DA EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA À GESTÃO DOS SABERES NO TRABALHO
DOCENTE: CONVERGÊNCIAS E TENSÕES NAS PESQUISAS1
Jacques Therrien, UFC, CNPq
Resumo: Os saberes da docência foram se constituindo, particularmente a partir da
década de 1990, uma categoria de investigação agregadora de estudos que foram ampliando a
compreensão dos elementos constituintes da competência ao saber ensinar. Partindo do lema
„aprender a aprender‟ que expressa duas dimensões fundantes no campo da educação – aprender
„o que‟ e aprender „como‟ -, este ensaio procede através de uma abordagem que tenta identificar
diversas categorias de análise relacionadas ao fenômeno do ensino/aprendizagem. Tendo o
paradigma da epistemologia da prática como categoria nucleadora da multiplicidade de
elementos conceituais que compõem os referenciais de análise do acesso aos saberes, o estudo
prossegue numa dinâmica risomática focalizando o docente, o sujeito aprendiz, os saberes da
profissão, as relações e condicionantes da aprendizagem na sociedade contemporânea. Para
tanto, tendo o acesso aos saberes como fio da meada e postulando que a relação ensino/
aprendizagem ocorre em contextos de intersubjetividade, afetando a identidade tanto do sujeito
mediador como do aprendiz nas suas dimensões de individuação e socialização, a reflexão busca
articular e conceituar a competência do trabalho do profissional de educação e a postura
dialógica do encontro desses sujeitos distintos produzindo sentidos e significados para o
entendimento de novos contornos de saberes. Reconhecendo que a concepção do ato de educar e
dos modos de intervenção educativa repousa numa racionalidade constituída de conhecimentos,
motivos e intencionalidades que condicionam a postura do mediador perante o aprendiz,
delineia-se uma racionalidade conceituada como pedagógica e estruturante dos processos de
formação e de educação integral aos saberes e conhecimentos da vida no mundo. Sob o prisma
da didática, conceitua-se o trabalho docente como uma práxis de saberes entre sujeitos, centrada
na produção de identidades pela construção de novos saberes, sentidos e significados na ação
comunicativa em direção ao entendimento pela dialogicidade tendo por horizonte a
emancipação e a auto-determinação fundada no ser social.
Palavras-chave: Saberes da
aprendizagem, racionalidade.
docência,
epistemologia
da
prática,
intersubjetividade,
“Aprender a aprender!” Um lema de tão repetido que perdeu seu impacto de significado.
Este binômio refere a duas dimensões fundantes no campo da educação. Aprender „o que?‟,
dizem os conteúdistas das áreas disciplinares específicas; aprender „como?‟, dizem os
profissionais de pedagogia. Nesta interface se encontra a complexa relação entre os saberes
múltiplos e heterogêneos da docência organizados teoricamente em tipologias e classificações
diversas conforme a compreensão de autores de referência de um lado, e do outro as concepções
de aprendizagem transformadas em práticas docentes. Uma relação inegável entre meios – a
didática, e fins – o domínio de conhecimentos.
As duas indagações identificadas (aprender o que e como?) vêm delineando um campo
de estudos e pesquisas cada vez mais denso desde os anos ‟80, gerando uma diversidade de
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Publicado In: DALBEN, A.; DINIZ, J.; SANTOS, L. (Org). Convergências e tensões no campo da
formação e do trabalho docente. XV ENDIPE. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p.307-323.
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enfoques que aos poucos vêm contribuindo para uma melhor compreensão da complexidade de
um paradigma, se considerar o movimento inacabado de abordagens centradas nesse núcleo que
configura a relação teoria e prática: „aprender a aprender‟. Constitui-se um cenário que reúne
dois sujeitos distintos, o educador e o aprendiz, que se encontram em torno de conteúdos de
aprendizagem: saberes situados no mundo onde convivem.
As reflexões a seguir buscam identificar alguns dos atuais contornos da temática em
discussão. Sem pretender encontrar unidade na diversidade de olhares, abordagens,
compreensões e fundamentações que constituem a riqueza das investigações, creio ser possível
delinear algumas das tendências mais promissórias de novos avanços nesta área de pesquisa.
Formulo um convite para entrarmos num campo minado pela dúvida sistemática, sujeita a
clarões e trovoadas próprias das posturas de questionar as incertezas na busca de pontos de
apoio. A única certeza que nos sustenta é a de confiar nas energias despendidas nas reflexões
dos pesquisadores e educadores debruçados sobre esse tema as quais hão de produzir novas
luzes não somente para a compreensão, mas também para maior efetivação do „aprender a
aprender‟ num mundo ainda carente de educação.
Reconheço os importantes avanços em relação ao „acesso ao saber‟ graças à ação dos
educadores profissionais brasileiros. Compartilho minha convicção junto a esse impressionante
contingente de professores e pesquisadores presentes no XV ENDIPE que esse evento
científico, assim como outros de entidades congêneres da área da educação, apresenta uma
trajetória de inegáveis contribuições à história mais recente da educação no Brasil.
Apoiado no meu olhar que remonta ao início dos anos ‟80, época em que grandes
programas de educação pública começaram a desvelar o trabalho e os saberes das „professoras
leigas‟ com formação apenas nas séries iniciais do atual ensino fundamental, trabalhando em
contextos de escolas improvisadas, particularmente nas regiões norte, nordeste e centro-oeste,
entendo que importantes referenciais de formação de professores e de compreensão dos
processos de ensino-aprendizagem foram desenvolvidos. Se nos contextos urbanos destacadas
teorias educacionais com suporte em referenciais internacionais foram integradas à realidade
brasileira, não podemos esquecer que nos contextos da educação rural, dos movimentos sociais
e da educação popular contribuições inegáveis firmaram o papel dos saberes construídos nos
processos do trabalho cotidiano de produção material, política e pedagógica, reconhecidos como
saberes experienciais fundantes da ação docente e dos processos de aprendizagem docente e
discente. Nestes 30 anos de referências, as questões relativas aos saberes da docência e às
mudanças nas instituições escolares permitem contabilizar a consolidação de um pensamento
educacional brasileiro em marcha.
Da epistemologia da prática à gestão dos saberes no ensino - o encontro da academia com
o chão da escola
O início dos anos ‟80 marcou um indiscutível momento de tentativa de ruptura da
reconhecida tensão entre o saber da academia e a prática cotidiana de ensino-aprendizagem na
escola. Várias universidades efetuaram reformas curriculares nos seus cursos de formação de
professores dando mais ênfase à prática do ensino e à gestão da escola. As propostas inovadoras
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional do ano de 1996, contudo, tomaram um corpo
oficial somente a partir do ano de 2001 com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Formação de Professores da Educação Básica onde o paradigma da „epistemologia da prática‟,
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expresso na obrigatoriedade da prática desde o início dos cursos, é reconhecido como fundante
da competência para o ensino, devendo ser traduzido em medidas reais no chão da sala de aula
por meio dos Projetos Pedagógicos dos cursos de formação de professores.
Torna-se oficial o referencial da epistemologia da prática docente, paradigma central
para a conciliação da dicotomia teoria e prática, academia e escola que de alguma forma foi
denunciada desde autores de referencia como Dewey (1938) e posteriormente Schon (1983),
entre outros. Aos poucos começou a se proliferar no campo da educação importante produção
científica nacional e internacional em parte referendada em abordagens inspiradas na teoria
crítica, destacando-se pesquisadores preocupados com tipologias e classificação dos saberes da
docência cuja produção contribuiu para a compreensão do complexo fenômeno dos múltiplos e
heterogêneos saberes da prática docente; destacam-se entre outros, Nóvoa, Tardif, Pimenta,
Shulman, Giroux, Libâneo, Lüdke e Zeichner, entre outros. A compreensão das implicações
desse paradigma e sua implementação, contudo, parecem ser ainda mais recentes.
O movimento de renovação dos processos de formação docente cresce marcado desde
seu início pela distinção e fragmentação dos diversos e complexos elementos constituintes da
formação aos saberes da docência. Para muitos, a competência para ensinar se restringe ao
domínio dos saberes disciplinares e curriculares. Essa dimensão da docência não apresenta a
necessária integração dialética com os saberes dos processos de aprendizagem no ensino.
Situar a epistemologia da prática como referência inicial e fundante ao abordar as
„Convergências e tensões nas pesquisas sobre saberes docentes‟ significa considerar esta como
paradigma em torno do qual gravitam outras categorias constituintes. Ao reconhecer o trabalho
docente como uma intervenção mediadora de ensino junto a sujeitos aprendizes, postula-se uma
prática profissional articuladora de saberes e conhecimentos. A constituição e a articulação
desses conhecimentos, ou seja, os fundamentos que legitimam essa intervenção têm uma base
epistemológica definida. Como se articula a racionalidade que dá suporte a preceitos teóricos
que validam a prática docente como produtora de saber, sentidos e significados? A apreensão do
paradigma da epistemologia da prática passa por diversos ângulos, podendo ser entendida como
a racionalidade construída nas interações com os fatos e os modos como o sujeito, pelo uso de
diferentes formas de raciocínio (dedução, indução, analogias, abdução) orienta suas ações
(CARVALHO e THERRIEN, 2009).
Enunciar que a racionalidade que move o trabalho do educador tem a sua concepção
fundante na epistemologia da prática nos permite qualificar esta como racionalidade
pedagógica. A epistemologia da prática se situa no confluente do repertório de saberes que
integram a identidade do profissional de educação e o contexto social de suas intervenções. Esse
paradigma reconhece que os referenciais teóricos e metodológicos das ciências da educação e
dos campos disciplinares, no chão da sala de aula, passam pelo crivo de uma prática situada
voltada para gerar sentidos e significados nos sujeitos aprendizes. É uma prática de saberes
“utilizados realmente pelos profissionais da educação em seu espaço cotidiano de trabalho para
desempenhar todas as suas tarefas” Tardif (2002, p.254). Sacristán (1999, p.25) corrobora essa
percepção quando entende que “o domínio da teoria não pode ser desligado das práticas
sociais”.
A abordagem da epistemologia da prática permite revelar os saberes que fundamentam
as intervenções dos docentes, conhecer sua natureza, compreender como estão integrados
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efetivamente nas tarefas dos profissionais e como são incorporados nas suas atividades e na sua
própria identidade.
O entendimento da cognição situada enquanto saber oriundo, mobilizado e reconstruído
nas práticas docentes constitui o repertório de saberes em ação desse profissional como
referencial que justifica, legitima e fundamenta sua práxis. As abordagens da epistemologia da
prática, para Pimenta (2002, p. 50), geram novas perspectivas de ensino. Ao autenticar e validar
os saberes do seu trabalho, o docente contribui à constituição da profissionalização do ensino,
legitimando os conhecimentos e saberes de uma prática profissional, categoria esta geradora de
debates profícuos e de produção científica significativa.
Prosseguindo no desafio de identificar categorias emergentes nos contornos dos saberes
da docência, o paradigma da epistemologia da prática propiciou desvelar a importância das
abordagens que focalizam a cognição situada ou a ação situada como geradoras de saberes. Os
aportes da antropologia e da sociologia cognitiva bem como da psicologia cognitiva
proporcionaram um suporte privilegiado para a análise e a compreensão do curso da ação
docente, desvelando saberes, intencionalidades, motivações e sentidos expressos nas
argumentações dos educadores em ação, elementos captados pelas lentes da etnometodologia e
da ergonomia do trabalho, sem excluir os aportes dos estudos sobre as representações sociais no
campo da educação.
Ação e cognição situada indicam o que Lave (1991) sintetizou: a aquisição de saberes, o
pensamento e o conhecimento são relações entre as pessoas engajadas em uma atividade no e
com um mundo social e culturalmente estruturado. Os estudos sobre o curso da ação docente
permitem compreender como a ação situada se transforma em cognição situada quando ela se
propõe a tornar explícito os suportes informacionais que sustentam a ação no seu ambiente
imediato. A cognição é considerada como a serviço da ação, bem como a ação refletida é
produtora de cognição (LOIOLA e THERRIEN, 2001, p.158).
A dinâmica de um rizoma
O empreendimento de discorrer sobre os saberes da docência encontrou como ponto de
partida a compreensão da epistemologia da prática docente que suscitou de imediato o conceito
de ação/cognição situada na base do trabalho do profissional de educação. Outras categorias
brotam junto ao movimento de reflexão que busca desvendar a complexidade e a riqueza do
paradigma em foco. Não há, contudo, aparente ordem de prevalência no desvelamento dos
elementos constituintes da epistemologia da prática dos saberes da docência, restando a figura
de um rizoma para ilustrar as múltiplas articulações entre as diversas categorias constituintes
desse paradigma estruturado em torno dos fins dos „saberes do ensino e da aprendizagem‟: o
letramento para a leitura e a escrita do mundo.
Sem adentrar no atual debate da profissionalização docente e do profissionalismo no
campo da educação, há de se reconhecer que o educador funda seu trabalho em uma dupla
competência objeto de sua formação: competência num determinado campo disciplinar e
competência no campo pedagógico - o saber dos conteúdos e o saber ensinar. São
conhecimentos múltiplos e heterogêneos moldados pela dinâmica da relação dialética do saber e
do fazer, da teoria e da prática que na ecologia da sala de aula são confrontados com a
complexidade da vida na sociedade contemporânea.
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A competência do saber ensinar, contudo, se situa além do domínio dos conteúdos de
um campo específico de conhecimento: requer a transformação pedagógica dos conteúdos a
ensinar considerando a dinâmica da relação de mediação entre o docente e o aprendiz. A
mediação pedagógica aponta para sujeitos em interação de comunicação que permite
transformar os conteúdos para torná-los acessíveis aos aprendizes. A relação intersubjetiva entre
docente e aluno se manifesta através da linguagem como ação comunicativa e dialógica tendo
por objeto aprendizagens significativas produtoras de sentidos e significados, ou seja, de novos
contornos de saberes para o aprendiz; revela-se o docente como sujeito hermenêutico e
epistêmico, dimensões inerentes à reflexividade do sujeito em ação.
A postura de mediação do profissional de educação é eminentemente intersubjetiva,
afetando indiscutivelmente a identidade dos sujeitos aprendizes. Dado o reconhecimento que a
educação constitui uma ação social fundamental, as relações intersubjetivas dessa práxis
profissional são reguladas pela ética. Essa dimensão de ação do sujeito mediador revela ao
mesmo tempo sua responsabilidade social e a importância humana do seu trabalho. Nesta
compreensão as intervenções educacionais encobrem teor político-ideológico suscetível de
afetar a identidade e as concepções de vida dos sujeitos aprendizes. A ética é uma dimensão
fundante da prática docente, muitas vezes ficando infelizmente encoberta por racionalizações
ditas objetivas que falsamente negam o caráter subjetivo do ato de educar.
A dinâmica intersubjetiva que organiza e estrutura os saberes na ação comunicativa de
mediação é movida por uma racionalidade de encontro de sujeitos. É imperativo reconhecer que
os processos de ensino aprendizagem são condicionados pela postura de dialogicidade entre
sujeitos.
Os contextos intersubjetivos do trabalho educativo, fortemente caracterizado pela ação
comunicativa da linguagem e do letramento, postulam „encontros‟ permanentes de sujeitos
dispostos à percepção dos múltiplos significados contidos na leitura das mensagens contidas nos
contextos de ensino o que implica igualmente a escuta do „outro‟. Os ruídos tão presentes nos
processos de comunicação geram permanentes tentativas para entender os pontos de vista do
„outro‟, tanto do aluno em relação ao professor como este em relação ao aluno.
As categorias de comunicação, linguagem, dialogicidade apresentam conceituações que
se completam quando referem a encontro de sujeitos em contexto de educação, tornando-se
condicionantes da aprendizagem aos saberes. Intencionalidades diversas, contudo caracterizam
os sujeitos mediadores em relação aos fins e modos de educar. Numa dimensão macro, educar
pode implicar em consolidar as dimensões dominantes que movem a sociedade contemporânea
ou, ao contrário, questionar e refletir criticamente sobre seus rumos; são concepções distintas
que podem afetar radicalmente os processos de formação integral de cidadão. Numa dimensão
micro, o cotidiano escolar revela, por sua vez, a complexidade do fenômeno da educação o que
dificulta uma definição conceitual concisa deste, sem inviabilizar, contudo, a formulação de
uma direção desejada para essa intervenção. Em síntese, podemos conceituar educar como o
processo de construção e de re-construção criativa de si e do mundo social onde convivemos.
Nessa compreensão o processo educativo aponta para transformações de um sujeito
convivendo com outros sujeitos situados no mundo, tendo a intersubjetividade como
condicionante desse encontro. Esse olhar aponta para uma concepção de educação como
constituição de sujeitos, portanto de desenvolvimento de identidades de sujeitos e de sociedade
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o que remete a processos de socialização e de individuação. É neste enfoque que reside o
desafio profissional de produzir aprendizagem aos saberes!
Atribuir ao educador a incumbência profissional de produzir aprendizagem que moldam
a identidade de sujeitos nos remete aos limites da autonomia que a ética profissional regula,
como referendado anteriormente. Da mesma forma, permite melhor compreensão da postura de
sujeito mediador nos processos de aprendizagem à vida no mundo profissional e cidadão. Essas
considerações remetem a outras breves considerações sobre a natureza da relação intersubjetiva
e o significado de ser mediador de aprendizagem aos saberes em processos de encontros
dialógicos.
A ação comunicativa e a ação instrumental tão presentes nos processos educacionais
tem em Jürgen Habermas como também em Paulo Freire, para citar apenas esses dois autores de
expressão reconhecida, um importante referencial para a análise do trabalho desenvolvido pelo
profissional de educação em ambientes de dialogo, de encontros, de busca de entendimentos e
de consensos onde o acesso ao saber se torna construção de sentidos e significados. A
intersubjetividade dialógica é essencial em contextos de aprendizagem entre sujeitos.
Confrontam-se repertórios distintos de saberes e conhecimento em torno de
„conteúdos/matérias‟ de ensino situados no mundo da vida do ‟outro‟ sujeito, como expõe o
multiculturalismo por exemplo.
Casagrande (2008), num estudo sobre a ação comunicativa e a aprendizagem na
organização e estruturação da práxis pedagógica, encontra também respaldo em Habermas
(2002) para afirmar que a compreensão da relação entre ação comunicativa e aprendizagem
“pressupõe um entendimento de fundo acerca de como se constituem os sujeitos e a própria
sociedade” (CASAGRANDE 2008, p.15). A compreensão da natureza da relação intersubjetiva
como mediação na formação da identidade passa pela percepção dos elementos e mecanismos
que afetam a constituição do sujeito aprendiz na sociedade e conseqüentemente no contexto de
intervenções educacionais.
É reconhecido o princípio humanista que a identidade do ser humano, do sujeito, resulta
da tensão dialética entre a individuação e a socialização, ou seja, que o ser humano é ao mesmo
tempo individual e coletivo - sujeito social único. O acesso ao saber ocorre na convivência com
os „outros‟ sujeitos: pais, professores, família, amigos, a vida, numa palavra, na experiência
prática do cotidiano. O mesmo ocorre nos processos intencionais de interação e
intersubjetividade próprios da escola onde convivem sujeitos que produzem sentidos e
significados, para referendar uma compreensão vigotzskiana. Esses encontros consolidam o
desenvolvimento do ‘eu’, indivíduo único, sujeito diferente de qualquer outro e ao mesmo
tempo o ‘nós’, o sujeito coletivo, participante de um determinado grupo integrante do „eu‟.
O conhecimento, na perspectiva habermesiana referendada por Boufleuer (2008),
integra a dimensão subjetiva do aprendiz, seu modo próprio de ser no mundo, com outra
dimensão mais objetiva proveniente da tradição cultural presente na coletividade humana e
expressa nos conteúdos culturais e curriculares vistos como “confluências de percepções”. Ao
associar aprendizagem aos saberes como produção de sentidos e de significados, Boufleuer
(2008) ressalta:
“percepção e sentido é algo que não se passa, não se troca, pois sempre possuem
uma ancoragem no sujeito que os detêm, os construiu. Já o horizonte ou a
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confluência é o espaço em que nos aproximamos - o que Vigotzski tem
chamado de significado em oposição ao sentido”.
Essa compreensão expressa o entendimento do movimento intersubjetivo de produção
de aprendizagem aos saberes nos processos de mediação. São espaços e tempos de
„individuação‟ e de „socialização‟ que vão constituindo a identidade de cada um. O „outro‟ é
necessário para a descoberta do „eu‟ na dialética dos confrontos. Com o outro „dialogamos‟,
mesmo nos embates e recusas; sem o outro, permanecemos no monólogo do eu consigo mesmo,
no perigoso círculo vicioso de repetir os mesmos saberes de sempre!
Nessa encruzilhada reside o princípio da reflexividade crítica do educador: do sujeito
que confronta seus saberes e concepções pela ação comunicativa de objetivação e subjetivação,
sincera e honesta, com disposição para novas percepções e compreensões de saberes. No oposto
reside o monólogo normativo, fechado e repetitivo que não transforma.
A ação comunicativa, indiscutivelmente presente nos processos educacionais como já
referendado anteriormente, torna-se fator de referência para a gestão dos espaços de
aprendizagem como ambientes de dialogo e de encontro de sujeitos reunidos pela busca de
entendimentos em torno dos conteúdos de estudo num movimento de construção de consensos
geradores de sentidos e significados, ou seja, de novas configurações de saberes e
conhecimentos. A intersubjetividade dialógica é essencial à abertura aos saberes e às
concepções do „outro‟ e, portanto para a aprendizagem tanto de „conteúdos/matérias‟ de ensino
como de saberes do convívio cotidiano. Esse espaço de escolarização é expressão do princípio
de aprendizagem contínua para o professor e da cognição situada para o aluno.
Essa concepção não admite nos contextos escolares uma prática docente de mero
„instrutor‟ responsável pelo repasse objetivo, normativo e instrumental dos conhecimentos
produzidos pela humanidade e socialmente reconhecidos, postos à disposição da consciência e
da inteligência do aprendiz. A postura de mediação aos saberes projeta o docente para a função
de „formador‟ de sujeitos situados no mundo da vida onde hão de descobrir os múltiplos saberes
e significados que regem a vida da sociedade. Constitui-se o princípio de formação e educação
integral, essencial em qualquer contexto educativo (THERRIEN, J. e NÓBREGA-THERRIEN,
S.M., 2009).
Gestão dos saberes: a racionalidade que os articula
Resta ainda abordar a racionalidade pedagógica articuladora dessa compreensão de acesso
aos saberes. No seu estudo sobre “Poderes instáveis em educação” Sacristán (1999, p.17)
formula uma indagação fundamental: „o que move a ação educativa?‟ O autor procede então a
uma argumentação desvelando como os sujeitos que atuam na sociedade contemporânea
articulam seus saberes, ou seja, „a racionalidade possível na pos-modernidade‟. Na mesma
direção, em trabalho anterior, Prestes (1996, p.11) afirmava: “A denominada crise na educação
não é mais nem menos que a crise da modernidade e da racionalidade, das quais a educação se
apresenta como filha promissora”.
Ao trazer essas referências pretendemos expor fatores subjacentes à prática educativa do
professor na sua interação com o educando aprendiz no contexto da racionalidade dominante na
sociedade contemporânea. Procura-se desvelar alguns dos princípios que constituem a essência
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dos conhecimentos e dos saberes hegemônicos que direcionam e regulam as aprendizagens à
vida no mundo.
Racionalidade, simplificando a abrangência do termo, refere ao modo como cada
sujeito, grupo, ou comunidade articula seus saberes e conhecimentos para a compreensão de um
fenômeno, do mundo, da vida ou para justificar o seu modo de agir, seus objetivos e meios para
alcançá-los. Encontra-se nas análises da teoria crítica oriunda da Escola de Frankfurt expressivo
referencial para a compreensão da racionalidade dominante que move a pós-modernidade onde
se situa a ação educativa: a racionalidade da ação instrumental contraposta à racionalidade da
ação comunicativa (HABERMAS, 2002). Enquanto a primeira exalta o poder da razão objetiva
ou cognitivo-instrumental do mundo sistêmico que manipula o sujeito para fins de controle, a
razão comunicativa promove encontros intersubjetivos de socialização no horizonte de uma
emancipação de sujeitos.
Reconheço na racionalidade que articula os saberes que movem o mundo
contemporâneo certo predomínio de valores individuais da consciência subjetiva e autosuficiente em detrimento a dimensões interativas de sujeitos que se auto-completam
socialmente, construindo seu modo de ser na comunidade humana. Ressalto a importância da
ética profissional nas nossas instituições e práticas educacionais de formação aos saberes da
vida cidadã. Nestas, o mundo da ciência e da tecnologia predominantemente fundado na razão
objetiva e instrumental que manipula objetos não reconhece facilmente outras dimensões de
Ciência inspirada na razão comunicativa entre sujeitos (THERRIEN, 2006).
Estas breves observações fazem surgir indagações a respeito da racionalidade que
articula os saberes e conhecimentos que fundam nossas argumentações e justificativas sobre o
sentido de „educar‟ e o sentido do „outro‟, aprendiz na relação de ensino. Até que ponto, no
cotidiano das práticas de ensino, as concepções de processos de aprendizagem, ou seja, de
acesso aos saberes contemplam processos de formação integral de sujeitos? Como vislumbrar
uma postura docente tencionada pela aprendizagem do aluno visto como sujeito situado em
processo de emancipação social? Que racionalidade pode dar sustentação a uma compreensão
de ensino/aprendizagem que favorece o encontro de sujeitos e a construção de sentidos,
significados e saberes em contexto de formação integral?
Ao formular tais inquietações pretende-se destacar uma categoria a meu ver ainda pouco
abordada no campo da educação. Os recursos da linguagem, base da ação comunicativa que
viabilizam relações intersubjetivas de aprendizagem, se materializam no dialogo entre sujeitos
revelando diversos e possíveis modos de compreender tanto os conteúdos de ensino como a vida
no mundo e sua organização. Os argumentos e as justificativas em confronto podem ser
moldados por uma racionalidade comunicativa, situada, cultural, histórica e científica, atenta às
múltiplas vozes e faces da humanidade contemporânea. O contexto escolar é propício a uma
racionalidade diferenciada com potencial de gerar sentidos e significados em direção a novas
configurações de saberes. Conceitua-se esta como uma racionalidade pedagógica fundante da
práxis educativa.
Ao abordar a epistemologia da prática no início desse estudo, postulou-se uma
racionalidade necessária a essa concepção. Vista como última categoria abordada nessa reflexão
construída numa estrutura rizomática, convém agora explicitar sua relação com outras
categorias já discutidas.
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A transformação pedagógica dos conteúdos de aprendizagem na relação intersubjetiva
que visa gerar sentidos e significados requer uma racionalidade aberta aos argumentos e pontos
de vista diferenciados de sujeitos situados. O movimento da ação comunicativa de construção
de entendimento no diálogo pedagógico é produtor de consensos que vão constituindo a
sociabilidade. Ele procede por uma racionalidade que integra uma gama de fatores diversos que
incluem desde hábitos e elementos afetivos até elementos da razão instrumental/normativa. Esse
movimento gera „possibilidades‟ de reflexão conjunta acerca dos diversos pontos de vista e
sentidos relativos aos conteúdos de aprendizagem.
Retornando a reflexões anteriores desenvolvidas neste estudo, pode-se afirmar que a
competência docente do „saber ensinar‟ é instituída por essa racionalidade percebida como
pedagógica. Uma compreensão interdisciplinar
O „eu‟ do aprendiz necessita do encontro do „outro‟ mediador para se conhecer, se autodeterminar, se emancipar como sujeito com dimensões de individuação e de socialização. Esse
é o caminho do acesso ao saber discente e docente, do „aprender a aprender‟ fundado na
epistemologia da prática.
Considerações finais
A complexidade do mundo contemporâneo se reflete na práxis dialógica viabilizando a
interdisciplinaridade, a multireferencialidade e a interculturalidade como formulações
científicas de verdades e sentidos em constante re-elaboração. O confronto de múltiplos saberes
e olhares sobre o real é condição de construção de novas compreensões do currículo e da vida
do mundo, desafio para a prática do professor, sujeito epistêmico.
A intersubjetividade do diálogo gerador de aprendizagem do aluno tem igual impacto
sobre o próprio mediador cuja identidade não fica imune ao processo no qual se envolve. A
dinâmica de geração de saberes, de sentidos e de significados que propicia a racionalidade
pedagógica em contextos de encontro de sujeitos constitui momentos e espaços de reflexividade
crítica e transformadora, enfim, de formação contínua e de reconstituição dos saberes de
experiência do mediador. Este vivencia assim os processos de socialização e de emancipação
profissional e humana, conceituados por Adorno (2003) como auto-determinação do sujeito. A
abordagem da identidade como construção intersubjetiva (MARTINAZZO, 2005) exige a
competência comunicativa e a racionalidade pedagógica ou dialógica que a molda.
Finalizando, reafirma-se que em contraste com a racionalidade dialógica, expressão de
uma reflexividade que acolhe a individuação e a socialização, a reflexividade monológica
permanece na consciência subjetiva da individuação. Essa postura nega e destrói o sujeito social
por ignorar o necessário confronto de sentidos e de significados no diálogo de sujeitos e a
dinâmica de entendimentos e de consensos geradores de novos saberes. Essa compreensão
aparentemente diferenciada do trabalho do educador tem antecedentes conhecidos: uma
racionalidade que „permite‟ a leitura e a escrita do mundo junto a outros sujeitos, diria Paulo
Freire (2005); a isso Habermas (2002) acrescentaria uma racionalidade ampla que supõe e
viabiliza a comunicação como modo de reconhecer e tentar compreender as múltiplas
racionalidades que imperam nas famílias, nas escolas, na sociedade, no mundo contemporâneo
onde se aprende a aprender..
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Em síntese, sob o prisma da didática o trabalho docente se constitui uma práxis de
saberes entre sujeitos, centrada na produção de identidades pela construção de novos saberes,
sentidos e significados na ação comunicativa em direção ao entendimento pela dialogicidade
tendo por horizonte a emancipação e a auto-determinação fundada no ser social.
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- Professor Jacques Therrien