Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 3, Setembro, 1999 321 Termodin^amica do Modelo de Hubbard de Dois A tomos (Thermodynamics of the Two-Atom Hubbard Model) Marcelo A. Mac^edo e Claudio A. Mac^edo Departamento de Fsica, Universidade Federal de Sergipe 49100-00 - S~ao Cristov~ao, SE, Brasil E-mail: [email protected] Recebido em 16 de junho, 1998 Um sistema magnetico composto de dois stios at^omicos e dois eletrons e estudado sob a otica do modelo de Hubbard. Os autovalores de energia s~ao obtidos por diagonalizac~ao algebrica exata do hamiltoniano do modelo. As funco~es termodin^amicas calor especco, entropia, energia interna, magnetizac~ao e susceptibilidade magnetica s~ao determinadas a partir do calculo da func~ao de partic~ao dependente de um campo magnetico externo h utilizando o metodo do ensemble can^onico. O sistema, representado no formalismo da segunda quantizac~ao, apresenta uma estrutura conceitual e matematica acessvel a alunos cursando o ultimo ano de graduac~ao, e os resultados mostram uma grande riqueza de fen^omenos fsicos com detalhes que viabilizam o aprofundamento da compreens~ao dos mecanismos qu^anticos envolvidos nas propriedades termodin^amicas e dos metodos empregados para obt^e-las. A system composed of two atomic sites and two electrons is studied under the optics of the Hubbard model. The energy eigenvalues are obtained from the exact algebraic diagonalization of the Hamiltonian model. The thermodynamic functions specic heat, entropy, internal energy, magnetization, and magnetic susceptibility are determined from of the calculation of the partition function dependent of an external magnetic eld h utilizing the canonical ensemble method. The system, represented in the second quantization formalism, presents a conceptual and mathematical structure accessible to students of the last year of under-graduate course, and the results show a rich variety of physics phenomena with details that make feasible a deeper comprehension of the quantum mechanisms involved in the thermodynamics properties and of the methods employed to obtain such properties. I Introduc~ao No ensino de mec^anica estatstica raramente empregase modelos de sistemas magneticos no formalismo de segunda quantizac~ao. As raz~oes principais para isso s~ao as diculdades matematicas e conceituais envolvidas com o formalismo. Neste trabalho, resolve-se o problema do calculo das propriedades termodin^amicas de um sistema magnetico de dois stios at^omicos, com dois eletrons, submetido a um campo magnetico estatico e uniforme, sob a din^amica do modelo de Hubbard [1,2], utilizando o metodo do ensemble can^onico. Trata-se de um sistema com soluc~ao algebrica exata e uma estrutura conceitual e matematica acessvel a alunos cursando o ultimo ano de graduac~ao [3]. Os resultados mostram uma grande riqueza de fen^omenos fsicos, com as propriedades das grandezas estudadas expressando detalhes que permitem o aprofundamento do aprendizado dos conceitos de diversas func~oes termodin^amicas e de metodos da mec^anica estatstica. O modelo de Hubbard para dois stios, o calculo algebrico das autoenergias e a analise do estado fundamental do sistema s~ao apresentados na sec~ao II. A sec~ao III e dedicada a determinac~ao e analise das func~oes termodin^amicas calor especco, entropia, energia interna, magnetizac~ao e susceptibilidade magnetica. As conclus~oes s~ao expressas na sec~ao IV. II O modelo e o espectro de energias O modelo de Hubbard [1,2], em sua vers~ao mais simples, descreve os efeitos de correlac~ao dos eletrons em uma rede cristalina considerando-se uma banda s como hipoteticamente estreita. O hamiltoniano do modelo consiste de duas partes essenciais: o termo que expressa a din^amica eletr^onica interstios (\hopping"), caracte- 322 Marcelo A. Mac^edo e Claudio A. Mac^edo de dois stios at^omicos, a e b, submetido a um campo magnetico estatico e uniforme na direc~ao z (H Z ), podemos escrever o hamiltoniano como rizado pela integral de transfer^encia eletr^onica entre stios vizinhos t, e o termo de repuls~ao coulombiana intrastio, representado pela energia U . Para um sistema c H = ,t X y X (a b + by a ) + U (na" na# + nb" nb#) , h (na + nb ); (1) d onde, ay (by ) e a (b ) s~ao operadores de criac~ao e destruic~ao de eletrons [4], respectivamente, do stio a(b); e o ndice do spin (+1, -1 ou ", #), na = ay a (nb = by b ) e o operador numero para eletrons no stio a (b), e h = B H Z . Devido ao princpio de exclus~ao de Pauli, dois eletrons de mesmo spin n~ao podem ocupar um mesmo stio. Assim, um sistema de dois stios com dois eletrons apresenta seis possveis conguraco~es de spins, conforme est~ao apresentadas na Tabela I. Na Tabela I e no que segue abaixo s~ao apresentados os vetores de estado jA >; :::; jF >, correspondentes as congurac~oes de spins em termos do estado vazio (vacuo), j0 >, denido tal que um operador de criac~ao agindo sobre j0 > cria um eletron nesse stio [(ay j0 >= j1 >); (by j0 >= j1 >)]; e um operador de destruic~ao agindo sobre o estado vazio destroi o estado [(a j0 >= 0); (b j0 >= 0)]: (a) Estados com Sz = Denindo Considerando os valores de S no que segue, os estados do sistema s~ao separados em dois grupos, S z = e S z = 0: z j1 i = jAi e j2i = B i; (2) e aplicando o operador hamiltoniano, encontra-se c H j1;2i = ,t X y y y X a b a b j0i , t by a ay by j0i 0 0 0 0 + Uay"a" ay# a# ay by j0i + Uby"b" by# b# ay by j0i X X + h ay a ay by j0i , h by b ay by j0i: 0 0 0 0 0 0 0 0 (3) Utilizando as relac~oes de anticomutac~ao para fermions [4] o primeiro termo do lado esquerdo da Eq. (3) fornece Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 3, Setembro, 1999 ,t 323 X y y y X a b a b j0i = t ay ay by by j0i = X X = t ay ay ( , by b )j0i = t ay ay j0i = tay ay j0i = 0 : 0 0 0 0 0 0 0 0 0 Com procedimento analogo encontra-se facilmente que o segundo, o terceiro e o quarto termo da Eq. (3) tambem s~ao nulos, e que o quinto e o sexto termo fornecem X X ,h 0ay a ay by j0i , h 0 by b ay by j0i = ,2hay by j0i : 0 0 0 0 0 0 d Assim, H j1i = ,2hj1 i e H j2i = 2hj2i (4) e desse modo, as autoenergias para os estados com S z = s~ao E1 = ,2h e E2 = 2h: A energia do estado fundamental com campo magnetico nulo e E6 como pode ser visto facilmente atraves das curvas da Fig. 1. (b) Estados com S z = 0 Denindo j3 i = p1 (jC i , jDi) 2 j4i = p1 (jE i , jF i) 2 j5 i = p1 (jC i + jDi) 2 j6 i = p1 (jE i + jF i); 2 (5) 0 0 encontra-se H j3 i H j4 i H j5 i H j6 i 0 0 = = = = Figura 1. Autoenergias em func~ao de U para h = 0. 0 U j4i ,2tj6 i ,2tj5 i + U j6 i: (6) 0 0 0 Os estados j3i e j4 i t^em autoenergias, respectivamente, E3 = 0 e E4 = U: As demais autoenergias s~ao determinadas pela soluc~ao do sistema determinado a partir das relac~oes para j5 i e j6 i em (6): 0 0 ,E ,2t 2 2 ,2t U , E = E , EU , 4t = 0; que tem soluc~oes dadas por (7) p 2 p 2 2 2 E5 = U + U2 + 16t e:E6 = U , U2 + 16t : (8) Com um campo magnetico aplicado, o estado que corresponde a E1 passa a competir com o de E6, e o estado fundamental ca duplamente degenerado para valores de h que tornam E1 = E6. Estes valores, denotados por hc e referidos neste trabalho por campos crticos, s~ao determinados a partir de p hc = , 41 (U , U 2 + 16t2): (9) A Fig. 2 mostra a competica~o entre os estados correspondentes a E1 e E6 para o caso particular de U=t = 0; 5: Para campos menores do que hc a energia do estado fundamental e E6 e para campos maiores do que hc e E1. Para h = hc o estado fundamental e duplamente degenerado. 324 Marcelo A. Mac^edo e Claudio A. Mac^edo III As func~oes termodin^amicas A func~ao de partic~ao e dada por c 6 X ^ , H Z = Tre = e,Ei = 1 + 2cosh(2h) + 2e,U=2 cosh 1 (U 2 + 16t2)1=2 + eU ; 2 i=1 (10) d sendo = 1=kB T: Atraves da func~ao de partic~ao pode-se determinar diretamente as func~oes termodin^amicas calor especco, entropia, energia interna, magnetizac~ao e susceptibili- dade magnetica. Calor especco A capacidade calorca e dada por c " 2 @Z 2 # 2 1 @ h H i 2 @ ln Z 2 1 @ Z C = @T = kB @ 2 = kB Z @ 2 , Z 2 @ : (11) d Figura 2. E1 e E6 em func~ao do campo magnetico h para U=t = 0; 5. hc =t = 0; 883: A Fig. 3 mostra o calor especco (C =2kB ) em func~ao da temperatura e do campo magnetico aplicado para varios valores de U . O numero 2 que aparece dividindo o valor de C , corresponde ao numero de stios, e aparecera tambem em outras grandezas. Para h = 0 e U=t < 4, as curvas do calor especco apresentam um pico e para U=t 4 dois picos. O primeiro pico, que ocorre em baixas temperaturas, e devido ao ordenamento antiparalelo e o segundo pico, que surge em altas temperaturas, e devido a transic~ao gradual metal-isolante. [5] Quando e aplicado o campo magnetico os spins dos eletrons tendem a se alinhar com o campo (direc~ao z ). Este alinhamento quebra o ordenamento antiparalelo. No caso de U=t < 4, a quebra do ordenamento antiparalelo e vista como uma diminuic~ao do pico (Fig. 3(a)) ate surgir um segundo pico (o menor deles) provocado pelo campo magnetico. Ao se atingir o campo crtico, em que os dois picos se sobrep~oem, ocorre a transic~ao de ordenamento antiparalelo para paralelo, que vai diminuindo com o crescimento do campo, ate restar um unico pico (ordenamento paralelo). Com o aumento do campo magnetico, este pico comecara a crescer e se formara em regi~oes de temperaturas mais altas. Para U=t 4, o fen^omeno fsico descrito acima ocorre, so que se tem tambem a presenca do pico correspondente a transic~ao gradual metal-isolante (Figs. 3(b) e 3(c)) que desaparecera com campos acima do crtico. Entropia A entropia pode ser determinada de @Z @F (12) S = , @T = kB ln Z , Z @ ; em que F = ,k0T ln Z e a energia livre de Helmholtz. A Fig. 4 mostra o comportamento da entropia em func~ao da temperatura para U=t = 0,5 e varios valores de h. Pode-se observar que a entropia comeca com o valor zero tanto para h menores do que hc quanto para h maiores do que hc (hc =t = 0; 883) ou comeca com o valor kln2 para h = hc , em T = 0, e tende para kln6 Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 3, Setembro, 1999 325 em altas temperaturas. A raz~ao para isso e que o estado fundamental do sistema e n~ao-degenerado para h 6= hc e, como consequ^encia, S (T = 0) = kln1 = 0: Para h = hc o estado fundamental e duplamente degenerado e, portanto, S (T = 0) = kln2. Com o aumento da temperatura, o efeito da energia termica torna paulatinamente desprezveis as diferencas de energias dos demais autoestados em relaca~o a energia do estado fundamental independentemente do valor do campo h. A consequ^encia disso e uma elevaca~o sistematica da entropia com o aumento da temperatura, conduzindo no limite de altas temperaturas a uma competica~o entre todos os seis estados do sistema e, portanto, a S (T ! 1) = kln6: Figura 4. Entropia em func~ao da temperatura para U=t = 0; 5: hc =t = 0; 883. Os numeros que identicam as curvas s~ao os valores de h=t. Energia interna A energia interna e denida como ,H E = hH i = TrHe Z Figura 3. Calor especco em func~ao da temperatura. (a) U=t = 0; 5; hc =t = 0; 883: (b) U=t = 4; hc =t = 0; 414: (c) U=t = 9; hc =t = 0; 212: Os n umeros que identicam as curvas s~ao os valores de h=t. 1 @Z = , @lnZ @ = , Z @ : (13) Os gracos da Fig. 5 mostram a energia interna em func~ao da temperatura para alguns valores de U e h. Eles indicam que com o aumento de U , para campo nulo, ocorre um aumento da energia interna, o que e facilmente entendido considerando-se que o termo de repuls~ao coulombiana e positivo no hamiltoniano do modelo. Entretanto, quando o campo magnetico e aplicado, a energia interna cai porque a contribuic~ao do termo devido ao campo magnetico para o hamiltoniano do modelo tem o sinal negativo. 326 Marcelo A. Mac^edo e Claudio A. Mac^edo crtico comeca em zero para T = 0 pois o estado fundamental dene o ordenamento antiparalelo dos spins (S z = 0), e forma um pico que logo cai com aumento da temperatura. Este pico e devido a competic~ao entre os efeitos do campo magnetico que tende a alinhar o sistema e da temperatura que tende a destruir este alinhamento. Figura 6. Magnetizac~ao em func~ao da temperatura para U=t = 0; 5: hc =t = 0; 883: Os n umeros que identicam as curvas s~ao os valores de h=t. Figura 5. Energia interna em funca~o da temperatura. (a) U=t = 0; 5: (b) U=t = 5: Os n umeros que identicam as curvas s~ao os valores de h=t. Magnetizac~ao A magnetizac~ao na direc~ao z e denida como B @Z Mz = ,B h @H (14) @h i = Z @h : A Fig. 6 apresenta os gracos da magnetizac~ao na direc~ao z em func~ao da temperatura para U=t = 0; 5 e varios valores de h. A magnetizac~ao abaixo do campo Quando o campo crtico e alcancado, independentemente do valor de U , a magnetizaca~o a baixas temperaturas sobe para um valor em torno de 0,5 porque ocorre uma degeneresc^encia no estado fundamental entre estados de ordenamento paralelo (S z = 1) e de ordenamento antiparalelo (S z = 0). Depois, a magnetizaca~o comeca a cair com o aumento da temperatura. Para campos acima do crtico, o sistema atinge o valor maximo de magnetizac~ao (S z = 1) para baixas temperaturas (dois eletrons alinhados) e esse valor decresce com o aumento da temperatura pois esta tende a destruir o alinhamento em raz~ao da competic~ao com os demais estados provocada pela excitaca~o termica. Susceptibilidade magnetica A susceptibilidade magnetica e denida por z zz = B @M @h jh!0 : Utilizando a Eq. (14), encontra-se que (15) Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 3, Setembro, 1999 ,1 1 , U= 2 2 2 1 = 2 , U zz = 8B 3 + 2e cosh (U + 16t ) + e : 2 2 327 (16) d O graco da susceptibilidade magnetica representado na Fig. 7 exibe os dois picos que aparecem no calor especco. Em temperaturas baixas o pico do calor especco corresponde ao maximo da susceptibilidade. Na regi~ao de temperaturas altas, em que se encontra o segundo pico do calor especco, ha uma mudanca gradual da constante de Curie. Observa-se tambem que quanto maior for U , maior sera o pico da susceptibilidade devido ao fato de que o sistema se torna mais localizado [5]. lismo de segunda quantizac~ao e do metodo do ensemble can^onico da mec^anica estatstica qu^antica. Alem disso, o material apresentado viabiliza o aprofundamento da compreens~ao dos mecanismos qu^anticos envolvidos nas propriedades termodin^amicas do sistema tratado. Deve ser destacado, tambem, que o estudo algebrico exato de modelos aplicados a pequenos sistemas at^omicos (\clusters") e considerado um laboratorio do fsico teorico, tendo em vista a potencialidade do metodo da infer^encia para a busca de soluc~oes exatas de sistemas \innitos" e a possibilidade de validac~ao de teorias aproximadas desses mesmos sistemas [6]. Agradecimentos Os autores agradecem a Andre M. C. de Souza e Mario E. de Souza por uteis discuss~oes, e ao CNPq pelo apoio nanceiro. References Figura 7. Susceptibilidade magnetica em func~ao da temperatura. Os numeros que identicam as curvas s~ao os valores de U=t. IV Conclus~oes O calculo algebrico exato do espectro de autoenergias e de diversas func~oes termodin^amicas do modelo de Hubbard aplicado a um sistema de dois stios at^omicos submetido a um campo magnetico estatico e uniforme, apresentado neste trabalho, constitui-se como um poderoso material didatico para o aprendizado do forma- [1] J. Hubbard, J. Electron Correlations in Narrow Energy Bands. Proc. Roy. Soc. A, 276, 238 (1963). [2] E.H. Lieb, The Hubbard Model: Some Rigorous Results and Open Problems. In Proceedings of the Conference on Advances in Dynamical Systems and Quantum Physics: On the Occasion of the 60th Birthday of Gianfausto Dell'Antonio. Singapura, World Scientic, 1995, faz uma resenha sobre os resultados do modelo de Hubbard. [3] N.W. Ascroft & N.D. Mermin, Solid State Physics. Fort Worth, Saunders College, 1976, discute o estado fundamental do sistema objeto deste trabalho, com campo magnetico nulo. [4] R.M. White, Quantum Theory of Magnetism. Berlim, Spring-Verlag, 1983. [5] H. Shiba, & P.A. Pincus, Thermodynamic Properties of the One-Dimensional Half-Filled-Band Hubbard Model. Phys. Rev. B, 5(5): 1966 (1972). [6] J. Callaway, Cluster Simulation of Itinerant Magnetism. Physica B, 149, 17 (1988).