PEDAGOGIA UNIVERSITÁRIA: PRODUZINDO MATERIAL DIDÁTICO EM MULTIMÍDIA PARA O ENSINO DA MATEMÁTICA KESSLER, Maria [email protected] EIXO: Educação Superior/n.4 Agência Financiadora: sem financiamento Introdução Uma parte considerável dos alunos que chegam à Universidade apresenta uma formação comprometida com uma série de dificuldades que a escola média e fundamental atravessa. Não possuem nem o quadro de referência nem a rede semântica necessária para decodificar as informações transmitidas pelo professor em sala de aula. Outro aspecto a considerar é a mudança no perfil do aluno que ingressa na universidade1. Atualmente o corpo discente não é mais constituído basicamente por jovens entre 18 e 22 anos, recém saídos do ensino médio. A população estudantil apresenta uma faixa etária bastante ampla, com muitos alunos com idade superior a 30 anos e muitos deles há muito tempo fora da escola. São alunos trabalhadores, muitos já com famílias constituídas, o que reduz de forma expressiva o tempo de dedicação ao estudo, aspectos importantes no entendimento da evasão e da repetência no ensino superior. Esta ampla diversidade se traduz de diversas formas. Não são diferenças apenas de perspectivas e interesses entre os universitários, como também de estilos e condições de aprendizagem centradas em também diferentes relações com os saberes (CHARLOT, 2001; DOUADY,1995). Estes aspectos impõem mudanças, inovações, na prática pedagógica do professor universitário, exigindo revisão de mitos e preconceitos relacionados à docência no terceiro grau, considerada, por muitos profissionais, de pouca importância. Na minha compreensão, a universidade, ao receber os alunos por ela selecionados, assume com estes alunos um compromisso com sua formação, o que implica em uma busca constante de alternativas educacionais ajustadas às aspirações e aos estilos de aprendizagem desses alunos. 1 É preciso esclarecer que minhas reflexões sustentam-se na universidade privada. Essas considerações, aliadas à compreensão de que o envolvimento do aluno com o saber é influenciado expressivamente pela forma como esse conteúdo lhe é apresentado, levou um grupo interdisciplinar de professores de uma universidade privada a propor o desenvolvimento de material didático a ser disponibilizado na forma de CD-ROM. A opção por essa mídia justifica-se, pois além de ser atraente aos alunos, possibilita a criação de situações didáticas lúdicas, desafiadoras, dinâmicas e interativas, além de que sua utilização é possível tanto em sala de aula, pelo professor, tornando a aula mais dinâmica, como também de forma individual pelo aluno, a distância, permitindo que o processo de aprendizagem aconteça de forma autônoma e no próprio ritmo do aluno, o que nem sempre é possível na modalidade presencial. Cabe referir ainda, que a opção pela distribuição do material em CD-ROM vincula-se ao fato de que muitos dos nossos alunos têm computadores em casa, mas não têm acesso a INTERNET. Outro aspecto importante a considerar é de caráter econômico, visto que o acesso à INTERNET, por discagem direta, implica em pagamento por tempo de uso. O projeto do qual participa este grupo de professores, busca, através de determinadas ações que privilegiam a lógica do aluno, seu conhecimento prévio, sua história, sua relação com os diferentes saberes, impulsionar a sua aprendizagem na universidade, com vistas à diminuição dos índices de repetência continuada e evasão que nela ocorrem. O grupo, que iniciou esta atividade em 2005, atua nas áreas de matemática, física, química e português e, além da produção/organização de material didático em CDROM, para estudo a distância, centrado no desenvolvimento de competências, dedica-se ao desenvolvimento de ações visando um acompanhamento sistemático do processo de aprendizagem do aluno, tanto na forma presencial, como a distância, via e-mail e MSN. Este texto além de explicitar algumas premissas sobre as quais o grupo de professores centra a produção de material digital em CD-ROM, com conteúdos de matemática, relata também alguns resultados preliminares oportunizados por um estudo investigativo, em fase final, centrado nos pressupostos da engenharia didática. Este estudo, cujos sujeitos são alunos de turmas noturnas de Cálculo A2, disciplina integrante do currículo das engenharias (Civil, Produção, Alimentos, Mecânica), visou a 2 A ementa da disciplina é constituída dos seguintes conteúdos: Limite de uma função; derivada de uma função (polinomiais, racionais algébricas, trigonométricas. Diferencial. Regra da Cadeia. Taxas relacionadas. Aplicações da derivada: extremos de funções, problemas de otimização. compreensão do processo de ensino-aprendizagem da matemática, na universidade, a partir da utilização de material didático produzido em multimídia. A Engenharia Didática, vista como metodologia de pesquisa, caracteriza-se por um esquema experimental que se propõe a analisar as situações didáticas. Insere-se, portanto, no quadro teórico da didática da matemática. A teoria das situações didáticas trata-se de um modelo teórico desenvolvido na França por Brousseau e visa a criação de procedimentos didáticos envolvendo professor, aluno e o conhecimento matemático. Uma situação didática pode ser compreendida como: Um conjunto de relações estabelecidas explicitamente ou implicitamente entre um aluno ou um grupo de alunos, num certo meio, compreendendo eventualmente instrumentos e objetos, e um sistema educativo (o professor) com a finalidade de possibilitar a estes alunos um saber constituído ou em vias de constituição (BROUSSEAU apud FREITAS, 1999, p. 67) O termo engenharia didática significa, como refere Artigue (1995): [...] uma forma de trabajo didáctico equiparable com el trabajo del ingenierquien, para realizar un projecto determinado, se basaen los conocimientos científicos de su domínio y acepta someterse a un control de tipo científico. Sin embargo, al mismo tiempo, se encuentra obligado a trabajar con objetos muchos más complejos que los objetos depurados de la ciencia y, por lo tanto, tiene que abordar prácticamente, con todos los medios disponibles, problemas de los que la ciencia no quiere o no puede hacerse cargo (p. 34). Para a pesquisadora essa metodologia de pesquisa caracteriza-se como esquema experimental que compreende a concepção, a realização, a observação e a análise de seqüências de ensino. Inclui quatro fases: 1) análises prévias; 2) concepção e análise a priori de situações didáticas a serem desenvolvidas; 3) experimentação; 4) análise a posteriori e validação da experiência. Segundo Artigue (1996), essa validação é “essencialmente interna, fundada no confronto entre a análise a priori e a análise a posteriori” (p. 197), opondo-se, portanto, a outro paradigma que sustenta análises comparativas com validação externa dos desempenhos dos alunos. 1-Análises prévias - Algumas premissas acerca do material produzido De acordo com Artigue (1996) a fase de concepção das situações didáticas a serem desenvolvidas apóia-se sobre um quadro teórico geral e sobre conhecimentos didáticos já adquiridos sobre o tema em questão, mas também se apóia em certo número de análises preliminares, dentre as quais destacam-se: - Análise epistemológica dos conteúdos a serem contemplados nas situações didáticas. Devido ao caráter dinâmico do Cálculo Diferencial e Integral, esta análise acabou impondo a construção de animações e simulações a serem inseridas no material digital. - Análise do ensino até então desenvolvido e dos seus efeitos. O ensino da matemática da universidade é basicamente transmissivo. Não há questionamentos, provocações. O aluno na maioria das vezes se mantém passivo, restringindo sua ação em registrar o que o professor fala e escreve para posteriormente memorizar estas informações. O material produzido opondo-se a este paradigma buscou envolver o aluno de forma ativa no processo de aprendizagem. -Análise das concepções dos alunos, das dificuldades e obstáculos que influenciam o processo de aprendizagem. Neste sentido os estudos prévios pautaram-se, também, em resultados oportunizados por investigação desenvolvida anteriormente, que teve dentre seus objetivos mapear as dificuldades dos acadêmicos. Dentre estas dificuldades destacam-se: fracas estratégias de organização e de estudo, dificuldade em extrair informações relevantes, dificuldade em formular hipóteses, dificuldade em expressar idéias (falta de domínio do símbolo e da própria língua materna), fragilidade quanto ao raciocínio lógico, pensamento crítico pouco desenvolvido quanto à razoabilidade dos resultados. Foram apontados ainda por este estudo outros aspectos tais como: dificuldades por parte do aluno na compreensão e manipulação dos conceitos matemáticos, na elaboração e inferência de dados abstratos, na avaliação de suas produções intelectuais, na leitura/interpretação de gráficos e tabelas. Cabe destacar que a produção do material didático centrou-se na compreensão de que os alunos estabelecem outras relações com o saber, diferentes daquelas induzidas pelas instituições de ensino. De acordo com Charlot (2001): “A problemática da relação com o saber estabelece uma dialética entre sentido e eficácia da aprendizagem. O que é aprendido só pode ser apropriado pelo sujeito se despertar nele certos ecos: se fizer sentido para ele” (p. 21). -Análise das dificuldades que fazem parte das situações didáticas construídas e, finalmente, análise dos objetivos específicos da investigação. Esta primeira fase da engenharia didática pautou-se também em observações e em um instrumento de avaliação desenvolvido no primeiro dia de aula, denominado pré-teste. Estas análises prévias, que constituem a primeira fase da engenharia didática, são extremamente ricas e importantes para o processo de ensino-aprendizagem e para a produção das situações didáticas, na medida em que permitem que se conheçam as estruturas de recepção, isto é, as concepções dos alunos tais como surgem nas situações educativas e não tais como se pretendeu construí-las. As análises prévias realizadas apontaram também falta de compreensão das propriedades algébricas e muitos equívocos vinculados à ordem de prioridade das operações, o que levou o grupo a contemplar, nas seqüências didáticas, uma série de “janelas” com conteúdos do ensino fundamental e médio. Foram evidenciadas também expressivas dificuldades, por parte da maioria dos acadêmicos, no que se refere ao conceito de função, um conteúdo desenvolvido no ensino médio sobre o qual se apóia o cálculo diferencial e integral. Estas dificuldades levaram a inclusão deste conteúdo no material produzido. A inclusão de temas do ensino médio no terceiro grau não é vista de forma consensual por muitos professores universitários. Alguns se negam a tratar em suas salas de aula assuntos da escola fundamental e média, argumentando que não é esta a função da universidade. No meu entendimento o papel da universidade também está sendo repensado na medida em que os acadêmicos de hoje têm pouco em comum com o jovem recém saído do ensino médio sobre o qual foi estabelecido o modelo das universidades públicas brasileiras (PAIVA e WARDE, 1994). A partir dessas considerações o material didático produzido buscou desenvolver as seguintes competências3: - Compreensão e aplicação do conceito de função bem como o conceito de variável dependente e independente em diferentes contextos; - Leitura e interpretação de gráficos e tabelas; - Determinação do domínio, imagem e contradomínio da função a partir de diferentes representações da função e em diferentes contextos. - Aplicação do conceito de limites em diferentes tipos funções; apacidade de mobilizar conhecimentos, técnicas, atitudes, valores e outros recursos para enfrentar um conjunto de situações complexas (EPTV, 2003, p.7). - Leitura e interpretação de gráficos e tabelas envolvendo o conceito de limite de uma função; - Análise da continuidade de uma função. - Resolução de situações problemas envolvendo a derivada; -Leitura e interpretação de gráficos a partir da aplicação dos conceitos relacionados à derivada; -Construção de gráficos a partir da aplicação dos conceitos relacionados à derivada. Além dessas considerações, a produção do material digital exigiu o envolvimento de uma série de outros conceitos dentre os quais destaco a transposição didática, que de acordo com Chevallard (apud PAIS, 2002) pode assim ser explicado: Um conteúdo do conhecimento, tendo sido designado como saber a ensinar, sofre então um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo apto a tomar lugar entre os “objetos de ensino”. O “trabalho” que, de um objeto de saber a ensinar faz um objeto de ensino, é chamado de transposição didática (p. 19). Esse processo que envolve três tipos de saberes - o saber científico, o saber a ensinar e o saber ensinado - está submetido a uma série de influências e regras, tais como: - a especificidade da área em questão que define determinadas formas de aprendizagem; - o conhecimento acerca do grupo ao qual a transposição se destina. Isso engloba o conhecimento da bagagem cultural do aluno, seus conhecimentos prévios, expectativas e dificuldades; - a seleção e organização do conteúdo considerando obstáculos epistemológicos normalmente evidenciados pelos alunos; - distribuição do tempo: estabelecimento de uma seqüência que privilegia o tempo de aprendizagem em detrimento do tempo didático. O tempo didático refere-se ao cumprimento de uma exigência legal que implica enquadrar o saber em um determinado espaço de tempo. Seu compromisso maior é com o cumprimento do programa do que com a aprendizagem. O tempo de aprendizagem vincula-se a rupturas e conflitos e exige uma permanente reorganização de informações podendo ser definido como: [...] o tempo necessário para o aluno superar os bloqueios e atingir uma nova posição de equilíbrio. Trata-se de um tempo que não é seqüencial e nem pode ser linear, na medida em que é sempre necessário retomar as antigas concepções parta poder transformá-las (PAIS, 1999, p. 31). - seleção das mídias pelos quais os conteúdos serão apresentados — textos, imagens, vídeos, pesquisa na web, etc.; -seleção das estratégias de ensino. Cabe destacar que a construção de competências, assim como a construção do conhecimento, “não depende da técnica em si, mas do elo significativo que se estabelece, ou não, entre a ação do sujeito e o objeto que lhe é dado a conhecer (ação + significação)” (VASCONCELLOS, 2002, p. 112). As análises preliminares realizadas não somente definiram a produção do material didático em CD-ROM como também a sua atualização que acontece a cada semestre. A partir destas considerações o material digital produzido contempla ainda os seguintes aspectos: - lúdico: O material construído apresenta cores, imagens, movimentos, animações, links, vídeos, de forma a despertar o interesse do aluno, sem abrir mão do questionamento, do desafio. Não há consenso, entre os professores universitários, sobre a importância do lúdico no processo de ensino-aprendizagem dos estudantes. Não se trata simplesmente de motivar os alunos, mas de desenvolver diferentes estratégias que possam contemplar as diferentes formas de aprender, vivenciadas pelos estudantes. Isto não significa como destaca Foresti (1995), “desprezar a cultura linear, cartesiana, característica da civilização ocidental (...) mas integrá-la a essa nova forma de ver o mundo, em que: fala-se mais do que se escreve; vê-se mais do que se ouve; sente-se antes de compreender” (p. 4). - linguagem acessível: A utilização de uma linguagem acessível é de extrema importância, visto que o repertório vocabular da maioria dos alunos é bastante restrito, não coincidindo com o padrão escrito e oral esperado pela universidade. A linguagem tem importante papel na medida em que se constitui um instrumento de mediação do sujeito com o mundo e, no caso específico da produção de material didático digital. Neste sentido é preciso estar atento à questão trazida por Vygotsky (1989) que enfatiza: [...] a comunicação por escrito baseia-se no significado formal das palavras e requer um número muito maior de palavras do que a fala oral, para transmitir as mesmas idéias. Dirige-se a um interlocutor ausente, que muito poucas vezes tem em mente o mesmo assunto que o escritor (p.122). Como se trata de uma produção escrita faz-se necessário lançar mão de recursos que destaquem determinados aspectos que nas aulas presenciais são indicados por gestos, mudanças de voz, informações complementares. Dentre os recursos utilizados cabe citar: mudanças de estilo e tamanho das letras, janelas com informações adicionais, links com conteúdos afins, etc. A opção do grupo envolvido com essa produção foi pela utilização de uma linguagem mais enxuta, mais informal do que aquela normalmente utilizada nos livros didático, e semelhante àquela utilizada nas aulas presenciais. Há que se destacar, também, que a matemática é uma área de conhecimento que possui uma linguagem própria que veicula determinados códigos. Segundo a teorização de Bernstein (1988) no processo de comunicação são distinguidos dois códigos de fala: o código restrito e o código elaborado. No código restrito, vinculado a um determinado contexto, o número de alternativas é limitado e a estrutura organizada é previsível para falantes ou ouvintes. No elaborado, a característica é a universalidade. O número de alternativas é extenso e a condição do ouvinte não é tida como certa. Percebe-se na comunicação pedagógica desenvolvida nas aulas de matemática, muitas vezes, um descompasso na medida em que a linguagem do professor centra-se nos códigos elaborados e a dos alunos no código restrito. Nesse sentido, a linguagem utilizada no material produzido vai se modificando, de forma gradativa, promovendo a familiarização do aluno com os códigos dessa área de conhecimento. O fato de tratarmos os assuntos dessa forma não significa que o trabalho é desprovido de rigor, mas sim de diferentes escalas de rigor. Sobre esta questão D’Ambrósio (1986) assim se manifesta: O tratamento rigoroso da matemática é um mito contra o qual devemos lutar. Em verdade, é essencial que preocupações de rigor não interfiram com as bases intuitivas da matemática. Entendemos que sensibilidade para rigor matemático é algo que se adquire, que se sente após alguma vivência com a matemática, e que surge naturalmente com o desenvolvimento do que poderíamos chamar ‘intuição para rigor’. [...] A ênfase estaria em despertar no estudante curiosidade e espírito inquisitivo que, aliado a algum gosto pelo assunto, o motivará a procurar tratamento mais aprofundado e mais rigoroso (p.23). Como já mencionado anteriormente a produção do material didático em formato digital busca o desenvolvimento de competências, compreendidas como “capacidade de mobilizar conhecimentos, técnicas, atitudes, valores e outros recursos para enfrentar um conjunto de situações complexas” (EPTV, 2003, p.7). Percebe-se na noção de competência a idéia de mobilização, ou seja, como afirma Machado N. (2006), “a capacidade de se mobilizar o que se sabe para realizar o que se busca. É um saber em ação” (p. 3). Nesta perspectiva o material produzido trata os conceitos de forma contextualizada a partir de situações-problema vinculadas aos interesses e à prática social do aluno, destacando os aspectos científicos, sociais e históricos que possibilitaram determinadas sínteses. Para Meirieu (1998) uma situação-problema pode assim ser definida: É uma situação didática na qual se propõe ao sujeito uma tarefa que ele não pode realizar sem efetuar uma aprendizagem precisa. Esta aprendizagem, que constitui o verdadeiro objetivo da situação-problema, se dá ao vencer o obstáculo na realização da tarefa (p. 192). As situações-problema caracterizam-se pela vinculação com a realidade do aluno, pela mobilização de recursos e pela coordenação de “fatores em um contexto delimitado, com limitações que nos desafiam a superar obstáculos, a pensar em outro plano ou nível. Trata-se, portanto, de uma alteração criadora de um contexto que problematiza, perturba, desequilibra” (MACEDO, 2002, p. 114). - historicização: os conteúdos são desenvolvidos considerando a historicidade do objeto em estudo. Tal abordagem possui particular importância no âmbito pedagógico uma vez que através da História são apresentados modelos, conceitos, obstáculos epistemológicos, elementos que constituem o processo de produção de conhecimento além de enfocar fatores socioculturais que foram determinantes nesta produção. De acordo com Vasconcellos (2002) “resgatar a história do conhecimento ajuda a resignificá-lo, na medida em que se entende em que contexto surgiu e que tipo de problema veio resolver, etc.” (p. 110). - envolvimento ativo do aluno no processo de aprender, desafiando-o a formular e reformular hipóteses. Desta forma, entendemos que o material produzido precisa: provocar, dispor e interagir (VASCONCELLOS, 2002). Provocar no sentido de fazer o aluno pensar, refletir. A intenção é produzir material que obrigue o aluno a rever suas concepções prévias, provocando desequilíbrios na sua estrutura cognitiva, elemento importante na aquisição de novos conhecimentos. Dispor no sentido de dar indicações, oferecer subsídios. Dispor objetos, elementos, situações. De acordo com Vasconcellos (2002) “dar condições para que o educando tenha acesso a elementos novos, para possibilitar a elaboração de respostas aos problemas suscitados, superar a contradição entre sua representação e a realidade” (p. 105). E, como terceira ação importante, o material produzido busca uma interação com a representação do aluno. A aprendizagem, como enfatiza Meirieu (1998), “exige uma ruptura com antigas representações ou preconceitos anteriores. Requer, portanto, uma intervenção externa ou uma situação específica que obrigue o sujeito a modificar o seu sistema de pensamento” (p. 31). Estas intervenções buscam provocar um desequilíbrio na estrutura cognitiva dos alunos, fazendo-os avançar no sentido de uma nova e mais elaborada reestruturação. Resultados de pesquisas mostram que esses desequilíbrios, percebidos pelo sujeito como conflitos, em geral desempenham um papel positivo na aquisição de novos conhecimentos (COLL e MARTÍ, 1996). - feedback. Uma das características importantes do material produzido é a verificação, por parte do aluno, do seu desempenho. A cada etapa são propostos exercícios com respostas problematizadoras, que têm como objetivo auxiliar o aluno a rever suas concepções prévias. Entendemos que se as representações iniciais forem apenas rejeitadas, o sujeito adquirirá somente a ilusão do saber e as velhas concepções ressurgirão na primeira oportunidade um tanto incomum (GIORDAN e VECCHI, 1996). Resultados de pesquisas mostram que esses desequilíbrios, percebidos pelo sujeito como conflitos, em geral desempenham um papel positivo na aquisição de novos conhecimentos (COLL e MARTÍ, 1996). Essas respostas problematizadoras que compõem o material didático produzido abordam os erros mais freqüentes dos alunos tais como divisão por zero, prioridades das operações, a existência do limite em um ponto onde a função não é definida, entre outros. - dicas: O material produzido contém “janelas” permitindo que conceitos desenvolvidos anteriormente ou ainda desenvolvidos nos níveis de ensino anteriores, possam ser retomados minimizando possíveis lacunas na formação do aluno. 2 – Concepção e análise a priori de situações didáticas a serem desenvolvidas Cabe enfatizar que as análises prévias definem a construção do material didático, porém elas são retomadas ao longo de todo processo. Durante a fase de produção realizada pela equipe do projeto, acadêmicos inseridos no projeto foram solicitados para avaliar o material em construção. Esta avaliação foi importante e objetivou minimizar as dificuldades que podem surgir pelo fato de que o docente transmite um saber a partir de sua própria lógica, que por sua vez é interpretado pelos alunos a partir de seu próprio sistema de referências (GIORDAN E VECCHI, 1996). O material digital foi construído inicialmente utilizando-se o software Toolbook e Macromedia Flash. Este último assumindo a produção de forma mais expressiva pelas vantagens que apresenta: facilidade de utilização, tamanho reduzido do conteúdo final, possibilidade de construção de aplicações interativas, etc. O Flash é uma tecnologia de aprendizado rápido e fácil, apresentando uma linguagem de simples, porém poderosa, o que torna o processo de desenvolvimento mais rápido se comparado ao toolbook. 3 – Experimentação Os sujeitos desta pesquisa, como já anteriormente mencionado, são alunos de duas turmas noturnas de Cálculo A, de uma universidade privada. Os critérios de escolha dos participantes da investigação foram os seguintes: dificuldades com a matemática, disponibilidade e interesse em usar o material produzido. Os instrumentos utilizados na coleta de dados foram: pré-teste, testes, observações em sala de aula, entrevistas semi-estruturadas, depoimentos/auto-avaliação do aluno. Como uma das ações do Ensino Propulsor o material digital produzido foi disponibilizado aos alunos mediante contribuição simbólica e preenchimento de ficha, com algumas informações pessoais. Nestas fichas foram registradas também as dificuldades, principais dúvidas, e aspectos vinculados ao envolvimento do aluno com a disciplina, informações importantes no acompanhamento do processo de aprendizagem vivenciado pelo acadêmico. O material também foi utilizado durante as aulas não somente com o objetivo de dinamizá-las como também por permitir a visualização de situações dinâmicas difíceis de serem apresentadas apenas com quadro verde e giz. 4) Análise a posteriori e validação da experiência. O estudo investigativo, em fase final de análise, buscou a compreensão do processo de ensino-aprendizagem da matemática, na universidade, a partir da utilização de material didático em multimídia. Neste sentido o estudo se propôs a responder às seguintes questões: Qual o impacto do material produzido na aprendizagem significativa da matemática? As situações didáticas propostas no CD-ROM favorecem a compreensão dos conceitos matemáticos? Como o acadêmico interage com o material didático produzido? Os dados utilizados na pesquisa foram obtidos a partir de observações realizadas na sala de aula; relatos dos alunos; instrumentos de avaliação que buscavam aferir o desenvolvimento das competências propostas; avaliação realizada pelo aluno sobre o material produzido. Apesar da análise do material coletado não estar totalmente concluída cabe destacar alguns resultados: 1 - Boa receptividade do material pelo acadêmico A opção por desenvolver material didático em multimídia despertou interesse e curiosidade nos alunos, como se pode observar a partir dos seguintes depoimentos4: “A forma em que é passada a matéria, se percebe no mesmo um aprendizado brincando” (Cleo, turma 23). “Clareza nas explicações, desenvolvimento do conteúdo” (Bernardo, 23). “Ele é bem prático, daí fica mais fácil de estudar” (Guilherme, turma 43). Um dos elementos que elevaram o interesse do aluno foram os vídeos. Um exemplo a ser descrito refere-se à apresentação das condições que determinam a continuidade de uma função. Como introdução ao assunto foi apresentado aos usuários vídeos que continham erros de descontinuidades de filmes famosos como “Gladiador” e “Onze homens e um segredo”. 2 - Auxílio na compreensão dos conceitos Os acadêmicos destacam elementos importantes contidos no CD que auxiliaram na aprendizagem do cálculo, tais como a interatividade, a linguagem acessível e as aplicações práticas, conforme os relatos a seguir: Muito bem explicado o conteúdo” (Cris,turma 33) 4 Os sujeitos da pesquisa são descritos a partir de nomes fictícios e os depoimentos transcritos tais como foram coletados. “Forma muito clara de expor o conteúdo, principalmente através das animações”. “Ótimo auxílio na aprendizagem, principalmente as vizualizações (sic) em movimento como por exemplo, nos gráficos” (Tânia, turma 23) Esta aluna refere-se a uma animação construída com o objetivo de auxiliar na leitura de gráficos, mais especificamente, à obtenção do domínio e imagem de uma função, uma das dificuldades desta aluna, evidenciada no pré-teste. As animações constituem-se elementos importantes no desenvolvimento do conteúdo, pois permitem que o aluno perceba o dinamismo dos conceitos, uma característica importante do cálculo diferencial. O feedback também mereceu destaque por parte dos acadêmicos: Destaco a maneira criativa com que o conteúdo é apresentado, fazendo uso de animações, cores e situações problemas que nos levam a associar o conteúdo à realidade. Outro ponto que julgo muito positivo são os exercícios com respostas permitindo a avaliação imediata quanto ao aprendizado (Antônio, turma 33). Cabe mencionar que a interatividade do material produzido se efetiva através de solicitações ao usuário tais como leitura e construção de gráficos, preenchimento de tabelas, realização de pequenos experimentos; jogos, animações. São ainda sugeridos ao aluno a utilização de programas gráficos e aplicativos disponíveis na web. 3 - Mudança da relação com o saber matemático Um dos pressupostos que perpassam o processo de produção do material didático, já destacado anteriormente, vincula-se ao fato de que as pessoas estabelecem diferentes relações com o saber matemático, diferentes daquelas que normalmente são induzidas ao aluno pelas instituições de ensino, e que estas relações são dinâmicas, podem ser modificadas a partir de situações que façam sentido para o aluno. Os depoimentos dos alunos investigados reforçam estas afirmações: “Entrei na disciplina de Cálculo A, com muitas deficiências provenientes do Ensino Médio, e não tinha interesse por nenhum assunto relacionado à Matemática. Depois de conhecer o teu jeito de transmitir o conhecimento eu reformulei boa parte dos meus conceitos sobre ensinar e aprender. [...] Pude sanar dúvidas antigas e aprender muitas coisas novas e, principalmente, me interessei pelos desafios propostos em cada aula. Pena que não tive tempo suficiente para praticar os exercícios e obter uma nota maior” (Carlos, turma 43). Quero dizer para senhora que passei a ver a matemática com outros olhos a partir de agora, eu já gostava, mas com tuas aulas, comecei a amar essa matéria (Pedro, 23). De acordo com Douady (1995): En efecto, uma modificación de las relaciones de estos estudiantes con las matemáticas implica que los contenidos de esta disciplina y la disponibilidad de herramientas de manejo bajo su control tomen um significado diferente. Esto requiere que los estudiantes puedan entrar em uma actividad intelectual y que ellos estén convencidos de que esto vale la pena, no sólo desde el punto de vista social y cultural (p. 67). Cabe referir novamente que o material didático produzido foi também utilizado e problematizado em aula, o que elevou o grau de interesse dos alunos pela disciplina. 4 – Satisfação do aluno A busca de alternativas para melhorar a aprendizagem dos alunos tem sido reconhecida pelos acadêmicos que sentem acolhidos nas suas diferenças, conforme destacam os depoimentos a seguir: “Gostaria de parabenizar a pessoa ou grupo que produziu o CD. Ele é muito útil e fácil de usar. Obrigado por sua dedicação ao nosso aprendizado” (Egon, 43). “Tenho grande dificuldade na interpretação matemática. O CD tem me ajudado muito com isto” (Tarcísio, turma 33). 5 – Desenvolvimento das competências propostas Complementando estes resultados, cabe referir que se encontra em andamento uma análise detalhada do desenvolvimento da aprendizagem dos alunos envolvidos a partir das avaliações realizadas no decorrer da disciplina. Estes instrumentos, comparados ao pré-teste realizado, buscam revelar o processo de aquisição das competências propostas, uma vez que a validação da pesquisa se efetiva, como anteriormente mencionado, sobretudo internamente, baseando-se na confrontação entre a análise a priori e a análise a posteriori. Considerações finais Ao encerrar este relato quero enfatizar, concordando com Gentili (1995), que ensinar alunos em dificuldades “requer uma mudança na maneira como o conteúdo é determinado e na pedagogia. Uma mudança em direção a um currículo mais negociado e a uma prática de sala de aula mais participativa pode ser vista como uma tendência geral e não apenas como uma iniciativa isolada” (p.27). Tenho observado que a questão pedagógica é considerada como tendo pouca importância no âmbito universitário. Ainda é forte entre os docentes do terceiro grau a compreensão de que, para realizar o ato pedagógico, basta dominar o conhecimento científico. Concordo com a afirmação de Micotti (1999), que a aplicação de propostas de inovação pedagógica compreende uma reviravolta do ensino e revisão de muitos mitos e preconceitos. Como é o aluno quem revela as dificuldades, via de regra, é apontado como o único responsável pelo fracasso do ensino. É preciso que estas crenças sejam problematizadas para que o ato pedagógico se realize não somente a partir do domínio do conhecimento científico como também do conhecimento daquele a quem se deseja transmitir o saber e das relações que neste espaço se estabelecem. É importante referir que o estudo em questão, centrado na produção de material em multimídia, busca contribuir também com a problematização dos processos de ensinar e aprender no terceiro grau, na medida em que propõe uma reorganização de tempos e espaços e o acolhimento do acadêmico, tratado e considerado a partir de suas individualidades e interesses. Referências Bibliográficas: ARTIGUE, Michèle (1995): “Ingeniería didáctica”. 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