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SAO FRANCISCO E A IGREJA*
Paulo Evaristo, Cardeal Arns, O.F.M.
O mais difícil é expor a evidência. Ela não se prova. Portanto, não oferece
assunto para discussão, nem facetas interessantes para o debate. É o que
acontece quando queremos expor a atitude de Francisco de Assis para com a
Igreja.
Enquanto os demais reformadores insistiam, em seu tempo, sobre os mesmos
ideais de pobreza, praticando austeridades semelhantes à dele, poucos, ou
quase nenhum, assumiam atitude eclesial. São Francisco o fez com uma
espontaneidade que não reclamava argumentos, desde o momento em que se
lançava nos braços do Pai, envolto pelo manto do bispo de Assis.
A Igreja, daí para a frente, envolverá toda a sua personalidade e obra.
Tomás de Celano, ao escrever o Capítulo sobre São Francisco e a Igreja,
evoca as passagens mais marcantes sobre o relacionamento do Santo com os
bispos, padres, religiosos, como igualmente os trechos em que a doutrina
essencial da Igreja é colocada como cerne de espiritualidade dos
companheiros de Assis.
Preferimos partir do Vaticano II, para reencontrarmos nosso Pai, vivo, no meio
de nós.
Pensamos em nosso tempo e nos “sinais do tempo” que João XXIII nos
apresentou na «Pacem in Terris» como, conquistas do mundo moderno, para
confrontarmos com eles os ideais de São Francisco. Afinal, temos impressão
de que o debate sobre «pneuma» e «instituição» encontra elementos de
solução no que São Francisco viveu e ensinou.
I. O VATICANO II FAZ REVIVER SÃO FRANCISCO
O livro de Mário von Galli «Gelebte Zukunft: Franz von Assisi», lançado entre
nós pela Editora jesuítica Loyola, colocou o ideal de pobreza de São Francisco
no cerne de todas as discussões e resoluções mais esperançosas do Vaticano
II. Exemplifica ele a nova atitude da Igreja pelas intervenções dos bispos, que
exigiam despojamento, simplicidade e volta ao espírito itinerante, que tanto
marcou São Francisco. Uma Igreja pobre, que fala por gestos bem simples,
apelando para a consciência, para a fraternidade e igualdade de todos os
homens.
Se não tivéssemos outra missão na terra do que aquela de recordarmos
constantemente que os cegos, os surdos, os coxos, afinal, os pobres são os
*
Texto extraído de: VVAA. Nosso irmão Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 197-211.
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preferidos de Deus, já teríamos missão insubstituível na sociedade de consumo
e competição. Sobretudo no momento em que todos aspiram ao nível mais alto
de existência material, lembraríamos que o homem só será feliz na medida em
que assume toda a humanidade dentro de si, ou seja, na hora em que Jesus se
encarna em cada homem, que tem direitos e deveres em relação a tudo o que
existe.
1. Participação de todos
Em nossas reuniões e sessões de estudo, interrompe-se, muitas vezes, a
discussão daqueles que falam em nome da Igreja, com a pergunta: «Mas,
afinal, em nome de que Igreja você fala?»
Qual é a Igreja que desejamos para nós e para os tempos de hoje? Qual a
Igreja de Jesus para os dias de hoje?
Foi, aliás, o que aconteceu no Vaticano II. Para vencerem os demais impasses,
os padres conciliares tiveram que submeter-se ao esforço de descreverem,
pela «Lumen Gentium», o que é a Igreja. Se não o fizessem, todo o mais se
apresentaria como discutível ou fluido.
Depois de apresentarem as mais diversificadas e ricas imagens, comparações,
alegorias e parábolas, acabaram por decidir-se pela expressão bíblica «IgrejaPovo de Deus». Conseqüentemente, teriam que insistir na participação de
todos e nos diversos serviços a serem prestados ao mesmo Povo, e, por este
Povo, ao mundo.
Daí para frente, a palavra «participação» se envolve em nova mística eclesial.
Tanto o Papa Paulo VI, sobretudo na encíclica «Ecclesiam Suam» e na
«Octogesima Adveniens», analisa tal atitude psicológica e deriva dela o diálogo
da Igreja no seu interior e no relacionamento com o mundo todo, como
igualmente os bispos, os padres e os leigos a exprimem pela definição que se
transformou em «slogan»: «Igreja somos nós». Querem, com isso, significar
não apenas os bispos e os demais responsáveis por setores de ação eclesial,
mas todos os batizados, conscientes de que Deus os chamou para serem o
Cristo no dia de hoje e assumirem sua ação em favor do mundo.
A participação inclui quatro elementos indispensáveis, sempre de novo
apresentados por São Francisco:
a) Informação - Ninguém se interessa pelo que não conhece. Portanto, não
participará da Igreja, nem da ação da mesma no mundo, caso não esteja
informado.
Por longos séculos, os missionários franciscanos foram o jornal do povo.
Levavam as informações sobre Igreja e mundo para todos os lugares onde
pregavam. Quem não fosse escutá-los com o desejo de converter-se iria
escutá-los ao menos pelo instinto de curiosidade. Não só sabiam os frades o
que contar; mas encontravam sempre novos métodos, meios de comunicação
mais adaptados para transmitir o jornal do mundo. Basta lembrar o correio vivo
que eram um S. Bernardino de Sena, um S. João Capistrano e todos os demais
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missionários ambulantes, mesmo os de nossa terra. Ainda hoje, os conventos
costumam ser excelentes agências de noticias, senão de boatos.
E São Francisco? Chegou a ponto de informar e deixar bem informadas as
próprias Clarissas, que viviam atrás das grades, não só por serem mulheres,
possivelmente curiosas, mas sobretudo para elas terem o que rezar. Para
saberem em favor de quem e de que deveriam sacrificar suas vidas. Ainda nos
lembramos do bilhete, célebre, de Santa Inês, que nos dá os motivos para se
construírem claustros femininos no coração mesmo da cidade. E cidade, ontem
e hoje, significa sempre circulação, comunicação e irradiação.
Também ele, que vivia em contínua contemplação, preferiu fazer do coração
sua cela ou seu mosteiro, do que separar-se do mundo. Circulava sempre e
estava informado, tanto da mensagem do Senhor para o mundo, quanto das
dores do mundo, para levá-las ao encontro do Senhor.
Nada foge à observação e ao conhecimento do Santo. Desde a água e os
animais, até os homens, todos devem estar presentes em sua oração e em
suas comunicações com o homem e com Deus. Também a Cúria Romana, os
Palácios dos bispos, a residência dos padres, como as choças dos colonos e o
que se passa atrás de todos esses muros ou tapumes.
Para ser o homem-comunicação, São Francisco devia ser um homem
informado.
b) Atitude Psicológica - São Francisco passou a ser invocado como Patrono por
todos aqueles que têm alguma mensagem, ou se crêem mensageiros de
alguma reforma no mundo. Até os contestadores mais exacerbados o invocam
como modelo de atitude psicológica.
Foi São Francisco contestador?
Sobre este tema escreve outro confrade, neste mesmo livro. O que importa,
aqui, é sublinhar que sua contestação é a daquele que ama carinhosamente a
Igreja e os homens todos por quem Cristo morreu.
Sua atitude foi a daquele que para participar sabe que deve construir e
reconstruir constantemente a igrejinha que é ele próprio, sustentando assim a
coluna da Igreja que é o amor a todos aqueles que Deus escolheu para
decidirem, neste momento, a história humana. Atitude despojada de egoísmos
e voltada para a fraternidade e o minorismo. Com arrojo e humildade.
Apesar de humildes e ignorantes, todos os irmãos sabem pregar e edificar.
Apesar de não possuírem cavalos nem carruagens, todas as terras são
acessíveis ao anúncio do Evangelho. Porque caminham a pé e em grupos de
dois, todas as estradinhas e todas as embarcações encurtam o caminho ou
diminuem as despesas.
A atitude de humildade leva ao mais ambicioso de todos os planos, qual seja, o
de converter o mundo inteiro.
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A lição do arrojo franciscano pegou de tal sorte, que um dia me disse o
historiador Eplirem Longpré: “Você certamente não encontraria dois santos
franciscanos que fossem iguais. Uma qualidade, no entanto, todos eles
possuíam: foram vagabundos”. Poetas traduziram o termo «vagabundo» por
«andarilho de Deus».
De fato, todos andaram pela terra, confiantes de que a Igreja possa levar
esperanças aos mais distantes rincões do mundo. É a atitude de participação
na história do mundo, em nome da Igreja de Cristo.
c) Liberdade - O que distingue realmente o homem de todas as demais
criaturas visíveis nesta terra é o fato de ter consciência e liberdade. Para haver
participação real, é preciso que consciência e liberdade se orientem para a
participação.
Mais de uma vez, quiseram duvidar da parábola de São Francisco a respeito
do cadáver que se deixa levar para onde os vivos o quiserem. Assim, os
frades, sempre dóceis, obedeceriam a seus superiores sem reação outra senão
a de fazer-lhes a vontade.
Por sua vez, os superiores estariam nas mãos de outros superiores, como o
próprio Santo queria estar, como prisioneiro, na mão de seu geral.
Por que é que os frades costumam duvidar desta parábola?
Creio que é porque todo o pensamento franciscano está voltado para o valor e
o bom uso da liberdade. Temos consciência da liberdade e liberdade de
consciência. Ou, como dizia um provincial recentemente: «Todo mundo faz
mais ou menos o que quer, contanto que queira uma comunidade e ponha sua
liberdade totalmente a serviço ou em comunhão com todos». É este o segredo
da participação: comunhão de liberdades.
Toda a autoridade, na Igreja e fora dela, deveria ver se consegue a comunhão
das liberdades em favor do bem comum.
A Ordem Franciscana, mesmo no Brasil, já teve cadeias, já recorreu a castigos
físicos, mas jamais se sentiu à vontade em tal regime. Esses elementos foram
mesmo prova de decadência. Os bons tempos de nossa Ordem
caracterizaram-se pelo entusiasmo e doação generosa - quase que
espontânea - ao bem da Igreja e do mundo. Mais vale um grande coração,
totalmente livre e pobre para o bem, vazio de si mesmo e cheio de Deus, do
que todos os meios de coerção e todos os instrumentos de correção. Esta
liberdade flui diretamente para dentro do amor de Deus e dos homens. É dela
que a Igreja precisa. É desta forma que a participação se faz orgânica, e não
apenas organizada. A Igreja deixa de ser uma grande empresa, capaz de
ameaçar pelo poder, para transformar-se num corpo orgânico que transmite
vida, esperanças e amor por todos os gestos e palavras vivas.
É a Igreja do Vaticano II, despojada, um tanto anárquica no início, mas
inteiramente voltada para tudo o que deve ser reanimado e amado no mundo.
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d) Prospectiva - A Igreja tem seu plano, sua prospectiva. Ela nasce do desígnio
do Pai e desemboca em Cristo, restaurador de todas as coisas.
Ela sempre seguiu alguns planos ou prioridades, conforme a história a
inspirava. Hoje em dia, costuma ela elaborar planos de pastoral mais ou menos
complexos, e todos eles obedecem a determinados objetivos.
Os franciscanos não costumam ser muito organizados. Não apreciam a
planificação e são levados às reuniões com muita resistência. Há lugares
mesmo em que eles se ausentam, apesar dos convites reiterados dos bispos.
No entanto, foi justamente o superior geral dos frades menores encarregado de
dizer ao último sínodo, em nome de todas as congregações e ordens de hoje,
que os religiosos devem ser incentivados a participarem mais ativamente nos
organismos que orientam a atividade pastoral, «vencendo-se a tentação, um
tanto difundida, de os considerar e tratar como pessoal meramente executivo».
Portanto, nosso lugar na Igreja se situa no coração mesmo de seus planos
pastorais, na elaboração, na execução e na revisão das atividades ecIesiais.
Dizem que herdamos de São Francisco um espírito um tanto anárquico. Uma
atividade difusa. Um descontrole na canalização de nossas energias. Agimos
mais pelo coração que pela cabeça. Não perguntamos tanto pelo que deve ser
feito, mas fazemos, enquanto outros planejam.
Se fosse bem assim, já teríamos desaparecido da face da terra.
São Francisco obedeceu às leis profundas e fundamentais da prospectiva.
Imitar Cristo «ad litteram», quer dizer, agir em perfeita unidade com a Igreja,
que continua a obra de Cristo neste momento da história. Melhor ainda, deixarnos guiar pelo mesmo Espírito que guiou Cristo e guia sua Igreja. Ou seremos
o reflexo fiel da imagem da Igreja num momento da história, ou deixamos de
ser São Francisco para a Igreja e para o mundo.
Na hora em que esta Igreja exprime sua unidade por planos bem definidos,
estaremos nós vivamente empenhados nestes planos. Na hora em que ela
incentiva os ministérios mais diversos como expressão desta unidade no
serviço ao mundo, nós nos orientaremos através desses mesmos ministérios
na ação pastoral. A prospectiva será sempre a mesma: seguir o Evangelho ao
pé da letra, no coração da história dos homens.
Estaremos, portanto, presentes na hora de se elaborarem os planos. Seremos
os maiores incentivadores dos que executam as linhas de ação, e
participaremos, com humildade mas eficiência, da revisão constante da ação
da Igreja em favor dos mais pobres.
2. Espírito de serviço
Poucas idéias do Vaticano II têm merecido tanto relevo quanto a idéia do
serviço. Em primeiro lugar, todos os batizados devem sua colaboração à
comunidade na qual foram assumidos, quanto igualmente ao mundo, em nome
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desta mesma comunidade. Como Cristo veio não para ser servido mas para
servir, o cristão encontrará, nesta atitude, toda a sua nobreza e vocação.
O Vaticano porém deu mais um passo, e o mais importante: toda autoridade
encontra seu sentido mais radical na ordem do serviço. "O maior dentre vós
será sempre aquele que serve".
São Francisco já havia adotado o mesmo conceito na área da vida comum e no
setor daqueles que ele chamava de "ministros". O termo "ministro" adquiriu,
com o tempo, foros de nobreza. Acontece, por exemplo, hoje, que um general
promovido a ministro da Eucaristia encontre prazer em comunicar a todos que
é "Ministro Extraordinário". No entanto, qualquer cargo de direção ou de
coordenação, dentro da família franciscana, deverá ser examinado a partir do
cenário do lava-pés, Os serviços mais humildes convencem melhor do que as
grandes realizações.
No entanto, o mesmo São Francisco soube acentuar a responsabilidade de
quem manda e de quem obedece. A missão de servir não desobriga o
franciscano do respeito e da obediência. Seria mesmo difícil encontrar, em
qualquer constituição antiga, a partir de S. Pacômio, textos mais expressivos
sobre a submissão à vontade de Deus através das ordens dos superiores
atuais do que os nossos.
Mas há uma nota de simpatia em todo esse relacionamento entre quem
«manda» e quem "obedece".
Em primeiro lugar, ninguém deles usufrui de um privilégio: aquele que tem o
ofício de coordenar ou de mandar tem que obedecer, da maneira mais cabal, à
vontade de Deus expressa pela Igreja ou por outra forma. Ele jamais é fonte de
autoridade. É, antes, canal. E ai dele, se, por orgulho, inventar de ser alguém!
Portanto, ele deverá consultar, com muito desprendimento, aquilo que
transmitirá a outrem, não como menino de recados, mas como servo atento ao
menor sinal daquele a quem todos servimos.
Há, no entanto, outra nota, mais simpática ainda. O superior tem que assumir
as funções de pai e mãe, e é aí que nasce toda a mística da convivência alegre
e responsável. Numa família, ninguém é responsável por um só setor. Embora
cada qual saiba o que não pode deixar de fazer, todos estão convencidos de
que a casa deve funcionar, tanto nos pequenos como nos grandes serviços,
quanto sobretudo e em primeiro lugar na tarefa de conservar acesa a lareira, o
fogo que une a todos, ou, como diz S. Boaventura, «o elo que nos liga a outros
e o amor que se acende no centro em favor de todos».
Esse conceito de serviço tem por vezes prejudicado a ordem na realização dos
grandes planos. Uma vez que cada qual tem uma dúzia de ministérios, ele se
encontra dividido e não consegue doar tempo e energias a uma grande
realização.
Os serviços, no conceito franciscano, transformam toda a comunidade num
organismo, e não numa organização apenas.
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Somos portanto muito mais eficientes como corpo orgânico do que como
empresa. Nossa eficiência porém poderia ser altamente compensada, se
agíssemos de fato unidos nas grandes linhas. Se a comunidade se
empenhasse como um todo e se nossa meta fosse a própria meta das Igrejas
locais ou das comunidades e das áreas de serviço que nos são confiadas.
Afinal, é simpática a nossa concepção do serviço, no sentido de nada
recusarmos. A disponibilidade, alegre e espontânea, para com o hóspede, ou
seja, para com toda a pessoa que nos procura, é o que mais entusiasma o
clero e os fiéis, nesses dias de hoje, em que ninguém tem tempo para o outro.
O fato de «ter tempo» para o outro é a melhor expressão, e a mais
convincente, do respeito e do amor. Chegou alguém a afirmar - e foi um
dominicano - que a próprio Deus nada ambiciona mais do que uma oferta
constante de nosso tempo a Ele. Quanto mais então tal atitude de
disponibilidade e de pobreza evangélica não deve entusiasmar aqueles filhos
de Deus que nos procuram, muitas vezes, na hora exata em que não se
lembram de serem eles filhos de Deus e nossos irmãos.
Se aliarmos, portanto, a alegria franciscana à disponibilidade, e se soubermos
dar uma atmosfera de sorriso constante aos trabalhos mais difíceis, teremos
cumprido missão original e fecunda para os dias de hoje.
3. Comunhão em torno da Palavra, da Eucaristia e do Apóstolo
São esses os três sinais mais evidentes da realização da própria Igreja. Para
São Francisco, o Evangelho não era apenas norma suprema para a vida e os
serviços dos irmãos, mas, ao mesmo tempo, inspiração para cada ato da
existência. A Palavra, que ele já não precisava ler das páginas dos livros,
porque a trazia gravada no coração com pontos e vírgulas, devia operar
constantemente a conversão pessoal. A partir dela, tornava-se possível ser
pobre, obediente e casto, quer dizer, estar totalmente disponível para a
conversa com Deus e com todas as criaturas que encontramos no mundo,
como sinais desta Palavra transmitida por Jesus. O franciscano que deixasse
de meditar diariamente o Evangelho jamais chegaria a entender o próprio Pai
São Francisco. O Evangelho mesmo vale todas as biografias dos santos e
mesmo a biografia de São Francisco.
Mas, mesmo aí parece haver uma nota original: São Francisco legou à Ordem
um modo novo de contemplar a Palavra divina. Embora apreciasse, como
poucos, o estudo da teologia e o amor à Terra Santa, como igualmente a tudo
o que diz respeito à Palavra de Deus, jamais fundou uma escola bíblica, nem
um instituto de pesquisa intelectual das Escrituras. Era por demais simples,
descobrindo, por detrás das letras, a voz, a entonação, o olhar e os gestos de
amor do Filho de Deus. A Escritura, portanto, renova constantemente nossa
sensibilidade para todas as manifestações da natureza e da história, pois tudo
vem do Espírito de Deus.
Tão importante quanto a conversão é o fato de a Palavra de Deus convocar
para a fraternidade. Um homem que, a certa altura da vida, se colocou o
dilema: ser «contemplativo» ou «ativo», jamais pensou em ser um eremita
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solitário. O eremitério, pelo contrário, deveria basear-se numa comunhão
fraterna mais profunda.
É por isso mesmo que o atual geral dos franciscanos pôde ser, durante o
sínodo da evangelização, o defensor das pequenas comunidades de religiosos
em meio ao mundo. Apresentou, Frei Constantino Koser, a inserção dos
religiosos nas Igrejas Particulares através das pequenas comunidades ao nível
do povo, e compartilhando com ele os problemas reais da vida. E argumentou
dizendo que tais comunidades favorecem o espírito de fraternidade e o estilo
de vida mais evangélico, insistindo no entanto que tais comunidades devem ter
meios para permanecerem fiéis ao compromisso com a família religiosa. É
assim que elas experimentam caminhos novos para a Igreja e acordam forças
preciosas em meio às massas.
Afinal, na hora em que o próprio Santo Padre o Papa Paulo VI nos adverte que
toda a iniciativa eclesial tem seu ponto de partida na Palavra de Deus e seu
ponto de chegada na comunidade humana, encontramos nova alegria em
basearmos, como São Francisco, nossa vida e nosso testemunho na vida e no
testemunho do Cristo histórico, que vive, no dia de hoje, através da ação do
Espírito.
A Eucaristia nos leva a experimentar a máxima expressão da Palavra e do
amor. É o sinal mais profundo e constante da unidade em nossa vida eclesial e
em nossa vida fraterna. Seria, quem sabe, supérfluo relembrarmos aqui a fonte
eclesial de nossa ordem, que é a Eucaristia, pois os textos que São Francisco
nos legou e sua devoção à Eucaristia foram de tal modo revolucionários, que
costumam ser objeto de meditação em todos os nossos retiros.
Dois lembretes apenas:
• A celebração eucarística, cerne e ponto de referência de toda a vida
comunitária franciscana.
• Em segundo lugar, o respeito diante do Cristo presente, como
verdadeiro e único Superior de nossas comunidades.
A partir desses dois pontos, teremos possibilidades de renovação, tanto para, a
vida interna da Ordem, como para todas as suas atividades nos programas
eclesiais.
Igualmente evidente se torna a união à Igreja através do relacionamento com o
apóstolo, isto é, com o bispo, ou seu representante, o presbítero.
Hilário Felder, ao desenvolver o mesmo tema que nos propuseram à
meditação, nos leva a nadar num mar de textos e de exemplos, em que todos
eles põem o bispo e os padres como referência de vida eclesial dos
franciscanos.
Desde o início de sua conversão, encontramos o princípio que norteará São
Francisco durante a existência: "Sim, comparecerei à presença do Sr. bispo,
que é o pai e o mestre das almas".
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O grande historiador da Idade Média, o dominicano Pe. Chenu, nos dizia, numa
conferência em Paris:
"Houve muitas correntes de reforma semelhantes à de São Francisco, no século XIII;
houve homens que o igualaram, ou até excederam, nas austeridades; houve mesmo
alguns que conseguiram criar grupos e comunidades muito semelhantes aos dele. Mas,
num ponto, todos os demais fracassaram e por isso desapareceram: foi no
relacionamento para com os bispos e padres, centros visíveis de referência eclesial".
«São Francisco foi extraordinário exatamente neste ponto. Não se constituiu a si
próprio em medida e critério, mas aceitou, apesar de todas as suas deficiências, os
bispos e os padres como seus chefes e guias, sobretudo o papa, em Roma. O espírito
eclesial é que garantiu a sobrevivência e o crescimento de sua ordem».
Para fundamentar o que acabara de expor, o Pe. Chenu poderia ter citado o
texto das Admoestações, que assim reza:
«Bem-aventurado o servo de Deus que põe sua confiança nos clérigos, que vivem
segundo a forma da Igreja Romana. E ai daqueles que os desprezam, pois nem que
sejam pecadores, ninguém os deve julgar, porque o Senhor mesmo reservou para si o
direito de julgá-los».
E na exortação sobre a perseverança, a verdadeira fé e a penitência, São
Francisco, o humilde São Francisco, ousa exortar em primeiro lugar as ordens
eclesiásticas (1 Regra, cap. 23). E tinha direito a tanto, porque era seu amigo e
mais íntimo colaborador.
II. SINAIS DOS TEMPOS
Se, por um lado, a espiritualidade e a ação eclesial dos franciscanos partem do
próprio cerne da Igreja, por outro lado sabemos que ele foi original exatamente
por saber descobrir os sinais dos tempos e por legar à, sua família religiosa a
sensibilidade para o que acontece na história de hoje. Como diria um
sociólogo,
«os grandes mosteiros eram torres de marfim, que se viam ao abrigo de qualquer
investida do tempo. Separados por altos muros, não deixavam o mundo penetrar na
área sagrada reservada aos monges. Caso agissem para fora, os mesmos mosteiros
ditavam normas para sua ação».
São Francisco, pelo contrário, em vez de torre, queria dotar os seus frades de
antenas. Deveriam eles andar pelo mundo de dois em dois, e procurar os
lugares onde os homens mais sofrem, e, além disso, acomodar sua ação à
própria vida dos homens e às circunstâncias que os oprimiam.
João XXIII, papa que tanto valorizou os ideais de São Francisco e peregrinou,
como pontífice, para o berço da Ordem, lembrou, na Pacem in Terris (nn. 3945), que sinais Deus colocara no mundo para despertar novamente os homens
à fraternidade.
O primeiro dentre eles seria a valorização do trabalho: «Hoje, em toda parte diz o papa - os trabalhadores exigem ardorosamente não serem tratados à
maneira de meros objetos. . . mas como pessoas».
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São Francisco orientou seus irmãos para o trabalho braçal, para a ajuda aos
colonos e para uma ocupação constante em todas as horas da existência. O
trabalho lhes garantiria o pão, mas sobretudo a participação na sorte humana.
Por ele, aprenderiam e reaprenderiam a respeitar os homens.
Desistiu São Francisco, assim, da forma monacal anterior, que apresentava os
mosteiros como tipos de feudos, e os monges como senhores (dominus, ou
seja, dom). Os irmãos, em vez de se chamarem Dom Elias, Dom Francisco,
adotariam o título igualitário de irmão.
Em colóquio recente de sociólogos com pastoralistas, estes últimos
perguntaram aos pesquisadores do campo social qual seria a maior
contribuição da Igreja para o mundo do trabalho e dos marginalizados. E a
resposta daqueles que nem eram cristãos, mas procuravam solução para os
conflitos contínuos entre o lucro e a pessoa do trabalhador, deram a seguinte
sugestão: «A Igreja deve responsabilizar-se pela consciência da igualdade».
Talvez seja também esta a grande tarefa dos filhos de São Francisco na Igreja
de hoje. Não serão apenas amigos do povo, no sentido de estarem próximos a
ele pelo padrão de vida, mas também pelas incertezas que compartilham com
o mundo do trabalho.
A pedagogia moderna nos ensina que só sabe comunicar-se aquela pessoa
que é capaz de sofrer com a outra a quem deseja comunicar esperanças e
orientação. O conhecimento adquirido pela sorte comum supera infinitamente o
conhecimento livresco ou teórico.
O mundo do trabalho envolve a imensa maioria dos homens na história
moderna. É para ele que devemos voltar-nos, portanto, guiados pelo Espírito,
que fala através dos sinais do tempo.
“Em segundo lugar - acrescenta João XXIII - está o fato, por demais conhecido, do
ingresso da mulher na vida pública... Torna-se a mulher cada vez mais cônscia da
própria dignidade humana; já não permite ser tratada como objeto ou instrumento,
reivindica direitos e deveres consentâneos com sua dignidade de pessoa”.
A partir de São Francisco, a participação da mulher na vida religiosa é um fato
novo e constante, na vida da Igreja. Verdade é que todos os grandes
Fundadores abriram canais e possibilidades de participação feminina. São
Francisco talvez tenha o mérito de colocá-las, como religiosas, no cerne da
vida, dentro das cidades e das aglomerações humanas, como parceiras da
ação missionária e da responsabilidade eclesial. Tal início garantiu participação
tão grande das mulheres nos ideais de São Francisco, que hoje elas superam,
em número e realizações, a participação masculina. São tão numerosas as
Congregações femininas que seguem à risca os ideais de São Francisco, que
já não somos capazes de manter em dia as nossas estatísticas.
O que mais importa, no entanto, é que todas elas assumam a responsabilidade
na ação e na vida da Igreja, participando dos planejamentos, da execução e de
quase todas as iniciativas das Igrejas Particulares.
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“Notamos finalmente - conclui João XXIII - que em nossos dias evolui a sociedade para
um padrão social e político completamente novo... já não existirão povos dominadores
e povos dominados”.
O respeito ao caráter de cada povo e a inserção de valores novos dentro da
Igreja pressupõem uma estrutura maleável. Uma vez que a Regra franciscana
se compõe quase que exclusivamente de frases evangélicas e não obriga a
estruturas, e sim ao amor, à acolhida e à vida em fraternidade, será sempre
fácil aos filhos de São Francisco inserirem os valores indígenas na própria
vivência da Ordem. A prova disso teve-a, o próprio Fundador. Tanto as
comunas da Itália recebiam os frades com alegria, quanto os países distantes,
que formam a atual Alemanha ou Inglaterra. Elas não só recebiam os frades
com relativa facilidade, mas ingressavam nas fileiras de São Francisco e lhes
davam assim o colorido variado que sempre caracterizará a Ordem. Se o
sínodo recente de Roma insiste na indigenização, poderá certamente contar
com a experiência e a abertura dos filhos de São Francisco para a nova era.
III. "PNEUMA" E "INSTITUIÇÃO"
A questão agitou os arraiais da teologia logo após o Concílio, como aliás já o
fizera em outros tempos. Dizem até que as divergências entre São Pedro e São
Paulo brotaram da concepção mais ou menos pneumática ou institucional da
Igreja primitiva.
Por temperamento e espiritualidade, São Francisco é, sem dúvida, um
pneumático. Perderia sua identidade, caso fosse obrigado a entrar em formas
predeterminadas. Não aceitou nenhuma das regras primitivas, nem mesmo se
acertou com S. Domingos, para terem uma só forma de vida. A liberdade e o
cultivo da liberdade marcarão todos os gestos e palavras de São Francisco. É
por isso que saberá andar pelo mundo como o filho do Dono do Universo.
Enquanto os frades forem pobres, o mundo lhes pertencerá. Foi essa a
garantia que São Francisco nos deu. E quem possui o mundo tem obrigação
moral de orientá-lo. E São Francisco o fez com inexcedível originalidade,
executando o melhor de todos os programas dos filósofos: começando tudo
pela admiração (o thaumazein grego).
Como tivesse propriedades, teria que armar-se e defendê-Ias, e perderia a
chance de admirar e usufruir.
A pobreza evangélica, portanto a abertura para toda a obra de Deus e para o
desígnio do Pai na história, tornou São Francisco o homem mais livre que já
existiu na terra depois do próprio Senhor Jesus. Deixava-se guiar totalmente
pelo Espirito de Deus, à imitação de seu modelo, o Divino Mestre.
Curiosamente, este mesmo São Francisco é fiel à estrutura da Igreja. Luta,
chora, espera, para poder comunicar-se com o papa e receber a aprovação
dele. Bate à porta das residências dos bispos, e não hesita entrar pelos fundos,
caso seja expulso ou enxotado pela porta da frente. Não prega sem anuência
do vigário mais atrapalhado daquele tempo. Não só reconhece as estruturas,
mas faz questão de dizer que os filhos que não reconhecem as mesmas
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estruturas também não merecem usufruir da liberdade. Devem ser presos, bem
guardados e entregues ao Cardeal de Óstia. Certamente não para verem o
mar, mas para contemplarem a misericórdia de Deus e fazerem penitência.
Cremos firmemente que só pode reformar as estruturas aquele que as
experimentou, valorizou e amou. A reforma interna da Igreja tem que partir do
coração e não dos instintos ou das elucubrações. Mas ela deve ser feita. Ao
longo dos tempos e com constante vigilância. Não só para sermos mais
eficientes, mas sobretudo para sermos mais livres para o Evangelho e para o
serviço ao Povo, sob inspiração do Espírito.
As instituições são todas transitórias, salvo aquelas que mantêm a circulação
do amor e se transformam em fontes de esperança. E estas vieram de Jesus,
ou da necessidade de traduzir sua Mensagem para tempos novos. E serão
recebidas em espírito de fé e mantidas enquanto alimentarem a fé e não
apenas o poder ou os privilégios.
CONCLUSÃO
Todos os fundadores de ordens religiosas partiram para a grande aventura da
fé, impulsionados pelo Espírito de Deus e levados a cobrir os espaços vazios
que reclamam a presença do Evangelho. São Francisco não foge a esta regra.
Reconhece a maioria dos homens que ele foi mais original do que outros, por
força de seu temperamento e pela ação radical, numa época em que quase
tudo devia ser revisto na Igreja. Sua intuição simples de voltar ao Evangelho
talvez fosse também a originalidade mais característica de todos os
movimentos de reforma. Com isso, transmitiu ele a garantia a seus filhos de
que nunca se tornarão desnecessários à história da Igreja, mas com isso lhes
impôs igualmente o dever de uma conversão sempre mais radical e de uma
insatisfação com tudo o que já realizam. O franciscano burguês e acomodado é
o maior contra-senso.
Numa era tão voltada para a autodefinição, nós teremos que definir-nos com a
Igreja, pela Igreja e para a Igreja.
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SAO FRANCISCO E A IGREJA* Paulo Evaristo