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A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS FRENTE À
RESERVA DO POSSÍVEL
Larissa Fischer Sbrissia1
RESUMO
O presente trabalho versa sobre a efetividade dos direitos fundamentais
sociais frente às restrições impostas pela Reserva do Possível. Os direitos
fundamentais são considerados núcleo essencial das constituições e do Estado
Democrático de Direito. Todavia, especificamente os direitos fundamentais sociais,
por serem considerados como direitos a prestações positivas, demandam uma
atuação Estatal para sua efetivação. Neste contexto, trava-se o embate entre a
efetividade das normas constitucionais frente as limitações impostas pelo
orçamento. Assim, são abordados temas como contexto de positivação dos direitos
nas Constituições, teorias acerca das restrições e judicialização dos direitos
fundamentais sociais.
PALAVRAS- CHAVE – Direitos Fundamentais – Estado Democrático de Direito –
Efetividade das Normas Constitucionais – Reserva do Possível.
INTRODUÇÃO
Desde
o
reconhecimento
dos
direitos
fundamentais
sociais,
foi
expressamente previsto que ao Estado caberia a obrigação de garantir aos seus
cidadãos um mínimo de condições essenciais exigidas para a sua existência com
dignidade. Ao mesmo tempo, como não poderia ser diferente, em razão destes
direitos exigirem uma prestação positiva estatal, surgiu também a discussão acerca
dos limites das obrigações que devem ser cumpridas e de que forma o Estado deve
implementá-las.
A própria natureza dos direitos fundamentais, sobretudo a sua característica
de heterogeneidade, implica a necessidade de restrições aos direitos. Essa restrição
é essencial, mas precisa ser necessariamente corrigida e adequada para que não
implique em esvaziamento de normatividade aos textos constitucionais que prevêem
1
Acadêmica do 10° período do Curso de Direito da Escola de Direito e Relações
Internacionais das Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil.
2
tais direitos. Especialmente no caso dos direitos sociais que, ao demandarem uma
atuação positiva do Estado para sua realização, são especialmente sensíveis às
restrições. Essa questão levou a doutrina a muitos debates, mas especialmente, deu
surgimento a teorias que pretendem determinar tais limites ou restrições e
contrabalançar as fontes de recurso e arrecadação do Estado com os a necessidade
de investimentos sociais.
É nesse contexto que surge a teoria da reserva do possível. O Estado
somente está obrigado a oferecer a garantia de direitos fundamentais –
especialmente no caso daqueles que tomam a forma positiva – no limite das suas
possibilidades, especialmente financeira. Por isso, o investimento a ser feito pelo
Estado estaria limitado àquilo que foi determinado no seu orçamento, dentro dos
estritos limites determinados pela Constituição. Atualmente, a discussão envolve
ainda questões judiciais que têm apontado no sentido de estabelecer, através de
interpretações pontuais ou sistemáticas, quais são os limites a serem indicados ao
Executivo para a obrigação de garantir direitos fundamentais sociais.
Assim, o objetivo do presente trabalho é, inicialmente, apresentar o embate
travado entre o conceito de reserva do possível e a efetivação dos direitos sociais.
Procura-se, ainda, contextualizar a cláusula da Reserva do Possível, passando pela
análise das restrições aos direitos fundamentais e cotejar o conceito de mínimo
existencial. Finalmente, uma breve discussão da posição do Supremo Tribunal
Federal tentará indicar em que sentido segue a assim chamada judicialização dos
direitos fundamentais. Tudo isso pretendendo concluir pela impossibilidade de
restrição ao mínimo existencial.
1 A RESERVA DO POSSÍVEL
A influência da doutrina neoliberal no constitucionalismo é clara ao se detectar
que nunca se falou tanto em restrições econômicas e escassez na constituição,
defesa e realização dos direitos fundamentais como nas questões atuais. Vê-se,
inclusive, decisões do Supremo Tribunal Federal2 com efeitos modulados de forma a
não atingir o orçamento público, mesmo que uma norma tenha sido considerada
2
Por exemplo os Recursos Extraordinários n. 556.6644, 559.882, 559.943, e 560.626.
3
inconstitucional durante todo o seu período de vigência. É assim que surge o
conceito de reserva do possível, como uma forma de tentar adequar a realização de
direitos à realidade fática.
Ao que se sabe, a construção teórica da reserva do possível tem origem na
Alemanha na década de 70. O conceito trabalha com o fato de que a efetividade dos
direitos sociais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado,
especialmente quando se tratarem de direitos fundamentais dependentes de
atuação positiva. A partir desta concepção, a concretização dos direitos sociais
estaria relacionada à “disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado,
disponibilidade esta que estaria localizada no campo da discricionariedade das
decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público.” 3 O
caso paradigma que saltou aos olhos dos doutrinadores na Alemanha foi a disputa
versando sobre o direito de acesso ao ensino superior e as restrições fáticas
existentes4.
A doutrina ainda não estabeleceu a melhor forma de tratamento a ser
concedida à Reserva do Possível, seja como princípio, seja como cláusula ou como
postulado. Para OLSEN5, parece inadequado concebê-la como princípio, visto que
não prescreve determinado estado de coisa a ser atingida e também porque não se
trata de um mandado de otimização. Por mais que para sua aplicação dependa da
ponderação, somente este elemento não parece razoável para considerá-la como
princípio. É por isso que as expressões “cláusula” ou “postulado” realmente parecem
mais adequadas.
Assim, conforme bem explicitado por SARLET e FIGUEIREDO, a reserva do
possível, como cláusula ou postulado,
...apresenta pelo menos uma dimensão tríplice que abrange a) a efetiva disponibilidade
fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais, b) disponibilidade jurídica
dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima correlação com a distribuição de
receitas e competências tributárias e (...) c) na perspectiva do titular do direito a prestações
6
sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação.
3
SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos Fundamentais,
Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 29
4
Idem
5
OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais: Efetividade frente à reserva
do possível. Curitiba: Juruá, 2008.p. 200
6
SARLET, FIGUEIREDO, op.cit., p. 30
4
Diante disso, para a compreensão deste conceito, o primeiro passo será o
estudo dos custos dos direitos que se pretende garantir, bem como a existência de
uma obrigação de financiamento por toda a sociedade.
2
GARANTIA
DOS
DIREITOS
FUNDAMENTAIS
VERSUS
LIMITES
DO
ORÇAMENTO: UM EMBATE COMPLEXO
O Estado necessita ter receitas para cumprir suas obrigações sociais, pois
as garantias prestacionais dependem de investimentos consideráveis. 7 Na doutrina
de SUSTEIN e HOLMES, todos os direitos, desde os que dependem de atuação
positiva até aqueles negativos ou de defesa, implicam custos para o Estado. E,
diante disso, nenhum direito será absoluto, mas dependerá dos recursos
econômicos do Estado para serem realizados. Os mesmos autores concluem que
somente existirão direitos onde o fluxo orçamentário os previr. 8 Já que os bens são
escassos, realizar direitos significa realizar escolhas de alocação de recursos.
Todavia, tal teoria pressupõe uma influência econômica sobre as questões
internas jurídicas, trazendo a problemática da escassez como um elemento
intrínseco aos direitos fundamentais como um limite imanente. Ora, se o objetivo do
Estado Democrático de Direito é garantir os direitos fundamentais, como inverter a
posição no sentido de aplicá-los somente quando houver orçamento à disposição? O
orçamento Estatal deve ser previsto para efetivar os direitos fundamentais e não o
contrário.
A análise econômica pode e deve contribuir para a justiça social, afinal, isto
será o objetivo maior do Estado, todavia, não há como ratificar que os direitos
fundamentais devem ficar reféns da escassez porque, neste caso, haverá uma
inversão dos papéis. A sociedade financia tais prestações por meio do pagamento
dos tributos, e ao orçamento caberá uma melhor previsão de forma a atender o
interesse de seus demandados, afinal, desperdício de recursos públicos gera
injustiça.
7
MALISKA, Marcos Augusto. O Direito à Educação e a Constituição. Porto Alegre: Sergio
Antônio, 2001.P. 48.
8
HOLMES, Stephen. SUSTEIN,Cass. The Cost of Rights: Why Liberty depends on Taxes.
New York: W.W. Norton Company, 1999. P. 94
5
Aqui, verifica-se, portanto, a importância do conceito de deveres
fundamentais como forma de concretização dos direitos fundamentais. Além da
previsão orçamentária, cumpre observar a necessidade de toda a sociedade cumprir
com seu papel nos deveres sociais, como, por exemplo, o pagamento de tributos.
CANOTILHO9 bem assim observa ao tratar do tema, “os deveres fundamentais
podem ser compreendidos como o outro lado dos direitos fundamentais”. 10 Todavia,
deve ser afastada a idéia de que para se proteger um direito, necessariamente
deveria ser cumprido um dever. Os deveres podem ser balizados por ideais de
solidariedade e fraternidade.11
O ideal de solidariedade está diretamente relacionado ao ideal de
comunidade, de pertencer e partilhar obrigações dentro de um grupo social. De
acordo com COMPARATO,12 é através dela que se complementa e aperfeiçoa a
liberdade, igualdade e segurança. Isso porque, ao contrário de colocar as pessoas
umas diante das outras como pressupõem liberdade e a igualdade, a solidariedade
as reúne em uma mesma sociedade.
Todavia, é certo que uma norma jurídica não pode prescrever o impossível.
Diante disso, a importância da Reserva do possível para o estudo do direito é o fato
de que, apesar de ser exterior a ele e não determinar seu conteúdo, poderá afetar
diretamente sua eficácia. E quais seriam as restrições a estas imposições fáticas?
Na tentativa de uma solução a este impasse entre limitação orçamentária
versus as garantias fundamentais, a doutrina desenvolveu o conceito de mínimo
existencial como sendo o núcleo dos direitos sociais. Dessa forma, torna-se
impossível a aplicabilidade da cláusula da “Reserva do Possível” de forma a não
conceder o mínimo existencial.
Ou seja, a razoabilidade e proporcionalidade devem reger sua observância e
efetividade. Ao lecionar sobre o tema, especialmente sobre o fornecimento de
medicamentos, BARROSO traduziu a questão da proporcionalidade ao definir que:
9
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7
ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2006. P. 531
10
Ibidem, p. 532
11
Ibidem, p. 536
12
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito moral e religião no mundo moderno. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 580.
6
Nas discussões travadas em ações coletivas abstratas – para a modificação das listas – o
judiciário só deve determinar que a Administração forneça medicamentos de eficácia
comprovada, excluindo-se os experimentais e alternativos. Ademais, o judiciário devem
como regra, optar por substâncias disponíveis no Brasil e por fornecedores no território
nacional. Por fim, dentre os medicamentos de eficácia comprovada, deve privilegiar aqueles
13
de menor custo, como os genéricos.
Assim, não será possível que em nome da Reserva do Possível, o comando
constitucional seja destituído de eficácia, todavia, também não será razoável
defender que o judiciário poderá, em qualquer situação, independentemente do
pedido e do bem a ser protegido, comprometer toda uma política pública sendo que
existiriam outras possibilidades mais razoáveis para a realização de tais direitos.
3 BUSCA DE UM CONCEITO DE MÍNIMO EXISTENCIAL
Resta claro que os direitos sociais são essenciais para o bom
desenvolvimento social. Essas necessidades fundamentais são determinadas pela
sociedade e está intimamente relacionada à vida e à dignidade da pessoa humana.
Por este motivo, pela perspectiva objetiva, estes direitos serão caracterizados como
núcleo axiológico da Constituição. Deixar de atendê-los pode causar na sociedade
um sentimento de injustiça. E, nesse sentido, compreender a noção de mínimo
existencial será essencial para exigir tais prestações do Estado de forma razoável.
Se os direitos sociais estão fundamentados no conceito de dignidade da
pessoa humana, estudar o mínimo existencial é estabelecer os limites impostos pela
Constituição como garantias sociais mínimas aos indivíduos para que tenham
realizada a sua própria dignidade. Trata-se do desenvolvimento lógico e direto do
núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, núcleo este protegido pela
intervenção estatal. Além disso, o fato da garantia ao mínimo existencial não estar
reconhecida expressamente no texto constitucional, não significa que o constituinte
deixou de considerar tal direito. Na verdade ele foi muito além quando previu as
garantias sociais.
13
BARROSO, Luís Roberto. O fornecimento gratuito de medicamentos e a
judicialização excessiva. Disponível em www.migalhas.com.br/mostra_noticias_articuladas.
Acessado em 21/04/2009.
7
A discussão passa então para a compreensão sobre o que significa este
mínimo. Doutrinadores alemães14 deram início, após a entrada em vigor da Lei
Fundamental de 1949, às pesquisas acerca do conceito de mínimo existencial.
Entendem que estas condições mínimas integram o conteúdo essencial do Estado
Social de Direito. Todavia, tal dignidade propriamente dita não é passível de
quantificação, dependerá de condições temporais, espaciais e ainda do padrão
sócio-econômico vigente.15
O núcleo fundamental de tal conceito é o fato de que a vida humana não
pode ser reduzida à mera existência. Esta existência deve ser digna, muito além da
mera sobrevivência física e do limite da pobreza absoluta. Como exemplo, o óbvio:
não deixar alguém sucumbir pela fome não é o suficiente. O indivíduo necessita de
conhecimento para a fruição de todos os direitos fundamentais de forma a se
desenvolver plenamente, foco este que pode ser dado primeiramente pelas
condições básicas de vida como moradia, saúde e complementado pela educação. 16
BARCELLOS17 buscou nas teorias de RAWLS e WALZER o conceito de
mínimo existencial. Segundo a autora, RAWLS propõe uma teoria liberal de justiça.
Acredita em um novo pacto social no qual os homens deixam de lado suas posições
sociais, riquezas e profissões e estabelecem novas regras sociais que prevêem que
todos detêm condições iguais de participação na sociedade. Este estado do
indivíduo seria a cobertura por um “véu de ignorância” fundando nos princípios da
igualdade ao sistema de liberdades básicas, desigualdades econômicas e sociais
distribuídas de forma a garantir a todos a expectativa de benefícios e oportunidades.
Na teoria de RAWLS, trabalha-se com o conceito de mínimo existencial em
dois momentos. Primeiramente como uma condição pré-existente aos princípios da
diferença e do arbítrio do legislador. Ainda de acordo com a autora, o filósofo traduz
o princípio da diferença em três elementos: maximização do bem-estar dos menos
14
Especialmente Otto Bachof, que considerava que o princípio da dignidade da pessoa
humana não reclama apenas a garantia de liberdade, mas, também, um mínimo de segurança social.
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial
e direito à saúde: Algumas aproximações. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti.
Direitos Fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado.
2008, p. 19.
15
Ibidem, p. 20.
16
Ibidem, p. 21 – 24
17
BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia Jurídica dos princípios constitucionais. O
princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P.126.
8
favorecidos, posições e funções abertas a todos e igualdade equitativa de
oportunidades. Estes elementos determinariam um fim estabelecido pelo constituinte
e dirigido ao legislador. Neste ponto, o conceito de mínimo existencial seria um
pressuposto lógico da construção destes princípios.
Em um segundo momento, irá distinguir dentro do princípio da diferença um
conteúdo mínimo e este mínimo terá status de direito subjetivo constitucional. A
importância disso é que esse mínimo deixa de ser uma vinculação à atuação do
legislador para se tornar um direito constitucionalmente assegurado, independente
da intervenção legislativa.18 Essa tese, aliás, vem corroborar o fato de que o mínimo
existencial não precisaria estar taxativamente expresso na Constituição Federal.
ALEXY também trabalha com o conceito do mínimo sopesando os princípios
da dignidade da pessoa humana, de um lado, e da separação dos poderes, de outro.
Para o autor, “direitos individuais podem ter peso maior que razões políticofinanceiras”19 e, além disso, para o autor, o princípio da separação dos poderes e
vinculação orçamentárias não são absolutos: são meios para atingir fins
constitucionais. Complementa seu raciocínio, ainda, afirmando que o conteúdo da
dignidade humana é importante demais para ser deixado a encargo do legislador.
Já OLSEN20 irá utilizar o conceito apresentado por FLORENZANO de que o
mínimo existencial faz referência ao disposto no art. 7º, IV da Constituição Federal 21
que prevê tudo aquilo que o salário mínimo deve envolver, “... necessidades vitais
básicas e às de sua família, como moradia, educação, alimentação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Para BARCELLOS, este conceito
será um pouco mais restritivo “o mínimo existencial que ora se concebe é composto
de quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação
fundamental, saúde básica, assistência aos desamparados e acesso à justiça”22.
18
Ibidem, p. 127.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Ed. Traduzida por Virgílio Afonso da
Silva. São Paulo: Malheiros, 2008 p. 513
20
OLSEN, op. cit., p. 316.
21
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social: (...) IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado,
capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação,
educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos
que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;”
22
BARCELLOS, op. cit., p. 258.
19
9
Enfim, embora possa variar na doutrina de acordo com o alcance, parece
possível reconhecer um núcleo mínimo de direitos sociais que devem ser
reconhecidos para o cidadão para que possa ele se dar por devidamente garantido
diante do Estado. Determinações constitucionais nesse sentido existem várias
espalhadas no texto constitucional parecendo impossível reconhecer que essa não
seja uma vinculação real ao poder público.
4 AS RESTRIÇÕES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Na tentativa de proteção aos direitos fundamentais, frequentemente
ocorrerão choques entre eles. Pensando nesta problemática, Virgílio Afonso da
Silva23 desenvolveu um trabalho sobre as restrições dos direitos fundamentais que
foi desenvolvido em duas grandes partes: primeiramente, contrapõe a teoria externa
e interna, há tempos utilizada pelos civilistas para justificar a possibilidade de
restrições, e, em um segundo momento, analisa a questão da proporcionalidade.
A compreensão da diferença entre a teoria interna e externa passa, em
princípio, pelo estabelecimento das definições terminológicas utilizadas por elas.
Normalmente, as palavras “limites” e “restrições” são utilizadas como sinônimos, o
que incorre em profundo erro conforme define VIRGÍLIO DA SILVA.
Segundo o autor, limites são processos internos, não influenciados por
processos externos. Já as restrições não influenciam no conteúdo do direito, mas,
simplesmente, restringem seu exercício em um determinado caso concreto, não
afetando sua validade. Diante disso, limites imanentes não podem conviver com a
expressão “restrições de direitos” ou “sopesamento”, pois, como será melhor
detalhado a seguir, para a teoria interna que trabalha com o conceito de limites, não
há como se pensar em influências externas. Todavia, tais influências são
pressupostos para a restrição ou sopesamento de princípios defendidos pela teoria
externa.
23
SILVA, Luis Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e
eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. P. 126-182.
10
4.1 Teoria Interna
Para a teoria interna, o processo de definição de limites ao direito é algo
interno a ele. Isso significa que não há interferência de aspectos externos, e,
portanto, não há a possibilidade de existência de colisão entre direitos. A idéia
central pode ser traduzida pela frase de PLANIOL e RIPERT 24 de que “o direito
cessa onde o abuso começa”.
Assim, como para a teoria interna não existem influências externas, estes
direitos terão sempre a estrutura de regras. A norma será sempre aplicada quando a
hipótese prevista por ela ocorrer, e, diante disso, terá validade estrita. O desafio da
teoria será de demonstrar como a limitação a estes direitos pode ocorrer a partir “de
dentro” destes próprios direitos. Para isso, se utilizará dos limites imanentes ou da
teoria institucional.25
Limites imanentes são aqueles limites definidos pela própria Constituição.
Um exemplo de utilização da teoria interna trazido por VIRGÍLIO DA SILVA é o caso
da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no caso “Ellwanger” em que, ao
tratar dos limites do exercício dos direitos fundamentais, o então Ministro CORRÊA
recorreu à idéia dos limites imanentes ao dizer que “como sabido, tais garantias,
(liberdade de expressão e pensamento) como de resto as demais, não são
incondicionais, razão pela qual devem ser utilizadas de forma harmônica,
observados os limites traçados pela própria Constituição Federal em seu art. 5º, §2º,
primeira parte”26. Diante disso, a expressão limites vem a calhar já que não se trata
de restrições, mas de limites impostos pela própria Constituição.
Já a Teoria Institucional, em breve explanação, irá traduzir a preocupação
com os limites dos direitos fundamentais e com seu conteúdo essencial. Utiliza-se
da teoria de HÄBERLE de que os direitos fundamentais de liberdade deixam de ser
exclusivamente individuais para se tornarem a liberdade de todos. A liberdade será
algo aplicado a partir do direito, e, portanto, não se trata de algo natural. Diante
24
Propuseram intensos debates sobre a teoria interna e externa na França; In Planiol,
Marcelo. Ripert, Georges, Traité élementaire de droit civil, vol.II,10 ed. Paris: LGDJ, 1926, p. 298,
Apud SILVA, Luis Virgílio Afonso da, Direitos fundamentais. Conteúdo essencial, restrições,
eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. P. 127.
25
SILVA, Luis Virgílio Afonso da, Direitos fundamentais... P. 130.
26
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82424/02. Relator original Min. Moreira Alves.
Entrada em 12 de setembro de 2002. Julgamento em 17 de setembro de 2003.
11
disso, a teoria de HÄBERLE também é um exemplo de teoria interna já que a
Liberdade como instituto seria criada pela atividade Estatal que não a restringe,
apenas a delimita.27
Portanto, trabalhar com a teoria interna é considerar que não existem
restrições externas a direitos. Além disso, para esta teoria não pode haver uma
distinção entre o conteúdo prima facie de um direito e o conteúdo definitivo de
direitos fundamentais, assim, não existiria o sopesamento entre os princípios.
Contrária a esta teoria estão as explanações da teoria externa que será abordada a
seguir.
4.2 Teoria Externa
A teoria externa está diretamente relacionada à teoria dos princípios
desenvolvida por Ronald DWORKIN, seguido por ALEXY 28. Conferir normatividade
aos princípios e estabelecer a distinção entre regras é um dos maiores desafios à
doutrina. Princípios determinam valores, um fim. Os direitos fundamentais são
garantidos por uma norma que consagra um direito prima facie.
Para ALEXY, “princípios exigem que algo seja realizado na maior medida
possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes, neste sentido, eles
não contém um mandamento definitivo, mas apenas prima facie.”29 Isso significa
que, em determinados casos, aquilo que um princípio determina pode ser afastado
por razões antagônicas. O critério prima facie de um princípio pode ser fortalecido
por uma carga argumentativa a favor de alguns e em detrimento de outros30.
A solução entre a aplicabilidade da teoria interna ou externa para ALEXY
pode ser solucionada ao se partir do pressuposto de que as normas de direitos
fundamentais são princípios ou regras, se forem consideradas princípios refuta-se a
teoria interna, se forem consideradas normas, refuta-se a teoria externa.31
27
Ibidem, p. 133- 137.
BARROSO, Luís Roberto. O fornecimento gratuito de medicamentos e a judicialização
excessiva. Disponível em www.migalhas.com.br/mostra_noticias_articuladas. Acessado em
21/04/2009.
29
ALEXY, op. cit, p. 104
30
Ibidem, p. 105 e 106.
31
Ibidem, p. 78.
28
12
De qualquer forma, o ponto a ser trabalhado é o fato de que a colisão de
princípios poderá gerar uma restrição a um deles. A definição do conteúdo destes
direitos será dada a partir das condições fáticas existentes e, assim, as restrições
poderão se dar por meio de regras ou por meio de princípios. Ainda para VIRGÍLIO
DA SILVA, algumas regras podem proibir condutas que seriam permitidas por
princípios, e, com isso, a regra restringiria um princípio.
Apesar de considerar que as regras traduzem princípios e que, portanto,
ao final o que se teria seria sempre um choque entre princípios, o autor acredita que
trabalhar com esta análise seria genérico demais. Daí que VIRGÍLIO DA SILVA
prefere analisar a questão da restrição dos direitos fundamentais por meio de regras,
de forma a diferenciá-la das restrições baseadas em princípios.32
Diante desta explanação, a restrição ocasionada entre colisão de
princípios, ocorreria somente quando não houver previsão infraconstitucional, ou
seja, quando não houver uma regra que restrinja um deles. Nesse caso, caberá
então ao magistrado sopesá-los por meio de decisões judiciais33. Esse sopesamento
pode então ser compreendido como o caminho realizado para que um direito prima
facie se torne um direito definitivo nos casos concretos.34
Diferente deste critério de sopesamento será a aplicação da regra da
proporcionalidade. Trata-se a proporcionalidade de uma regra especial, conforme
descreve VIRGÍLIO DA SILVA35, porque irá impor um dever definitivo não sujeito às
condições fáticas e jurídicas existentes. A aplicação da proporcionalidade ocorre
quando, no momento de elaboração do texto legal, e após a realização do
sopesamento de princípios, o legislador propõe uma regra que restrinja direitos
fundamentais. Quando esta regra for questionada em juízo, aplica-se a regra da
proporcionalidade.
As variáveis a serem consideradas pelo juízo ao se deparar com a
necessidade de aplicar a proporcionalidade devem ser: (a) eficiência das medidas
ao se realizar o objetivo; e (b) definição do meio menos gravoso ou que menos
32
SILVA, op. cit., p. 141 e 142.
Ibidem, p.143
34
Ibidem, p. 165
35
Ibidem, p. 168
33
13
restrinja direitos fundamentais, ou seja, adequação e necessidade.36 Diante disso,
não haverá como fugir da subjetividade do juiz. E ainda que a tentativa de aplicação
de normas matemáticas acabe proporcionando uma maior simplicidade para a
resolução dos possíveis casos de restrições, muitas vezes existem soluções
alternativas, que não são mais adequadas, mas que restringem menos os direitos
fundamentais.
Ponto essencial na discussão acerca da proporcionalidade será avaliar o
limite se sua aplicação, ou seja, até que ponto um direito poderá ser restringido para
que não se caracterize violação. Para solução desta questão será necessário o
desenvolvimento do conceito de conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Este
conteúdo poderá se configurar de diversas formas, todavia, para o presente trabalho
pretende-se
correlacionar
a
utilização
do
critério
de
sopesamento
e
proporcionalidade em relação apenas aos direitos fundamentais sociais.
Utilizando-se da definição de suporte fático dos direitos fundamentais
percebe-se que aos direitos sociais cumpre uma abordagem diversa daquela
utilizada para a compreensão das assim chamadas liberdades. Isto porque a
restrição se dará de forma diferenciada: não se questionará a necessidade do
Estado se manter inerte para não interferir nas relações; o problema será
exatamente o oposto, com o Estado permanecendo inerte quando deveria agir.
De qualquer forma, conclui-se, portanto, que a restrição aos direitos
sociais somente pode ser pensada até o limite do núcleo destes direitos que pode
ser conhecido como mínimo existencial para a dignidade da pessoa humana.
Somente assim cria-se uma linha de divisão entre a possibilidade de restrição e a
violação a este direito. Adiante será melhor abordado o conceito de mínimo
existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais sociais e como
limitador à possíveis restrições aos direitos fundamentais.
No Brasil, em relação às normas de Direitos Fundamentais Sociais, o
constituinte de 1988 previu para alguns casos restrições expressas e, em outros
casos, não as estabeleceu. No primeiro caso, utilizou-se das expressões “na forma
da constituição”, “na forma da lei” e “nos termos da lei” ao invés de detalhar os
36
Ibidem, p. 172.
14
meios de sua exeqüibilidade e proteção. Diante disso, deixou a cargo do legislador
a interferência no conteúdo dos direitos.
Todavia, tal atuação não poderá ser ilimitada. Exemplo disso fica a cargo do
art. 6º da Constituição Federal, nele está previsto que a proteção aos direitos
fundamentais se dará “na forma da Constituição”.
Diante disso, para sua
aplicabilidade deverão ser observadas todas as normas previstas no título II, bem
como o capítulo da Ordem Social da própria Carta Magna.
Retornando aos tipos de reservas previstas pela constituição, nota-se, ainda,
a existência de direitos sociais que não possuem reservas expressas pelo
constituinte que deixou, portanto, de prever ou traçar as restrições. Isso não significa
que toda a autonomia se transfira ao legislador na exata medida em que ele deve
estar vinculado ao texto constitucional.
Um exemplo desta cláusula sem reservas foi a inclusão do termo “moradia”
trazido pela Emenda Constitucional 26 ao artigo 6º. Mesmo não tendo maiores
especificações sobre as limitações que deveriam ser aplicadas a ela, todas as
normas que desrespeitavam a proteção à moradia foram revogadas. 37
Diante da compreensão de que existem as possibilidades de restrições aos Direitos
Fundamentais Sociais na Constituição de 1988, resta estabelecer que a qualquer
restrição dessa espécie está submetida ao princípio da proporcionalidade, ou seja:
“uma restrição aos direitos fundamentais somente estará em conformidade com a
proporcionalidade se, simultaneamente, for apta para fins a que se destina, for o
menos gravosa possível para que estes fins sejam atingidos, e cause benefícios
superiores aos malefícios eventualmente implicados”38. Assim, a judicialização dos
direitos fundamentais está diretamente relacionada à teoria externa apresentada.
5 A JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Intimamente relacionada à cláusula da reserva do possível está a
judicialização dos direitos fundamentais. Conforme disposto no artigo 5º, XXXV da
37
38
OLSEN, op. cit., p. 163.
Ibidem, p. 170.
15
Constituição Federal39, sempre que houver lesão ou ameaça a algum direito, o
judiciário poderá ser acionado. Trata-se do princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional, fundamento básico de um Estado Democrático de Direito. Assim,
considerando os direitos fundamentais como direitos subjetivos, terá o cidadão o
direito de exigir do Estado, judicialmente, a concretização das garantias
constitucionais.
Para CLÉVE40, a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais desempenha
três funções: (a) primeiramente, a função de defesa do indivíduo contra a ingerência
do poder público que pode tentar impedir a satisfação de um direito fundamental; (b)
em segundo lugar, a função de prestação, prevendo que o indivíduo poderá
demandar a realização do objeto do direito fundamental; (c) finalmente, a função de
não discriminação, significando que o indivíduo deve ter o direito aos bens e
serviços necessários à satisfação dos direitos fundamentais.
Em uma condição ótima, o Estado, na medida em que está vinculado a
realizar os objetivos constitucionais – e entre eles aquelas disposições referentes
aos direitos fundamentais sociais –, se obriga à prestação positiva da série de
condições mínimas à garantia da dignidade da pessoa humana. Todavia, como é
sabido, nem sempre o Estado consegue fazê-lo como deveria, o que se justifica
segundo diversas explicações de ordens variadas: falta de condições materiais, falta
de interesse político, descabimento social, etc. Em um país em desenvolvimento
como o Brasil, são notórias as falhas dessa ordem.
De qualquer forma, considerando, portanto, que a dimensão subjetiva dos
direitos fundamentais faz com que o cidadão possa agir ativamente de forma a obter
tutela do poder judiciário, tem-se que o judiciário pode passar a ser garantidor dos
direitos fundamentais, principalmente quando não há a atuação do executivo. Tratase de prerrogativa do Estado Democrático de Direito.
Todavia, a cláusula da reserva do possível pode ser visualizada como óbice
à concretização destes direitos por meio do Poder Judiciário. Passa-se ainda, a ser
questionada a legitimidade democrática da atuação do Judiciário nesse sentido, pois
39
“Art. 5º (...)XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito;”.
40
CLÈVE, Clemerson Mèrlin. Desafio da efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais.
Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 04 de Abril de 2009.
16
a garantia dos direitos sociais dependerá de um gasto orçamentário e quem detém
competência para a análise do orçamento e eleição das políticas públicas são o
Executivo e o Legislativo, e não o Judiciário41.
Diante disso, independentemente de estar determinando políticas públicas
ou efetivando direitos, o Judiciário estaria interferindo na esfera dos demais
poderes42. Assim, a problemática provocada pela interferência do Judiciário se
fundamenta especialmente na sua limitação: é de se perguntar até onde poderá o
Judiciário efetivar os direitos fundamentais sociais sabendo que tais normas
dependem de situações fáticas e jurídicas.
Diante desta questão, procedimentalistas e substancialistas travam uma
permanente discussão43. Com base na teoria desenvolvida por HABERMAS,
procedimentalistas tecem críticas à politização do Judiciário, defendendo que não
caberia ao judiciário interferir nas condutas do Executivo, pois, isso seria uma
deturpação do princípio da separação dos poderes. Caberia, portanto, ao Judiciário,
interpretar de forma procedimental a Constituição, preservando o procedimento
democrático.
Em contraposição aos procedimentalistas estão os que defendem que da
Constituição emana um agir político do Estado. Posição que se coaduna muito mais
com as constituições dirigentes que outorgam “ao judiciário, a responsabilidade –
compartilhada com os demais poderes públicos – de tornar efetivos os direitos
fundamentais”44. Nessa toada, principalmente em sociedades que dependem da
atuação Estatal para que possam deter condições mínimas de sobrevivência, o
papel
do
Judiciário
será
primordial
para
garantir
os
direitos
previstos
constitucionalmente.
Em análise da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.
4545, o relator à época, Ministro MELLO, tratou da questão da interferência do
Judiciário da seguinte forma:
41
BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Jurisdição Constitucional. Entre o
Constitucionalismo e a Democracia. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 181, 182.
42
Ibidem, p. 185 e 186.
43
OSLEN, op. cit., p. 272.
44
Ibidem, p. 277.
45
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n. 45 (2003). Relator: Ministro Celso de Mello. Distribuição em 15 de outubro de 2003.
Julgamento
em
29
de
abril
de
2004.
Disponível
em
17
No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da
Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos
serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se
mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos
46
constitucionais .
Corroborando com tal entendimento, a defesa da interferência pode se dar
de diversas maneiras. Primeiramente pela compreensão de que “para que se tenha
um eficaz controle de freios e contrapesos dos poderes Executivo e Legislativo, é
necessário também um crescimento dos papéis do judiciário”47. Assim, o controle
realizado pelo Judiciário deveria ser efetivo sobre os demais poderes, evitando
abusos pelo excesso de liberdade.
Outra questão a ser abordada trata da não aplicação plausível do orçamento
púbico. Como se sabe, frequentemente são definidos gastos que não refletem as
determinações da Constituição, sendo, portanto, considerados inconstitucionais.
Seria então mais uma razão para que houvesse a interferência do judiciário. Afinal,
embora o sistema constitucional seja construído sobre a confiança em uma
racionalidade dos gastos públicos, nem sempre esse pressuposto é levado a cabo
pelo poder público. Ou seja, interesses políticos, necessidades econômicas e, até
mesmo, determinações escusas podem provocar o gasto inadequado dos valores
arrecadados pelo Estado. Assim, valores que deveriam ser indicados para o custeio
da afirmação de direitos sociais poderiam ser indevidamente direcionados para
outros fins menos importantes. Nesse sentido, o Judiciário exerceria o contrapeso
necessário através da garantia de direitos individuais sociais pela via judicial.
Ou seja, diante disso, parece que não se pode vincular a efetivação dos
direitos fundamentais sociais à exclusiva exigência de previsão orçamentária. Afinal,
isso significaria restringir a eficácia desses direitos para além das questões fáticas
existentes. Em suma, parece certo que caiba, sim, ao Judiciário, se preciso for,
interferir na projeção orçamentária ou na definição de políticas públicas de forma a
http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=45&processo=45.
Sítio visitado em 27 de março de 2009.
46
Idem.
47
BARBOZA, op. cit., p. 187.
18
garantir a efetividade dos direitos fundamentais, especialmente no caso aqui
trabalhado, dos direitos fundamentais sociais48.
Caberá então aos magistrados, enquanto aplicadores do direito, avaliar as
possibilidades para concretização dos direitos que foram eleitos pela sociedade
brasileira, garantindo assim, a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Aparentemente corroborando com tal ideal está definição do §1 do Artigo 5º 49 da
Constituição Federal que define a aplicabilidade imediata das normas de direitos
fundamentais.
No caso do Brasil, o julgado paradigmático acerca da efetividade de direitos
frente à cláusula da Reserva do possível foi o já mencionado julgamento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45 que questionava um
veto presidencial em um dos incisos da lei orçamentária que previa a vinculação das
políticas públicas e sociais. À época, o relator Ministro MELLO, assim se manifestou,
referindo-se primeiramente em relação ao controle do Supremo frente às políticas
públicas:
Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de
modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida
a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos
econômicos, sociais e culturais - que se identificam, enquanto direitos de segunda geração,
com as liberdades positivas, reais ou concretas sob pena de o Poder Público, por violação
positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da
50
própria ordem constitucional.
Complementa, ainda, acerca da interferência do Judiciário na elaboração
das políticas públicas:
É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder
Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de
implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina,
Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e
Executivo.
48
Ibidem, p. 183-186.
“Art. 5º (...) § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata”.
50
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n. 45 (2003). Relator: Ministro Celso de Mello. Distribuição em 15 de outubro de 2003.
Julgamento
em
29
de
abril
de
2004.
Disponível
em
http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=45&processo=45.
Visitado em 27 de março de 2009.
49
19
Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder
Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os
encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal
comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos
impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de
51
conteúdo programático . (Grifo nosso).
Assim, parece certo que, se o Legislativo ou o Executivo deixarem de atuar
no que condiz às suas atribuições, caiba ao Judiciário a obrigação de intervir de
forma a garantir que as polícias públicas e sociais sejam aplicadas.
Todavia, também parece certo entender que as restrições aos direitos
fundamentais ocorram quando existirem critérios fáticos e externos que os restrinjam
obrigatoriamente. Tal é a justificação dos que criaram a cláusula da reserva do
possível – segundo a corrente, não se poder conceder o impossível e todos os
direitos possuem seus custos.
No mesmo voto acima citado, o Ministro MELLO trabalha a questão da
restrição aos direitos fundamentais pela cláusula da reserva do possível:
Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida
manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial
que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de
inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de
condições materiais mínimas de existência.
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a
ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo
Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações
constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder
resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de
52
um sentido de essencial fundamentalidade . (Grifo nosso).
Diante disso, as limitações para a aplicação da Cláusula se darão a partir da
análise de um binômio:
Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao
processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre
onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da
pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência
de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele
53
reclamadas.
51
Idem.
Idem.
53
Idem.
52
20
Em suma, dadas as obrigações vinculantes emanadas da Constituição
Federal, o Estado está obrigado a oferecer ao cidadão um mínimo de garantias que
lhe permitam a dignidade. Embora exista disputa nessa questão, sobretudo a partir
de um embate entre teses mais ou menos formalistas, parece evidente, segundo o
posicionamento do tribunal superior, que a interferência do Judiciário nas políticas
adotadas pelo Executivo e pelo Legislativo, no sentido de garantir a prestação de
direitos fundamentais, é algo certo. Segundo se vê do julgamento paradigma aqui
discutido, a opção do Judiciário não é cega, mas está atenta especialmente à
possível existência de “motivo justo objetivamente aferível54” para a negação de um
direito fundamental social.
Enquanto restrições específicas não se apresentarem, parece claro que será
esta a posição adotada pela experiência futura dos embates democráticos entre os
três poderes, especialmente naquilo que toca à questão da garantia dos direitos
fundamentais e da assim chamada reserva do possível.
CONCLUSÃO.
O tema em discussão, como se viu, é extremamente complexo.
O envolvimento de questões políticas que compõem a base do sistema
democrático e constitucional que devem constituir um Estado Democrático de Direito
é evidente: discute-se a garantia de direitos fundamentais, o sistema de separação
de poderes, a relação entre Estado e cidadão e, até mesmo, o sentido e alcance da
própria dignidade da pessoa humana. De qualquer forma, algumas conclusões
parecem vir à tona a partir de toda essa discussão.
Em primeiro lugar, na realidade de um país como o Brasil, é certo que o
Estado assume obrigações de garantir os direitos fundamentais do cidadão.
Todavia, não o faz mais na forma clássica das garantias negativas, evitando atuar
para proteger os direitos referentes à liberdade da pessoa humana. Como Estado
Social de Direito, o poder público está vinculado a uma atuação positiva no sentido
de permitir ao cidadão uma condição mínima de bem-estar social, especialmente a
partir do reconhecimento de que o indivíduo não é mais um homem genérico, mas
54
Idem.
21
deve ser visto na “especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de
ser em sociedade55”. E em que pese a existência de uma apontada crise do Estado
de bem estar social, a vinculação constitucional não pode ser ignorada pelo poder
público por qualquer nova opção política de tendência neoliberal, de forma que o
Estado, nos termos da Carta Magna, está obrigado a garantir aos seus cidadãos um
mínimo essencial para a construção da dignidade humana.
É certo, também, que algumas restrições aos direitos fundamentais são
necessárias. Afinal, sendo os direitos fundamentais heterogêneos, a convivência
comum de vários direitos gera a necessidade de limitação entre eles 56. Limitações
de ordem física e temporal são muito evidentes, mas também há limitações de outra
ordem que se aplicam à relação entre Estado e indivíduo e podem impedir a máxima
realização dos direitos sociais. A discussão do limite para a restrição desses direitos
vem logo e inexoravelmente, especialmente quando se entende que normas
constitucionais que estabelecem direitos fundamentais têm eficácia direta, o que
decorre de expressa manifestação do texto constitucional.
Dessa contradição surge a necessidade de equalizar a capacidade de
investimento social do Estado, determinada eminentemente pela arrecadação de
tributos, e obrigação de realização dos direitos sociais. E embora se possa
reconhecer um limite lógico a essa realização, determinado pela capacidade
financeira do poder público, parece evidente também que esse limite não pode
alcançar jamais os investimentos que tocam ao que se chama de “mínimo
existencial”. Apontado como o parâmetro chave para a constituição da dignidade
humana, esse é o limite final para a negativa de investimento do Estado.
Em um país que cresce com vigor e onde se quebram seguidamente os
recordes de arrecadação tributária, a garantia do mínimo essencial aos cidadãos
deve ser obrigação clara e evidente. Isso é o que decorre do próprio texto
constitucional e não fica sujeita a qualquer espécie de limitação política que venha a
ser adotada pelo poder público. Daí a função do Judiciário de evitar esse desvio
funcional da administração pública: como elemento chave do sistema de freios e
contrapesos característico de um regime democrático, o Judiciário precisa intervir
55
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Ed. Traduzida por Virgílio Afonso da
Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. P. 83.
56
Ibidem, p. 39.
22
para exigir que a administração pública racionalize adequadamente os seus gastos e
obedeça às determinações constitucionais no sentido de cumprir as obrigações de
um Estado Democrático e Social de Direito. Nesse sentido, a judicialização dos
direitos fundamentais não é um problema de intromissão do Judiciário nas esferas
do Executivo e do Legislativo. É sim a solução do problema de aplicação
inadequada, equivocada e, às vezes, tendenciosa, dos recursos arrecadados pela
administração pública. Afinal, é nesses termos que a Constituição Federal
estabelece limites ao orçamento: tendo em consideração uma administração que
gerencia racionalmente os custo e investimentos colocando em primeiro plano a
realização do indivíduo e não qualquer outro fim político que entenda adequado e
que, por vezes, infelizmente, se revela até mesmo escuso ou criminoso.
Nunca é demais lembrar que a consecução do indivíduo como ser humano é
o primeiro objetivo do Estado e não pode ser relegado à segunda instância
simplesmente porque “primeiro vem o indivíduo (...), que tem valor em si mesmo, e
depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o Estado é feito pelo indivíduo e este
não é feito pelo Estado57”. E mais: “em relação aos indivíduos, doravante, primeiro
vêm os direitos, depois os deveres; em relação ao Estado, primeiro os deveres,
depois os direitos58”.
57
58
Ibidem, p. 76.
Idem.
23
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Ed. Traduzida por Virgílio
Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Jurisdição Constitucional. Entre o
constitucionalismo e a democracia. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 7 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2006.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3 ed.
São Paulo: Saraiva, 2003.
HOLMES, Stephen. SUSTEIN,Cass. The Cost of Rights: Why Liberty depends on
Taxes. New York: W.W. Norton Company, 1999.
MALISKA, Marcos Augusto. O Direito à Educação e a Constituição. Porto Alegre:
Sergio Antônio, 2001.
OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais: Efetividade frente à
reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7 ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007.
SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos Fundamentais,
Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
SILVA, Luis Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais. Conteúdo essencial,
restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009.
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