DA EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA À GESTÃO DOS SABERES NO TRABALHO DOCENTE: CONVERGÊNCIAS E TENSÕES NAS PESQUISAS1 Jacques Therrien, UFC, CNPq Resumo: Os saberes da docência foram se constituindo, particularmente a partir da década de 1990, uma categoria de investigação agregadora de estudos que foram ampliando a compreensão dos elementos constituintes da competência ao saber ensinar. Partindo do lema „aprender a aprender‟ que expressa duas dimensões fundantes no campo da educação – aprender „o que‟ e aprender „como‟ -, este ensaio procede através de uma abordagem que tenta identificar diversas categorias de análise relacionadas ao fenômeno do ensino/aprendizagem. Tendo o paradigma da epistemologia da prática como categoria nucleadora da multiplicidade de elementos conceituais que compõem os referenciais de análise do acesso aos saberes, o estudo prossegue numa dinâmica risomática focalizando o docente, o sujeito aprendiz, os saberes da profissão, as relações e condicionantes da aprendizagem na sociedade contemporânea. Para tanto, tendo o acesso aos saberes como fio da meada e postulando que a relação ensino/ aprendizagem ocorre em contextos de intersubjetividade, afetando a identidade tanto do sujeito mediador como do aprendiz nas suas dimensões de individuação e socialização, a reflexão busca articular e conceituar a competência do trabalho do profissional de educação e a postura dialógica do encontro desses sujeitos distintos produzindo sentidos e significados para o entendimento de novos contornos de saberes. Reconhecendo que a concepção do ato de educar e dos modos de intervenção educativa repousa numa racionalidade constituída de conhecimentos, motivos e intencionalidades que condicionam a postura do mediador perante o aprendiz, delineia-se uma racionalidade conceituada como pedagógica e estruturante dos processos de formação e de educação integral aos saberes e conhecimentos da vida no mundo. Sob o prisma da didática, conceitua-se o trabalho docente como uma práxis de saberes entre sujeitos, centrada na produção de identidades pela construção de novos saberes, sentidos e significados na ação comunicativa em direção ao entendimento pela dialogicidade tendo por horizonte a emancipação e a auto-determinação fundada no ser social. Palavras-chave: Saberes da aprendizagem, racionalidade. docência, epistemologia da prática, intersubjetividade, “Aprender a aprender!” Um lema de tão repetido que perdeu seu impacto de significado. Este binômio refere a duas dimensões fundantes no campo da educação. Aprender „o que?‟, dizem os conteúdistas das áreas disciplinares específicas; aprender „como?‟, dizem os profissionais de pedagogia. Nesta interface se encontra a complexa relação entre os saberes múltiplos e heterogêneos da docência organizados teoricamente em tipologias e classificações diversas conforme a compreensão de autores de referência de um lado, e do outro as concepções de aprendizagem transformadas em práticas docentes. Uma relação inegável entre meios – a didática, e fins – o domínio de conhecimentos. As duas indagações identificadas (aprender o que e como?) vêm delineando um campo de estudos e pesquisas cada vez mais denso desde os anos ‟80, gerando uma diversidade de 1 Publicado In: DALBEN, A.; DINIZ, J.; SANTOS, L. (Org). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. XV ENDIPE. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p.307-323. 2 enfoques que aos poucos vêm contribuindo para uma melhor compreensão da complexidade de um paradigma, se considerar o movimento inacabado de abordagens centradas nesse núcleo que configura a relação teoria e prática: „aprender a aprender‟. Constitui-se um cenário que reúne dois sujeitos distintos, o educador e o aprendiz, que se encontram em torno de conteúdos de aprendizagem: saberes situados no mundo onde convivem. As reflexões a seguir buscam identificar alguns dos atuais contornos da temática em discussão. Sem pretender encontrar unidade na diversidade de olhares, abordagens, compreensões e fundamentações que constituem a riqueza das investigações, creio ser possível delinear algumas das tendências mais promissórias de novos avanços nesta área de pesquisa. Formulo um convite para entrarmos num campo minado pela dúvida sistemática, sujeita a clarões e trovoadas próprias das posturas de questionar as incertezas na busca de pontos de apoio. A única certeza que nos sustenta é a de confiar nas energias despendidas nas reflexões dos pesquisadores e educadores debruçados sobre esse tema as quais hão de produzir novas luzes não somente para a compreensão, mas também para maior efetivação do „aprender a aprender‟ num mundo ainda carente de educação. Reconheço os importantes avanços em relação ao „acesso ao saber‟ graças à ação dos educadores profissionais brasileiros. Compartilho minha convicção junto a esse impressionante contingente de professores e pesquisadores presentes no XV ENDIPE que esse evento científico, assim como outros de entidades congêneres da área da educação, apresenta uma trajetória de inegáveis contribuições à história mais recente da educação no Brasil. Apoiado no meu olhar que remonta ao início dos anos ‟80, época em que grandes programas de educação pública começaram a desvelar o trabalho e os saberes das „professoras leigas‟ com formação apenas nas séries iniciais do atual ensino fundamental, trabalhando em contextos de escolas improvisadas, particularmente nas regiões norte, nordeste e centro-oeste, entendo que importantes referenciais de formação de professores e de compreensão dos processos de ensino-aprendizagem foram desenvolvidos. Se nos contextos urbanos destacadas teorias educacionais com suporte em referenciais internacionais foram integradas à realidade brasileira, não podemos esquecer que nos contextos da educação rural, dos movimentos sociais e da educação popular contribuições inegáveis firmaram o papel dos saberes construídos nos processos do trabalho cotidiano de produção material, política e pedagógica, reconhecidos como saberes experienciais fundantes da ação docente e dos processos de aprendizagem docente e discente. Nestes 30 anos de referências, as questões relativas aos saberes da docência e às mudanças nas instituições escolares permitem contabilizar a consolidação de um pensamento educacional brasileiro em marcha. Da epistemologia da prática à gestão dos saberes no ensino - o encontro da academia com o chão da escola O início dos anos ‟80 marcou um indiscutível momento de tentativa de ruptura da reconhecida tensão entre o saber da academia e a prática cotidiana de ensino-aprendizagem na escola. Várias universidades efetuaram reformas curriculares nos seus cursos de formação de professores dando mais ênfase à prática do ensino e à gestão da escola. As propostas inovadoras da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional do ano de 1996, contudo, tomaram um corpo oficial somente a partir do ano de 2001 com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica onde o paradigma da „epistemologia da prática‟, 3 expresso na obrigatoriedade da prática desde o início dos cursos, é reconhecido como fundante da competência para o ensino, devendo ser traduzido em medidas reais no chão da sala de aula por meio dos Projetos Pedagógicos dos cursos de formação de professores. Torna-se oficial o referencial da epistemologia da prática docente, paradigma central para a conciliação da dicotomia teoria e prática, academia e escola que de alguma forma foi denunciada desde autores de referencia como Dewey (1938) e posteriormente Schon (1983), entre outros. Aos poucos começou a se proliferar no campo da educação importante produção científica nacional e internacional em parte referendada em abordagens inspiradas na teoria crítica, destacando-se pesquisadores preocupados com tipologias e classificação dos saberes da docência cuja produção contribuiu para a compreensão do complexo fenômeno dos múltiplos e heterogêneos saberes da prática docente; destacam-se entre outros, Nóvoa, Tardif, Pimenta, Shulman, Giroux, Libâneo, Lüdke e Zeichner, entre outros. A compreensão das implicações desse paradigma e sua implementação, contudo, parecem ser ainda mais recentes. O movimento de renovação dos processos de formação docente cresce marcado desde seu início pela distinção e fragmentação dos diversos e complexos elementos constituintes da formação aos saberes da docência. Para muitos, a competência para ensinar se restringe ao domínio dos saberes disciplinares e curriculares. Essa dimensão da docência não apresenta a necessária integração dialética com os saberes dos processos de aprendizagem no ensino. Situar a epistemologia da prática como referência inicial e fundante ao abordar as „Convergências e tensões nas pesquisas sobre saberes docentes‟ significa considerar esta como paradigma em torno do qual gravitam outras categorias constituintes. Ao reconhecer o trabalho docente como uma intervenção mediadora de ensino junto a sujeitos aprendizes, postula-se uma prática profissional articuladora de saberes e conhecimentos. A constituição e a articulação desses conhecimentos, ou seja, os fundamentos que legitimam essa intervenção têm uma base epistemológica definida. Como se articula a racionalidade que dá suporte a preceitos teóricos que validam a prática docente como produtora de saber, sentidos e significados? A apreensão do paradigma da epistemologia da prática passa por diversos ângulos, podendo ser entendida como a racionalidade construída nas interações com os fatos e os modos como o sujeito, pelo uso de diferentes formas de raciocínio (dedução, indução, analogias, abdução) orienta suas ações (CARVALHO e THERRIEN, 2009). Enunciar que a racionalidade que move o trabalho do educador tem a sua concepção fundante na epistemologia da prática nos permite qualificar esta como racionalidade pedagógica. A epistemologia da prática se situa no confluente do repertório de saberes que integram a identidade do profissional de educação e o contexto social de suas intervenções. Esse paradigma reconhece que os referenciais teóricos e metodológicos das ciências da educação e dos campos disciplinares, no chão da sala de aula, passam pelo crivo de uma prática situada voltada para gerar sentidos e significados nos sujeitos aprendizes. É uma prática de saberes “utilizados realmente pelos profissionais da educação em seu espaço cotidiano de trabalho para desempenhar todas as suas tarefas” Tardif (2002, p.254). Sacristán (1999, p.25) corrobora essa percepção quando entende que “o domínio da teoria não pode ser desligado das práticas sociais”. A abordagem da epistemologia da prática permite revelar os saberes que fundamentam as intervenções dos docentes, conhecer sua natureza, compreender como estão integrados 4 efetivamente nas tarefas dos profissionais e como são incorporados nas suas atividades e na sua própria identidade. O entendimento da cognição situada enquanto saber oriundo, mobilizado e reconstruído nas práticas docentes constitui o repertório de saberes em ação desse profissional como referencial que justifica, legitima e fundamenta sua práxis. As abordagens da epistemologia da prática, para Pimenta (2002, p. 50), geram novas perspectivas de ensino. Ao autenticar e validar os saberes do seu trabalho, o docente contribui à constituição da profissionalização do ensino, legitimando os conhecimentos e saberes de uma prática profissional, categoria esta geradora de debates profícuos e de produção científica significativa. Prosseguindo no desafio de identificar categorias emergentes nos contornos dos saberes da docência, o paradigma da epistemologia da prática propiciou desvelar a importância das abordagens que focalizam a cognição situada ou a ação situada como geradoras de saberes. Os aportes da antropologia e da sociologia cognitiva bem como da psicologia cognitiva proporcionaram um suporte privilegiado para a análise e a compreensão do curso da ação docente, desvelando saberes, intencionalidades, motivações e sentidos expressos nas argumentações dos educadores em ação, elementos captados pelas lentes da etnometodologia e da ergonomia do trabalho, sem excluir os aportes dos estudos sobre as representações sociais no campo da educação. Ação e cognição situada indicam o que Lave (1991) sintetizou: a aquisição de saberes, o pensamento e o conhecimento são relações entre as pessoas engajadas em uma atividade no e com um mundo social e culturalmente estruturado. Os estudos sobre o curso da ação docente permitem compreender como a ação situada se transforma em cognição situada quando ela se propõe a tornar explícito os suportes informacionais que sustentam a ação no seu ambiente imediato. A cognição é considerada como a serviço da ação, bem como a ação refletida é produtora de cognição (LOIOLA e THERRIEN, 2001, p.158). A dinâmica de um rizoma O empreendimento de discorrer sobre os saberes da docência encontrou como ponto de partida a compreensão da epistemologia da prática docente que suscitou de imediato o conceito de ação/cognição situada na base do trabalho do profissional de educação. Outras categorias brotam junto ao movimento de reflexão que busca desvendar a complexidade e a riqueza do paradigma em foco. Não há, contudo, aparente ordem de prevalência no desvelamento dos elementos constituintes da epistemologia da prática dos saberes da docência, restando a figura de um rizoma para ilustrar as múltiplas articulações entre as diversas categorias constituintes desse paradigma estruturado em torno dos fins dos „saberes do ensino e da aprendizagem‟: o letramento para a leitura e a escrita do mundo. Sem adentrar no atual debate da profissionalização docente e do profissionalismo no campo da educação, há de se reconhecer que o educador funda seu trabalho em uma dupla competência objeto de sua formação: competência num determinado campo disciplinar e competência no campo pedagógico - o saber dos conteúdos e o saber ensinar. São conhecimentos múltiplos e heterogêneos moldados pela dinâmica da relação dialética do saber e do fazer, da teoria e da prática que na ecologia da sala de aula são confrontados com a complexidade da vida na sociedade contemporânea. 5 A competência do saber ensinar, contudo, se situa além do domínio dos conteúdos de um campo específico de conhecimento: requer a transformação pedagógica dos conteúdos a ensinar considerando a dinâmica da relação de mediação entre o docente e o aprendiz. A mediação pedagógica aponta para sujeitos em interação de comunicação que permite transformar os conteúdos para torná-los acessíveis aos aprendizes. A relação intersubjetiva entre docente e aluno se manifesta através da linguagem como ação comunicativa e dialógica tendo por objeto aprendizagens significativas produtoras de sentidos e significados, ou seja, de novos contornos de saberes para o aprendiz; revela-se o docente como sujeito hermenêutico e epistêmico, dimensões inerentes à reflexividade do sujeito em ação. A postura de mediação do profissional de educação é eminentemente intersubjetiva, afetando indiscutivelmente a identidade dos sujeitos aprendizes. Dado o reconhecimento que a educação constitui uma ação social fundamental, as relações intersubjetivas dessa práxis profissional são reguladas pela ética. Essa dimensão de ação do sujeito mediador revela ao mesmo tempo sua responsabilidade social e a importância humana do seu trabalho. Nesta compreensão as intervenções educacionais encobrem teor político-ideológico suscetível de afetar a identidade e as concepções de vida dos sujeitos aprendizes. A ética é uma dimensão fundante da prática docente, muitas vezes ficando infelizmente encoberta por racionalizações ditas objetivas que falsamente negam o caráter subjetivo do ato de educar. A dinâmica intersubjetiva que organiza e estrutura os saberes na ação comunicativa de mediação é movida por uma racionalidade de encontro de sujeitos. É imperativo reconhecer que os processos de ensino aprendizagem são condicionados pela postura de dialogicidade entre sujeitos. Os contextos intersubjetivos do trabalho educativo, fortemente caracterizado pela ação comunicativa da linguagem e do letramento, postulam „encontros‟ permanentes de sujeitos dispostos à percepção dos múltiplos significados contidos na leitura das mensagens contidas nos contextos de ensino o que implica igualmente a escuta do „outro‟. Os ruídos tão presentes nos processos de comunicação geram permanentes tentativas para entender os pontos de vista do „outro‟, tanto do aluno em relação ao professor como este em relação ao aluno. As categorias de comunicação, linguagem, dialogicidade apresentam conceituações que se completam quando referem a encontro de sujeitos em contexto de educação, tornando-se condicionantes da aprendizagem aos saberes. Intencionalidades diversas, contudo caracterizam os sujeitos mediadores em relação aos fins e modos de educar. Numa dimensão macro, educar pode implicar em consolidar as dimensões dominantes que movem a sociedade contemporânea ou, ao contrário, questionar e refletir criticamente sobre seus rumos; são concepções distintas que podem afetar radicalmente os processos de formação integral de cidadão. Numa dimensão micro, o cotidiano escolar revela, por sua vez, a complexidade do fenômeno da educação o que dificulta uma definição conceitual concisa deste, sem inviabilizar, contudo, a formulação de uma direção desejada para essa intervenção. Em síntese, podemos conceituar educar como o processo de construção e de re-construção criativa de si e do mundo social onde convivemos. Nessa compreensão o processo educativo aponta para transformações de um sujeito convivendo com outros sujeitos situados no mundo, tendo a intersubjetividade como condicionante desse encontro. Esse olhar aponta para uma concepção de educação como constituição de sujeitos, portanto de desenvolvimento de identidades de sujeitos e de sociedade 6 o que remete a processos de socialização e de individuação. É neste enfoque que reside o desafio profissional de produzir aprendizagem aos saberes! Atribuir ao educador a incumbência profissional de produzir aprendizagem que moldam a identidade de sujeitos nos remete aos limites da autonomia que a ética profissional regula, como referendado anteriormente. Da mesma forma, permite melhor compreensão da postura de sujeito mediador nos processos de aprendizagem à vida no mundo profissional e cidadão. Essas considerações remetem a outras breves considerações sobre a natureza da relação intersubjetiva e o significado de ser mediador de aprendizagem aos saberes em processos de encontros dialógicos. A ação comunicativa e a ação instrumental tão presentes nos processos educacionais tem em Jürgen Habermas como também em Paulo Freire, para citar apenas esses dois autores de expressão reconhecida, um importante referencial para a análise do trabalho desenvolvido pelo profissional de educação em ambientes de dialogo, de encontros, de busca de entendimentos e de consensos onde o acesso ao saber se torna construção de sentidos e significados. A intersubjetividade dialógica é essencial em contextos de aprendizagem entre sujeitos. Confrontam-se repertórios distintos de saberes e conhecimento em torno de „conteúdos/matérias‟ de ensino situados no mundo da vida do ‟outro‟ sujeito, como expõe o multiculturalismo por exemplo. Casagrande (2008), num estudo sobre a ação comunicativa e a aprendizagem na organização e estruturação da práxis pedagógica, encontra também respaldo em Habermas (2002) para afirmar que a compreensão da relação entre ação comunicativa e aprendizagem “pressupõe um entendimento de fundo acerca de como se constituem os sujeitos e a própria sociedade” (CASAGRANDE 2008, p.15). A compreensão da natureza da relação intersubjetiva como mediação na formação da identidade passa pela percepção dos elementos e mecanismos que afetam a constituição do sujeito aprendiz na sociedade e conseqüentemente no contexto de intervenções educacionais. É reconhecido o princípio humanista que a identidade do ser humano, do sujeito, resulta da tensão dialética entre a individuação e a socialização, ou seja, que o ser humano é ao mesmo tempo individual e coletivo - sujeito social único. O acesso ao saber ocorre na convivência com os „outros‟ sujeitos: pais, professores, família, amigos, a vida, numa palavra, na experiência prática do cotidiano. O mesmo ocorre nos processos intencionais de interação e intersubjetividade próprios da escola onde convivem sujeitos que produzem sentidos e significados, para referendar uma compreensão vigotzskiana. Esses encontros consolidam o desenvolvimento do ‘eu’, indivíduo único, sujeito diferente de qualquer outro e ao mesmo tempo o ‘nós’, o sujeito coletivo, participante de um determinado grupo integrante do „eu‟. O conhecimento, na perspectiva habermesiana referendada por Boufleuer (2008), integra a dimensão subjetiva do aprendiz, seu modo próprio de ser no mundo, com outra dimensão mais objetiva proveniente da tradição cultural presente na coletividade humana e expressa nos conteúdos culturais e curriculares vistos como “confluências de percepções”. Ao associar aprendizagem aos saberes como produção de sentidos e de significados, Boufleuer (2008) ressalta: “percepção e sentido é algo que não se passa, não se troca, pois sempre possuem uma ancoragem no sujeito que os detêm, os construiu. Já o horizonte ou a 7 confluência é o espaço em que nos aproximamos - o que Vigotzski tem chamado de significado em oposição ao sentido”. Essa compreensão expressa o entendimento do movimento intersubjetivo de produção de aprendizagem aos saberes nos processos de mediação. São espaços e tempos de „individuação‟ e de „socialização‟ que vão constituindo a identidade de cada um. O „outro‟ é necessário para a descoberta do „eu‟ na dialética dos confrontos. Com o outro „dialogamos‟, mesmo nos embates e recusas; sem o outro, permanecemos no monólogo do eu consigo mesmo, no perigoso círculo vicioso de repetir os mesmos saberes de sempre! Nessa encruzilhada reside o princípio da reflexividade crítica do educador: do sujeito que confronta seus saberes e concepções pela ação comunicativa de objetivação e subjetivação, sincera e honesta, com disposição para novas percepções e compreensões de saberes. No oposto reside o monólogo normativo, fechado e repetitivo que não transforma. A ação comunicativa, indiscutivelmente presente nos processos educacionais como já referendado anteriormente, torna-se fator de referência para a gestão dos espaços de aprendizagem como ambientes de dialogo e de encontro de sujeitos reunidos pela busca de entendimentos em torno dos conteúdos de estudo num movimento de construção de consensos geradores de sentidos e significados, ou seja, de novas configurações de saberes e conhecimentos. A intersubjetividade dialógica é essencial à abertura aos saberes e às concepções do „outro‟ e, portanto para a aprendizagem tanto de „conteúdos/matérias‟ de ensino como de saberes do convívio cotidiano. Esse espaço de escolarização é expressão do princípio de aprendizagem contínua para o professor e da cognição situada para o aluno. Essa concepção não admite nos contextos escolares uma prática docente de mero „instrutor‟ responsável pelo repasse objetivo, normativo e instrumental dos conhecimentos produzidos pela humanidade e socialmente reconhecidos, postos à disposição da consciência e da inteligência do aprendiz. A postura de mediação aos saberes projeta o docente para a função de „formador‟ de sujeitos situados no mundo da vida onde hão de descobrir os múltiplos saberes e significados que regem a vida da sociedade. Constitui-se o princípio de formação e educação integral, essencial em qualquer contexto educativo (THERRIEN, J. e NÓBREGA-THERRIEN, S.M., 2009). Gestão dos saberes: a racionalidade que os articula Resta ainda abordar a racionalidade pedagógica articuladora dessa compreensão de acesso aos saberes. No seu estudo sobre “Poderes instáveis em educação” Sacristán (1999, p.17) formula uma indagação fundamental: „o que move a ação educativa?‟ O autor procede então a uma argumentação desvelando como os sujeitos que atuam na sociedade contemporânea articulam seus saberes, ou seja, „a racionalidade possível na pos-modernidade‟. Na mesma direção, em trabalho anterior, Prestes (1996, p.11) afirmava: “A denominada crise na educação não é mais nem menos que a crise da modernidade e da racionalidade, das quais a educação se apresenta como filha promissora”. Ao trazer essas referências pretendemos expor fatores subjacentes à prática educativa do professor na sua interação com o educando aprendiz no contexto da racionalidade dominante na sociedade contemporânea. Procura-se desvelar alguns dos princípios que constituem a essência 8 dos conhecimentos e dos saberes hegemônicos que direcionam e regulam as aprendizagens à vida no mundo. Racionalidade, simplificando a abrangência do termo, refere ao modo como cada sujeito, grupo, ou comunidade articula seus saberes e conhecimentos para a compreensão de um fenômeno, do mundo, da vida ou para justificar o seu modo de agir, seus objetivos e meios para alcançá-los. Encontra-se nas análises da teoria crítica oriunda da Escola de Frankfurt expressivo referencial para a compreensão da racionalidade dominante que move a pós-modernidade onde se situa a ação educativa: a racionalidade da ação instrumental contraposta à racionalidade da ação comunicativa (HABERMAS, 2002). Enquanto a primeira exalta o poder da razão objetiva ou cognitivo-instrumental do mundo sistêmico que manipula o sujeito para fins de controle, a razão comunicativa promove encontros intersubjetivos de socialização no horizonte de uma emancipação de sujeitos. Reconheço na racionalidade que articula os saberes que movem o mundo contemporâneo certo predomínio de valores individuais da consciência subjetiva e autosuficiente em detrimento a dimensões interativas de sujeitos que se auto-completam socialmente, construindo seu modo de ser na comunidade humana. Ressalto a importância da ética profissional nas nossas instituições e práticas educacionais de formação aos saberes da vida cidadã. Nestas, o mundo da ciência e da tecnologia predominantemente fundado na razão objetiva e instrumental que manipula objetos não reconhece facilmente outras dimensões de Ciência inspirada na razão comunicativa entre sujeitos (THERRIEN, 2006). Estas breves observações fazem surgir indagações a respeito da racionalidade que articula os saberes e conhecimentos que fundam nossas argumentações e justificativas sobre o sentido de „educar‟ e o sentido do „outro‟, aprendiz na relação de ensino. Até que ponto, no cotidiano das práticas de ensino, as concepções de processos de aprendizagem, ou seja, de acesso aos saberes contemplam processos de formação integral de sujeitos? Como vislumbrar uma postura docente tencionada pela aprendizagem do aluno visto como sujeito situado em processo de emancipação social? Que racionalidade pode dar sustentação a uma compreensão de ensino/aprendizagem que favorece o encontro de sujeitos e a construção de sentidos, significados e saberes em contexto de formação integral? Ao formular tais inquietações pretende-se destacar uma categoria a meu ver ainda pouco abordada no campo da educação. Os recursos da linguagem, base da ação comunicativa que viabilizam relações intersubjetivas de aprendizagem, se materializam no dialogo entre sujeitos revelando diversos e possíveis modos de compreender tanto os conteúdos de ensino como a vida no mundo e sua organização. Os argumentos e as justificativas em confronto podem ser moldados por uma racionalidade comunicativa, situada, cultural, histórica e científica, atenta às múltiplas vozes e faces da humanidade contemporânea. O contexto escolar é propício a uma racionalidade diferenciada com potencial de gerar sentidos e significados em direção a novas configurações de saberes. Conceitua-se esta como uma racionalidade pedagógica fundante da práxis educativa. Ao abordar a epistemologia da prática no início desse estudo, postulou-se uma racionalidade necessária a essa concepção. Vista como última categoria abordada nessa reflexão construída numa estrutura rizomática, convém agora explicitar sua relação com outras categorias já discutidas. 9 A transformação pedagógica dos conteúdos de aprendizagem na relação intersubjetiva que visa gerar sentidos e significados requer uma racionalidade aberta aos argumentos e pontos de vista diferenciados de sujeitos situados. O movimento da ação comunicativa de construção de entendimento no diálogo pedagógico é produtor de consensos que vão constituindo a sociabilidade. Ele procede por uma racionalidade que integra uma gama de fatores diversos que incluem desde hábitos e elementos afetivos até elementos da razão instrumental/normativa. Esse movimento gera „possibilidades‟ de reflexão conjunta acerca dos diversos pontos de vista e sentidos relativos aos conteúdos de aprendizagem. Retornando a reflexões anteriores desenvolvidas neste estudo, pode-se afirmar que a competência docente do „saber ensinar‟ é instituída por essa racionalidade percebida como pedagógica. Uma compreensão interdisciplinar O „eu‟ do aprendiz necessita do encontro do „outro‟ mediador para se conhecer, se autodeterminar, se emancipar como sujeito com dimensões de individuação e de socialização. Esse é o caminho do acesso ao saber discente e docente, do „aprender a aprender‟ fundado na epistemologia da prática. Considerações finais A complexidade do mundo contemporâneo se reflete na práxis dialógica viabilizando a interdisciplinaridade, a multireferencialidade e a interculturalidade como formulações científicas de verdades e sentidos em constante re-elaboração. O confronto de múltiplos saberes e olhares sobre o real é condição de construção de novas compreensões do currículo e da vida do mundo, desafio para a prática do professor, sujeito epistêmico. A intersubjetividade do diálogo gerador de aprendizagem do aluno tem igual impacto sobre o próprio mediador cuja identidade não fica imune ao processo no qual se envolve. A dinâmica de geração de saberes, de sentidos e de significados que propicia a racionalidade pedagógica em contextos de encontro de sujeitos constitui momentos e espaços de reflexividade crítica e transformadora, enfim, de formação contínua e de reconstituição dos saberes de experiência do mediador. Este vivencia assim os processos de socialização e de emancipação profissional e humana, conceituados por Adorno (2003) como auto-determinação do sujeito. A abordagem da identidade como construção intersubjetiva (MARTINAZZO, 2005) exige a competência comunicativa e a racionalidade pedagógica ou dialógica que a molda. Finalizando, reafirma-se que em contraste com a racionalidade dialógica, expressão de uma reflexividade que acolhe a individuação e a socialização, a reflexividade monológica permanece na consciência subjetiva da individuação. Essa postura nega e destrói o sujeito social por ignorar o necessário confronto de sentidos e de significados no diálogo de sujeitos e a dinâmica de entendimentos e de consensos geradores de novos saberes. Essa compreensão aparentemente diferenciada do trabalho do educador tem antecedentes conhecidos: uma racionalidade que „permite‟ a leitura e a escrita do mundo junto a outros sujeitos, diria Paulo Freire (2005); a isso Habermas (2002) acrescentaria uma racionalidade ampla que supõe e viabiliza a comunicação como modo de reconhecer e tentar compreender as múltiplas racionalidades que imperam nas famílias, nas escolas, na sociedade, no mundo contemporâneo onde se aprende a aprender.. 10 Em síntese, sob o prisma da didática o trabalho docente se constitui uma práxis de saberes entre sujeitos, centrada na produção de identidades pela construção de novos saberes, sentidos e significados na ação comunicativa em direção ao entendimento pela dialogicidade tendo por horizonte a emancipação e a auto-determinação fundada no ser social. Referências bibliográficas ADORNO, T. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. BOUFLEUER, J. P. Correspondência. Texto inédito. UNIJUI. 2008. 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