DA IRREGULARIDADE FUNDIÁRIA
URBANA À REGULARIZAÇÃO:
ANÁLISE COMPARATIVA PORTUGAL–BRASIL
Isabel Raposo
Lucia Bógus
Suzana Pasternak
ORGANIZADORAS
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitor: Dirceu de Mello
E  PUC-SP
Direção: Miguel Wady Chaia
Conselho Editorial
Ana Maria Rapassi
Cibele Isaac Saad Rodrigues
Dino Preti
Dirceu de Mello (Presidente)
Marcelo da Rocha
Marcelo Figueiredo
Maria do Carmo Guedes
Maria Eliza Mazzilli Pereira
Maura Pardini Bicudo Véras
Onésimo de Oliveira Cardoso
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Isabel Raposo
Lucia Bógus
Suzana Pasternak
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São Paulo
2010
Copyright © 2010, Isabel Raposo, Lucia Bógus e Suzana Pasternak.
Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri/PUC-SP
Da irregularidade fundiária urbana à regularização: análise comparativa Portugal–Brasil / orgs.
Isabel Raposo, Lucia Bógus e Suzana Pasternak. - São Paulo : EDUC, 2010.
452 p. ; 16 cm.
ISBN (em curso)
1. . 2. . 3. . I. Raposo, Isabel. II. Bógus, Lucia. III. Pasternak, Suzana.
CDD 0
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0
Produção Editorial
Sonia Montone
Preparação e Revisão
Sonia Rangel
Editoração Eletrônica
Waldir Antonio Alves
William Martins
Capa
Educ
Secretário
Ronaldo Decicino
EDUC – EDITORA DA PUC-SP
Rua Monte Alegre, 971 – sala 38CA
05014-001 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: [email protected]
Site: www.pucsp.br/educ
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APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 7
Isabel Raposo
Lucia Bógus
Suzana Pasternak
INTRODUÇÃO À PARTE I
Bairros clandestinos na periferia de Lisboa ....................................................... 25
Teresa Barata Salgueiro
PARTE I  A ILEGALIDADE FUNDIÁRIA URBANA EM PORTUGAL
Do “bairro clandestino” às “Áreas de Gênese Ilegal” –
um problema que permanece em Portugal ....................................................... 31
Maria Teresa Craveiro
Augi / “Clandestinos” ...................................................................................... 61
Manuel da Costa Lobo
Reconversão de territórios de gênese ilegal na Grande Área
Metropolitana de Lisboa (GAML) ................................................................... 81
Isabel Raposo
Localização territorial e sustentabilidade ambiental das áreas urbanas
de gênese ilegal na Grande Área Metropolitana de Lisboa .............................. 123
Ademar Luís Gonzaga Machado
Qualificação do espaço público de loteamentos de gênese ilegal na
Grande Área Metropolitana de Lisboa ....................................................................141
Sílvia Branco Jorge
Do ilegal ao formal: percursos para a reconversão urbana
das Áreas Urbanas de Gênese Ilegal em Lisboa ............................................... 159
Jorge Gonçalves
Carla Mota Alves
Fernando Nunes da Silva
INTRODUÇÃO ÀS PARTES II E III
Loteamentos clandestinos .............................................................................. 189
Ermínia Maricato
PARTE II  IRREGULARIDADE FUNDIÁRIA E DIREITO
À MORADIA EM METRÓPOLES BRASILEIRAS DO NORDESTE
Regularização fundiária como direito à moradia: qual o caminho? ................. 197
Camila D’Ottaviano
Sérgio Luis Quaglia-Silva
Loteamentos e Assentamentos de Gênese Ilegal na metrópole do Recife:
descompasso entre arcabouço jurídico e realidade social ............................... 219
Maria Angela de Almeida Souza
O processo de regularização fundiária de Alagados – Salvador Bahia.............. 247
Nelson Baltrusis
Ilegalidade urbana na Região Metropolitana de Fortaleza:
Zonas Especiais de Interesse Social como alternativa de solução..................... 271
Renato Pequeno
PARTE III  A IRREGULARIDADE FUNDIÁRIA NO PROCESSO DE
EXPANSÃO URBANA DA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO
Notas sobre a produção da irregularidade no espaço urbano em São Paulo .... 305
Beatriz Bezerra Tone
Luciana Nicolau Ferrara
Assentamentos irregulares e proteção ambiental: impasses e desafios
da nova legislação estadual de proteção e recuperação dos mananciais
na Região Metropolitana de São Paulo .......................................................... 331
Angélica Alvin
Urbanização e regularização de loteamentos e habitações ............................... 359
Gilda Collet Bruna
Evolução espacial dos loteamentos irregulares em São Paulo .......................... 381
Suzana Pasternak
À sombra da regularização fundiária .............................................................. 417
Mônica de Carvalho
Regularização fundiária urbana participava: a experiência do loteamento
Ponte Alta “Osvaldinho” no município de Taboão da Serra ........................... 437
João Marcus Pires Dias
QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
!
In BÓGUS, Lúcia, RAPOSO, Isabel, PASTERNAK, Suzana (2011)
Da irregularidade fundiária urbana à regularização: análise comparativa PortugalBrasil, São Paulo, EDUC, pp. 143-159.
QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO
DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
NA GRANDE ÁREA METROPOLITANA DE LISBOA 1
Sílvia Branco Jorge
Arquitecta, Mestranda em Reabilitação da arquitectura e dos Núcleos Urbanos na FAUTL.
Bolsista de Investigação da Fundação para a Ciência e Tecnologia,
membro do GESTUAL (Grupos de Estudos Socio-territoriais e Urbanos e Acção Local).
Contato: [email protected]
Introdução
O espaço público dos loteamentos de génese ilegal localizados na
GAML é o objecto de estudo deste texto. Face à complexidade e à
tendência para a privatização do fenómeno urbano, a reflexão sobre o
espaço público começa a impor-se, obrigando a alterar os modelos teóricos
e os paradigmas de intervenção. O olhar centra-se aqui na caracterização e
na qualificação do espaço público dos loteamentos de génese ilegal,
considerando-se que agindo sobre o espaço se age sobre a sociedade
(Guerra 2007).
A qualidade do espaço público reside na confluência da forma com o
uso e dos significados que assume, variáveis ao longo do tempo e com a
cultura de quem os produz e deles se apropria e/ou os vivencia. A análise
acompanha o percurso dos loteamentos de génese ilegal da GAML, desde o
seu surgimento até aos dias de hoje, através de uma breve contextualização
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Investigação conduzida no quadro do Projecto de Investigação PTDC/AUR/71721/2006 “Reconversão
e reinserção urbana de bairros de génese ilegal. Avaliação socio-urbanística e soluções integradas de
planeamento estratégico”, coordenado pela Professora Isabel Raposo, desenvolvido na Faculdade de
Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa e financiado pela Fundação para a Ciência e
Tecnologia.
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
histórica, centrada na caracterização social e territorial, nas políticas, estratégias e metodologias de intervenção adoptadas, que interferem e/ou determinam as transformações do espaço público. Procura-se demonstrar que o
fenómeno dos loteamentos de génese ilegal, ao inverter a ordem do processo de construção do espaço urbano, possibilitou o acesso à propriedade e ao
urbano de classes sociais com menos recursos, embora tenha atrasado a
construção do espaço público, dissociando-o da intervenção no domínio
privado e remetendo-o para a fase final do processo de urbanização.
Origem do fenómeno: o primado do espaço privado
O crescimento industrial, que eclode em Portugal no final da década de
1950, atraiu fortes contingentes populacionais vindos das zonas rurais para
o litoral, principalmente para Lisboa, resultando na explosão demográfica
da capital. Estes fluxos demográficos de grande intensidade estão associados ao fenómeno da periurbanização, e contribuíram para a reconfiguração
social dos centros urbanos tradicionais (PORTAS et al. 2007).
Os centros urbanos dos vários municípios da GAML cresceram e
expandiram-se de forma diferente no tempo, consequência das transformações que ocorreram no seu uso do solo, da melhoria da acessibilidade e dos
principais eixos dos transportes, das propostas de planeamento territorial de
que foram objecto ou, pelo contrário, em consequência da sua inadaptação
(PINHEIRO et al. 2001).
A partir sobretudo da década de 1960, cresce a cidade não planeada, que
se estende na periferia da cidade planeada ou histórica, ou ocupando os
seus interstícios, e se constrói por processos não controlados institucionalmente, considerados marginais e ilegais: o espaço urbano clandestino. No
contexto dos grandes desequilíbrios socioeconómicos que caracterizam a
época, as populações de origem rural, recém chegadas à cidade, ou na
busca de residência própria, sem hipótese de chegarem ao mercado legal de
habitação, começam a construir as suas casas “clandestinas” em terrenos
privados e loteados ilegalmente.
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
Os “clandestinos” representaram “um importante depoimento da
iniciativa privada das populações, posta ao serviço da satisfação das
necessidades mais elementares” (Rodrigues 1989: 80), como o acesso à
habitação. O Estado Novo não desenvolveu uma política capaz de gerir o
fluxo migratório e resolver a questão habitacional das populações
migrantes e percepcionou estes segmentos da população como “classes
perigosas” (Gros 1982). As carências ao nível da habitação, ensino, saúde,
equipamentos e infra-estruturas básicas tornam-se prementes mas faltam os
meios para as solucionar (id.: 47).
Os loteamentos de génese ilegal constituem alternativas às insuficiências ou incapacidades – financeiras, técnicas e políticas – das administrações públicas (centrais, regionais e locais) em responderem ao crescimento
urbano e ao afluxo à cidade inicialmente dos migrantes e, mais tarde, dos
imigrantes, “incapacidades a que não são alheias as contradições e conflitos que se desenvolvem a nível do poder político quer antes quer depois do
25 de Abril” (Soares 1984: 21).
O fenómeno dos loteamentos clandestinos desencadeou uma profunda
alteração na estrutura fundiária das periferias urbanas, alterando a estrutura
dos agentes urbanos e gerando contradições entre o grande e o pequeno
capital, entre os promotores imobiliários e os proprietários clandestinos
(ibid.).
Os loteamentos clandestinos caracterizam-se pelo traçado ortogonal, de
rápida implementação, alheios às características locais, nomeadamente
topográficas. A prioridade destes loteamentos clandestinos é o espaço
privado, constituído pelos “lotes”, em detrimento do espaço público,
entendido como a área sobrante do parcelamento, de acesso às parcelas,
sem articulação com uma envolvente urbana, muitas vezes inexistente, com
a qual pudesse estabelecer continuidades2.
O loteador ilegal oferecia uma alternativa de solo urbanizável
(ilegalmente), sem a responsabilidade de fazer cedências nem obras de
urbanização. A localização dos loteamentos clandestinos era função da
disponibilidade de parcelas, em geral rústicas, a baixo preço, em alguns
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
Apesar dos clandestinos ocuparem inicialmente posições periféricas, integraram-se progressivamente
no tecido urbano, devido ao crescimento contínuo do tecido urbano metropolitano, embora alguns se
mantenham, até aos dias de hoje, isolados.
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
FIGURA 1 - PLANTA DE UM TERRITÓRIO LOTEADO ILEGALMENTE
(QUINTA DO CONDE, SESIMBRA), POR UM DOS PRINCIPAIS
LOTEADORES ILEGAIS DA GAML, O SR. XAVIER DE LIMA.
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
casos, áreas naturais de protecção ecológica marcadas por diversas
condicionantes (ver texto de Ademar Machado). Resultou um uso do solo
fragmentado, uma estrutura urbana descontínua e mal preenchida, carente
de planeamento e ligação à envolvente, sem enquadramento das
administrações públicas, à mercê da rentabilização financeira do loteador
ilegal, da maximização da ocupação do solo. A população adquiria assim
uma parcela de terreno (rústico) para construção (ilegal), não urbanizada,
ou seja, sem vias pavimentadas, nem rede de água ou esgotos, recolha de
lixo, transporte público ou equipamentos públicos.
A ocupação dos “lotes” fez-se gradualmente, sem regras formais. O
loteamento clandestino definia o parcelamento do solo3, ficando ao critério
dos proprietários a opção quanto à tipologia de construção e forma de ocupação dos terrenos, em função dos seus anseios e capacidades económicas.
Consequentemente, os clandestinos incorporam uma diversidade de
modelos, sobretudo residenciais, com diferentes densidades e padrões de
ocupação, com variações entre margem Sul e margem Norte da GAML,
entre cada um dos 18 municípios que a compõem, entre cada uma das
freguesias e, em alguns casos, num mesmo bairro.
Ao construírem as suas habitações, muitas vezes em regime de autoconstrução, os proprietários de “lotes” intervêm na produção do seu espaço
habitacional (Lefebvre 1974). O preço acessível de aquisição do terreno,
muitas vezes pago em prestações, e as tipologias evolutivas, adaptadas às
necessidades e aos recursos disponíveis, o investimento e melhoramento
gradual das casas, são vantagens significativas para as populações que
optaram pela prática de construção clandestina.
Nestas construções evidenciam-se os materiais e tecnologias disponíveis
no mercado, o que lhes confere uma mobilidade plástica e uma mutabilidade permanente que se adapta às necessidades de quem as constrói e
utiliza. Nelas, destacam-se: a tendência para um tratamento decorativo e de
superfície dos elementos construtivos; a necessidade de afirmação
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
O parcelamento do solo era feito pelo loteador ilegal, através de uma planta básica de loteamento.
Nalguns casos, eram os proprietários que escolhiam a parcela de terreno, a sua localização, e dimensão:
“esticava-se a fita métrica [e] colocavam-se as estacas” segundo depoimento do Sr. Rui Pego, filho do
loteador ilegal da Quinta da Fábrica, Vinha e Atafoneira, no município de Loures (entrevista a 6 de
Julho de 2009).
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
individual na pintura colorida das fachadas ou no revestimento com
materiais cerâmicos; a preocupação com o embelezamento dos espaços da
entrada, como a demarcação dos muros que separam o privado do público;
e a ornamentação de vãos e recantos (Fernandes 1989: 134). Nos
loteamentos clandestinos, as construções exprimem os modelos, os desejos
e o gosto de quem as produz ou habita.
As populações tinham o sonho de construir uma casa, não
ambicionavam construir cidade, o que condiciona a relação entre o
individual e o colectivo, entre o espaço privado e o espaço público. A
conjuntura da sociedade portuguesa, no terceiro quartel do século XX, e a
origem rural das populações explicam o desejo pela posse de um “pedaço
de terra” e de uma habitação unifamiliar. Na adaptação à cidade, os
residentes do clandestino não pretenderam “urbanizar o rural”, mas sim
“ruralizar o urbano”, de acordo com o seu habitus (Ferreira et al 1984:
117). Assim, predomina entre o clandestino a baixa densidade e a habitação
unifamiliar, sendo mais reduzida a percentagem da habitação plurifamiliar,
geralmente prédios para arrendamento, localizados principalmente nos
municípios da margem Norte, da primeira coroa, próximos da capital ou
dos principais centros de emprego. A intervenção das populações no espaço
privado, nomeadamente nas características exteriores das construções,
interferiu e interfere nas características do espaço público, o qual se
configura pela relação entre a verticalidade do lote/construção e a
horizontalidade do espaço exterior (Oliveira 2008).
No caso da habitação unifamiliar (moradia), o espaço público é marcado
pela forte presença dos muros de vedação que delimitam cada uma das
parcelas, marca do domínio privado e demarcação da rua; pela ausência de
passeios e de arborização nas vias públicas; pela inexistência de mobiliário
urbano; pela presença das infra-estruturas aéreas, quando existentes,
nomeadamente os cabos da rede de electricidade e de telefone; e pela
carência de comércio local. Nestas áreas domina a mono-funcionalidade, a
escassez de transportes públicos, a deslocação a pé, nos primeiros anos, e
actualmente a dependência do transporte individual. Na habitação
plurifamiliar, o espaço público é marcado pelo uso comum de espaços de
acesso e circulação entre vizinhos, em contraponto com a moradia unifamiliar que garante uma maior privacidade e autonomia.
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
Em 1965, para enquadrar a expansão urbana crescente, surgiu o
primeiro diploma legal (Decreto-Lei n.º 46673/65, de 29 de Novembro) que
faz depender de licenciamento da Câmara Municipal o parcelamento do
solo urbano. Este Decreto-Lei bem como o que se lhe seguiu, em 1973, que
tentou impor algumas regras, centrou-se apenas na questão do
licenciamento, sem alusão aos espaços públicos e equipamentos colectivos
destes loteamentos ilegais. As exigências de execução das obras de
urbanização, de cedência de terrenos para o domínio dos municípios, para
espaços verdes e equipamentos, não entravam no quadro das relações entre
Estado e promotores privados até à década de 1970. Só a lei dos solos
marcelista (Decreto-Lei n.º 576/70), assim como alguns diplomas que lhe
seguiram, desencadearam algumas alterações ao “capitalismo urbano
português” (Soares 1984: 20).
A realização das obras de urbanização, surge assim, contrariamente aos
loteamentos legais, na fase final do processo de urbanização, após o
parcelamento, a venda de “lotes” e a sua ocupação. Esta inversão do
processo, através da alteração das etapas de urbanização, permitiu o
investimento repartido ao longo de prazos relativamente largos,
possibilitando o acesso à propriedade e ao urbano a classes socais com
menos recursos.
A REVOLUÇÃO DE ABRIL: A EXPANSÃO DO CLANDESTINO
E A CONSTRUÇÃO DE INFRA-ESTRUTURAS
A Revolução de 1974, com a instauração das liberdades democráticas e
a integração, na nova constituição, do direito à habitação, favoreceu o
pequeno investidor urbano e dinamizou a pequena construção e o
loteamento a ela associado (Soares 1984). No entanto, o Estado não reuniu
os meios técnicos e económicos necessários para responder às necessidades
e reivindicações da população, como o acesso a habitação e a infraestruturas básicas, nem teve capacidade de impedir o desenvolvimento dos
loteamentos clandestinos e das construções ilegais, o que se traduziu numa
postura tolerante relativamente a estes fenómenos que se expandem. Além
da resposta à necessidade de uma habitação, permanente ou secundária,
passa a coexistir, com mais frequência, a prática de aquisição de mais de
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
uma parcela clandestina visando a especulação fundiária e imobiliária.
Constituem exemplo as várias áreas loteadas ilegalmente sem qualquer
construção, que ainda hoje se mantêm expectantes, em geral na expectativa
de valorização e posterior venda.
Depois do 25 de Abril, foi-se consolidando o acesso às infra-estruturas
básicas nos loteamentos ilegais e especificamente, no que importa à
caracterização do espaço público, a pavimentação das vias, a execução dos
passeios e a iluminação pública. Parte destas obras foram apoiadas pelos
municípios, que cederam materiais e equipamentos aos moradores: as
chamadas “obras de fim-de-semana”. A intervenção directa das populações
na produção do espaço urbano extravasa agora a construção das próprias
habitações, expressando-se através do financiamento e construção de infraestruturas, da reivindicação das obras de urbanização e da criação de
comissões e associações de moradores (Soares 1984) que, em alguns casos,
ainda se mantêm em funcionamento.
Em 1976 verifica-se uma mudança de olhar do legislador com a saída
do Decreto-Lei nº. 804/76, de 6 de Novembro. Além de contemplar três
medidas de actuação (legalização, manutenção temporária e/ou demolição),
refere-se pela primeira vez ao domínio público destas áreas. Assim, no
Projecto de Urbanização ou Reconversão (artigo 6º) são previstos:
“o equipamento social e as infra-estruturas a instalar ou melhorar e o volume das
despesas a realizar para esse efeito; as redistribuições, correcções ou reduções que
eventualmente se mostrem indispensáveis nos diversos lotes, para adequado
reordenamento da área, incluindo a obtenção dos terrenos necessários para as infraestruturas e o equipamento social (...)”.
Há que ressaltar a importância deste texto legal, apesar do seu impacto
no terreno não ter tido o peso pretendido, sobretudo devido à falta de meios
financeiros – quer dos proprietários, que concentravam os seus recursos na
habitação, quer do Estado –, para se efectuar a expropriação por utilidade
pública dos terrenos necessários para a construção de infra-estruturas e
equipamentos4.
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4
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Segundo o depoimento do jurista António Janeiro, em entrevista realizada no dia 20 de Maio de 2009.
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
Neste período, regista-se também, nos loteamentos clandestinos, o
acréscimo do fenómeno de arrendamento, principalmente nos municípios
da margem Norte limítrofes da capital. Este facto deve-se em parte, no
período entre 1974 e o início da década de 1980, ao afluxo dos retornados e
de imigrantes das ex-colónias, logo a seguir à descolonização. Em alguns
bairros assistiu-se à transformação da habitação uni-familiar para habitação
pluri-familiar, para arrendamento, com consequências ao nível da
configuração do espaço público.
Em 1984, com a aprovação de um novo diploma (Decreto-Lei nº.
400/84, de 31 de Dezembro), passou a ser proibida a venda de parcelas em
avos, o que atenuou o avanço do fenómeno clandestino, mas aquele não
teve impacto ao nível do espaço público dos loteamentos clandestinos
existentes, por se cingir à questão fundiária e à divisão do solo em regime
de compropriedade.
As intervenções nos loteamentos clandestinos melhoraram as condições
de vida das populações, mas, do ponto de vista jurídico, “apenas [se
semearam] estradas, candeeiros, passeios e casas em prédios descritos na
conservatória do registo predial como rústicos, destinados à cultura
arvense” (RAMOS 2002: 161). Esta questão jurídica foi encarada de forma
mais incisiva uma década depois com a aprovação da lei de excepção.
UMA LEI EXCEPCIONAL PARA A RECONVERSÃO DAS ÁREAS
URBANAS DE GÉNESE ILEGAL
Em 1995, entrou em vigor o actual regime jurídico de excepção para os
loteamentos clandestinos. De acordo com a Lei n.º 91/95, de 2 de
Setembro, passaram a denominar-se áreas urbanas de génese ilegal (AUGI)
“os prédios ou conjuntos de prédios contíguos que, sem a competente
licença de loteamento, quando legalmente exigida, tenham sido objecto de
operações físicas de parcelamento destinadas à construção” (artigo 1º, n.º
2).
Esta Lei obrigou a repensar conceitos, metodologias e técnicas de
intervenção para as AUGI. Estabeleceu como princípio geral o dever de
reconversão, imputado aos particulares, concretizado no "dever de
!
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
conformar os prédios que integram a AUGI com o alvará de loteamento ou
com o plano de pormenor de reconversão, nos termos e prazos a
estabelecer pela câmara municipal" (n.º 2 do art. 3º) e no “dever de
comparticipar nas despesas de reconversão” (n.º 3 do mesmo artigo).
Foram introduzidas alterações à Lei n.º 91/95, com a Lei n.º165/99, de
14 de Setembro, a n.º 64/2003, de 23 de Agosto, e a n.º 10/2008, de 20 de
Fevereiro. O problema, no entanto, catorze anos após a entrada em vigor da
lei de excepção, está longe de ser resolvido, não apenas devido à extensão
do território que falta reconverter (ver artigo de Isabel Raposo nesta edição)
mas, sobretudo, pela forma como se intervém, na prática, nos territórios de
génese ilegal.
A maioria das reconversões, em curso e concluídas, incide sobretudo na
legalização da ocupação do solo e na infra-estruturação, a qual é dissociada
da reconversão urbanística e da qualificação do espaço público. A
reconversão subordina-se assim à divisão estabelecida pelo loteador ilegal,
consolidando-se uma estrutura urbana que dá prioridade ao espaço privado,
em detrimento do público, mesmo nos casos onde poucas parcelas estão
ocupadas e o território não se encontra muito comprometido.
Em todos os municípios da GAML, os planos de reconversão
restringem-se à propriedade loteada ilegalmente, não se articulando com o
território envolvente, o que condiciona a intervenção no domínio público,
esquecendo que, como refere CERTEAU, intervir no território implica
“pensar a própria pluralidade do real” (1990: 173). Constitui excepção o
município de Oeiras, onde os loteamentos de génese ilegal são integrados
em planos territoriais não eficazes (de Ordenamento e Reconversão), que
incluem outras situações territoriais, de génese ilegal (como ocupações de
terrenos municipais e construções não licenciadas sobre parcelamento legal
de terreno municipal) e legal (como cooperativas e condomínios fechados),
possibilitando uma intervenção integrada e o entendimento global do
espaço público.
A Lei n.º 91/95 prevê a cedência, para o domínio público, de áreas para
espaços verdes e equipamentos, essenciais para a qualificação do espaço
público, mas o seu enunciado é susceptível de diferentes interpretações.
Diz o texto da Lei que:
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
“as áreas de terreno destinadas a espaços verdes e de utilização colectiva, infraestruturas viárias e equipamentos podem ser inferiores às que resultam da aplicação
dos parâmetros definidos pelo regime jurídico aplicável aos loteamentos quando o
cumprimento estrito daqueles parâmetros possa inviabilizar a operação de
reconversão” (art.º 6.º, n.º 1),
havendo, nestes casos, “lugar à compensação [...] a qual deve, sempre que
possível, ser realizada em espécie” (n.º 2) e “no território das freguesias
onde se situa a AUGI” (art.º 6.º, n.º 4 da alteração à Lei de 1999,
sublinhado nosso). Apoiados neste último enunciado, em muitos
municípios não se exige a cedência efectiva, mas sim, a compensação
monetária, o que condiciona, na maioria dos casos, a qualificação do
espaço público. Apenas três dos dezoito municípios da GAML, Loures,
Almada e Seixal, exigem ou incentivam a cedência efectiva, mesmo que
seja na área envolvente, caso não haja possibilidade de se efectuar no
interior do bairro, à excepção de situações pontuais em que não se aplica
esta regra devido à falta de recursos económicos. Com efeito, nalguns
casos, os proprietários não têm capacidade para pagar a compensação em
numerário, arrastando-se o processo pela falta de pagamento; noutros,
como sucede em Sesimbra, nos loteamentos de génese legal paga-se
metade da compensação devida.
No processo de reconversão, são diversos os entraves que
impossibilitam ou condicionam a cedência efectiva, entre os quais: i)
inexistência de terrenos livres dentro dos limites da área urbana de génese
ilegal, estando todo o espaço loteado e construído; ii) falta de capacidade
financeira dos proprietários para a aquisição de terrenos para cedência; iii)
falta de interesse dos proprietários na qualificação do espaço público,
prevalecendo o interesse pelo espaço privado e uma urbanidade
influenciada pelo habitus rural; iv) alguma desconfiança dos proprietários
em relação aos serviços municipalizados sobre o destino das áreas que irão
ceder, atrasando ou inviabilizando a cedência; v) intenção dos proprietários
de venderem o(s) lote(s) que possuem, estando mais motivados pela
rentabilização do seu terreno que pelas cedências para equipamentos e/ou
espaços verdes.
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
Uma das dificuldades do processo de reconversão surge da imposição
camarária de demolição de muros de vedação para alargar e qualificar a via
pública. A grande resistência de muitos proprietários em ceder uma parte
do seu lote explica-se em parte pelo significado que a habitação adquire no
território clandestino. Como refere Guerra (1989: 111), a casa é “o
resultado da poupança da geração anterior, realização da geração presente e
património para a geração futura, numa íntima articulação de esforços e
acordos sobre as perspectivas de vida.” Desfazer-se de uma parte da casa
ou do lote adquire neste contexto mais do que uma dimensão material.
A relação entre a esfera privada e pública é condicionada por factores
como a tipologia de ocupação, a densidade populacional, o nível
económico, o grau de cooperação entre os habitantes, a distância entre
grupos sociais, ou a mobilidade social e o interesse por estas áreas de
classes sociais mais altas. Como vários estudos têm mostrado, o maior
poder aquisitivo pode fazer diminuir a necessidade de ajuda mútua e
aumentar a necessidade individual do espaço (Serpa 2004: 31) enquanto a
falta de recursos materiais pode gerar um uso mais intenso do espaço
público, mesmo se não qualificado.
A alteração do modelo de ocupação, pode desencadear mudanças ao
nível da esfera pública. O aparecimento de novos fluxos imigratórios,
provenientes principalmente dos cinco países africanos de língua oficial
portuguesa, do Brasil e, mais recentemente, da Europa de Leste (Ucrânia,
Moldávia, Rússia e Roménia), fundamentalmente arrendatários, alterou as
expectativas de alguns proprietários, que passaram a alugar parte ou a
totalidade das suas construções. Os proprietários ao rentabilizarem o
espaço privado, alugando-o (ilegalmente), desinteressaram-se pela
reconversão, e dificilmente os inquilinos conseguem influenciar as decisões
da Comissão de Administração Conjunta5. A Lei nº. 91/95 (artigo 8.º, n.º1),
ao prever a criação de Administração Conjunta composta unicamente por
(com)proprietários e não por moradores, não favorece uma participação
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Por exemplo no bairro Miratejo Queimadas, em Loures, o passeio em frente a uma construção
arrendada não foi concluído porque o proprietário em causa, que aluga a totalidade da sua construção e
não reside no bairro, não comparticipou nas obras de urbanização. Neste caso, excepcionalmente, um
dos inquilinos tomou conhecimento da situação através da Junta de Freguesia e decidiu pagar as
comparticipações, deduzidas mais tarde na sua renda, para beneficiar da qualificação do espaço público
do bairro onde reside (depoimento de moradora, entrevistada a 20 de Julho de 2009).
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
alargada. A dificuldade de inserção no tecido laboral e social, remete a
comunidade imigrante para uma marginalidade económica, social, cultural
e habitacional.
MUDANÇA DE PARADIGMA:
DA RECONVERSÃO À QUALIFICAÇÃO
Começa a ganhar corpo, uma nova atitude de entender e intervir nas
AUGI, particularmente nalguns municípios da GAML, quer da margem
Norte (Amadora, Cascais, Oeiras e Loures), quer da margem Sul (Almada e
Seixal), anunciando uma mudança de paradigma: da reconversão à
qualificação. Procura-se ir além de simples intervenções locais, delimitadas
aos loteamentos clandestinos, numa abordagem integrada e estruturante.
Esta transição, embora nem sempre transposta para o território, observa-se
não só no discurso dos políticos e técnicos municipais, mas também, dos
moradores das AUGI.
Apesar desta mudança de paradigma, a cedência efectiva para o domínio
público nem sempre corresponde à qualificação do espaço público. A
localização das áreas cedidas pode não ser determinada pela estrutura
urbana, mas pelas disponibilidades concretas de área livre no interior da
AUGI, podendo ceder-se terrenos para o domínio público dentro ou fora do
seu limite. Estes, mantendo-se expectantes, sem arranjos exteriores nem
equipamentos, não contribuem no curto prazo para a qualificação do
domínio público.
Em contrapartida, existem outros espaços, no interior ou nas imediações
do loteamento que são lugares de referência para encontro e convívio dos
residentes. Um pequeno largo, uma escadaria, um café ou mercearia, umas
hortas urbanas, ou uma associação cultural ou recreativa são espaços
vividos. As intervenções visando a qualificação do espaço público
requerem o estudo das vivências e da qualidade destes lugares de encontro
já apropriados pelos moradores.
Apesar de excepcionais, existem já algumas intervenções, de iniciativa
privada e/ou municipal, realizadas nos loteamentos de génese ilegal, de
qualificação do espaço público. Em alguns municípios (Loures e Almada)
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
destaca-se o forte interesse dos proprietários na qualificação do espaço
público em reconversões de iniciativa privada, com ou sem o apoio das
autarquias. Os proprietários cedem ao domínio público áreas para espaços
verdes e equipamentos superiores às previstas, e envolvem-se na
construção de equipamentos colectivos. Foi o caso, no Casal de
Mirralhinhos, em Loures, em 1985 (antes da Lei n.º 91/95), na sequência de
um encontro, entre as Comissões e Associações locais, em que os
proprietários cederam 65.000 m2 ao domínio público, o que possibilitou a
criação de espaços verdes e equipamentos de apoio à população. Mais
recentemente, na Quinta Baú-Baú, em Almada, a Associação de
Moradores, constituída depois da conclusão do processo de reconversão e
da extinção da Administração Conjunta, construiu, no espaço cedido ao
domínio público, a sua sede, um campo desportivo e um parque infantil,
onde se desenvolvem actividades culturais e desportivas. A segunda
geração residente nos bairros de génese ilegal é amiúde mais exigente ao
nível de equipamentos, zonas verdes e espaço público. Gradualmente,
reflexo da ascensão social e de uma maior urbanidade, as necessidades
começam a sair da esfera privada.
Além do interesse dos proprietários pela requalificação, há que ressaltar
o papel desempenhado por algumas autarquias (Cascais, Loures, Almada e
Seixal) nomeadamente através de campanhas de sensibilização ou de
diálogo com os proprietários, ao alertar para a importância da cedência de
áreas para espaços verdes e equipamentos e da qualificação do espaço
público. Estes municípios defendem o envolvimento municipal, técnico e
político, na reconversão e no apoio aos proprietários para avanço do
processo. Os custos das obras de qualificação são suportados pelos
proprietários, por vezes com o apoio dos municípios (Cascais e Loures)
através da cedência de materiais, como por exemplo asfalto para a
pavimentação das ruas e calçada para a execução dos passeios públicos,
maquinaria e mão de obra especializada, que acompanha e supervisiona a
execução dos trabalhos.
As autarquias ao incentivar a cedência efectiva de áreas para espaços
verdes e equipamentos promovem a (re)organização e (re)estruturação do
território, equilibrando a relação entre a esfera privada e pública e
incorporando novos usos e funções, através de intervenções de
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
requalificação. Alguns municípios, quando não se conseguem efectivar as
cedências para o domínio público, apostam na qualificação, plantando
árvores nas vias, criando hierarquias viárias e ligações com a envolvente
urbana e/ou intervindo em áreas próximas dos territórios de génese ilegal,
criando equipamentos e espaços verdes. No caso de Cascais, as
intervenções realizadas neste âmbito, após a legalização fundiária, são
financiadas pelos proprietários, com o apoio da autarquia, nomeadamente
na elaboração dos projectos de especialidade. Em Oeiras, as obras de
qualificação, que antecedem a legalização fundiária, são financiadas pela
autarquia, responsável pela elaboração dos projectos e pela sua execução.
Face às carências e condicionantes dos loteamentos de génese ilegal e
aos elevados custos implicados na sua qualificação, alguns municípios da
margem Norte (Amadora, Loures e Odivelas) têm procurado aceder a
financiamentos comunitários europeus, como por exemplo o Programa
Integrado de Qualificação das Áreas Suburbanas da Área Metropolitana de
Lisboa (PROQUAL) ou o Quadro de Referência Estratégica Nacional
(QREN). Foi o caso do município da Amadora que, com o financiamento
do PROQUAL, interveio num dos núcleos clandestinos mais antigos da
GAML, a Brandoa. A estratégia de actuação apostou na criação de uma
nova centralidade local e municipal, através da intervenção no espaço
público, requalificando-o, e no reforço da rede de equipamentos de
proximidade (de carácter cívico, cultural, escolar, social e desportivo), de
apoio à vida quotidiana. A concepção estruturante da intervenção e o
entendimento do tecido urbano permitiu uma acção integrada e sustentável,
tendo-se incorporado várias componentes (física, sociocultural e
económica), graças à formação de uma equipa multidisciplinar, e apostado
na formação para a cidadania, ao se mobilizar a população-alvo, por meio
de uma acção permanente de negociação, comunicação e acesso à
informação.
Apesar da diversidade destas intervenções de qualificação, do tipo de
iniciativa privada ou municipal, dos procedimentos, enquadramentos e
resultados alcançados, identifica-se uma visão mais integrada e estratégica
do território e uma articulação com as dinâmicas locais, através da
negociação e estreita interacção com os proprietários.
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QUALIFICAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DE LOTEAMENTOS DE GÉNESE ILEGAL
A mudança de paradigma incorporada no discurso urbanístico e a
progressiva consciencialização da importância do espaço público na
requalificação dos loteamentos de génese ilegal, assenta no entendimento
da esfera pública, como o elemento ordenador do urbano, capaz de suportar
diversos usos e funções, de criar lugares, de integrar. No entanto, nem
sempre esse entendimento se reflecte, na prática, em intervenções
qualificadoras, e nem sempre tem significado para as populações, delas
distantes ou distanciadas.
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da irregularidade fundiária urbana à regularização