X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 DAS CORDAS PARA O SENO: UMA EXPERIÊNCIA DE ENSINO EM TRIGONOMETRIA Bernadete Barbosa Morey Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN [email protected] Severino Carlos Gomes Instituto Federal do Rio Grande do Norte - IFRN [email protected] Suzany Cecília da Silva Medeiros Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN [email protected] Resumo: O propósito deste texto é relatar uma experiência adquirida na realização de um curso para professores de matemática sobre o ensino de trigonometria. Nele, o papel da geometria grega na descrição da esfera celeste serve de motivação para a estruturação de uma sequência de ensino enfocando o surgimento da trigonometria como campo científico. A reconstrução dos caminhos percorridos por Ptolomeu na construção de sua tabela de cordas e a transição destas para conhecimentos trigonométricos atuais são o enfoque deste trabalho de ensino. Palavras-chave: Ensino de Trigonometria; Educação Matemática; Geometria. INTRODUÇÃO Há mais de dois mil anos, os gregos buscavam resolver problemas ligados à astronomia utilizando métodos geométricos. Assim, foram empreendidas tentativas de determinar a distância da Terra ao Sol e à Lua e a medida do raio da Terra. A trigonometria não tinha surgido ainda e a primeira tabela trigonométrica de que se tem notícia (embora a própria tabela não tenha chegado até nós) foi elaborada no séc. II a.C. por Hiparco de Nicéia. Com base na tabela de Hiparco, o astrônomo Claudio Ptolomeu que viveu e trabalhou em Alexandria (Egito) no séc. II d.C., elaborou uma tabela de cordas mais minuciosa do que a de Hiparco. A tabela de Ptolomeu foi elaborada para ser parte integrante do Almagesto1, tratado que foi usado nas escolas e universidades como manual de astronomia até o advento da teoria heliocêntrica. 1 Morey e Faria (2009) afirmam que o Almagesto é um tratado de astronomia. Descreve os céus, isto é, o movimento dos astros Sol, Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno sobre o fundo das estrelas Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Relato de Experiência 1 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 Segundo Kennedy (1992), na construção da sua tabela, Ptolomeu tomou um círculo e relacionou cada ângulo central ao comprimento da corda deste mesmo ângulo. Tomou o raio do círculo, valendo 60 unidades e, utilizando geometria euclidiana, calculou os comprimentos das cordas para arcos (ou ângulos centrais) de 0º a 180º, variando de meio em meio grau. A tabela e os conceitos relacionados sofreram, nos séculos posteriores, modificações nas mãos dos matemáticos e astrônomos até chegar aos conceitos trigonométricos que conhecemos hoje. A figura 1 nos mostra a relação entre seno de um ângulo e o comprimento da corda deste mesmo ângulo. Podemos ver que hoje, como o seno do ângulo central AM é o que conhecemos, nos dias de OA θ enquanto AM é a metade da corda do ângulo 2 central θ. Figura 1: Relação entre seno e corda. Fonte: Silva, 2008. p. 7. Focalizamos nossa atenção no fato de que os gregos, ao elaborar suas tabelas de cordas, contavam apenas com os conceitos geométricos da matemática grega (círculo, ângulo, corda); os conceitos de seno, círculo trigonométrico e demais conceitos trigonométricos surgiram depois. A partir disso, nos pareceu viável oferecer um curso para professores de Matemática em exercício e em formação. visíveis a olho nu. O ponto de vista do Almagesto é geocêntrico e ele foi usado como livro texto de astronomia por muitos séculos até que a visão heliocêntrica sobrepujou a visão geocêntrica. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Relato de Experiência 2 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 O curso2, planejado para durar nove horas/aula, consistiu-se de uma reconstrução mais ou menos detalhada dos principais passos da elaboração da tabela de Ptolomeu. Nosso objetivo era examinar, juntamente com os professores, o processo de transição dos conceitos geométricos para os trigonométricos. A nosso ver, é importante que o professor tenha a oportunidade de examinar o processo de surgimento de um conceito, a evolução deste conceito e os demais a ele relacionados, até a formação de um novo ramo da Matemática. No que se refere à trigonometria, acreditávamos e acreditamos que um curso com abordagem histórica pode propiciar aos professores este momento de reflexão. Passamos agora a relatar o que aconteceu no curso. O CURSO DE TRIGONOMETRIA NUMA ABORDAGEM HISTÓRICA O curso foi ministrado duas vezes. Na primeira vez, os participantes eram em sua maioria professores das escolas do ensino básico, enquanto que na segunda vez, os participantes eram, basicamente, estudantes de graduação (alunos da licenciatura em Matemática). Optamos por ministrar o curso na forma de oficina pedagógica, isto é, o conteúdo do curso se desenvolve à medida que os participantes realizam, em grupos, atividades previamente elaboradas pelo professor (ministrante do curso). O ministrante do curso coordena as atividades dos grupos, tira dúvidas, dá sugestões, chama a atenção para aspectos que merecem reflexão, dentre outros. As atividades foram elaboradas de modo a replicar os principais passos do processo de elaboração da tabela de cordas. O conteúdo matemático de tais atividades incluía: construção (com régua não graduada e compasso) de polígonos regulares a partir da divisão da circunferência em partes iguais, conceitos e propriedades dos polígonos regulares, teorema de Pitágoras, conceitos relacionados ao segmento áureo, cálculo de medida dos elementos de figuras geométricas e outros. 2 Para mais detalhes consultar Morey et al (2009). Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Relato de Experiência 3 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 Das diversas atividades aplicadas durante o curso, duas merecem comentários especiais por possibilitarem observações de âmbito geral. A primeira delas fez parte de uma etapa preparatória e tinha o seguinte enunciado: Atividade 5. Construir um hexágono regular inscrito em uma circunferência, utilizando régua e compasso. Com o transferidor confira a medida de seu ângulo central. A atividade tinha o objetivo de preparar a transição de conceitos geométricos para trigonométricos. Isso se daria relacionando o lado (corda) do polígono com a medida do ângulo central correspondente. Com ela, mostramos rudimentos de como figuras geométricas são construídas com compasso e régua. No desenvolvimento desta atividade, muitos participantes apresentaram dificuldades no manuseio do compasso. Igualmente, a maioria deles não conseguiu construir a figura solicitada por desconhecer, ou não lembrar, a propriedade envolvendo o lado do hexágono inscrito e o raio da circunferência3, que era fundamental para essa construção geométrica. A outra atividade, enunciada a seguir, fez parte de uma segunda etapa do curso. Nesta ocasião, os conhecimentos geométricos explorados na etapa anterior serviram de base para a construção do conceito fundamental para a trigonometria: o seno de um ângulo (arco). Atividade 9. Utilizando os resultados obtidos nas atividades anteriores e uma calculadora preencha a tabela que segue. Considere θ como sendo a medida do ângulo central (arco); crd θ como sendo o comprimento da corda de θ; e sen θ 2 o seno da metade de θ. Compare os resultados obtidos em cada coluna. 3 Um hexágono regular inscrito em uma circunferência tem a medida do seu lado igual à medida do raio desta circunferência. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Relato de Experiência 4 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 θ crd θ sen θ 2 sen θ usando 2 calculadora 90º 60º 120º 36º 72º Esta atividade se caracterizava como a mais importante e também a mais complexa da sequência de ensino. Seu objetivo era fornecer indícios da construção de uma tabela de cordas e sua transição para uma de senos. Ou seja, a base da trigonometria gerada a partir de conceitos geométricos e algébricos. Os procedimentos para o preenchimento de cada linha eram distintos e exigiam uma boa compreensão dos conhecimentos geométricos explorados em atividades da primeira etapa do curso. O método usado para o preenchimento da tabela foi o processo descrito por Ptolomeu na construção de sua tabela de cordas4. A compreensão dos procedimentos para o cálculo das cordas 5 era primordial para atingirmos nossos objetivos. Entretanto, em virtude da complexidade dos procedimentos para este cálculo, os participantes, em seus grupos, não apresentaram conhecimentos e habilidades geométricas e algébricas suficientes. Desta forma, fez-se necessária a resolução, passo a passo, exposta no quadro e comentada detalhadamente pelos ministrantes. Após isto os participantes se agruparam para discutir os procedimentos expostos e preencher o restante da tabela. CONSIDERAÇÕES GERAIS DA EXPERIÊNCIA DE ENSINO No decorrer do curso, observamos que as outras atividades também apresentaram algumas dificuldades, como manusear o compasso e o transferidor 4 Para mais detalhes sobre o método de Ptolomeu na construção de sua tabela de cordas ver Morey (2001). 5 O valor de cada corda foi determinado usando conhecimentos algébricos, geométricos e as construções realizadas em atividades anteriores. Por exemplo, para determinação da corda de 90º usamos o teorema de Pitágoras; para a de 60º, a propriedade entre lado do hexágono e raio da circunferência circunscrita; para a de 120º, propriedades do baricentro do triângulo e teorema de Pitágoras; e para as cordas de 36º e 72º, o teorema de Pitágoras, o segmento áureo. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Relato de Experiência 5 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 adequadamente, perceber conceitos geométricos fundamentais nas construções dos polígonos regulares, lembrar propriedades básicas do quadrado, dos triângulos, ou de outras figuras. Porém, a maior dificuldade apresentada pelos participantes foi na transição da geometria para a álgebra na determinação dos comprimentos das cordas. Isto foi percebido na execução da atividade 9 comentada anteriormente e nas conversas entre ministrantes e participantes na avaliação do curso. As atividades que envolviam construções com régua e compasso tiveram uma boa aceitação, mesmo com dificuldades de manipulação por parte de alguns participantes. A dedicação e o envolvimento dispensados na etapa introdutória6 do curso foram bastante satisfatórios. Inclusive, diversos participantes manifestaram interesse que outros cursos envolvendo construções geométricas fossem ministrados posteriormente. CONSIDERAÇÕES FINAIS Observações, análises e reflexões nos levaram a concluir que, para resolver as atividades do curso seria necessário que os participantes estivessem familiarizados com determinados conhecimentos algébricos e geométricos. Ou seja, a percepção da transformação de conceitos geométricos para trigonométricos somente será assimilada quando os participantes dominarem conceitos básicos da geometria, envolvendo triângulos, polígonos, circunferência; apresentarem habilidades com construções geométricas de polígonos regulares; e agilidade em determinadas técnicas algébricas, principalmente, envolvendo números irracionais. Logo, a ausência dos requisitos básicos citados anteriormente comprometeu nosso objetivo principal do curso. Apesar de alguns participantes compreenderem a transição natural do conceito de corda para o de seno, isso não foi uma unanimidade. Para nosso trabalho de pesquisa, em andamento, fica a experiência de que, em cursos 6 Essa primeira etapa do curso consistia em atividades para traçar retas perpendiculares, bissetriz, mediatriz de um segmento, divisão de uma circunferência em partes iguais, construções de polígonos regulares, dentre outros. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Relato de Experiência 6 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 similares, devemos dedicar mais atenção a determinados conceitos geométricos e algébricos fundamentais. Por fim, destacamos o comentário de um professor participante em conversa ao final do curso. Seu relato dizia que participou até o final porque não acreditava ser possível a transição da geometria para a trigonometria da forma exposta. Esse fato nos motiva a continuarmos nossa pesquisa em busca de caminhos para subsidiar o trabalho de professores no ensino de trigonometria. REFERÊNCIAS KENNEDY, Edward S. História da trigonometria. Trad. Hygino H. Domingues. São Paulo: Atual, 1992. MOREY, Bernadete B. Tópicos de história da trigonometria: Editor geral John A. Fossa. Natal: SBHMat, 2001. __________. FARIA, Paulo Cézar de. Abordagens no cálculo do seno de 1º: as contribuições de Ptolomeu, Al-Kashi e Copérnico; Organizado por Iran Abreu Mendes e Miguel Chaquiam. Belém: SBHMat, 2009. __________. GOMES, Severino Carlos; MEDEIROS, Suzany Cecília da Silva; LOPES, Maria Maroni. ANDRADE, Jéssica A. C. de. Tópicos de História da Trigonometria. In: Anais do II ENCONTRO REGIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA (EREM). Natal: SBEM-RN, 2009. CD-ROM. SILVA, Sílvio Alves da. Trigonometria no triângulo retângulo: construindo uma aprendizagem significativa. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática). São Paulo: PUC, 2008. 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