Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR OS MÁRTIRES FRANCISCANOS NAS IMAGENS DA FRANCESCHINA (1474): A EXACERBAÇÃO DA VIOLÊNCIA COMO SIGNO DE SANTIDADE Angelita Marques Visalli (UEL) Na Franceschina, obra composta no século XV pelo franciscano Giacomo Oddi, são apresentadas as vitae de Francisco de Assis e de outras personagens da Ordem dos Frades Menores, ainda que não necessariamente santificados ou beatificados, entre os séculos XIII e XV. O texto foi escrito em dialeto umbro, destinando-se a ser divulgado entre seus pares, possuindo uma linguagem simples e cotidiana, assim como um caráter dramático e heróico que exalta os frades a partir da recusa do mundo, da dedicação às práticas caritativas e religiosas e do seu martírio. As iluminuras que acompanham a obra foram realizadas por autor anônimo e apresentam grande autonomia frente à composição da obra. Estas registram e divulgam experiências, buscando, ainda, despertar a sensibilidade, por um lado, por uma representação mística e, por outro, pela exacerbação da violência sofrida pelos frades, participando, portanto, de uma tendência da iconografia franciscana, especialmente mural, em explorar o caráter público de sua prática, além da particularidade de apresentar a comunidade franciscana com forte aceno rigorista quanto à forma de vida. Palavras-chave: Iconografia franciscana, Franceschina, iluminura Essa pesquisa faz parte de um projeto de estudo que está sendo desenvolvido há alguns anos. Primeiramente nos debruçamos sobre alguns capítulos específicos deste material. Atualmente estamos analisando o conjunto da obra, envolvendo estudo sobre suas imagens, cujas observações iniciais estão sendo aqui apresentadas. Pretendemos nesse estudo lançar nosso olhar sobre as imagens, iluminuras, que acompanham o texto da Franceschina, obra composta no século XV por Giacomo Oddi, onde são apresentadas as biografias de Francisco de Assis e outras "figuras ilustres" da Ordem dos Frades Menores entre os séculos XIII e XV. Texto de elegia aos franciscanos, tendo São Francisco como protagonista, caracteriza-se por apresentar treze capítulos que encarnam as virtudes franciscanas, que traduzem a experiência dos frades, particularmente, embora haja referências às irmãs Pobres damas, tudo num tom de epopéia. Estes capítulos/virtudes são: a obediência, a pobreza, a castidade (tripé da ordem dos frades menores), a caridade, humildade, oração, paciência, penitência, ainda a virtude, em geral, assim como a anulação de si mesmo, a danação aos que não respeitam a regra e o prêmio aos que a seguem. Portanto, além de atributos baseados no texto da Regra da Ordem dos Frades Menores, a obra apresenta uma fundamentação moral voltada aos destinatários da obra, os próprios discípulos de São Francisco. Originalmente a obra se denominava Espelho (Specchio de l’ Ordine Minore), visando apresentar modelos aos próprios franciscanos. A idéia de Espelho como um manual ético que apresenta as virtudes 1410 1409 Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR cristãs é cara ao franciscanismo, a exemplo d´O Espelho da Perfeição, da primeira metade do século XIV. Este espelho passou a ser conhecido como Franceschina a partir da edição de 1931 por Nicolla Cavanna, mudança justificada pelo editor para diferenciá-la mais facilmente de outros espelhos e porque representaria melhor uma verdadeira epopéia, aos moldes de títulos expressivos clássicos como a Ilíada. Os dados apresentados na extensa Introdução nesta publicação de 1931 são os utilizados para identificação da obra, adoção realizada por estudiosos desta como Enrico Menestò. (MENESTÒ, 1991, 21) A Franceschina propõe, assim como tradicionalmente se coloca no universo literário dos primeiros séculos franciscanos, um resgate da forma de vida primitiva da comunidade, o que se depreende da justificativa do autor para a repartição em treze capítulos: sua divisão se reporta aos treze primeiros frades menores - Francisco e seus doze companheiros e, como veremos através da observação das imagens, o seguimento da forma de vida já era por si o indício da santificação. Escrita em dialeto umbro, a Franceschina é uma preciosa fonte literária, um manancial de referências acerca da expressão religiosa e da construção da santidade dos frades menores, além de apresentar um dos mais ricos e antigos conjuntos de iluminuras franciscanas. Antes dela podemos identificar somente o chamado códice de Santo Antônio de Urbe, ao qual ainda não tivemos acesso. Da Franceschina temos quatro códices: - o códice de Santa Maria dos Anjos ou Porciúncula (A), conservado no convento de mesmo nome, com maior número de imagens, 152. - o códice de Perúgia (P), inicialmente pertencente ao convento de Montepirito, pertencente às freiras de Monteluce, com a supressão do convento, transportado para a Biblioteca Comunal de Perúgia, com 45 imagens. - o códice de Nórcia (N), pertencente ao convento de Nossa Senhora Annunciata, hoje à municipalidade de Norcia, com 8 imagens. - o códice de Monteluce (M), inicialmente destinado às freiras de Monteluce, hoje no convento de santo Ermínio, em Perúgia., com 41 imagens. Giacomo Oddi ocupou cargos públicos em Perúgia e entrou na Ordem dos Frades Menores provavelmente após a passagem de pregadores franciscanos, em 1448 e faleceu em 1488. Ingressou no convento de Porciúncula, em Assis, e apesar de especulações acerca de outras possíveis obras, não temos outras identificadas como sendo de sua autoria. 1411 1410 Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR Optamos nesse momento por desenvolver nosso estudo sobre o códice perugino, por ser o mais antigo dos três. Escrito em 1474, conforme indicado no próprio manuscrito, na genealogia dos códices porposta por Nicolla Cavanna, é apresentado como o protótipo. O estado de conservação é por si uma preciosidade. Quanto à autoria das imagens, entramos num terreno mais lodoso. No texto introdutório da edição há indicação de que o autor seja Nicollò Liberatore (renomeado como Nicollò Alunno por Vasari, devido a um equívoco: uma inscrição em latim Nicholaus Alumnus Fulginiae - que deveria ser compreendida como "Nicolò, citadino de Foligno", mas foi entendida como “Nicolò Alunno, de Foligno”, sendo assim hoje reconhecido). Nicolò Alunno, fim século XV, acervo do MASP Sabemos que o mestre pintor de Foligno por várias vezes trabalhou nos conventos e para os conventos franciscanos, mas a identificação da autoria está longe de ser segura, pois a simplicidade dos desenhos, a princípio não sintoniza com o refinamento apresentado em outras obras. Incertezas ainda maiores cercam os outros códices, tanto quanto à autoria dos textos quanto das imagens. Isto nos faz reportar a uma das questões metodológicas quanto ao aprisionamento da análise iconográfica à identificação ou não de autores e 1412 1411 Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR estilos que nos engessam a possibilidade de leituras. A comparação das rústicas e simplórias imagens da Franceschina com as obras mais refinadas de Alunno tende a distanciá-las, mas merecem uma análise mais acurada. A título de comparação, examinemos as seguintes imagens: Crucificação, de Alunno, segunda metade século XV, acervo do Museu do Louvre 1413 1412 Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR Crucificação, Franceschina. Esta imagem da crucificação é a única imagem na Franceschina que não se reporta à vida dos franciscanos. Em termos estéticos, podemos repetir as notas da Introdução à obra que nos apontam para a simplicidade das formas, para uma ingenuidade na apresentação de seus conceitos, apesar da “graça alcançada pelo iluminador”, palavras de Nicolla Cavanna, que, de qualquer modo, identifica o traço e a técnica como umbro, reportando o observador a suave esfera mística, por um lado, como nos registros das imagens da primeira comunidade franciscana. As imagens referentes aos primórdios da comunidade franciscana evidenciam o caráter penitencial e caritativo da experiência, como no caso do cuidado de Francisco e seus seguidores aos leprosos, estes tratados com unguentos: 1414 1413 Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR O contato físico é bem evidenciado na concentração dos corpos, o que nos reporta à importância dada pelo próprio Francisco de Assis à relação com os leprosos no seu processo de conversão, como apresenta em seu Testamento. (Testamento, 1-3) As imagens referentes à vida dos franciscanos posteriores à comunidade primitiva mudam drasticamente. Em lugar de representações místicas ou penitenciais, apresentamse referências ao martírio. Nesse caso, consideramos absolutamente fundamental o trabalho sobre as imagens acompanhado do estudo do texto escrito, seja para considerar sua sintonia, seja para atestar sua autonomia. Devemos evidenciar uma tradição de relação com o livro que não considerava uma diferenciação clara entre o objeto, suporte, o livro, e o seu conteúdo. Bem sabemos que o conteúdo poderia mesmo elevar o que consideramos como suporte à esfera do sagrado, como no caso da Bíblia. Nesse caso cabe considerar que o vocabulário familiar, por vezes mesmo chulo, a descrição de cenas domésticas e mesmo burlescas, como é característica do texto da Franceschina, não têm o mesmo acento no material imagético. Este recurso retórico comum nos sermões dos pregadores que marca o texto da Franceschina, nas imagens tende a ser refletido no envolvimento do observador, na apresentação de um contexto mais íntimo, próximo. Assim, apesar das imagens 1415 1414 Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR corresponderem à aura de santidade que se espera dos primeiros frades, estas são ancoradas no cotidiano. Com exceção da cena da estigmatização, as imagens que referenciam a primeira comunidade franciscana não apresentam aspectos miraculosos, mas cenas que pretendem sensibilizar pela singeleza. A serenidade das imagens da primeira comunidade contrasta com a violência que caracteriza as que se reportam aos frades após a morte de Francisco. As cenas são muito violentas, e exploram o drama do martírio de tantos frades franciscanos. O acento das cenas dramáticas e violentas das expressões imagéticas é uma peculiaridade que apresenta exatamente a sua independência frente ao texto, ao escrito. Percebamos que das 45 imagens da Franceschina, 11 se referem à comunidade primitiva, apresentando cenas cotidianas, de cunho ascético, penitencial e místico. As restantes são todas voltadas para cenas de martírio: Nesta imagem, soldados sarracenos martirizam e degolam frades, em posição de oração, aureolados, por não abandonarem o cristianismo. Abaixo, no mesmo contexto de martírio na Terra Santa, seguidores de Francisco de Assis são lapidados. 1416 1415 Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR As imagens são dotadas de grande força e energia e de um realismo que seria, segundo os defensores da autoria do mestre de Foligno, característico da obra de Alunno. Plenas de energia ascética, as imagens por vezes ocupam toda a página, quase sempre destinada a um só episódio, apresentando grande quantidade de figuras. Um pré-requisito que adotamos na pesquisa e que possibilita um exame sobre as imagens que elegemos é o de que estas são, antes de tudo, objetos, coisas que se prestam a vários usos e, inclusive, como documento. Uma imagem se torna documento na medida em que fornece informação a um observador, não é assim antes disso. Sua funcionalidade é múltipla: além de fonte de informação, pode assumir vários papéis, produzindo diversos efeitos, inclusive sendo reciclada. Assim, é de fato ilusória a idéia de que basta nomear o que ela representa, decodificá-la para esclarecer sua representação. Sua função é menos representar uma realidade exterior do que construir o real (uma imagem de algo) de um modo próprio, tão particular que não se encaixa em nossas classificações como as características dos estilos e modelos artísticos. (MENESES, 2003, 14) Esta questão deve ser, ainda, considerada à luz de uma metodologia que se direcione aos usos específicos da imagem. A identificação da imagem como recurso de ilustração deve ser matizada na análise da documentação: tendemos a procurar nas imagens a comprovação de idéias já constituídas, fundadas na escrita, e nesse caso, numa única obra, composta por comunicação escrita e visual, a correspondência não é tão automática. 1417 1416 Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR A complexidade da representação imagética medieval deve ainda ser reforçada pela conotação característica. A imagem pode ser compreendida como a representação visível de alguma coisa ou de um ser real ou imaginário, registrados em suporte material dos mais variados ou mesmo imaterial (a imaginação). (SCHMITT, 2007, 353) As imagens da Franceschina, não somente registram e divulgam experiências, complementando o caráter pedagógico que envolve a obra, um “espelho”, mas buscam despertar uma sensibilidade. Neste caso, esta é provocada, também, por um lado, por uma representação que identifica uma santidade de uma distante primeira comunidade franciscana. A identificação da santidade dos primeiros franciscanos está no seguimento da forma de vida: as efusões místicas como a que os apresenta seguindo Jesus, numa conformação com a proposição de Francisco em seguir literalmente o modelo evangélico, ou as representações penitenciais/caritativas. Por outro lado, a valorização das virtudes dos franciscanos, na seqüência da história da Ordem, passa, nas imagens, pela exacerbação da violência sofrida pelos frades, desconhecendo outros modelos ou possibilidades apontadas pelo próprio texto. Neste se apresentam características mais variadas quanto à caracterização/valorização da forma de vida dos vários franciscanos ilustres relacionados, revelando sua independência em relação às imagens, a falta de paralelismo entre linguagens que compõem um único objeto. (Schmitt, 2006, 32) A partir das imagens evidenciadas, supomos duas possibilidades de reconhecimento quanto ao valor do exemplo franciscano: pelo seguimento do rigor da Ordem, reconhecível na comunidade primitiva e no sofrimento (martírio) proveniente do meio. Ambas participam de uma tendência da iconografia franciscana, especialmente mural, em explorar o caráter público de sua prática, mas as leituras diferenciadas são reconhecíveis no quadro das questões internas da Ordem dos Frades Menores a partir da morte de seu fundador, particularmente quanto à “herança franciscana”. As discussões envolviam principalmente a pobreza, os estudos, e levantavam-se vozes em seu interior que exigiam correspondência às diretrizes do fundador, acreditando que estivesse havendo distanciamento delas. A destruição de todas as hagiografias de Francisco de Assis afora a de São Boaventura, decidida no Capítulo da Ordem de 1266, apresenta bem as disputas internas e anuncia uma tradição que marcou toda a história da experiência franciscana: a das constantes leituras a respeito de uma mensagem ou prática genuína, de uma postura primitiva coerente e verdadeira, não deturpada pelo processo de clericalização da Ordem. As diferentes abordagens no material imagético quanto à caracterização das virtudes que podem elevar à santidade os frades mendicantes podem ser compreendidas no 1418 1417 Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR reconhecimento, pelo seu autor (ou por quem encomendou o trabalho), de uma autenticidade do modo de vida primitivo, desconhecida na posteridade, quando somente através do martírio poderiam ser exercitadas. Bibliografia: ODDI, Giacomo. Franceschina (edito la prima volta nella integrità dal P. Nicola Cavanna, OFM, 1474). Firenze: Leo S. Olschki,1931. MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, n. 45, pp 11-36, 2003. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens – ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: Edusc, 2007. VISALLI, Angelita Marques. O corpo no pensamento de Francisco de Assis. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Curitiba”: Faculdade São Boaventura, 2003. 1419 1418