revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX As facetas do processo decisório e o direito à saúde Gabrielle Kölling Mestranda em Direito Público (Unisinos). Pós-graduanda em Direito Sanitário pela Unisinos, UniRoma3 (Itália) e Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul. Bacharela em Direito pela Unisinos. Membro da Rede em Defesa da Saúde (Reds/ USP) Guilherme Camargo Massaú Doutor em Direito Público (Unisinos). Mestre em Ciências Jurídico-Filosóficas (Universidade de Coimbra). Resumo: O presente artigo pretende analisar o positivismo no contexto do seu surgimento, com o intuito de estabelecer um panorama da situação desse modelo no Brasil, bem como a não aceitação da superação do esquema sujeito-objeto e a invasão da linguagem na filosofia. A pretensão consiste ainda em analisar, de modo empírico, uma decisão judicial e os seus efeitos dentro desse contexto de crise do positivismo jurídico. Nessa decisão, o foco de observação será o direito fundamental à saúde. Levar-se-ão em consideração aspectos atinentes à fundamentação, à teoria da decisão, considerando as “peculiaridades” da interpretação e da tomada de decisão. Palavras-chave: Positivismo jurídico. Decisão. Fundamentação. Saúde. 1 Introdução Sabe-se que o problema que circunda o Estado é justamente o fato de ser um Estado de modernidade tardia (STRECK, 2002), que não consegue realizar as promessas da modernidade, dentre as quais pode-se destacar a concretização dos direitos fundamentais. Assim, 42 outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX interessa-nos estabelecer uma reflexão acerca do direito à saúde tendo como paradigma a análise de uma decisão de primeira instância que chegou ao Tribunal Regional Federal e, depois, ao Supremo Tribunal Federal. Tais decisões demonstram, claramente, a crise do positivismo jurídico. A pretensão desse artigo é traçar um panorama acerca do surgimento do positivismo, trazendo assim, algumas considerações preliminares, a fim de estabelecer o contexto do seu surgimento para embasar a sua compreensão e discussão. Doutrina revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais Num segundo momento, objetiva-se traçar um panorama da situação atual do Brasil no cenário do positivismo jurídico, para então enfrentar a análise da decisão proposta, com base no referencial teórico do professor Lenio Streck. Assumir esse referencial teórico, nesse momento, implica abdicar de outros. Essa escolha justifica-se, dentre outras coisas, pela proximidade do jurista com a realidade brasileira. Se a pretensão é analisar o cenário nacional sob a perspectiva de uma crítica ao positivismo, nada mais “racional” do que escolher um autor que observa e reflete sobre essa realidade com certa proximidade. 2 Considerações preliminares acerca do positivismo A codificação teve uma grande contribuição na abordagem histórica do positivismo jurídico na Alemanha. Assim, pode-se destacar, como sendo um marco relevante para o positivismo, o movimento de codificação que foi marcante na França (século XIX), e se espalhou pelo mundo jurídico até atingir a Alemanha. É por isso que esses aportes debruçar-se-ão sobre as origens do positivismo na perspectiva alemã, até porque seria impossível abarcar outros aspectos históricos do positivismo nesse ensaio. No cenário desse ideário francês, destacam-se dois grandes nomes: Montesquieu (KAUFMANN, 2002. p. 116) e Rousseau (THONNARD, 1953. p. 707-719), que figuraram no rol das influências político-sociojurídicas do pensamento revolucionário francês. Eles trataram de estabelecer concepções de governo inclusivas da visão exsurgente na época em que potencializaram, por meio da ideia de estado de natureza humana, a igualdade e a liberdade. Sobre essas duas ideias, construíram as suas concepções, calcadas na racionalidade do agir humano ao instituírem o seu estado civil. Sendo assim, em Montesquieu temos a figura do juiz como boca da lei e, em Rousseau, como a vontade geral, que objetivavam manter a liberdade e a igualdade de cada pessoa. É nesse contexto intelectual que surge todo o alicerce de desenvolvimento da modernidade e é aqui que se encaixam os requisitos, que de certo modo são favoráveis ao positivismo. O Estado, como poder, acaba sendo o cerne do Direito; a sua função principal constitui proteger a individualidade de cada um e resolver os conflitos. Assim, para o reconhecimento desses valores subjetivos, o Estado precisou contornar a problemática da pluralidade de valores para evitar a dissolução social e, desse modo, a lei deveria se apresentar como um valor objetivo que transmitisse segurança. O modelo estatal sofreu modificações, mas a lei 43 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX continua mantendo sua validade no poder soberano; o Estado é limitado pela Lei Magna ou Fundamental, que vincula a validade e a legitimidade das normas inferiores e das ações estatais (BARZOTTO, 2007. p. 13-16). A validade da lei é dada pela sua origem e não pelo seu conteúdo, em função da sua objetividade e segurança. Nota-se que não importa a sua qualidade de ser justa ou injusta, mas sim o seu vínculo com o comando soberano, que é o que dá a sua validade. Ele estabelece, em última análise, o próprio critério do positivismo; a validade não é a justiça, pois esta pode conter incertezas oriundas da pluralidade dos subjetivismos, tampouco é a eficácia, já que essa gera muita insegurança no surgimento do arbítrio. A doutrina só admite um único Direito, que é o positivo. Ele se autodetermina, esquematiza-se, no tocante à produção normativa e mantém uma certa autonomia, que pode ser traduzida pela própria validade. Dito de outro modo: a norma positivista é considerada jurídica por pertencer ao ordenamento jurídico, visto que sua origem advém do próprio processo produtivo do sistema positivo. Esse modo de fazer norma positivista consegue provocar uma cisão entre moral (justiça) e política (eficácia), pois ele isola o fenômeno jurídico (BARZOTTO, 2007. p. 17-20). O positivismo foi assentado, em síntese, nessa nova concepção de homem que permeou as ideias do pensamento revolucionário francês, ou seja, passou-se a buscar uma explicação racional para os fenômenos. Nesse sentido, pode-se dizer que o positivismo destacou-se por alguns aspectos, como o de ter um método legítimo, que é o das ciências naturais. De acordo com esse modo de pensar, o conhecimento é fornecido pela ciência! Com isso, combate-se a mentalidade metafísica dos idealistas e espiritualistas da realidade e deposita-se confiança na ciência e na sua racionalidade (REALE, 2005, p. 297-298). Isso fica muito claro quando Comte (positivista francês)1 dizia que o conhecimento científico deveria servir para conhecer os fenômenos e, assim, prevê-los, para antever seus resultados e revertê-los em benefício da humanidade. Pode-se dizer que a filosofia positiva de Comte visa designar conhecimentos sistematizados, científicos e universais, sendo científicas aquelas respostas que possam ser empiricamente comprovadas, demonstradas. Dito de outro modo: só é possível conhecer os fenômenos sensíveis com suas leis, e a hipótese serve para descobrir as leis, coordená-las, conciliá-las e unificá-las organicamente (THONNARD, 1953, p. 725, 740-741; DEL VECCHIO, 1979, p. 217-220). No entanto, interessa destacar outras influências relevantes de Comte no pensamento ocidental: o progresso da humanidade pelo viés científico; a crítica à metafísica; a autonomia da sociologia como ciência; o destaque da tradição; os fatos humanos e a ciência considerados históricos; a unicidade do método (REALE, 2005, p. 305). Pode-se classificar o positivismo do século XIX em três correntes diversas: a científica, a psicológica e a sociológica. No entanto, 1 44 Esse autor funda a filosofia positivista, tendo na tarefa filosófica a coordenação dos fatos observáveis, no sentido de observar todos os fenômenos invariavelmente submetidos às leis da natureza, com o objetivo de descobrir a lei que rege o fenômeno. Assim o positivismo faz do Direito uma manifestação social e um objeto de explicação causal. (COMTE, 1990, p. 11.) outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX essas correntes não serão objeto do presente estudo. Tais correntes identificam-se de acordo com as concepções dos pensadores. Logo, o positivismo não se restringe, tão somente, aos franceses, pois na Inglaterra, em meados do século XIX, surge o utilitarismo baseado nas teses dos iluministas (REALE, 2005, p. 309-310). O empirismo insere as primeiras manifestações do positivismo social na Inglaterra (REALE, 2005, p. 310-332). Doutrina revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais O positivismo jurídico, embora em crise latente, consiste, conceitualmente ainda, em uma teoria relevante ao estudo do Direito e sua filosofia. Mesmo com todas as consequências advindas da Segunda Guerra Mundial (SALDANHA, 1998, p. 182), o positivismo permanece no centro de muitas discussões, especialmente, quando é defrontado com uma pressuposta noção de direito natural, que reduz a validade à justiça. Em outra perspectiva encontra-se o realismo que vincula a validade à eficácia. Na busca de uma via entre o direito natural e o positivo, esse último, com suas inúmeras variantes, encontra-se fortemente atuante no seio do pensamento jurídico, principalmente como direito vigente ordenador de uma realidade social (SALDANHA, 1998, p. 178) e ainda como linha orientadora para novas ideias que buscam manter distinções entre justiça, validade e eficácia (REALE, 2005, p. 909). Essas correntes revelam a riqueza de pensamento produzida pela concepção geral positivista, além de denunciar a impossibilidade de reduzir o positivismo jurídico a uma única forma de manifestação; todavia, há que se destacar que a opção desse breve resgate é dar ênfase para o positivismo e suas origens na Alemanha. Na Alemanha, o movimento precursor do aflorar jurídico positivo foi a denominada Escola Histórica do Direito (surge no fim do século XVIII e no começo do século XIX). Porém, ela não se confunde com o positivismo jurídico, apenas prepara a estrutura teórica para o aporte definitivo do positivismo. Ela não nasce do vazio crítico, ao contrário, a crítica contra a filosofia jusnaturalista assumiu fortes contornos corrosivos a ponto de estabelecer controvérsias antirracionalistas, com a finalidade de enfraquecer o aspecto de “sacralidade” do Direito natural. Essa atitude foi oriunda do historicismo da primeira parte do século XIX, sob as influências do romantismo. A virada teórica é radical (ou seja, percebeu-se que só o direito natural já não dava mais conta, era preciso o direito positivo) quando ele considera o direito natural como filosofia do positivo e quando ele elabora conceitos jurídicos gerais calcados no direito positivo, possíveis de serem encontrados em qualquer Estado, pois para ele o direito positivo possui sua origem no ente estatal (BOBBIO, 1995. p. 45-46). O historicismo concentra-se na individualidade do Homem e em tudo produzido por ele; isso implica considerar o Homem em concreto, distinguindo-o da forma abstrata visualizada pelo racionalismo. Portanto, o historicismo, inegavelmente, tem características próprias. As variações da História e do Homem fornecem o matiz das diversas modificações ocorridas no tempo, além de pôr em evidência a variabilidade do ser humano em relação aos seus diversos aspectos (nacionalidades, etnias…). 45 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX A Escola Histórica do Direito (do expoente Savigny) pode ser compreendida por meio dos aspectos gerais do historicismo; assim, o Direito é produto da História, por isso, não existe um único Direito no espaço e no tempo. O Direito é originado pelo sentimento do justo e do injusto, pertencentes a cada indivíduo, expressos em formas jurídicas populares, sob o artificial Direito criado pelo Estado moderno. Além do mais, a descrença antropológica impinge a desconfiança em novas instituições jurídicas, na crença de estabelecerem inovações nocivas; por conseguinte, as instituições consolidadas pela História são as melhores. Outro ponto característico, o apego ao passado, foi uma tentativa de resgatar antigos direitos como o romano e o germânico. Em face da tradição, os costumes são considerados a expressão da tradição, por consequência, eles significam a expressão do Volksgeist. São formados e consolidados lentamente, assim se transformando em fonte do Direito. Portanto, o caráter precursor do positivismo está localizado, apenas, na crítica ao direito natural (BOBBIO, 1995, p. 51-53 e MONCADA, 2006, p. 402). O positivismo assume relevância diante do fato histórico da codificação (entre os séculos XVIII e XIX), quando o legislador se apresenta onipotente. Esse fato é oriundo de um movimento político-cultural expresso na positivação do Direito Natural. Nesse sentido, ao mesmo tempo, agem a autoridade e a razão ao estruturar o Direito. Está-se diante da autoridade que torna o Direito eficaz, e da razão que evita a arbitrariedade do Estado. Naturalmente, os iluministas contra-atacaram os historicistas, a fim de desprestigiar os seus postulados; logo, o direito consuetudinário foi alvo de inúmeros ataques, sendo considerado expressão da irracional tradição. O direito consuetudinário, com seu acúmulo de normas, na visão iluminista, precisava ser transformado em um conjunto sistemático de normas jurídicas (Código). O Código deve ser posto pelo Estado, baseado no esforço de racionalização das regras transformadas em leis. Aqui existe duplo apelo: para a razão e para a autoridade do Estado. A razão iluminista deve “descobrir” o Direito natural-universal e o Código, fruto dessa razão, seria o Direito imutável e absoluto. Na invasão da Alemanha pela França revolucionária difundiu-se o Código de Napoleão, provocando um impacto considerável num território ainda semifeudal, a ponto de estimular a criação de único e codificado Direito para toda a Alemanha, pois esse território era assolado pela diversidade e fracionamento da prática jurídica (BOBBIO, 1995, p. 53-56). Quando se fala de positivismo, é impossível não se falar do Círculo de Viena. A Universidade de Viena, no período entre as duas grandes guerras, constituiu o centro mais importante da filosofia científica e, por isso, o método científico acabou por ser destacado. Foi justamente nesse cenário que se uniram um grupo de filósofos e cientistas de atitude antimetafísica, concentrados na análise da linguagem, da estrutura e do método das ciências naturais, sem desprezar a matemática. O ambiente vienense era propício na metade do século XIX, em decorrência da predominância do liberalismo conjuntamente com seu aporte de concepções oriundas do iluminismo, do empirismo e do utilitarismo. O principal aspecto dessa filosofia era a verificação, pois somente se atribuía sentido às proposições verificáveis empiricamente, por meio dos fatos da experiência. Em consequência desse princípio pode-se afirmar a incongruência de proposições metafísicas e teológicas. Diante disso, a produção intelectual (o pensamento) 46 outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX desse grupo foi denominada de positivismo lógico ou neopositivismo (REALE, 2005, p. 990-995; REALE, 1998, p. 153; KAUFMANN, 2002, p. 178). Porém, as condições ideais para o desenvolvimento neopositivista deram-se por meio da conservação dos quadros mentais da escolástica, sob os auspícios da grande influência da Igreja Católica. Com isso, o pensamento escolástico estruturou as bases do pensamento lógico e manteve afastado o idealismo das universidades alemãs. O Wiener Kreis (1922) surge em um café da “velha” Viena, nas noites de sextas-feiras. Nessa ocasião, um grupo de doutores em filosofia, mas estudantes de outras áreas (física, matemática, ciências sociais…) reuniam-se para discutir sobre a filosofia da ciência, tendo como base o positivismo de Ernst Mach. Mas só em 1924 inicia-se, de fato, o Kreis, com a formação de um grande grupo de discussão, também às sextas-feiras à noite. A partir de então, os colóquios contaram com inúmeros nomes de diversas áreas do conhecimento (REALE, 2005, p. 990-995). Doutrina revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais O fim do Wiener Kreis ocorreu com a chegada de Hitler ao poder. Esse fato provocou a emigração de alguns membros para os Estados Unidos da América. Por conseguinte, o pensamento vienense misturou-se com as correntes filosóficas norte-americanas (empírico-pragmáticas). A fusão desses dois horizontes abriu a perspectiva em direção à semântica pragmática, além de outras consequências como as introduzidas por Wittgenstein, com os jogos-de-linguagem; por Popper, com a desmistificação da linguagem não-científica, etc. (REALE, 2005, p. 990-995; KAUFMANN, 2002, p. 178). 3 O exemplo privilegiado do direito à saúde e o Poder Judiciário Sabe-se que o modelo de direito sustentado em regras está superado. O discurso exegéticopositivista representa um retrocesso, pois de um lado, continua a sustentar discursos objetivistas identificando o texto e o seu sentido, e de outro lado, busca nas diversas teorias subjetivistas uma axiologia que dê conta de submeter o texto à subjetividade assujeitadora do intérprete (esquema sujeito-objeto), transformando o processo interpretativo num processo de mera subsunção dualística do fato à norma, como se fato e direito fossem coisas cindíveis entre si e os textos fossem meros enunciados linguísticos (STRECK, 2009. p. 337). Está-se, de fato, diante de uma efetiva tensão que contempla o binômio texto/sentido. O resultado disso são as duas possibilidades de caminho que a hermenêutica tem: uma teoria geral da interpretação ou reconhecer a cisão entre o ato do conhecimento do sentido de um texto e a sua aplicação a um determinado caso concreto que não são de fato separados. Ou seja, ou colocamos o problema hermenêutico no viés da subjetividade do intérprete ou no viés da objetividade do texto. Entretanto, isso nos remete ao velho esquema sujeitoobjeto. Estamos diante da impossibilidade da referida cisão, diz Streck, pois essa implica a impossibilidade de o intérprete retirar do texto algo que o texto possui em si mesmo (STRECK, 2008, p. 98-99). 47 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX É interessante destacar que tivemos uma mudança no campo filosófico, pois a filosofia da linguagem invadiu-o e isso ocasionou um novo modo de ver o mundo. Esse foi um passo para a superação da metafísica, cujo paradigma estava assentado na ideia de que os sentidos estavam nas coisas e na metafísica moderna; o sentido estava na mente. Essa invasão da filosofia da linguagem rompe com isso (STRECK, 2009, p. 331). Entretanto, na aplicabilidade do direito, em inúmeras decisões judiciais, nota-se que o decididor ainda está preso ao paradigma metafísico, pois o sentido dado à norma é calcado na coisa em si ou na mente. Eis o caos. Isso que aqui chamo de caos, pode ser relacionado com a decisão analisada neste artigo, decisão essa que não foi efetivamente fundamentada. O problema da fundamentação, segundo leciona Streck (2009, p. 331e 333), é o problema do início do século XX. Dentro desse panorama de mudança e “invasão” (linguistc turn), é necessário pensarmos que o direito não está imune às transformações ocorridas na filosofia. Se o método colocava a linguagem num plano secundário (uma terceira coisa entre o sujeito e o objeto) (STRECK, 2009, p. 371), manipulável pelo sujeito solipsista, a intersubjetividade que se instaura com o giro linguístico exige, no interior da própria linguagem, um controle hermenêutico, ou seja, levar-se o texto a sério (STRECK, 2010. p. 17). O grande drama do direito é não levar o texto a sério e não superar o esquema sujeito-objeto. O grande problema, que parece não ter sido observado pelos juristas brasileiros integrantes da patuleia jurídica nacional, é que não cabe ao intérprete escolher o sentido que melhor lhe convier diante da regra jurídica usada no caso concreto. A interpretação não é nem pode ser resultado de convencionalismos ou de escolhas majoritárias. Em última análise: o sentido não está na coisa em si, tampouco na “consciência em si do pensamento pensante”. A produção do sentido se dá de modo intersubjetivo, que se dá pela linguagem, que rompe com o esquema sujeito-objeto. Assim, não há espaço para a arbitrariedade (STRECK, 2006, p. 203). Resta, como condição, o avanço para os juristas compreenderem a Constituição como Constituição efetivamente. Mas caso não haja isso, teremos aquilo que Streck (2006, p. 208- 209) chama de baixa compreensão, que implica a baixa aplicação dela no Estado Democrático de Direito, o que gera um expressivo prejuízo na concretização dos direitos fundamentais. Isso é bem claro na decisão analisada neste artigo, uma vez que não foi compreendido o sentido do direito à saúde na Constituição, de modo que foi somente compreendido o “sentido do inexistente”: o sentido do “interesse” em detrimento do direito. Hodiernamente, pode-se dizer que a tendência brasileira é, conforme bem leciona o professor Lenio Streck, o protagonismo judicial como sendo o “super homem” concretizador de direitos. Isso advém de uma leitura errada da denominada “Jurisprudência dos Valores”.2 O autor adverte-nos, ainda, sobre a relação dos ativismos judiciais, a consagração da efetiva jurisdição constitucional e a relação disso com os avanços da democracia, que ficam adstritos 2 48 Vale dizer que sobre a Jurisprudência de Valores o fundamental é que ela foi recepcionada pelos juristas brasileiros de modo errôneo, pois o seu contexto de surgimento é totalmente distinto do contexto brasileiro. Para maiores esclarecimentos, consultar: STRECK, Lenio Luiz. O que é isto — decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 20-21. outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX às posições individuais das cortes (STRECK, 2010, p. 23). No caso brasileiro, isso é bem claro, especialmente no Supremo Tribunal Federal quando esse aprecia questões atinentes à saúde, como se verá à frente. Doutrina revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais A ideia de Estado Democrático de Direito está fortemente ligada à realização dos direitos fundamentais, o que é um “plus normativo” ao próprio Estado Democrático de Direito. Esse Estado possibilita, por meio da síntese dos modelos anteriores que ele representa, resgatar, de certo modo, as promessas da modernidade. Atrelado a essa noção de Estado, temos a Constituição, que apresenta um “ideal” de mudança no status quo da sociedade. Assim, no Estado Democrático de Direito, a lei (Constituição) passa a ser uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional (STRECK, 2010, p. 37). O caso dos direitos fundamentais, em especial a saúde, parece ser um exemplo concreto disso. No minúsculo município de Giruá, no interior do estado do Rio Grande do Sul, temos uma das decisões mais complexas no sentido do retrocesso do SUS; é o caso do “pagar a diferença”. O caso trata, pois, de uma ação ajuizada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul em desfavor do Município de Giruá. O Conselho de Medicina ajuizou uma ação civil pública com o objetivo de discutir a necessidade de triagem dos pacientes internados pelo SUS e a possibilidade de que sejam assistidos, nas internações, por médicos de sua livre escolha. O relator da apelação no Tribunal Regional Federal da 4ª Região foi o Des. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, que fez o seu relatório do caso apenas copiando, literalmente, o parecer do Ministério Público Federal. Como se isso não bastasse, no voto repetiu-se a situação, só o que mudou foi a página da cópia do parecer do Ministério Público Federal. O voto divergente foi vencido. Eis o “conteúdo” do voto (ou melhor, o “não conteúdo” do voto): NO MÉRITO Divirjo do ilustre Relator levada pela certeza de que estamos aqui justamente procurando fazer cumprir o que está escrito na Constituição. E o Judiciário tem de procurar interpretá-la buscando aquilo que o espírito do constituinte idealizou. Sabemos que Constituição Federal contém regras que não estão sendo cumpridas pelo Estado. O sistema de saúde no Brasil é uma vergonha, pessoas morrem aguardando a data para fazer um exame. É certo que há os planos de saúde, que proporcionam atendimento mais rápido, só que, pela atual conjuntura econômica do País, verificamos que a grande maioria da população não tem hoje condições de pagar um plano de saúde nos moldes em que estão sendo oferecidos. De um lado, temos a realidade econômica do País, que leva as pessoas a fugir de um plano de saúde porque não têm condições financeiras. De outro lado, o sistema público, que é caótico e tem sérias dificuldades, porque a massa da população é muito grande, e o empobrecimento está aumentando de tal forma que tem sobrecarregado a Previdência Social. 49 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX Os médicos têm feito milagres para poder atender. Então, a bem de garantir aquilo que a Constituição assegura, que é a saúde como um direito de todos, se pudermos, devemos minorar as consequências do descaso do Poder Público com a saúde pública e evitar até que médicos respondam, quando, na realidade, não lhe deram condições para prestar atendimento. Não vejo a quebra de isonomia pelo fato de a pessoa que tem um pouco mais de condições ter a possibilidade de pagar pela acomodação separada e pela assistência de seu médico. Conclui-se, portanto, que o Conselho Regional de Medicina está procurando não só estabelecer uma sistemática que permita um atendimento para quem não tem um plano de saúde, como também para quem não pode esperar por um atendimento que irá demorar. Ressalto que o Governo não terá prejuízo algum com adoção da modalidade “diferença de classe”, pelo contrário, cobrando por esse serviço, os hospitais conseguirão arrecadar algum valor. Com relação à obrigatoriedade de prévia triagem nos postos de saúde, entendo ser uma sistemática cruel, porque faz com que as pessoas tenham que percorrer uma “via-sacra” até chegar ao atendimento, e a saúde não pode esperar. Nesse contexto, entendo que as medidas paliativas que não atentem contra a própria instituição da saúde pública devem ser adotadas. Por esses fundamentos, deve ser reformada a sentença, para que seja reconhecido o direito dos pacientes e dos médicos à internação hospitalar na modalidade “diferença de classe”, permitindo o pagamento pelo uso de acomodações e de serviços não custeados pelo SUS, bem como para que o município se abstenha de exigir que a internação se dê somente após exame do paciente em posto de saúde, e se abstenha de impedir a assistência pelo médico do paciente. Em face do exposto, dou provimento à apelação e nego provimento à remessa oficial. É o voto. Des. Federal Silvia Goraieb (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação cível n. 2003.71.05.005440-0). A desembargadora do Tribunal Regional Federal sustentou o seu voto em argumentos que de fato não se apresentam como tais, na medida em que se preocupou com a realidade econômica do país e de outro lado estava tentando, quase que num processo de adivinhação, alcançar o espírito do constituinte. O princípio da isonomia foi terminantemente ignorado, pois se tem um sistema de saúde com a pretensão de universalidade. Entretanto, se admitirmos o “pagar a diferença”, estamos rompendo com a universalidade insculpida na criação desse sistema de saúde. De fato, a Constituição não foi observada em tal fundamentação, isso sequer foi concretizado. O espetáculo da temeridade não para aqui. Como se não bastasse, alude, ainda, que o Governo não terá prejuízo algum com a adoção da modalidade “diferença de classe”, pelo contrário, cobrando por esse serviço, os hospitais conseguirão arrecadar algum valor. Ou seja, a lógica do direito é invertida. A preocupação não é com a concretização de direitos fundamentais em 50 outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX países de modernidade tardia, mas é sim o ganho do governo, a privatização do público. A fundamentação jurídica, nesse caso, perde espaço para qualquer outra racionalidade, menos a jurídica. Nessa situação, pode-se até dizer que o direito não está operando mais com o seu código; está-se à beira da corrupção do sistema. Doutrina revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais Após a apreciação da apelação, o Juiz Federal Substituto Laudemiro Dors Filho (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Execução de sentença contra Fazenda Pública n. 2003.71.05.005440-0/RS), no dia 13 de maio de 2010, intimou o município de Giruá para que: [...] permita o acesso do paciente à internação pelo SUS e o pagamento da chamada diferença de classe, para obter melhores acomodações, pagando a quantia respectiva, quer ao hospital, quer ao médico; abstenha-se de exigir que a internação só se dê após exame do paciente em posto de saúde (outro médico que não o atendeu), e de impedir a assistência pelo médico do paciente, impondo-lhe outro profissional. Tal decisão refere-se ao “pagar a diferença”, mas não é uma demanda isolada, é apenas uma decisão dentro do Poder Judiciário, o Supremo ainda está analisando tais demandas. Vale dizer que se está diante de uma verdadeira “enxurrada” de litígios como esse. O trecho da decisão supracitada refere-se à apelação cível n. 2003.71.05.005440-0, que tramitou no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, onde o Cremers (Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul) pleiteou o pagamento da diferença de classe dentro do Sistema Único de Saúde; o apelado foi o Município de Giruá. Há que se destacar que o Supremo ainda está julgando inúmeras demandas dessa natureza. Qualquer pessoa, jurista ou não, que leia a decisão e que tenha uma pré-compreensão constitucional, visualiza que a decisão não tem fundamentação constitucional, apesar de tocar (no plano extremamente prático) num ponto relevantíssimo: o direito à saúde e o sistema único de saúde. É interessante observar que num dos votos do acórdão (decisão que “analisou” o recurso de apelação), o desembargador cita, na fundamentação do seu voto, um trecho do parecer do Ministério Público Federal acerca do tema: VOTO Em seu parecer, a fls. 237-240, anotou o douto MPF, verbis: [...] A pretensão (i) supostamente atende aos interesses dos usuários do SUS, dos prestadores de serviços de saúde e dos profissionais médicos. Os pacientes podem ter interesse em obter internação em acomodações privativas ou semi-privativas, mesmo que tenham que pagar por isso [...] (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação cível n. 2003.71.05.005440-0). Veja-se o quão interessante é a fundamentação, atente-se para o destacado na decisão: “Os pacientes podem ter interesse”. Quando um magistrado fundamenta uma decisão dizendo que os pacientes podem ter interesse, ele está, na verdade, dizendo aquilo que ele (intérprete) 51 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX quer que efetivamente seja. Essa é uma das críticas preliminares que Streck (2010, p. 25) faz. O direito, por assim dizer, não é aquilo que o Tribunal arbitrariamente, sem critério algum, diz que é. Se assim fosse, fica a indagação feita por Streck: o que faríamos com a Constituição? Com as leis das leis? Nota-se que interesse (a que não faz alusão alguma na Constituição), nessa perspectiva, recebe o status de direito. Não há a necessidade de ser operador do sistema jurídico para saber que interesse é algo distinto de direito. Ora, interesse pode ser quase tudo, menos direito! A Constituição alude ao direito à saúde, e não ao interesse pessoal de cada um. Se a lógica do interesse vai permear o sistema, então o fim está próximo, pois essa lógica liberal do interesse aniquila o caráter universalista do sistema único de saúde, visto que só quem poderá pagar é que terá um serviço mais digno. Acaba, também, com o aspecto igualitário do sistema de saúde, pois será uma luta de classes: quem pode pagar vs. quem não pode pagar. Esse tipo de situação aniquila por completo a saúde pública. Há de se destacar que esse tipo de decisão corrobora a ideia de que se o serviço público é ineficiente ou pouco digno, o cidadão deve pagar para receber um atendimento adequado, mas o serviço prestado não deveria ser no mínimo digno? Então, se o Estado não pode prestar tal serviço de modo digno está tudo bem, pois quem pode pagar paga e está tudo resolvido? É, parece que a resposta para isso, mediante tal decisão, é, no mínimo, insatisfatória e preocupante. O que causa maior preocupação ainda é que essa não é uma decisão única. Que o Supremo Tribunal Federal tem decidido inúmeros recursos extraordinários com esse tema, oriundos de diferentes Estados da Federação é de simples constatação: basta acessar o site do Supremo. Frente a essas várias decisões, cumpre salientar uma delas, que por acaso foi usada na decisão supracitada como um pretenso fundamento, pois foi o decidido por quem diz o que é o direito em última análise, ou seja, o Supremo Tribunal Federal: DIREITO À SAÚDE. ART. 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE PERMITIU A INTERNAÇÃO HOSPITALAR NA MODALIDADE “DIFERENÇA DE CLASSE”, EM RAZÃO DAS CONDIÇÕES PESSOAIS DO DOENTE, QUE NECESSITAVA DE QUARTO PRIVATIVO. PAGAMENTO POR ELE DA DIFERENÇA DE CUSTO DOS SERVIÇOS. RESOLUÇÃO N. 283/91 DO EXTINTO INAMPS. O art. 196 da Constituição Federal estabelece como dever do Estado a prestação de assistência à saúde e garante o acesso universal e igualitário do cidadão aos serviços e ações para sua promoção, proteção e recuperação. O direito à saúde, como está assegurado na Carta, não deve sofrer embaraços impostos por autoridades administrativas, no sentido de reduzi-lo ou de dificultar o acesso a ele. O acórdão recorrido, ao afastar a limitação da citada Resolução n. 283/91 do INAMPS, que veda a complementaridade a qualquer título, atentou para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, o de assistência à saúde. Refoge ao âmbito do apelo excepcional o exame da legalidade da citada resolução. Inocorrência de quebra da isonomia: não se estabeleceu tratamento desigual entre pessoas numa mesma situação, mas apenas facultou-se atendimento 52 outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX diferenciado em situação diferenciada, sem ampliar direito previsto na Carta e sem nenhum ônus extra para o sistema público. Recurso não conhecido (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 226.835/RS). Doutrina revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais Se o Supremo (nossa corte máxima, que diz o que é o direito em última análise) está decidindo assim, então a tendência é a aniquilação e o enfraquecimento do sistema de saúde! Esse tipo de decisão mostra a privatização do público. É um retrocesso, pois se, no período pré-constituinte, lutou-se para reverter esse quadro de privatização, hoje, mais de vinte anos depois, vive-se o inverso, nota-se o paradoxo: no passado lutamos contra a privatização e atualmente estamos “privilegiando” a privatização. Esse tipo de decisão possui efeito inter partes (ou seja, atinge tão somente os envolvidos na demanda). Todavia, essa decisão, bem como as demais, serão utilizadas nas demandas de 1º grau como precedentes, ou seja, como jurisprudência e isso servirá de base para outros litígios, ou seja, atinge-se o efeito erga omnes, pela via indireta. Além de ser uma decisão extremamente de se destacar que essa situação vivida, negativo) nos faz perceber o quão frágil democráticos, pois o nosso Congresso e manifestaram em relação a essa decisão. questionável, do ponto de vista técnico-jurídico, há que ousamos chamar de um novo paradigma (muito é a nossa democracia, bem como os nossos espaços os nossos agentes políticos, de modo geral, não se Se não conseguimos concretizar direitos mínimos, fundamentais, se não conseguimos concretizar espaços democráticos para um debate que é público, então a nossa democracia está mais frágil do que se pensa, e a nossa cidadania também. Nesse sentido, são oportunas as observações a respeito da relação entre direito, direito à saúde e cidadania de Costa (2008, p. 33): [...] o direito à saúde é um direito intimamente vinculadao à solidariedade estatal, e, para além do vínculo, um direito profundamente ligado à cidadania. Cada indivíduo, vivendo no território de um Estado, é cidadão deste Estado e tem direito à saúde. Esta concepção do direito à saúde é consequência da evolução do próprio conceito de direito, pois como o direito de votar ou ser eleito, o direito à saúde foi progressivamente estendido para toda a sociedade civil, produzindo todos os efeitos vinculados à cidadania. Parece-nos oportuno dizer que se concretizar o direito à saúde é dar concretude, também, à cidadania. Se o direito à saúde foi progressivamente estendido a toda a sociedade, então seria um retrocesso segregar aqueles que podem pagar daqueles que não podem, no que tange ao acesso do sistema único de saúde, na perpectiva de um serviço eficiente e digno. É inegável que a crise que permeia a hermenêutica jurídica tem fortes contornos de uma discussão de fundamentação, que é, em última análise, a marca da crise do conhecimento que se sobressai no século XX (STRECK, 2008, p. 98). Esse problema de fundamentação ainda é presente hodiernamente e nada melhor do que as decisões dos tribunais para tornar ainda mais palpável tal problema. 53 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX A fundamentação da decisão é deficiente, está calcada na pretensa inexistência de ofensa à isonomia, ou seja, fundamentação zero na decisão. Não há um enfrentamento do direito à saúde e da igualdade na decisão. Conforme adverte Streck (2006, p. 282-283), além de a decisão ser fundamentada, ela deve ser, antes de mais nada, justificada, ou seja, explicitar o que serviu de fundamento para a tomada de decisão. Trata-se, pois, de fundamentar a fundamentação. É a justificação da decisão. Essa é uma exigência que se tem, já que temos uma Constituição que contempla promessas de uma vida boa, de uma sociedade solidária, ou seja, uma Carta que contempla todas aquelas promessas da modernidade. Isso demanda que o juiz (intérprete) não possa impor conteúdos de natureza moral, atemporal e a-histórica na sua atividade de intérprete. O art. 93 de Constituição, inciso IX, que exige a fundamentação das decisões, é uma das consequências do constitucionalismo do século XX e da invasão da filosofia pela linguagem, que contribuem para o desmoronamento do esquema sujeito-objeto. Sendo assim, a fundamentação das decisões passa a ser um direito fundamental do cidadão, pois integra o patrimônio do próprio Estado Democrático de Direito. No caso em tela, nota-se que efetivamente não há, por parte da corte máxima do País, a explicitação da resposta sustentada em consistente justificação. Ainda sobre a fundamentação, cabe destacar o vergonhoso trecho da “fundamentação” do Supremo: [...] 4. A matéria foi objeto de julgados do Supremo Tribunal, que concluiu pela prevalência da tese defendida pela Recorrente. Por isso a ele assiste razão, na forma do direito vigente. 5. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido da possibilidade da internação hospitalar na modalidade “diferença de classe” sem ônus para o Estado. Essa faculdade conferida ao paciente atende ao mandamento constitucional que estabelece a saúde como direito de todos e dever do Estado. Inocorrência de quebra da isonomia: não se estabeleceu tratamento desigual entre pessoas numa mesma situação, mas apenas facultou-se atendimento diferenciado em situação diferenciada, sem ampliar direito previsto na Carta e sem nenhum ônus extra para o sistema público. Recurso não conhecido (RE n. 226.835 , Rel. Min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, DJ 10/03/2000). EMENTA: — Direito à saúde. “Diferença de classe” sem ônus para o SUS. Resolução n. 283 do extinto INAMPS. Art. 196 da Constituição Federal. — Competência da Justiça Estadual, porque a direção do SUS, sendo única e descentralizada em cada esfera de governo (art. 198, I, da Constituição), cabe, no âmbito dos Estados, às respectivas Secretarias de Saúde ou órgão equivalente. — O direito à saúde, como está assegurado no art. 196 da Constituição, não deve sofrer embaraços impostos por autoridades administrativas no sentido de reduzi-lo ou de dificultar o acesso a ele. Inexistência, no caso, de ofensa à isonomia. Recurso extraordinário não conhecido (RE n. 261.268. Rel. Min. Moreira Alves, Primeira Turma, DJ 05/10/2001). E, ainda, as seguintes decisões monocráticas: RE n. 601.712, Rel. Min. Carlos Britto, DJe 04/09/2009; RE n. 496.244, Rel. Min. Eros Grau, DJe 12/05/2008; RE n. 228.750, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 54 outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX DJ 19/04/2007; RE n. 254.245, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 23/06/2005, RE n. 428.648, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 05/10/2004; e RE n. 363.062, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 09/05/2003. 6 . Dessa orientação jurisprudencial divergiu o julgado recorrido. 7. Pelo exposto, dou provimento ao recurso extraordinário (art. 557, 1º — A, do Código de Processo Civil e art. 21, § 2º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), para autorizar o tratamento médico-hospitalar na modalidade “diferença de classe”, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Ônus de sucumbência conforme decisão de primeiro grau. Publique-se. Brasília, 9 de novembro de 2009. Ministra Cármen Lúcia Relatora. [...] (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 226.835/RS). Doutrina revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais Além de carecer de justificação, a decisão ainda alude a julgados do próprio tribunal, mas de modo totalmente descontextualizado, a-histórico. É um mero ato de “copiar e colar” as ementas dos acórdãos para corroborar uma decisão. Nesses casos, o juiz decide e depois fundamenta, quando na verdade, deveria primeiro decidir porque já encontrou, na antecipação de sentido, o fundamento (STRECK, 2006, p. 286). Esse tipo de decisão que não nos diz “porque se decidiu” daquele modo é a típica decisão que não leva em consideração o próprio direito à fundamentação, além do que, não leva em consideração que para interpretar é necessário compreender, e para isso precisamos ter uma “pré-compreensão”, que é constituída de estrutura prévia de sentido, que vai se fundar numa visão prévia, concepção prévia, já que isso une todas as partes do sistema (STRECK, 2008, p. 100). 4 Considerações finais Analisando o sentido do direito hoje, Castanheira Neves (2002, p. 26) observa que na esteira do jusnaturalismo formal iluminista e da teoria pura do direito, o neopositivismo jurídico contemporâneo continua reafirmando o direito como um platonismo de normas, identificando a plenitude do seu sentido na identidade abstrata do sistema normativo. Em sintonia com esta concepção da juridicidade, a aplicação do direito se reduz a uma operação silogística que procura subsumir o caso, decidindo o sentido já a priori definido na norma, com a finalidade de garantir a sua concretização, por meio de procedimentos lógico-dedutivos. Mas isso não responde de modo efetivo às demandas atuais do direito. A grande e fundamental discussão é: como se interpreta, como se aplica e se é possível alcançar condições interpretativas capazes de garantir uma resposta correta (constitucionalmente correta) (STRECK, 2009, p. 340). Parece mais do que oportuno resgatar o que o autor há muito já disse: levemos o texto a sério (STRECK, 2006, p. 140). Ocorre, pois, que diante da análise que foi realizada acerca do contexto do positivismo jurídico, bem como da sua superação, note-se que no caso apresentado e estudado, os tribunais (leia-se: Tribunal Regional Federal e o Supremo Tribunal Federal) não levaram o texto a sério efetivamente, pois do modo como foi decidido, o texto foi considerado apenas um mero enunciado linguístico, a Constituição é quase “rasgada” nessas situações. Querer aplicá-la, nesse contexto de caos jurídico, é definitivamente, esperar muito dos tribunais. 55 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX Nota-se, também, que os princípios constitucionais, que deveriam dar espaço para elidir a discricionariedade acabam virando regras e são anulados por conceitualizações (STRECK, 2006, p. 143). Foi o que se constatou na decisão do “pagar a diferença”. O princípio da isonomia foi utilizado de modo “conceitualizado”, e o mais assustador e temerário, é que essa conceitualização deu-se por meio de invocação de ementa de julgados. Julgados esses totalmente jogados no contexto da decisão e da fundamentação, sem sequer serem contextualizados, ou seja, a-históricos e desconexos com a situação. Infelizmente o pior ainda está por vir, pois só nos restam o estarrecimento e o pessimismo quando lemos decisões, por exemplo, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que, no decorrer da sua fundamentação, aludem à moderna hermenêutica constitucional, entretanto, não dizem do que se trata, tampouco quem é o “pai” de tamanha proeza, e para causar maior angústia, a pretensa fonte dessa façanha são verbetes jurisprudenciais do próprio relator do acórdão, veja-se o exemplo de mais uma temeridade: Na verdade, da mesma maneira que a previsão legislativa de prisão obrigatória, também a proibição ope legis da liberdade provisória a determinados tipos de crimes se afigura inconstitucional por ofensa ao sistema de direitos fundamentais, isto é, violação dos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e do princípio da proporcionalidade, conforme fundamentos baseados na moderna hermenêutica constitucional (SANGUINÉ, Odone: “Inconstitucionalidade da proibição de liberdade provisória do inciso II do artigo 2° da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990”, op. cit., p. 254-255; ID.: “Prisão provisória e princípios constitucionais”, op. cit., p. 102 e 123 ss). A doutrina — que se tornou hoje predominante — acolhe essa opinião, destacando-se SILVA FRANCO, Alberto: Crimes Hediondos, op.cit., p. 95 e ss.; recentemente, também se manifesta contrariamente à proibição legislativa de concessão de liberdade provisória com fundamento na presunção de inocência, NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal, op. cit., p. 637-639. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Habeas Corpus n. 70037650009). Eis o triunfo dos manuais que formam operadores tecnicistas do direito e do caos jurídico instaurado, especialmente, nos Tribunais! Esses são pequenos exemplos dos resquícios do fracasso do positivismo que delegou aos magistrados a discricionariedade nos hard cases e nos easy cases, a persistência do esquema sujeito-objeto que faz com que os casos sejam resolvidos com a mera subsunção do fato à norma. Na decisão, objeto da análise, “pagar a diferença”, nota-se a inconsistência da fundamentação, há uma total inobservância do art. 93, IX, da Constituição (direito fundamental do cidadão à fundamentação). Desde a apreciação do caso em primeiro grau, não houve uma integração e quiçá uma reconstrução do próprio direito para tentar apontar a resposta correta. No Tribunal Regional Federal e no Supremo Tribunal Federal a cena repetiu-se. Estamos em meio à cegueira, à escuridão. 56 outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX Em síntese, pressupondo a superação do paradigma objetificante e a representação contemplativa de uma subjetividade logicamente alienada do real, constrói-se em imanência histórica com o mundo da vida e a concretude existencial dos fatos (casos jurídicos concretos, como, por exemplo, o “pagar a diferença”), a linguagem deixa de ser uma terceira coisa interposta entre sujeito e objeto, passando a assumir uma condição de possibilidade, em que a interpretação, revestindo-se de um cariz produtivo, deixa de ser simplesmente reprodutiva (STRECK, 2002, p. 197 e ss). Assim, a aplicação do direito, sob a orientação da ontologia heideggeriana, realça que toda a compreensão remete para uma síntese hermenêutica, na qual a universalidade se unifica com a contingência relativa da singularidade. Doutrina revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais Socorremo-nos de Streck (2008, p. 107) para dizer que o cerne da questão não é a “resposta correta” em si, mas o modo como essa é dada. Essa resposta deve ser fruto de uma relação do esquema juiz/intérprete da relação de compreensão baseada na intersubjetividade sujeito-sujeito. E é justamente isso que está ausente na decisão que foi analisada, “o pagar a diferença”. A questão não é a “resposta correta”, mas sim o modo de produção dessa decisão, ou seja, o paradigma sobre o qual ela está assentada: sujeito-objeto. Decisões arraigadas nesse paradigma (que insistentemente e com razão tenta-se superar) já não dão mais conta de um sistema jurídico como o contemporâneo, e a situação se agrava quando não há um olhar crítico ao direito, ou seja, manter esse paradigma é manter o ultrapassado. O que nos resta é a esperança de, por exemplo, quiçá um dia os nossos “aplicadores do direito” alcançarem o real significado da metáfora da resposta correta. Há esperanças que é loucura ter. Pois eu te digo que se não fossem essas, já eu teria desistido da vida (SARAMAGO, 1995), e nós do Direito. Referências BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do Direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 226.835/RS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia. asp?s1=(RE$.SCLA.%20E%20226835.NUME.)%20OU%20(RE.ACMS.%20ADJ2%20226835. ACMS.)&base=baeAcordaos. Acesso em: 18 set. 2010. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Habeas Corpus n. 70037650009, 2010. Disponível em: http://www3.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/ exibe_documento_att.php?ano=2010&codigo=1543591. Acesso em: 11 nov. 2010. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação cível n. 2003.71.05.005440-0. Disponível em: http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/ 57 revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX visualizar_documento_gedpro.php?local=trf4&documento=597982&hash=90cf658f1 6c8df83f0d2a5188354962a. Acesso em: 18 set. 2010. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Execução de sentença contra Fazenda Pública n. 2003.71.05.005440-0 (RS). Disponível em: http://www.trf4.jus. br/trf4/processos/acompanhamento/resultado_pesquisa.php?txtValor=2003.71.050 054400&selOrigem=RS&chkMostrarBaixados=&selForma=NU&hdnRefId=&txtPalavr aGerada=&PHPSESSID=5d45bb4b2e65e2e8412fdca704b9e4be. Acesso em: 25 jun. 2010. COMTE, Auguste. Discurso sobre o espírito positivo. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1990. COSTA, Alexandre [et al]. O Direito achado na rua: uma introdução crítica ao direito à saúde. Alexandre Bernardino Costa [et al.] (orgs). Brasília: CEAD/UnB, 2008. DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Tradução de António José Brandão. 5. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979. KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. MONCADA, Luís Cabral de. Estudos de filosofia do direito e do Estado. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004. v. 2. REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da filosofia. 7 ed. São Paulo: Paulus, 2005. v. 3. REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 3. ed. São Paulo: RT, 1998. SALDANHA, Nelson. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Renovar: 1998. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise — Uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica ao direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto — decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. STRECK, Lenio Luiz. Desconstruindo os modelos de juiz: a hermenêutica jurídica e a superação do esquema sujeito-objeto. In: Constituição, sistemas sociais e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 97-116. 58 outubro | novembro | dezembro 2011 | v. 81 — n. 4 — ano XXIX STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. THONNARD, F. J. Compêndio de história da filosofia. Tradução de Valente Pombo. Paris, Tornai, Roma: Sociedade de S. João Evangelista, 1953. Doutrina revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais Abstract This article analyzes the positivism in the context of its birth, in order to establish the present situation of this model in Brazil, as well as non-acceptance of overcoming the subject-object schema and the invasion of language in philosophy. It is also the intention of this work to examine empirically a court decision and its effects in this context of crisis of legal positivism. In that decision, the focus is on the basic right to health. It will take into account aspects relating to the reasons, the decision theory, considering the “peculiarities” of the interpretation and decision-making. Keywords: Legal positivism. Decision. Reasoning. Health. Data de recebimento: 27 jun. 2011 Data de aceite para publicação: 22 set. 2011 59