p. 15-16).
A prova de que o presidente da comissão não desconhece a
gravidade da crise pela qual passa a sociedade capitalista é que ao fazer
seu apelo à educação moral ele alerta que estaria em jogo a sobrevivência
da humanidade. Não percebe ele entretanto que, ao assim proceder,
está contribuindo justamente para o não enfrentamento objetivo das
Educação e moral na sociedade capitalista em crise
187
relações sociais que estão na base de um processo altamente destrutivo
e que pode, de fato, por em risco a sobrevivência da humanidade.
Há ainda uma outra forma pela qual a questão da moral aparece
atualmente na retórica da mídia e das classes dominantes sobre a
educação: trata-se do trabalho voluntário. A educação deixa de ser
vista como responsabilidade do Estado, deixa de ser resultado da
atividade de profissionais que devem ter a qualificação necessária e as
condições objetivas indispensáveis à realização adequada do trabalho
educativo. Cada vez mais a educação volta a ser tratada como filantropia
exercida tanto pelos professores como pela comunidade. O bom
cidadão é aquele que participa de forma construtiva e não aquele que
faz críticas em nome de ideologias ultrapassadas.
A essa altura é provável que alguns estejam formulando a
seguinte questão em relação à reflexão que aqui procurei esboçar:
“mas você só apresentou uma análise crítica e não formulou nenhuma
proposição positiva, afirmativa, sobre as relações entre educação e
moral no dias de hoje”. A mesma questão poderia ser formulada de
outra maneira: “Então a questão da ética e da moral não é objeto de
preocupação de educadores que preconizam a necessidade da luta
pelo socialismo? A preocupação com a formação moral é
incompatível com a ação política?”
Minha resposta a esse hipotético questionamento é a de que na
crítica acima esboçada encontra-se implícita uma proposta sobre as
relações entre educação e moral na sociedade contemporânea. Trata-se
da tese de que na sociedade capitalista em crise o desenvolvimento
moral dos indivíduos ficará restrito a limites por demais estreitos se
a educação não estiver articulada a um processo de luta política pela
superação do capitalismo rumo a uma sociedade socialista. Quando
escolanovistas e construtivistas afirmavam e afirmam que a educação
moral não deve ser reduzida a uma transmissão puramente verbal de
preceitos morais, mas deve ser resultante da vivência prática da
moralidade eles não deixam de ter razão. Mas o que eles parecem
não perceber é que essa vivência prática da moralidade esbarra na
alienação produzida pela sociedade capitalista e que somente a prática
revolucionária pode superar os limites impostos por essa alienação.
Assim interpreto a afirmação feita por Marx na terceira de suas
188
Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa
Teses Sobre Feuerback “a coincidência da modificação das circunstâncias
com a atividade humana ou alteração de si próprio só pode ser
apreendida e compreendida racionalmente como práxis revolucionária’
(Marx, 1993, p. 12, grifo no original).
Assim, não se trata de uma justaposição entre a educação moral
de um lado e a luta política de outro. A luta política pelo socialismo
deve ser o motor da elevação moral dos indivíduos e, ao mesmo
tempo, essa formação moral deve ser um elemento indispensável ao
avanço da luta política. A elevação moral dos indivíduos não deve
ser postergada para um futuro socialista pois a luta por este deve
alimentar e ser alimentada pela elevação moral dos indivíduos.
Novamente faço menção ao romance Mãe de Máximo Gorki pois
nesse romance a mãe de um operário militante da luta pelo socialismo
vai crescendo como ser humano, vai elevando-se do ponto de vista
moral e vai contribuindo para a elevação de outras pessoas, à medida
em que progressivamente passa a fazer parte da mesma luta que
levou seu filho à prisão. À medida que ela vai atuando nesse
movimento, de início movida mais pelo desejo de ajudar a seu filho,
ela vai travando relações com um conteúdo humano muito mais rico
do que tudo o que ela havia vivido até ali.
Por fim, encerrarei esta minha apresentação com duas citações,
uma de Ágnes Heller e outra de Antônio Gramsci:
Marx disse que, transformando o mundo, os homens se transformam a
si mesmos. Não modificaremos substancialmente o seu pensamento se
alterarmos a sua frase e afirmarmos agora que não podemos transformar
o mundo se, ao mesmo tempo, não nos transformarmos a nós mesmos
(Heller, 1992, p. 117).
E uma ilusão e um erro supor que o “melhoramento” ético seja puramente
individual: a síntese dos elementos constitutivos da individualidade é
“individual”, mas ela não se realiza e desenvolve sem uma atividade para
o exterior, atividade transformadora das relações externas, desde as com
a natureza e com os outros homens - em vários níveis, nos diversos
círculos em que se vive — até a relação máxima, que abraça todo o gênero
humano. Por isso, é possível dizer que o homem é essencialmente
“político”, já que a atividade para transformar e corrigir conscientemente
os homens realiza a sua “humanidade”, a sua “natureza humana”
(Gramsci, 1995, p. 47-48).
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