Natureza, cultura e gênero: uma crítica CAROL P. MacCORMACK (Versão preliminar da tradução para uso didático. Pede-se não citar) I. Categorias e transformações Este texto explora a crença de que os seres humanos diferem dos animais e o seu corolário de que a cultura e a natureza são distintas e contrastantes. Também tratamos da questão das transformações metafóricas do contraste natureza-cultura em cru-cozido ou selvagemdomesticado. Com maior controvérsia, vamos explorar a possibilidade de o contraste feminino-masculino poder ser entendido como mais uma transformação metafórica de um contraste supostamente universal entre natureza e cultura (Ortner, 1974 e Ardener, 1975). Contudo, não lidamos apenas com categorias estanques ou conjuntos de contrastes metafóricos em oposição rígida uns aos outros, mas trataremos de como concebemos a natureza se transformando em cultura; o processo pelo qual sentimos que nos tornamos humanos. Ou, como formulado por Rousseau, como deixamos um estado de natureza para nos tornarmos seres com linguagem e cultura. Seguindo Rousseau, Lévi-Strauss atribui essa transição à nossa capacidade de produzir cultura, mais do que às manifestações culturais em si (Wokler, 1978:126). É por conta de nossa capacidade de fazer distinções, como aquelas entre “nós”, como uma categoria de parentesco, e “outro”, e nossa habilidade para reconhecer regras de proibição do incesto e de exogamia que somos capazes do contrato social rousseauniano, no qual abandonamos um estado de natureza, que significa incesto e o isolamento social de pequenas parentelas, para retribuir laços de parentesco e contratos sociais com outros (Badcok, 1975). Para existirmos como espécie, precisamos comer, copular e atender a outras necessidades animais básicas. Fazer tais coisas é “natural”, no sentido de que é necessário a todos os animais. Enquanto as necessidades humanas mais básicas precisam ser atendidas ou o indivíduo morre, e elas podem ser satisfeitas individualmente, o sexo procriativo não é necessário para manter a vida dos indivíduos, mas das sociedades, e tal necessidade não pode ser atendida individualmente mas requer um par de opostos: macho e fêmea. A sexualidade é natural, mas se torna cultural com as proibições do incesto e as regras de exogamia (Levi-Strauss, 1969a:30). A partir da regra de dar “nós” (irmãs) e receber “outro” (esposa), seguem-se outros padrões de troca de pessoas, bens e serviços e informações. Trocas que manifestam a estrutura da sociedade humana nos dão pistas da estrutura de um código humano básico. A fundamentação de uma estrutura básica é a habilidade humana de fazer distinções binárias (Levi-Strauss, 1978:22-3). Percebendo contrastes ou opostos, a mente humana constrói suas percepções do mundo. Não podemos perceber a luz sem conhecer a escuridão, nem fricativos surdos, sem conhecer os sonoros. Mas os contrastes isolados não são um fim em si mesmo, já que a mente humana busca analogias com outros fenômenos 1 contrastivos e, uma vez as encontrando, encaixa tais analogias no seu sistema de classificação. Ao nível consciente, as pessoas percebem mais as manifestações concretas do que as relações em si mesmas, mas para os estruturalistas a tendência inconsciente de perceber relações é fundamental para a mente.1 A primeira distinção que qualquer humano recém-nascido faz é aquela entre o eu e o outro que amamenta. Depois, na medida em que a criança se desenvolve,começa a discernir contrastes fonéticos, expandindo o escopo das operações lógicas inerentes à natureza de suas mentes. Os animais não têm o sentido das fronteiras culturais; não tem o tabu do incesto ou outras regras socialmente transmitidas. A capacidade de reconhecer regras que unem os indivíduos é essencial para a formação da sociedade humana, e desta capacidade de conhecer e formular regras advém o casamento, as alianças sociais, a linguagem e reciprocidades de todo tipo (Lévi-Strauss, 1969a:32,3). A passagem originária da natureza par a cultura se repete na medida em que as sociedades se perpetuam por meio de suas regras culturais. Inconsciente e consciente Os estruturalistas partem do princípio de que existe uma única estrutura básica de pensamento binário subjacente a todo o funcionamento e comportamento mental humano, a qual pode ser descoberta por meio de uma análise sistemática, informada pelas técnicas da análise lingüística. Uma vez que se conheça a estrutura, ela pode nos ajudar a compreender o conjunto do comportamento humano a despeito de sua manifesta diversidade. Quando se tiver conhecido a codificação da mente, somos capazes de decodificar seus produtos (Scheffler, 1970:58). A teoria estruturalista inspira-se na teoria lingüística, particularmente no trabalho de Saussure, que descreveu a língua como um conjunto de signos que poderiam ser estudados à parte de outros produtos culturais. Poderíamos fracionar a língua em elementos discretos e então examinar o modo pelo qual os elementos são combinados para produzir significado. Saussure ampliou sua pesquisa para incluir formas de etiqueta, sinais militares, rituais e outros sistemas de significação. Em todos eles, poderíamos desenvolver modelos formais abstratos de uma estrutura subjacente. Seguindo Saussure, Lévi-Strauss buscou a causa do parentesco, do mito e da classificação totêmica em nossa natureza intelectual que, em seu nível mais profundo e pan-humano, é amplamente inconsciente, assim como a compreensão das oposições fonéticas é sistemática e racional mesmo que não tenhamos consciência delas. Parentesco e mito são análogos, em estrutura, à língua, e funcionam como códigos.2 1 Ver Gardener (1976) para maior discussão acerca deste ponto, especialmente em relação a LéviStruass e Piaget. 2 Lévi-Strauss (1978:53) escreveu que mito e música não são apenas análogos à língua, mas derivam dela. 2 Lévi-Strauss não é um idealista para quem a mente incorpora categorias lógicas fundamentais e verdades últimas. Na verdade ele se refere a um inconsciente kantiano que combina e categoriza, mas é um sistema de categorização homologo à natureza, ou é a própria natureza (Lévi-Strauss, 1969a:11). Ele está localizado fisicamente no cérebro, com sua capacidade de constituir códigos que chamamos de cultura (Lévi-Strauss, 1978:8). Para Lévi-Strauss, “o inconsciente ... está sempre vazio – ou, mais precisamente, ele é alheio às imagens mentais, como o estômago o é em relação à comida que passa por ele. Como um órgão com função específica, o inconsciente apenas impõe leis estruturais sobre elementos desarticulados originados alhures” (Lévi-Strauss apud Jenkins 1979:14). O cérebro funciona, nesse nível inconsciente, para criar sistemas ordenados de representações, colocando as percepções que passam por ele em relações de contraste e oposição. Uma das maiores dificuldades com o estruturalismo de Lévi-Strauss é a natureza da ligação entre essas funções inconscientes do cérebro e a “realidade” que o estruturalismo busca explicar. Lévi-Strauss localiza a estrutura fundamental no nível mais profundo da função inconsciente e lhe atribui um estatuto ontológico, uma existência própria. Mas qual é exatamente a relação entre o trabalho organizador do inconsciente e o domínio conceitual da estrutura social, das relações política, e assim por diante? Neste último nível de consciência, conceitos e categorias operacionais cumprem sua função de dar significado às percepções empíricas. Podemos deixar sem resposta a relação entre a função física do cérebro e o trabalho da mente de construir modelos conceituais, ou podemos unificar ambos em um de dois modos possíveis. Poderíamos optar por um reducionismo biológico no qual a ênfase é posta no papel do cérebro físico. De fato, muito do pensamento de Lévi-Strauss é reducionista. Ele usa natureza em dois sentidos; o mundo fenomenológico, como nós o percebemos, excluindo a cultura. Natureza, aqui, é a categoria residual de tudo o que estiver fora da cultura (Badcock, 1975:98). Mas é também a natureza humana, à qual os códigos culturais são reduzidos e, como Leach mostrou, Lévi-Strauss cai em um paradoxo. Se ele é bemsucedido em identificar fatos como o tabu do incesto e as regras de exogamia como uma verdade universal para os seres humanos, eles devem ser naturais. Contudo, ele pressupõe que a qualidade cultural única da humanidade baseia-se no que não é natural; naquilo que é socialmente transmitido e arbitrário, do mesmo modo que o símbolo está para o significado, na língua (Leach, 1970:121 e 1973:39). Assim, em um sentido Lévi-Strauss reduziu a cultura à biologia; culutra é natureza, o cérebro físico e a natureza humana. Mas, em seu trabalho posterior, ele sugeriu que o contraste natureza-cultura era uma criação artificial da cultura (1969a:xxxix), e era apenas um dispositivo metodológico (1966:247).3 3 Ver Badcock (1975) para uma discussão mais completa e uma comparação do reducionismo biológico de Lévi-Strauss com o de Freud. Em seu trabalho mais recente, Lévi-Strauss escreve sobre a ambigüidade da natureza. Ela é subcultural, mas é também o meio pelo qual o ser humano espera contatar ancestrais, espíritos e deuses. Logo, a natureza é, também, “sobrenatural” (1977:320). 3 Schneider levou isso ao extremo; cultura não é natureza, mas natureza é um conceito inteiramente cultural (1972). Poderíamos ver todas as representações da estrutura como conceitos de estrutura formulados em um nível consciente pelo processo de criação de modelos (Jenkins, 1979:36-7). Neste livro, não estamos preocupadas com um inconsciente incompreensível, mas com modelos nativos (folk models) de natureza, cultura e gênero que são conscientemente expressos em sociedades particulares. Isso não significa dizer que todo o membro da sociedade em questão possa expressar um modelo completo e coerente. O observador precisa construí-lo, a partir de afirmações explícitas, mitos, símbolos, modos de classificação e outras observações (ver capítulo 8). Tampouco existe um único modelo que caracterize o pensamento de todas as pessoas naquela sociedade. Se pensarmos em um modelo como um plano de ação, por exemplo, para fazer alianças de casamento, haverá diferentes planos de ação conduzidos por diferentes grupos com variados graus de poder político na sociedade. Ou podemos, ainda, pensar em modelos normativos ou pragmáticos que os atores conduzem simultaneamente. Scheffler propôs que todos os modelos formais deveriam ter três qualidades: 1 – simplicidade; 2 – consistência; e 3 – eles deveriam ser julgados adequada e apropriadamente pelos nativos em questão (1970: 67). Lévi-Strauss dispensa a qualidade de adequação e correspondência com modelos conscientes, considerando o consciente uma tela que pode esconder uma estrutura mais profunda (1963:281). Nutini tem tentando encontrar um meio termo, sugerindo que os modelos consciente e inconsciente não são diferentes em tipo, mas em grau, e que estamos lidando com um modelo único que é revelado pelo mais cuidadoso e detalhado campo de trabalho possível (1970: 82). Leach comenta que quando começamos o estudo de outra cultura nós rapidamente formulamos um modelo com o qual explicá-la, mas o modelo é amplamente moldado por nossas próprias pressuposições e pode não corresponder em nada ao modelo tido em mente pelos nativos. Mas enquanto os meses passam e nós aprendemos a língua e os padrões de pensamento do povo, nós revisamos o modelo radicalmente. Aqueles que trabalham à distância com literatura etnográfica já publicada e etnógrafos que já conhecem as categorias salientes e seus significados antes de irem a campo podem dar atenção apenas aos fenômenos que se “encaixam” em suas pressuposições. Leach rejeita a definição de Lévi-Strauus de antropologia social como um ramo da semiologia tendo estrutura lógica interna dos significados de coleções e símbolos como preocupação central, procurando, ao invés disso, o significado no verdadeiro comportamento social dos seres humanos (1970: 105). Teorias estruturalistas fornecem explicações satisfatórias, mas como se referem ao inconsciente, é difícil validá-las. Por outro lado, teorias empíricas são mais fáceis de validar embora ofereçam explicações menos satisfatórias e freqüentemente tautológicas. Alguns observadores sugerem que cientistas sociais estruturalistas se modelam a partir de cientistas naturais, observando, descrevendo e construindo modelos formais com os quais tirarão conclusões sobre a relevância do que observaram. (Gardener 1976:4 – 7). Leach, no entanto, especula que Lévi-Strauss começou de maneira oposta ao se perguntar: ‘como e por que razão os homens, que são parte da natureza, conseguem ver a si mesmos como “diferentes” da natureza, embora, para sobreviverem, tenham que manter constantes 4 “relações” com a mesma?’ (1970: 129). Lévi-Strauss observa que certas coisas como o incesto ou o ato de cozinhar são universais, mas não são essenciais para manter a vida no mundo animal. Portanto, estas coisas devem ser símbolos “pelos quais a cultura se distingue da natureza para que os homens possam se reassegurar de que não são bestas (beasts)” (Leach 1970:129). Outros também comentaram que o método de Lévi-Strauss não é indutivo, mas prioritariamente dedutivo. Ele sugere que em todo mito se deva encontrar uma estrutura binária de opostos que não é específica para uma única versão do mito. De fato, ele os encontra, e encontra também pares complementares de oposição. “Natureza” e “cultura” como construções culturais Não desejamos negar que contrastes binários são vitais para o pensamento humano; são os significados universais dados a algumas categorias de nomes que nos preocupam. Já que o método estruturalista busca reduzir informações à sua estrutura simbólica, os símbolos se tornam mais importantes que o fenômeno; o que dá o significado, mais importante que o que o recebe (Scholte 1974:428). Mas símbolos como natureza e feminilidade tem significados atrelados a eles que são culturalmente relativos. Douglas e Kirk insistem que o conteúdo não pode ser ignorado; diferentes versões de um mito, por exemplo, não podem ser reduzidos a uma única estrutura (Douglas 1967: 66 e Kirk 1970: 78). Análises estruturalistas deveriam explicar fazendo referência a um mito particular e como seus significados são produzidos, o que exige explicação e compreensão da cultura no qual o mito aparece.4 Assim, embora Lévi-Strauss tenha tentado lançar o contraste natureza-cultura em um modelo atemporal e livre de valoração, preocupando-se com o funcionamento da mente humana, idéias sobre natureza e cultura não são livres de valor. O “mito” da natureza é um sistema de sinais arbitrários que se apóia no consenso social do significado. Nem o conceito de natureza e nem o de cultura são dados, e não podem ser livres da parcialidade da cultura na qual os conceitos foram construídos (ver capítulos 2, 3). Nossas idéias européias sobre natureza e cultura são fundamentalmente sobre nossas origens e evolução. O “natural” é o que é inato na nossa herança primária, e o “cultural” é o que é arbitrário e artificial. Em nossa história evolucionista nós temos melhorado e nos compelido a criar um mundo de ordem artificial e regrada. Nossa mente estrutura o mito, e em uma resposta em loop, o mito instrui nossa percepção no universo fenomenológico. Gênesis, por exemplo, coloca os homens em oposição à natureza e nos promete o domínio sobre a mesma. Com o protestantismo, passamos a considerar responsabilidade individual a compreensão racional e o aproveitamento da natureza. O mito, em sua forma atual, reflete a fé da sociedade industrial como uma sociedade construída pela atividade empreendedora. Sahlins expressou a opinião de que o “desenvolvimento a partir de um estado Hobbesiano da natureza é o mito original do 4 Ver Lévi-Strauss (1978:26ff.) para resposta a esta crítica 5 capitalismo ocidental” (1976a: 52-3)5. Nós atribuímos honra e prestígio às pessoas da ciência e da indústria que sucedem em compreender e dominar o poderoso campo da natureza. Nós também honramos as pessoas que sobrepujam instintos animais refreando estes instintos com códigos morais. Quando as mulheres são definidas como “naturais” um maior prestigio, ou uma “virtude” moral, é atrelada ao domínio dos homens sobre as mulheres em uma analogia à virtude do domínio humano sobre as fontes de recursos naturais ou sobre a energia libidinosa dos indivíduos. Parece-nos bastante lógico em nossa tradição judaico-cristã e tradição industrial associar a natureza ao feminino (Ardener 1975). No entanto, mesmo a nossa própria história intelectual européia não associou consistentemente o natural ao selvagem. No século XVIII, a natureza foi tida como o aspecto do mundo revelado através do escrutínio científico. Ela possuía leis previsíveis, mas que não haviam sido sobrepujadas. As mulheres eram o repositório das leis naturais e moralidade natural, mas também eram emocionais e passionais precisando ser contidas pelos laços sociais. As categorias opostas de natureza e cultura (ou sociedade) surgiram como parte de uma polêmica ideológica e historicamente particular na Europa do século XVIII; uma polêmica que criou posteriores contradições ao definir a mulher como natural (superior), mas instrumento de uma sociedade de homens (subordinado). A partir de meados do século XIX, idéias evolucionistas forneceram uma explicação “natural” sobre as diferenças de gênero. Em 1862, Bachofen recordou um antigo intervalo de “direito materno” no qual as mulheres governavam o estado bem como a família, mas eram subjugadas pelo patriarcado Romano do período clássico. McLennan, em 1865, escreveu sobre o período da história em que os homens capturavam e trocavam mulheres evidenciando a necessidade de regras de exogamia e aliança matriarcal em prol da manutenção da paz na sociedade. Morgan, em 1877, desenvolveu uma elaborada organização matrilinear da história humana, suplantada pelo controle masculino, um tema resgatado por Engels em A origem da Família, e Propriedade Privada e o Estado em 1884 (Lowie 1937: 40ff). A ambigüidade e as contradições do século XVIII persistem no século XX, e o modelo simplista, unilinear e evolucionista do século XIX foi posto de lado. Com essa ambigüidade e complexidade na essência de nossas definições européias, como podemos concordar que o seguinte arranjo de metáforas representa uma estrutura cognitiva universal? natureza selvagem feminino : : : cultura manso masculino Modelos estruturais são dinâmicos uma vez que estão preocupados em tornarem-se e transformarem-se. Os Europeus têm um conceito de história, acumulação literária, mudança progressiva através do tempo, e uma noção da gênese como único possível 5 Sahlins (1976ª:53) comentou: “Até onde sei, somos as únicas pessoas que se pensam evoluídas de selvagens; todos os outros acreditam ter descendido de deuses.” 6 começo. Temos a idéia de que uma categoria pode se transformar em outra, com a natureza se tornando cultura, crianças se tornando adultos com a socialização e se casando de modo exogâmico, o selvagem se tornando domesticado, e o cru se tornando cozido. De modo geral, significar, para nós, quer dizer transformar-se (Wagner 1975). Mas nossos significados não são universalmente verdadeiros, e algumas sociedades concebem a natureza como categoria imutável incapaz de transformação (capitulo 8). Lévi-Strauss evidenciou não apenas o ‘transformar-se’, mas o ‘dominar’, com o social dominando o biológico e o cultural dominando o natural (1969a: 479). A seqüência ligeiramente embaralhada de eventos em Gênesis, por exemplo, muda de uma fervilhante natureza para a dominação humana sobre a mesma, de acordo com as regras morais. Utilizando uma expressão lingüística, a passagem da natureza para a cultura é uma sintagmática corrente amplamente abreviada de unidades míticas, formando um eixo metonímico da esquerda pra direita. Lendo de cima pra baixo, temos associações paradigmáticas ou transformações metafóricas (Leach 1976: 25-7): METONÍMICO METAFÓRICO natureza criança selvagem cru : : : : cultura esposo manso cozido Se adicionarmos o gênero a este arranjo teremos um non-sequitur: METONÍMICO METAFÓRICO natureza criança selvagem cru feminino : : : : : cultura esposo manso cozido masculino Em nosso sistema de pensamento europeu, o gênero fornece duas categorias óbvias de diferenciação social, mas não oferece o potencial dinâmico para transformação que os outros pares possuem. No eixo metonímico, em que sentido o feminino pode tornar-se masculino como a natureza pode se tornar cultura? Em nenhum sentido, se considerarmos gênero como categorias imutáveis “na natureza”. Mas um caso pode ser considerado para categorias de gênero “na cultura”; isto porque eles são socialmente construídos (Mathieu 1978). No entanto, em casos em que indivíduos escolhem transformar sua identidade social, não é apenas o feminino que assume identidades masculinas, mas o contrário também. 7 No eixo metafórico, já percebemos que em alguns períodos da história européia o feminino não foi identificado exclusivamente com o selvagem, mas com o harmonioso repositório das leis da natureza também. Ardener, considerando Bakweri, evidencia a metáfora natureza=selvagem=feminino. Mas ele nos diz que o masculino também é identificado com o selvagem e a natureza durante a caça e os rituais, trazendo a tona o problema de dizer quais unidades de texto míticas ou de comportamento observado que serão selecionadas como manifestação de estruturas ocultas.6 Alguns escritores, seguindo Lévi-Strauss, parecem estar dando um maior valor de “verdade” para as associações metafóricas do que os conceitos suportados pela metáfora. Palavras como “natureza” são polissêmicas tendo muitos sentidos implícitos. A metáfora se baseia no sentido figurativo do mundo, e não no literal, de forma que o significado da palavra pode ser moldado ou estendido através da metáfora. Mulheres férteis possuem ciclos menstruais, como os ciclos da natureza, embora sejam tidas como selvagens e indomáveis. Mas selvageria também é um significado implícito do masculino. Uma vez que a metáfora se baseia em uma natureza polissêmica e aberta das palavras, ela possui grande potencial tanto para contradições quanto para “reescrever a realidade”, e não pode ser tomada como verdade em nenhum sentido literal (Ricoeur 19798: 169ff). Como Harris explicou, embora os índios Laymis da Bolívia façam uma série de associações que podem nos levar a concluir que o selvagem se identifica com o feminino, os próprios Laymis não fazem tal associação. “Aplicar procedimentos ‘lógicos’... é esquecer que o que está sendo comparado são conceitos complexos, e que em cada identificação são características distintas e especificas dos fenômenos tomados para comparação”. Muito da literatura etnográfica sugere que ao invés de ver as mulheres como metáforas na natureza, elas (e os homens) seriam mais bem vistos como mediadores de natureza e cultura, na reciprocidade das trocas de casamento, na socialização de crianças em adultos, na transformação de carnes e vegetais crus em cozidos, na cultivação, na domesticação, e na manufatura de produtos culturais de todos os tipos.7 mulheres (e homens) natureza cultura Se assumirmos a posição extremada de definir a mulher, mas não o homem, como socializadora, cultivadora, transformadora – como mediadora entre natureza e cultura – e se os víssemos na estrutura familiar como mediadores entre grupos sociais exogâmicos, então, teremos que olhar mais atentamente para os atributos que os estruturalistas 6 7 8 conferem aos mediadores. Como podem fundir e reconciliar opostos, mediadores são tidos como deidades ou messias e, ao mesmo tempo, palhaços e ilusionistas. (Lévi-Strauss 1978: 32 – 3). Esta definição não condiz com a de alguns estruturalistas que entendem a mulher como objeto simples e passivo nos sistemas familiares, apontando para mais uma inconsistência nos modelos estruturalistas. A literatura etnográfica não justifica a posição extrema de definir a mulher, mas não o homem, como mediador de natureza e cultura, e tampouco iguala uniformemente os atributos da mulher com aqueles da natureza. Na área do Monte Hagen em Papua Nova Guiné, por exemplo, as pessoas não entendem o contraste natureza-cultura da mesma maneira que os europeus, e eles atribuem qualidades tanto para mulheres quanto para homens que os ocidentais classificariam como natural e cultural. Ao invés de conceitos de natureza e cultura como os entendemos, os Hageners pensam com as categorias de “plantado” (mbo) e “selvagem” (romi). “Plantado” se refere a plantações, porcos de criação e seres humanos instalados no território do clã; “selvagem” se refere àquilo que é solitário, exótico e não-humano. As categorias masculino-feminino não são discriminadores secundários consistentes. Os Hageners se utilizam sim de categorias de gênero, com o masculino representando o que é prestigioso (nyim) e o feminino aquilo que é fútil (korpa), mas essas categorias não são explicadas pela diferença entre o plantado e o selvagem. No modelo nativo em Hagen, a natureza não se torna cultura. O “selvagem” é reconhecido e se lida com o mesmo, mas ele não é dominado, não é incorporado na cultura, não é explicado por leis naturais, ou privado de seus poderes. Ele não se torna uma categoria eternamente em contração através do “progresso” humano. O poder do selvagem pode vir a afetar a atividade humana justamente por ser a antítese do mbo. Em um caso similar, na área de Gimi na papua Nova Guiné, a natureza não é desvalorada. A essência masculina é identificada com o selvagem, seus espíritos e aves. A palavra kore significa floresta, pósvida, e é também um título honorífico para se referir aos homens de grande status. Distinções de gênero não são um processo frio e racional de categorias de discriminação como Lévi-Strauss enfatiza, bem como os assuntos altamente emotivos da sexualidade, nascimento, nutrição, e a libertação feminina dos espíritos dos homens de volta para a floresta em forma de espíritos/flautas/aves; uma questão fundamentalmente relacionada com a dependência que os homens tem das mulheres. Não existe nenhuma maneira de verificar absolutamente que a oposição natureza-cultura existe como elemento universal da estrutura do inconsciente, e há evidências etnográficas que sugerem que, da maneira concebida pelos Europeus, o contraste não é um elemento universal de modelos nativos conscientes. Se utilizarmos as categorias “natureza-cultura” simplesmente como ferramenta metodológica para ordenar conceitos populares que se aproximam toscamente dos significados europeus, então, as categorias de Gênero não estão necessariamente relacionadas aos mesmos. A descrição de Goodale dos Kaulong de New Britain gera o seguinte arranjo metafórico: animal : humano 9 floresta reprodução : : jardim produção : aldeia Os Kaulong não possuem uma divisão sexual do trabalho muito definida. Tanto mulheres quanto homens desenvolvem suas identidades sociais produzir e adquirir bens através de troca. Ambos estão no centro de suas próprias redes de famílias cognatas e troca de parceiros. Por contraste, a reprodução é relativamente “não-social”, exigindo apenas um parceiro. Os casados devem viver longe do povoado, nos jardins, e são marginalizados pela residência e outros tabus. Para os Laymis da Bolívia não são os casados, mas os descasados que são marginalizados: incompleto divisão do trabalho descasados : : : completo divisão do trabalho casados Com uma divisão sexual do trabalho claramente definida, homens e mulheres solteiros não são completos no sentido sócio-econômico. No pensamento Laymi, aquilo que é inteiramente cultural é a unidade do homem e da mulher no casamento, e até espíritos na “natureza” possuem seu par. Os Sherbros da África Ocidental se assemelham aos Kaulong a respeito da transação feminina de bens e serviços e sua importância nos grupos familiares cognatos, mas também se assemelham aos Laymis por terem uma divisão sexual do trabalho bem definida. A socialização é vista como um processo que transforma crianças proto-sociais em adultos iniciados que compreendem e se comprometem a viver sob as regras ancestrais (cultura). Mas as mulheres são tão cuidadosa e completamente socializadas quanto os homens. Autoridades femininas, o imaginário feminino e as ancestrais são tão importantes no processo ritual quanto sua contraparte masculina: “natureza” proto-social criança : : : “cultura” iniciado adulto Atributos de gênero nos modelos familiares Embora Lévi-Strauss diga claramente que a estrutura não está no nível da realidade empírica (1977: 79), ele apela para realidade empírica quando constrói um modelo de sociedade humana na qual as mulheres são simples objetos passivos da atividade masculina (1963:47).8 O seu modelo de sociedade humana tem premissa de que “homens são possuidores e mulheres são posse... esposas são adquiridas e irmãs e filhas são negociadas “ (1969a: 136). Para ele, homens e mulheres são intercambiáveis e iguais de um ponto de vista formal, mas não de um ponto de vista social. Uma irmã assume o papel 8 10 de esposa através de transação feita por homens, e ele opta por desconsiderar que os homens também se submetem a mudanças de papel implicadas nas transações matrimoniais, mais notadamente na residência uxorilocal seguida pelo casamento. Estruturalistas que utilizam o modelo Lévi-Straussiano de parentesco definem os homens como atores e as mulheres como dirigidas; homens como sujeito e mulheres como objetos. Embora Lévi-Strauss tenha usado a empiria para construir os aspectos de gênero de seu modelo, quando surgem casos de sistemas matrilineares de dote no qual os homens transitam entre grupos (Junos 1964), ou casos em que as mulheres têm poder de decisão formal (MacCormack 1972; 1974;1976;1979), os estruturalistas se escondem atrás de uma tela de indiferença alegando se tratar de “manifestações superficiais” que escondem a estrutura profunda (Lévi-Strauss 1963: 281; 1977: 78)9. Será simplesmente uma questão da empiria de um único homem servindo de “exemplo apto” para outros, ou será que essas observações etnográficas revelam modelos falsos que escondem uma estrutura verdadeira? Se for esse o caso, por que as sociedades escondem suas estruturas fundamentais com “modelos de vitrine”? Nutini sugeriu que alguns modelos conscientes são mais precisos do que qualquer outro que possa ser construído por um antropólogo e, mesmo que haja falhas, estes mesmos erros constituem os fatos sociais sob estudo (1970:73 e 82). Um modelo de parentesco formulado por Lévi-Strauss é uma construção lógica baseada na regra universal de proibição do incesto e uma série de regras para casamento exogâmico. Este modelo é ambivalente sobre os níveis muito mais complexos das atividades de homens e mulheres. A lógica do modelo como foi construído nega ou negligencia as observações de que as mulheres são ativas nas relações, agindo por vezes como casamenteiras, e compartilhando da riqueza do trabalho do cônjuge e dos bens nas transações matrimoniais. O modelo não prevê mulheres descasadas e nem divorciadas, e nem o papel ativo das mulheres no arranjo de seus casamentos subseqüentes. Se acreditarmos no modelo, então, o comportamento acima, que pode ser estatisticamente significante (Bledsoe 1980), é conceitualmente aberrante se não “contra a natureza”. No entanto, este comportamento pode ser visto como uma adaptação saudável para as condições físicas e sociais nas quais se encontram as mulheres. Será que nossas próprias pressuposições ocidentais sobre o mundo natural ser suscetível a nossa direção, e as nossas noções de propriedade, predispõem os criadores do modelo a enxergarem o homem como sujeito e a mulher como objeto passivo? Além disso, limitar as mulheres a objetos passivos limita o poder explicativo do modelo. Como o modelo afirma, irmãs (e filhas) são negadas aos homens pelo tabu do incesto e são dadas por eles para se tornarem esposas de outros homens (Lévi-Strauss 1969a:136). Assim, segue-se a disposição de transformações metafóricas: natureza incesto : : cultura regras de exogamia 9 11 irmã : esposa Mas se retornarmos aos primeiros princípios de que a sexualidade procriativa requer o arranjo binário do masculino e feminino, então, ambas as categorias deste arranjo não deveriam se submeter a mudanças de papel como concomitantes do tabu do incesto? Quando as mulheres atingem maturidade sexual elas são de fato consideradas por seus irmãos como esposas de outros homens, e de um modo equilibrado, quando os homens atingem maturidade sexual e social eles devem ser considerados por suas irmãs como esposos de outras mulheres. O arranjo de metáforas pode ser reformulado como: natureza incesto irmã(o) : : : cultura regras de exogamia esposa(o) O leitor está provavelmente pensando: é claro que nós sabemos que para o tabu do incesto e as regras de exogamia realizarem seu trabalho de iniciar reciprocidades e integrar grupos sociais, tanto mulheres quanto homens devem experimentar mudanças de papel. Isso é tão óbvio que não requer uma declaração. Será ele então componente de uma “verdadeira” estrutura, e será que Lévi-Strauss e outros ofereceram um modelo que esconde uma estrutura profunda? Para que sistemas matrimoniais prescritivos realizem seu trabalho de entrelaçar diferentes grupos consangüíneos de modo a formar uma sociedade humana, as mulheres não podem ser simplesmente passivas. Algumas mulheres se opõem a casamentos arranjados e acabam por causar conflito suficiente para desmantelarem o complexo padrão de reciprocidades do sistema de aliança. Outras concordam ativamente com o casamento, o que permite que o irmão se case com uma mulher de um grupo recíproco. Ao concordar em casar-se, a mulher de certa maneira fornece uma esposa ao irmão colocando-lhe a responsabilidade de dar assistência a ela mesma e a seus filhos pelo resto da vida dele (Van Baal 1975:76). No nível do mito e do ritual as associações ritualísticas de homens e de mulheres podem existir em reciprocidade equilibrada, cada um deles precisando do outro para formar um sistema conceitual completo (Mac Cormack 1981). Mas mesmo em sociedades em que existem apenas associações masculinas, os homens precisam da cooperação ativa das mulheres para fornecer uma audiência aterrorizada que confirme o temor pelos deuses, ou um grupo não iniciado para confirmar os segredos dos iniciados (Van Baal 1975:72). Os atributos que designamos para as categorias de gênero são baseados na percepção das atividades de homens e mulheres. Ardener sugeriu que os homens se movem mais amplamente no espaço social e geográfico do que as mulheres, tornando-se mais atentos a outros com mais freqüência que as mulheres. Eles têm, portanto, maior possibilidade de desenvolver “metaníveis de categorização” que lhes permitem, conceitualmente, 12 conectarem a si mesmos e as suas mulheres sem se ligarem a outros homens e as mulheres destes (1975:6). No entanto, as mulheres não são universalmente restritas a esfera do próprio grupo doméstico. Algumas mulheres do terceiro mundo de classes ou castas baixas viajam longas distâncias em busca de emprego (Boserup 1970:79 – 80). As mulheres migram em grande quantidade para algumas áreas urbanas (Little 1973: capítulo 2). Algumas mulheres comerciantes cobrem centenas de quilômetros (Mac Cormack 1976). Mesmo Ardener descreve as mulheres Bakweri como tendo viajado longas distâncias a lugares desconhecidos (1975:13). Como o arranjo de manifestações comportamentais revelam que as estruturas profundas não são “dadas”, qualquer comportamento pode ou não ser escolhido pelo antropólogo para revelar a estrutura. As mulheres parecem mais restringidas nas sociedades com descendência patrilinear, onde elas entram em casamentos de dotes e não trocam e nem recebem pagamentos. Mas mesmo nesse tipo de sociedade, são geralmente as mulheres que de fato vão viver com o grupo familiar de seus maridos. Elas estão cientes desde crianças que este será o seu destino (Paulne 1963:6-7). A não ser que neguemos o potencial de inteligência e curiosidade intelectual igual a dos homens, nós logicamente não podemos negar as mulheres modelos conceituais para atribuírem sentido a suas próprias existências. Se elas “riem quando jovens, zombam quando idosas, rejeitam a questão, desdenham do assunto” (Ardener 1985:2), será que elas não estão reagindo às pressuposições culturais que inconscientemente direcionam as perguntas do investigador? Será que a diferença de status entre o europeu em um país colonizado e a mulher da vila não torna previsível o tipo de respostas que alguém pode esperar em determinado contexto cultural (Goody 1978)? Muita da literatura publicada sobre Estrutura Social que alguns estruturalistas utilizam como dado reflete o poder de um antigo modelo, “o modelo jurídico” de Radcliffe-Brown. A idéia de descendência é igualada com a transmissão de direitos, deveres, poderes e autoridade. Regras jurídicas muito freqüentemente enunciadas por informantes masculinos evidenciam os papéis masculinos de autoridade. No entanto, os modelos nativos da maioria das sociedades evidencia um padrão muito mais complexo de interação entre homens e mulheres do que o modelo jurídico pode acomodar (James 1978: 145). Em sistemas de parentesco matrilineares organizados, por exemplo, se olharmos além do papel de autoridade do irmão da mãe, encontraremos mulheres controlando a regeneração da identidade da linhagem para mulheres e homens centralmente localizados dentro de uma estrutura e obrigações recíprocas. As mulheres controlam itens de grande significado cultural e no caso dos trobriandeses controlam o próprio ciclo cósmico “deixando que os homens criem através da mulher extensões artificiais de seu próprio tempo historicamente limitado” (Weiner 1976:23). Mesmo em sociedades patrilineares, os homens expressam ritualmente ansiedade sobre sua dependência em relação às mulheres como regeneradoras da vida, e a ampla evidência de que os conceitos nativos de descendência e continuidade reconhecem os atributos vitais da mulher (Singer 1973; James 1978: 155ff). Dentro de uma única sociedade o investigador freqüentemente recebe 13 definições muito diferentes de “mulher” dependendo de o mesmo perguntar sobre mulher-como-mãe, ou, mulher-como-esposa. Atributos de gênero em modelos de economia de troca Se nós mudarmos da consideração das reciprocidades familiares para reciprocidades econômicas devemos olhar de perto a troca de bens e serviços. Com a possível exceção das sociedades industriais avançadas, onde as máquinas substituem o trabalhador e causam “um problema de desemprego”, podemos atribuir às mulheres como passivas um papel na produção e troca de bens e serviços como lhes foi designado nas transações familiares? A maioria das sociedades possui uma divisão de trabalho baseada em categorias de gênero, o que pode ser visto como uma metáfora para o sexo procriativo. Já que homens e mulheres são necessários para reprodução sexual da sociedade, então eles também são necessários para produção de bens e serviços que a mantém e a integram. Logicamente tanto homens como mulheres participam no mesmo modelo cognitivo, cada um jogando pelo mesmo arranjo de regras, cada um dependendo do outro. Em algumas sociedades as mulheres são pródigas produtoras de bens, e, em todas as sociedades, elas fornecem serviços (Boserup 1970). Independente da atividade de fornecer bens e serviços tomar lugar no espaço doméstico ou público, não há relevância para a quantidade destes bens e serviços. Produções domésticas não deveriam ser eliminadas dos cálculos econômicos, e se elas não podem ser contabilizadas em dinheiro, então, modelos econômicos melhores devem ser buscados. Crianças sexualmente imaturas fornecem serviços dentro do grupo de parentesco através do tabu do incesto, mas com a maturidade sexual e o casamento, elas fornecem serviços para aqueles fora do grupo de parentesco e do tabu do incesto: seus cônjuges. Em sociedades com instituições patrilineares, maridos (e seus familiares próximos) podem fornecer dotes e trabalho definidos por obrigação conjugal, enquanto a mulher fornece filhos e trabalho definidos por obrigação conjugal: natureza : cultura parente isolado pela regra do : incesto cônjuge bens e serviços : para “nós” bens e serviços para “outros” meninos e meninas homens e mulheres : 14 Restringir a definição de homem como doador e a de mulher como doação é negar um modelo de equilíbrio simétrico que precisa necessariamente existir. Mas será que há uma diferença qualitativa entre bens e serviços trocados por homens daqueles trocados por mulheres? Em várias sociedades os homens inquestionavelmente têm mais poder e se apropriam dos produtos do trabalho feminino, dominando mais bens com os quais iniciarão alianças. Se casar fora é melhor do que morrer fora (marry out is better than to be killed out), então alianças iniciadas pela riqueza dos homens devem ter valor positivo (Lévi-Strauss 1969 a: 43). Alianças integram grupos, e, na maioria das sociedades, os homens são mais ativos no domínio político que vincula unidades sociais, enquanto as mulheres são mais ativas nos grupos domésticos que são fragmentos da sociedade. Neste sentido, nós podemos atribuir um maior valor para os homens, que transcendem e unificam (Ortner 1974:79), se nós ignorarmos o fato de que aqueles que unificam pela política também dividem e destroem pela guerra. Trocas econômicas estão relacionadas a serviços e leis. Se considerarmos a quantidade total de bens e serviços trocados na sociedade humana, podemos estar certos de que os bens que os homens comandam e concedem estão necessariamente em maior quantidade do que os serviços das mulheres? Como Lévi-Strauss focou a análise da troca na máxima biológica de “casar fora é melhor do que morrer fora”, nós também podemos perguntar, em um nível biológico, se o Homo Sapiens tem mais possibilidade de sobreviver como espécie em razão do “alto nível” de trocas realizadas pelos homens ou pela produção doméstica, partilhamento e procriação das mulheres? Serviços domésticos são desvalorados nas sociedades industriais avançadas onde “trabalho” é definido como salário e é separado do espaço doméstico, e onde “um problema populacional” é percebido. Mas estes são os valores de nossa própria cultura e não são universalmente válidos. Natureza, cultura e reprodução biológica da sociedade Ortner procedeu com um método Lévi-Straussiano de perguntar sobre humanidade e depois equacionar para responder a questão. Ela pergunta: como podemos justificar a subordinação feminina universal? Indo depressa a um argumento biológico reducionista, ela diz que “o corpo da mulher parece condená-la a simples reprodução da vida; o contraste masculino, privado de funções criativas naturais, deve (ou fornece ao homem uma oportunidade de) manifestar sua criatividade externamente e “artificialmente” através do meio da tecnologia e dos símbolos. Ao fazê-lo, ele cria objetos relativamente duradouros, eternos, transcendentes, enquanto a mulher cria coisas perecíveis – os seres humanos” (1974:75). Essa visão que se originou com Beauvoir (1953:239) é marcante por seu etnocentrismo. Um grande número de sociedades, e particularmente a sociedade totêmica que Levis-Strauss usou para análise, possuem sistemas de linhagem que existem, por definição, perpetuamente. Cada humano que nasce se enquadra em uma grande corrente social que garante a imortalidade do grupo e dele mesmo. Casas apodrecem, vilas 15 são mudadas de lugar, impérios declinam, mas, a grande expectativa é que a linhagem, incluindo o verdadeiro panteão de ancestrais, permaneça. Existe qualquer coisa mais intrinsecamente natural sobre a fisiologia da mulher do que a do homem? Na maioria das sociedades o papel procriativo do homem é visto como sendo tão essencial quanto o da mulher para a continuidade social dos grupos. Tanto homens quanto mulheres procriam, comem, defecam e satisfazem outras necessidades. Isso tudo é natural, mas a etiqueta de comer, o horário, o lugar e a posição para defecar, e, de fato, as regras prescrevendo o tempo, o lugar e a posição para o parto são culturais. A fertilidade e o nascimento são guiados por definições de sintomas e modificações tecnológicas trazidas por terapias químicas e mecânicas em praticamente todas as sociedades e não podem ser usadas como característica para definir as mulheres como “naturais” (MacCormack 1981). O discurso de que as mulheres estão condenadas, por sua biologia, a serem naturais, e não culturais, é obviamente um discurso mítico, e tanto Ortner quanto Levis-Strauss se redimem dele. É claro que as mulheres não podem ser classificadas completamente na categoria de natureza “uma vez que é perfeitamente obvio que ela é uma pessoa dotada de consciência humana tanto quanto o homem; ela representa metade da raça humana, e sem a sua cooperação, toda a empreitada entraria em colapso” (Ortner 1974: 75 – 6). Ou, como expresso por Lévi-Strauss, “as mulheres não poderiam jamais se tornar apenas um símbolo e nada além disso, já que, mesmo em um mundo masculino, ela ainda é uma pessoa. E mesmo quando ela é definida como símbolo, precisa ser reconhecida como geradora de símbolos” (1969a:496). Assim, o paradoxo fundamental de Lévi-Strauss reaparece na transformação metafórica: (1) A cultura transcende a natureza, mas está enraizada na mente humana que é a natureza. (2) Os homens transcendem a natureza com sua mentalidade, mas estão na natureza como procriados, procriadores e detentores de mentes humanas. (3) As mulheres transcendem a natureza com sua mentalidade, mas estão na natureza como procriadas, procriadoras, lactantes e detentoras de mentes humanas. Ou o 2 e o 3 podem ser combinados da seguinte forma: (4) Homens e mulheres transcendem a natureza com sua mentalidade, mas estão na natureza como procriados, procriadores, fornecedores de alimento e detentores de mentes humanas. Podemos, então, concluir que tanto homens como mulheres são tanto natureza quanto cultura, e não há lógica que nos leve a crer que, em um nível inconsciente, as mulheres, por sua natureza, estão em oposição ou subordinação aos homens. Ideologia e adequação dos modelos 16 Ortner diz que “em todos os lugares, em todas as culturas conhecidas, as mulheres são consideradas, em algum grau, inferiores” (1974:69). Mas ela não diz por quem elas são consideradas assim. Por homens? Por mulheres? Por quantos? Em trabalhos de campo eu conversei com várias chefes mulheres, mulheres líderes de grupos de descendência, líderes de sociedades secretas, e mulheres que não concordariam com a tese apresentada. Elas diriam que as mulheres são inferiores aos homens em alguns pontos, e os homens são inferiores as mulheres em alguns pontos, fornecendo tarefas produtivas da divisão do trabalho como exemplo. Não haveria fomento social sobre papéis de gênero na sociedade ocidental industrial hoje se um número substancial de homens e mulheres não aceitasse a tese de uma subordinação feminina universal. O problema metodológico é o seguinte: os modelos estruturais podem se sustentar sem fazer referência a modelos nativos baseados na consciência e a verdadeiras descrições estatísticas? Scheffler opta por modelos que são julgados adequados e apropriados pelos nativos em questão (1970: 67), e Lévi-Strauss desconfia da própria opinião dos nativos como uma possível tela que esconde uma estrutura profunda (1963: 281) A posição de Ardener sobre modelos de natureza, cultura e gênero é ambíguo. Por um lado, ele vê realidade no modelo consciente dos nativos alegando que as mulheres Bakweri se percebem como parte da natureza.10 Como Lévi-Strauss e Ortner, ele não tenta colocar a mulher inteiramente no domínio da natureza, mas as vê se conectando com a natureza e a cultura, enquanto os homens se conectam se distanciando da natureza. Mas ele também vê validade na conexão metafórica das mulheres com a natureza no nível da estrutura inconsciente.11 No entanto, no padrão familiar da razão estruturalista, ele finalmente reduz o argumento à biologia dizendo que: “uma vez que as mulheres biologicamente não são homens, seria surpreendente que elas se conectassem em distância da natureza como fazem os homens” (1975:5). Mas a conexão entre a natureza e a mulher não está “dada”. O gênero e seus atributos não são puramente biologia. Os significados atribuídos ao masculino e feminino são tão arbitrários quanto os significados atribuídos a natureza e a cultura (Mathieu 1973). Aqueles que desenvolveram a tese natureza-cultura-gênero atrelam a feminilidade a biologia e a masculinidade ao domínio do social (de Beauvoir 1953:239; Ortner 1974:6788; Ardener 1975:5; Lévi-Strauss 1969a:482). No entanto, se homens e mulheres são uma só espécie e juntos constituem sociedades humanas, então, logicamente, análises de atributos intrínsecos de gênero devem ser feitas com referência ao mesmo domínio. Também está incorreta a formulação dos sociobiólogos que atrelam os atributos masculinos de gênero excessivamente a biologia, explicando, assim, “a naturalidade” da dominância política masculina.12 10 11 12 17 Em sua conclusão, Ardener parece retornar ao nível do modelo consciente; o modelo dominante masculino no qual “alguns atributos da mulher” não se encaixam nos limites da sociedade humana como definida pelos homes (p.23). As mulheres Bakweri por exemplo, diz ele, não são confundidas pelo modelo masculino, mas concordam com o mesmo por sua subordinação aos homens (p.24). Nós somos trazidos a um ponto de vista relativista onde os homens pensam uma coisa, e as mulheres sabem outra, mas não se expõem, porque os investigadores europeus se viram para os homens como autoridades dotadas de voz. Nós não estamos mais lidando com categorias universais, mas com um problema político no qual as mulheres são impedidas de falar pelos homens que constituem a elite política, e nós somos deixados para ponderar nossa própria história cultural européia para descobrir porque alguns antropólogos consideram os modelos conscientes que colonizaram os homens satisfatórios. Embora modelos estruturalistas se apliquem a dimensão sincrônica do fenômeno social, Lévi-Strauss e outros estão interessados na dimensão diacrônica da mudança social também. Já que de Saussure fez uma distinção em seu trabalho sobre lingüística entre a ciência de langue (código) e a ciência do parôle (mensagem), do mesmo modo Lévi-Strauss faz uso de um estruturalismo sincrônico tanto quanto de uma dialética marxista, sendo que a última explica a mudança social e as causas sociais finais de códigos culturais particulares. Quando as mulheres jardinam e tecem, estas atividades são concebidas como sendo da ordem da natureza. Quando os homens se apropriam do mesmo tipo de atividade e interpõe a cultura na forma de um processo complexo de maquinaria, a atividade masculina está na ordem da cultura (Lévi-Strauss 1977:321). Presumivelmente, as mulheres, como mão de obra mal paga ou gratuita, são vistas pelos homens como um recurso natural de baixo custo no processo produtivo. No tópico do desenvolvimento do terceiro mundo, Lévi-Strauss pondera que as sociedades não são “subdesenvolvidas” por seus próprios feitos, mas porque sociedades capitalistas têm extraído as riquezas das mesmas desde o século XVI. Conquistas que levaram a obtenção de ouro no novo mundo, escravos na África, e outras riquezas, conectam os países não industriais e industriais em um sistema comum com uma história comum. A relação entre colonizadores e colonizados, e a relação entre capitalistas e proletários nas sociedades industriais, são manifestações do mesmo processo: “A escravidão muda do novo mundo era necessária como uma pedra fundamental na qual a escravidão enrustida dos assalariados europeus foi construída” (citado por Levis-Strauss 1977:315): colonizador capitalista : : colonizado proletário Para Lévi-Strauss, a criação e a própria realidade da sociedade industrial se encontra na condição histórica irreversível da opressão, e ele critica Malinowski por considerar o desenvolvimento como resultante do impacto de uma cultura maior e mais ativa em uma 18 mais simples e mais passiva. “Simplicidade” e “Passividade” não são propriedades intrínsecas destas sociedades, mas o resultado da ação do desenvolvimento sobre ela desde os seus próprios inícios; uma situação criada pela brutalidade e violência sem as quais as condições históricas do próprio desenvolvimento não teriam se dado (Lévi-Strauss 1977:316). Embora ele reconheça Engels em sua análise da colonização e proletarização, Lévi-Strauss não reconhece a análise de Engels do processo pelo qual a mulher, como categoria, se tornou “proletariado” para o homem, a “burguesia”, através da ascensão da propriedade privada e da privatização do trabalho feminino (Engels 1942:48ff): colonizador capitalista homem : : : colonizado proletário mulher Se Lévi-Strauss insiste que a simplicidade e a passividade não são propriedades intrínsecas dos colonizados e proletariados, então, logicamente, ele deve insistir que não são propriedades intrínsecas da mulher, mas o resultado de um processo histórico que deixou a mulher marginalizada e sem poder. Nós entendemos que é tão importante entender a “mensagem” de relações de propriedades quanto o “código” na naturalidade se quisermos entender a marginalização feminina nas sociedades humanas. II. Estas anotações são um prólogo. Os dois capítulos seguintes assumem a tarefa construtiva de aprofundar nossa compreensão dos conceitos europeus de natureza, sociedade humana e gênero. Na última parte do livro, examinaremos tais conceitos em um quadro mais comparativo. Durante o Iluminismo, o conceito de natureza foi crucial para o discurso político e a ascensão do método científico. Maurice e Jean Bloch trabalham com a idéia da natureza em uma dialética política que colocou em oposição “a lei natural” da doutrina da divindade verdadeira dos reis. Mais tarde, Rousseau moldou a “natureza” para que significasse a própria fonte através da qual a sociedade corrupta se reformaria e se purificaria. Esse conceito de natureza foi crucial para a defesa radical de Rousseau da soberania das pessoas e da legitimação da democracia. O conceito de natureza toma o seu significado, em parte, daquilo a que se opõe: reis divinos, pré-sociedade, sociedade corrupta e outros. Já que “natureza” se opõe a diferentes doutrinas em diferentes pontos da história, seus significados fazem o mesmo. Rousseau define uma dialética entre a idéia de natureza como guia e mestre para a sociedade reformada, e a natureza associada às emoções e a domesticidade feminina. Idéias do século XVIII de reforma social e política não se estendiam as mulheres. Embora 19 elas fossem mais puramente naturais que os homens, as mulheres eram socialmente definidas como passivas, dependentes e politicamente inferiores. Essa contradição é preservada na visão de Lévi-Strauss de estrutura social e faz parte da dialética de gênero para a qual contribui este livro. No século XVIII, a natureza era tanto a parte do mundo que ainda não havia sido adentrada, quanto a parte entendida, dominada, e possuída pelos homens. Jordanova explica como o método científico se emparelhou ao discurso político ao designar atributos contraditórios as mulheres. Elas eram o repositório da lei natural; as fundadoras da sociedade humana eram as mães das famílias. Através do desvelamento científico da mulher, a natureza podia ser revelada e compreendida. Mas as mulheres também eram repositório de paixões que precisavam ser detidas e controladas. Em meados do século XVIII, uma tradição biomédica bem estabelecida observou e definiu os humanos endurecendo a divisão conceitual entre atributos exclusivamente femininos e exclusivamente masculinos. Um determinismo biológico “explicava” a mulher, mas os homens eram definidos mais por seus atos sociais, uma atitude de questionamento que persiste em parte da literatura atual de gênero. Alargando nosso escopo de questionamento, nós podemos retornar ao relacionamento entre as potências coloniais da Europa e o terceiro mundo. No discurso sobre o significado da cultura e sociedade, os conceitos europeus podem ser vistos como “um código dominante” (Ardener) que universaliza nossa visão européia do mundo. Como lembrado por Harris, nós temos menor possibilidade de escutar os “códigos mudos”. Mas os cientistas sociais devem se proteger contra a tendência de usar o discurso dominante da cultura européia para universalizar nossas categorias nos tornando surdos para maneiras alternativas de estruturar o mundo. Capítulos de Harris, MacCormack, Goodale, Gillison e Strathern exploram determinadamente algumas dessas estruturas alternativas. Embora as pessoas tenham considerado usar contingentes de construção binários na natureza ou gênero, nenhuma das equações simbólicas pode ser reduzida à simples analogia natureza: cultura::feminino:masculino. O capítulo de conclusão de Strathern é tanto uma visão teórica quanto uma pesquisa etnográfica exploratória. Tradução: Prof. Daniel Schroeter Simiao Larissa Costa Duarte 20