Considerações sobre identidade e autonomia profissionais nas ONGS no Brasil – desafios ou possibilidades? Janaína Lopes do Nascimento Duarte 1 [email protected] Modalidad de trabajo: Eje temático: Palabras claves: Resultados de Investigaciones Trabajo en la contemporaneidad, cuestión social y trabajo social Trabajo social, identidad profesional, autonomia 1- Introdução A conjuntura de reestruturação capitalista, pós-1970, determina alterações nos países de capitalismo central e periférico (como o Brasil), principalmente no processo produtivo (reestruturação produtiva), no processo de trabalho e nos mecanismos de controle e organização dos trabalhadores (transformações no mundo do trabalho), além de instituir mudanças no campo da cultura e no padrão de intervenção do Estado (Reforma do Estado ou Contra-Reforma do Estado). Por sua vez, essas “transformações societárias” (NETTO, 1996) modificam as esferas da produção e da reprodução social, bem como incidem decisivamente sobre as profissões: seu cotidiano e complexo profissional (teórico, prático, político), como é o caso do Serviço Social. Isto porque a profissão de Serviço Social é fruto da dinâmica da sociedade capitalista e, por isso, é determinada pelas contradições e transformações sócio-históricas do tempo presente. Assim, tem-se como ponto de partida que o capitalismo contemporâneo, suas mediações, relações sociais e materiais acarretam um conjunto de possibilidades e desafios à profissão. No âmbito do exercício profissional do(a) Assistente Social, o contexto neoliberal, principalmente a partir da Contra-Reforma do Estado brasileiro (BEHRING, 2003), impõe modificações no campo das políticas sociais com o deslocamento de responsabilidades no tratamento da questão social da órbita do Estado para as organizações do terceiro setor, como as ONGs. 1 Ponencia presentada en el XIX Seminario Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social. El Trabajo Social en la coyuntura latinoamericana: desafíos para su formación, articulación y acción profesional. Universidad Católica Santiago de Guayaquil. Guayaquil, Ecuador. 4-8 de octubre 2009. 1 A realidade atual do mercado de trabalho, particularmente no espaço sócioocupacional das ONGs, (im)põe exigências, como por exemplo, de qualificação, competência, criatividade, dinamismo e flexibilidade, bem como sinaliza desafios para o exercício profissional do(a) Assistente Social. A partir da pesquisa qualitativa realizada no mestrado (DUARTE, 2007), fundamentada na perspectiva teórico-metodológica crítica e dialética, sobre o exercício da profissão de Serviço Social, foi possível desvendar alguns desafios, postos como tendências, no cotidiano profissional do(a) Assistente Social em ONGs vinculadas à Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (ABONG) no município de Natal/RN (Brasil). Neste texto, serão destacados os elementos identidade e autonomia profissionais. Assim, o presente artigo tem como objetivo central elucidar algumas tendências quanto à identidade profissional e à autonomia da profissão de Serviço Social no espaço sócio-ocupacional das Organizações Não-Governamentais. Para tanto, por questões meramente didáticas, o texto se subdivide em duas partes principais: 1) tendências quanto à identidade profissional, a partir do debate sobre cargo/função assumido na organização; e 2) a relação entre autonomia profissional e confiança institucional. Em seguida, serão destacadas algumas considerações finais articulando identidade profissional e autonomia à reflexão dos desafios e das possibilidades no exercício profissional nas ONGs. 2- Desenvolvimento 2.1. Tendências quanto à identidade profissional Na pesquisa realizada, foi possível identificar que há certa confusão entre cargo ou função com profissão, o que engendra um processo de desgaste da identidade profissional. Verificou-se que as profissionais se reconhecem como: “educadora social”, “assessora”, “coordenadora (de projetos ou pedagógica)”, “técnico social”, “assistente de coordenação”, ficando mais evidente o cargo que ocupam ou a função que desempenham; o que quebra os vínculos de identidade profissional. 2 O que ocorre no campo das ONGs é que o trabalhador se declara como profissional da área social, sem especificidade, sujeito que responde, com determinadas habilidades, às exigências do contratante/empregador. Na dinâmica atual do mercado de trabalho, configura-se a tendência do empregador de não respeitar as profissões regulamentadas e, neste sentido, não reconhecer a profissão e o seu conjunto de especificidades, mas sim uma gama de habilidades e competências, atreladas a uma condição extrema de adaptabilidade e produtividade do trabalhador. Tais elementos são valorizados pelo capital como estratégias para o aumento da produtividade e das taxas de lucro, bem como para a fragilização e controle da classe trabalhadora; isto porque, além de garantir a maior exploração, diminui a capacidade de resistência ao processo de reestruturação. Na realidade, um trabalhador que não se reconhece como um profissional com formação específica torna-se mais vulnerável aos ditames do empregador, pois se desarticula das discussões e das lutas da categoria profissional. É um movimento de desconstrução da identidade profissional. Este contexto que abala a identidade se materializa na tendência contemporânea de desregulamentação e desprofissionalização no mercado de trabalho, útil e funcional à lógica de reordenamento do capital. Iamamoto (2002) ressalta que é comum os profissionais se identificarem com os cargos nomeados pelas organizações, por exemplo, analistas de recursos humanos, coordenadores de projetos, assessores, revelando um discurso desprofissionalizante que pode desdobrar-se em um esvaziamento da reflexão e em uma crise de identidade profissional. No tocante ao Serviço Social, a tendência de desprofissionalização se impõe no espaço das ONGs e se coloca como um desafio ao reconhecimento e à identidade profissional. Isto porque, segundo Assis (2004), a desprofissionalização se desdobra: na não-identificação com a profissão; no afastamento das discussões que perpassam a qualificação profissional específica do Serviço Social; na fragmentação e perda do poder de luta da profissão; na não-diferenciação de funcionalidades para as profissões sociais; dentre outras questões. É um movimento perverso que dilui a luta e o reconhecimento profissional em tempos de perda de direitos sociais e de hegemonia do capital, momento sócio-histórico contra-revolucionário. 3 Outro aspecto relevante é que a desprofissionalização promove uma ausência de reflexão mais ampla das atribuições assumidas frente às legislações da profissão, assim como possibilita certo distanciamento de documentos legais específicos do Serviço Social, como, por exemplo, a Lei de Regulamentação da Profissão de Serviço Social - nº 8.662/1993 – (BRASIL, 2003), as resoluções editadas pelos CRESS e pelo CFESS, dentre outros. Por isso, Iamamoto (2002, p. 40) esclarece: Não é a função atribuída pelo empregador que define a qualificação profissional, as competências e atribuições que lhe são inerentes. A profissionalização depende da formação universitária que atribui o grau de Assistente Social e do conselho profissional que dispõe de poder legal para autorizar e fiscalizar o exercício, a partir das atribuições e competências identificadas historicamente e reguladas por lei. Há também uma tendência de consolidação da atuação profissional em equipes multidisciplinares em ONGs, visto que é comum, nestes espaços, o(a) Assistente Social partilhar atividades com outros profissionais (psicólogo, sociólogo, cientista político, agrônomo, pedagogo, historiador, advogado, dentre muitos outros). Em alguns casos, esse trabalho coletivo contribui para a perda de identidade profissional do(a) Assistente Social, principalmente quando este se distancia das discussões e reflexões da categoria. Como afirma Iamamoto (2002), é necessário desmistificar, especialmente neste espaço sócio-ocupacional chamado ONG, que a equipe, ao desenvolver ações coordenadas, cria uma identidade entre os participantes, a qual conduz à diluição de suas particularidades profissionais, pois: São as diferenças de especializações que permitem atribuir unidade à equipe, enriquecendo-a e, ao mesmo tempo, preservando aquelas diferenças. Em outros termos, a equipe condensa uma unidade de diversidades. Neste contexto, o Assistente Social, mesmo realizando atividades partilhadas com outros profissionais, dispõe de ângulos particulares de observação na interpretação dos mesmos processos sociais e uma competência também distinta para o encaminhamento das ações [...] Cada um dos especialistas, 4 em decorrência de sua formação e das situações com que se defronta na sua história social e profissional, desenvolve sensibilidade e capacitação teórico-metodológica para identificar nexos e relações presentes nas expressões da questão social com as quais trabalham e distintas competências e habilidades para desempenhar as ações propostas (IAMAMOTO, 2002, p. 41). A instituição pode até não ter essa clareza, mas para o(a) profissional de Serviço Social é fundamental compreender e internalizar que o trabalho coletivo não impõe a diluição de competências e atribuições profissionais, “ao contrário, exige maior clareza no trato das mesmas e o cultivo da identidade profissional, como condição de potenciar o trabalho” (IAMAMOTO, 2002, p. 41). Nas entrevistas realizadas na pesquisa fica nítido que há uma particularidade ao atender demandas e exigências institucionais, principalmente na interpretação das situações e na competência diferenciada no encaminhamento das atividades desenvolvidas pelo(a) Assistente Social, em relação aos outros profissionais das equipes multidisciplinares. É incondicional a necessidade de resgate das legislações da profissão, bem como um debate e análise crítica sobre o exercício profissional em ONGs, a fim de aproximar os(as) Assistentes Sociais das discussões contemporâneas da profissão, desmistificar o trabalho desprofissionalizante em tais organizações e retomar a dimensão da identidade profissional em sua plenitude. 2.2. Autonomia profissional: uma questão de confiança? A autonomia profissional constitui um dos desafios contemporâneos postos ao(à) Assistente Social, embora esta questão seja garantida como um dos seus direitos no artigo 2º alínea h do Código de Ética de 1993: “[...] ampla autonomia no exercício da profissão, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais incompatíveis com as suas atribuições, cargos ou funções” (CFESS, 2003, p. 13). 5 Não se podem negar as possibilidades de autonomia profissional, mas é necessário considerar as condições objetivas em que esta se realiza. De acordo com Mota e Amaral (1998, p. 42): 6 Não se pode omitir, na trajetória de uma profissão, a existência de uma relativa autonomia teórica, política, ética e técnica que é exercitada pelo profissional – sob determinadas condições objetivas – ao atuar sobre uma dada realidade, problematizando-a com o aporte dos conhecimentos sistematizados e dos princípios que formaram a sua identidade ocupacional. Na pesquisa, as entrevistadas relatam, com unanimidade, que há autonomia no exercício profissional, pois afirmam possuir maior liberdade e flexibilidade na execução das atividades. As Assistentes Sociais identificam a possibilidade de autonomia com o tipo de relações estabelecidas nas ONGs, ou seja, relações consideradas mais horizontalizadas, que permitem o diálogo e a participação dos diferentes profissionais. Cabe ressaltar que a autonomia não é percebida como direito garantido no Código de Ética, mas como elemento condicionado pela instituição; assim sendo, seria a instituição que determinaria o nível de autonomia e a sua forma de expressão. As análises das entrevistas revelam que é a confiança que a instituição deposita no trabalhador que engendra o entendimento de autonomia no exercício profissional. A confiança para a execução das ações por parte das Assistentes Sociais é parte da dinâmica institucional das ONGs e possibilita a idéia de liberdade, visto que não é necessária autorização para o desenvolvimento das atividades. Outro aspecto relevante é que a concepção de autonomia, na ONG, está diretamente relacionada ao compromisso profissional e ético com os princípios e objetivos institucionais e com os projetos das organizações: há plena identificação entre objetivo/projeto profissional e objetivo/projeto institucional e, assim, as entrevistadas não percebem que os princípios, os objetivos e os projetos institucionais terminam por constituir limites para a efetivação da autonomia profissional. É pertinente salientar que a confiança é conquistada, na ONG, a partir de um processo contínuo de competência e qualidade do trabalho executado, atendendo aos interesses da instituição. 7 Na realidade, as condições objetivas disponíveis para viabilizar os projetos atravessam a questão da autonomia profissional. Diante disto, os recursos, garantidos pelos financiadores para a execução dos projetos sociais nas ONGs, incide como obstáculo no processo da autonomia. Assis (2004, p. 124, grifos nossos) afirma que: [...] a liberdade de execução é dada desde que sejam seguidos os princípios ideológicos da instituição; sem falar que também se percebe que muitos dos projetos/programas vêm com delimitações no âmbito da execução e gerenciamento. Então, não se trata de uma liberdade e de uma autonomia propriamente dita, mas da criação de espaços de diálogo na forma de desenvolver o fazer profissional. A análise dos dados da pesquisa sinalizam que há uma margem de limitações que comprometem a autonomia profissional nas ONGs, como por exemplo: os princípios institucionais, os recursos disponíveis, as delimitações dos projetos, dentre outros; estes aspectos culminam por caracterizar tal autonomia como uma autonomia relativa, em função de determinadas condições objetivas de trabalho. 3- Considerações finais A inserção do(a) Assistente Social no espaço sócio-ocupacional das Organizações Não-Governamentais pesquisadas é marcada por exigências institucionais, limites e desafios, com destaque, nestes últimos, para à identidade e à autonomia profissionais. Em relação à identidade profissional, há uma tendência de desprofissionalização marcada, por um lado, pela confusão entre cargo/função e profissão e, por outro lado, pelo descompasso entre trabalho multidisciplinar ou em equipe e certo distanciamento das questões particularidades e das contradições que perpassam o exercício da profissão. Vale ressaltar que todo este movimento contribui para os interesses dominantes de fragmentação dos trabalhadores. 8 Quanto à autonomia, esta é caracterizada por aspectos como compromisso e confiança, desconsiderando os elementos objetivos do exercício profissional nas ONGs, ou seja, os limites e dificuldades institucionais, uma vez que estas organizações se integram à lógica do capital e as suas determinações contemporâneas. Os desafios postos quanto à identidade e à autonomia profissionais têm conexão estreita com um outro elemento identificado, que atravessa toda a pesquisa: a dificuldade das Assistentes Sociais entrevistadas de articular as singularidades do exercício profissional às particularidades e à totalidade da sociedade contemporânea. O envolvimento do profissional com a “ideologia da instituição”, a identificação entre objetivo/projeto profissional e objetivo/projeto institucional, a dificuldade de participação nas discussões contemporâneas do Serviço Social, bem como a participação política coletiva comprometida pelo contexto de fragilidade e fragmentação da classe trabalhadora em tempos de reestruturação do capital são elementos centrais que possibilitam o distanciamento do profissional de Serviço Social do debate radicalmente crítico da sociedade capitalista e da sua intervenção no contexto atual. Na verdade, o cotidiano portador de imediatismo e alienação é rico de determinações que precisam ser desveladas, em articulação com os processos sócio-históricos contemporâneos. A superação dos desafios, assim como a percepção das possibilidades quanto à afirmação de uma identidade profissional e ao entendimento de uma autonomia relativa nos espaços sócio-ocupacionais, particularmente nas ONGs, perpassa fundamentalmente, dentre outros aspectos, a: • Qualificação teórico-metodológica, a partir do conhecimento profundo da realidade social e da profissão inserida no capitalismo contemporâneo, via perspectiva crítico e dialética; e a • Qualificação ético-política, através da afirmação de princípios e valores do Projeto Ético-Político, do conhecimento e domínio das legislações e produções contemporâneas do Serviço Social e da articulação e organização política dos(as) Assistentes Sociais, nos mais diversos espaços de luta na sociedade. 9 Acredita-se que um dos maiores desafios para os(as) Assistentes Sociais que concretizam seu exercício profissional nas ONGs, associadas à ABONG, ou não, é ultrapassar o imediatismo e a aparência que definem o cotidiano, bem como superar a necessidade de respostas imediatas às necessidades sociais. A pesquisa elucida que as determinações sócio-históricas contemporâneas e as condições objetivas de trabalho atravessam o campo da identidade profissional e da autonomia na profissão de Serviço Social. Como afirma Netto (2006, p. 58), “o desafio profissional central com que nos defrontamos é a própria ordem social contemporânea”. Por isso, faz-se imprescindível problematizar e analisar o cotidiano do exercício profissional nas ONGs com a totalidade da realidade social, para assim superar limites e criar possibilidades concretas de intervenção, em conformidade com os princípios e valores do projeto ético-político. Referências bibliográficas ASSIS, Rivânia Lúcia Moura de. Terceiro Setor e Serviço Social: (des) construção do projeto ético-político profissional. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2004. BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). Código de ética profissional. In: COLETÂNEA de Leis. 4. ed. Natal: CRESS 14. Região, 2003, p. 9-28. DUARTE, J. L. N. O Serviço Social e nas Organizações Não-Governamentais: tendências e particularidades. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007. IAMAMOTO, Marilda Vilela. Projeto profissional, espaços ocupacionais e trabalho do assistente social na atualidade. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Atribuições privativas do(a) Assistente Social. Brasília, DF: CFESS, 2002, p. 13-50. 10 MOTA, Ana Elizabete; AMARAL, Ângela Santana do. Reestruturação do capital, fragmentação do trabalho e serviço social. In: MOTA, Ana Elizabete (Org). A nova fábrica de consensos. São Paulo: Cortez, 1998, p. 23-44. NETTO, José Paulo. Transformações societárias e Serviço Social: notas para uma análise prospectiva da profissão no Brasil. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo, n. 50, p. 87-132, 1996. ______ . A ordem social contemporânea é o desafio central. Santiago/Chile, 2006. Mimeografado. Palestra realizada na 33ª Conferência Mundial de Escolas de Serviço Social. 11