A REFORMA SINDICAL E A REPRESENTAÇÃO DOS TRABALHADORES NO LOCAL DE TRABALHO E NA JUSTIÇA Cássio Casagrande• “Empresários temem república sindical”. Esta manchete em tom alarmista não saiu de um amarelado jornal dos buliçosos tempos que precederam a queda do governo João Goulart. Vi-a estampada em tinta fresca, no prestigioso jornal “Valor Econômico”, edição de 16.03.2005. Li a matéria para tentar entender o anacronismo da notícia, pois ao que tudo indica, apesar das origens sindicais do presidente Lula e do Partido dos Trabalhadores, estamos longe de ter um governo no qual preponderem os interesses do prole tariado ou de suas lideranças classistas. Mas afinal, por que temem os empresários? Segundo informava o periódico, “em um ato promovido pela CNI e FIESP em São Paulo, a reforma sindical foi retratada como uma verdadeira agressão ao lado patronal do conflito entre capital e trabalho.” Portanto, o que vem causando desassossego entre os empresários é o projeto meia -sola de reforma sindical enviado ao Congresso pelo governo. Como é sabido, o governo quer emendar a Constituição para, supostamente, mudar a nossa organização sindical, velha de 60 anos e cujos principais pilares (sindicato único e contribuiç ões compulsórias) vem resistindo a Constituiç ões democráticas e autoritárias. Mas não é o cerne da reforma que apavora o patronato. Até porque, quanto àqueles fundamentos cartoriais de nossa organização sindical, a reforma introduz um pluralismo mitigado e continua a permitir uma forma de financiamento das entidades sindicais vinculado aos salários dos trabalhadores. Ou seja, muda para ficar como está. O que despertou a ira da classe empresária foi a proposta do Executivo de tornar efetivos dois dispositivos da Constituiç ão de 88, que tratam da representação dos trabalhadores no local de trabalho e perante a Justiça, cuja regulamentação é aguardada há mais de quinze anos. Ou seja, os líderes empresariais brasileiros defendem que alguns dos direitos sociais preconizados pela Assembléia Nacional Constituinte fiquem para as calendas gregas. A representação dos trabalhadores no local de trabalho foi prevista no art. 11 da Constituição, que assim dispôs: “Nas empresas de mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de um representante destes com a finalidade de promover-lhes o entendimento direto com os • Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro. Ex-advogado trabalhista. Membro do CEDES – Centro de Estudos Direito e Sociedade (IUPERJ). empregadores.” A Constituição, no entanto, não estabeleceu como seria esta eleiç ão (se haveria participação do sindicato ou não), quais as prerrogativas do representante, faltando ainda um critério de proporcionalidade para definiç ão da quantidade destes delegados, já que o referido dispositivo prevê apenas um número mínimo. A regulamentação do artigo 11 da Constituiç ão é importante para a melhoria da condição sócio-econômica do trabalhador, pois certamente pode contribuir para levar para dentro das empresas as negociações entre o capital e o trabalho. Isto porque a organização sindical tradicional de nosso país nunca permitiu a formação de sindicatos por empresa, priorizando a representação por “categoria profissional”, inspirada pelo modelo corporativista da Era Vargas. Este modelo de concentração da representação sindical na natureza da atividade econômica nunca favoreceu a emergência das demandas “locais”, focando as negociações excessivamente sobre vantagens salariais. Isto explica em parte a pouca atenção que é dada no Brasil pelos sindicatos obreiros a temas como meio-ambiente do trabalho, automação, terceirização, discriminação, dentre outras questões que no sindicalismo europeu são centrais. Ou seja, uma preocupação com o bem-estar e a segurança do trabalhador em seu local de trabalho. Portanto, a regulamentação do dispositivo é um passo importante para levar o sindicato para dentro das empresas e é claro que deve ser acompanhada pelas medidas previstas na reforma, como o reconhecimento de estabilidade no emprego aos representantes eleitos pelos trabalhadores. Outro aspecto que está sendo criticado pelo capital é a tentativa de regulamentação do art. 8°., inc. III da Constituição, ou seja, a regra que autoriza os sindicatos a representar os trabalhadores na Justiça (“ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais e administrativas”). É o que se denomina de “substituição processual”, isto é, a possibilidade das entidades sindicais ajuizarem ações em nome dos seus representados, sem que estes precisem figurar como parte no processo. A rigor, este dispositivo sequer carece de regulamentação por lei ordinária para poder ser aplicado, pois o Supremo Tribunal Federal, de forma pacífica, vem decidindo que a substituiç ão processual assegurada aos sindicatos pela Constituiç ão é ampla e pode ser exercida através de instrumentos previstos nas leis processuais comuns (como por exemplo no Código de Defesa do Consumidor). Ocorre que na prática forense muitos juízes acabam estabelecendo exigências que restringem a atuação dos sindicatos em juízo. Não raro a Justiça do Trabalho pede ao sindicato que apresente a autorização individual destes trabalhadores ou que identifique a todos previamente à propositura da ação. Isto acaba por malferir uma dos objetivos fundamentais da representação sindical, que é evitar que os trabalhadores sofram individualmente as conseqüências do agir coletivo. Desde seu aparecimento no século XIX, os sindicatos foram constituídos, entre outras coisas, para evitar que o patrão pudesse retaliar seus empregados em função de movimentos reivindicatórios, como a greve. O sindicato, assim, “despersonaliza” o conflito (que é natural nas relações entre capital e trabalho), protegendo o hipossuficiente de vinditas que amedrontariam e tornariam inglória, para a classe trabalhadora, as negociações entre empregados e empregadores. Se o empregador-réu puder identificar, antes da sentença, os trabalhadores que estão sendo substituídos no processo, estes certamente seriam pressionados a abrir mão de seus pedidos, podendo ser “convidados” a assinar uma petição ao Juiz. Portanto, a regulamentação da substituição processual é importante para vencer certa resistência jurisprudencial, sobretudo no TST, em torno da legitimidade dos sindicatos. A reforma sindical que foi encaminhada pelo Poder Executivo está longe transformar radicalmente as bases do sindicalismo brasileiro, pois, como visto, não haverá grandes mudanças sistêmicas. Não obstante, a regulamentação da representação dos trabalhadores no local de trabalho e perante o Judiciário é por certo medida auspiciosa e que induvidosamente aumentará o poderio dos sindicatos. É natural que isto incomode o capital. Porém, pretender simplesmente “barrar” a vigência de dispositivos constitucionais como os examinados – há muito tempo implementados no capitalismo europeu - mostra o quão longe nossos líderes empresariais ainda estão de uma concepção democrática e cidadã. Certamente todas essas lideranças reconheceriam que a má distribuição de renda é um dos maiores problemas do país. Mas na hora de criar mecanismos que facilitem a divisão do bolo, a conversa é outra...