1 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS FRENTE À RESERVA DO POSSÍVEL Larissa Fischer Sbrissia1 RESUMO O presente trabalho versa sobre a efetividade dos direitos fundamentais sociais frente às restrições impostas pela Reserva do Possível. Os direitos fundamentais são considerados núcleo essencial das constituições e do Estado Democrático de Direito. Todavia, especificamente os direitos fundamentais sociais, por serem considerados como direitos a prestações positivas, demandam uma atuação Estatal para sua efetivação. Neste contexto, trava-se o embate entre a efetividade das normas constitucionais frente as limitações impostas pelo orçamento. Assim, são abordados temas como contexto de positivação dos direitos nas Constituições, teorias acerca das restrições e judicialização dos direitos fundamentais sociais. PALAVRAS- CHAVE – Direitos Fundamentais – Estado Democrático de Direito – Efetividade das Normas Constitucionais – Reserva do Possível. INTRODUÇÃO Desde o reconhecimento dos direitos fundamentais sociais, foi expressamente previsto que ao Estado caberia a obrigação de garantir aos seus cidadãos um mínimo de condições essenciais exigidas para a sua existência com dignidade. Ao mesmo tempo, como não poderia ser diferente, em razão destes direitos exigirem uma prestação positiva estatal, surgiu também a discussão acerca dos limites das obrigações que devem ser cumpridas e de que forma o Estado deve implementá-las. A própria natureza dos direitos fundamentais, sobretudo a sua característica de heterogeneidade, implica a necessidade de restrições aos direitos. Essa restrição é essencial, mas precisa ser necessariamente corrigida e adequada para que não implique em esvaziamento de normatividade aos textos constitucionais que prevêem 1 Acadêmica do 10° período do Curso de Direito da Escola de Direito e Relações Internacionais das Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil. 2 tais direitos. Especialmente no caso dos direitos sociais que, ao demandarem uma atuação positiva do Estado para sua realização, são especialmente sensíveis às restrições. Essa questão levou a doutrina a muitos debates, mas especialmente, deu surgimento a teorias que pretendem determinar tais limites ou restrições e contrabalançar as fontes de recurso e arrecadação do Estado com os a necessidade de investimentos sociais. É nesse contexto que surge a teoria da reserva do possível. O Estado somente está obrigado a oferecer a garantia de direitos fundamentais – especialmente no caso daqueles que tomam a forma positiva – no limite das suas possibilidades, especialmente financeira. Por isso, o investimento a ser feito pelo Estado estaria limitado àquilo que foi determinado no seu orçamento, dentro dos estritos limites determinados pela Constituição. Atualmente, a discussão envolve ainda questões judiciais que têm apontado no sentido de estabelecer, através de interpretações pontuais ou sistemáticas, quais são os limites a serem indicados ao Executivo para a obrigação de garantir direitos fundamentais sociais. Assim, o objetivo do presente trabalho é, inicialmente, apresentar o embate travado entre o conceito de reserva do possível e a efetivação dos direitos sociais. Procura-se, ainda, contextualizar a cláusula da Reserva do Possível, passando pela análise das restrições aos direitos fundamentais e cotejar o conceito de mínimo existencial. Finalmente, uma breve discussão da posição do Supremo Tribunal Federal tentará indicar em que sentido segue a assim chamada judicialização dos direitos fundamentais. Tudo isso pretendendo concluir pela impossibilidade de restrição ao mínimo existencial. 1 A RESERVA DO POSSÍVEL A influência da doutrina neoliberal no constitucionalismo é clara ao se detectar que nunca se falou tanto em restrições econômicas e escassez na constituição, defesa e realização dos direitos fundamentais como nas questões atuais. Vê-se, inclusive, decisões do Supremo Tribunal Federal2 com efeitos modulados de forma a não atingir o orçamento público, mesmo que uma norma tenha sido considerada 2 Por exemplo os Recursos Extraordinários n. 556.6644, 559.882, 559.943, e 560.626. 3 inconstitucional durante todo o seu período de vigência. É assim que surge o conceito de reserva do possível, como uma forma de tentar adequar a realização de direitos à realidade fática. Ao que se sabe, a construção teórica da reserva do possível tem origem na Alemanha na década de 70. O conceito trabalha com o fato de que a efetividade dos direitos sociais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, especialmente quando se tratarem de direitos fundamentais dependentes de atuação positiva. A partir desta concepção, a concretização dos direitos sociais estaria relacionada à “disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo da discricionariedade das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público.” 3 O caso paradigma que saltou aos olhos dos doutrinadores na Alemanha foi a disputa versando sobre o direito de acesso ao ensino superior e as restrições fáticas existentes4. A doutrina ainda não estabeleceu a melhor forma de tratamento a ser concedida à Reserva do Possível, seja como princípio, seja como cláusula ou como postulado. Para OLSEN5, parece inadequado concebê-la como princípio, visto que não prescreve determinado estado de coisa a ser atingida e também porque não se trata de um mandado de otimização. Por mais que para sua aplicação dependa da ponderação, somente este elemento não parece razoável para considerá-la como princípio. É por isso que as expressões “cláusula” ou “postulado” realmente parecem mais adequadas. Assim, conforme bem explicitado por SARLET e FIGUEIREDO, a reserva do possível, como cláusula ou postulado, ...apresenta pelo menos uma dimensão tríplice que abrange a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais, b) disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima correlação com a distribuição de receitas e competências tributárias e (...) c) na perspectiva do titular do direito a prestações 6 sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação. 3 SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos Fundamentais, Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 29 4 Idem 5 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais: Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008.p. 200 6 SARLET, FIGUEIREDO, op.cit., p. 30 4 Diante disso, para a compreensão deste conceito, o primeiro passo será o estudo dos custos dos direitos que se pretende garantir, bem como a existência de uma obrigação de financiamento por toda a sociedade. 2 GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS VERSUS LIMITES DO ORÇAMENTO: UM EMBATE COMPLEXO O Estado necessita ter receitas para cumprir suas obrigações sociais, pois as garantias prestacionais dependem de investimentos consideráveis. 7 Na doutrina de SUSTEIN e HOLMES, todos os direitos, desde os que dependem de atuação positiva até aqueles negativos ou de defesa, implicam custos para o Estado. E, diante disso, nenhum direito será absoluto, mas dependerá dos recursos econômicos do Estado para serem realizados. Os mesmos autores concluem que somente existirão direitos onde o fluxo orçamentário os previr. 8 Já que os bens são escassos, realizar direitos significa realizar escolhas de alocação de recursos. Todavia, tal teoria pressupõe uma influência econômica sobre as questões internas jurídicas, trazendo a problemática da escassez como um elemento intrínseco aos direitos fundamentais como um limite imanente. Ora, se o objetivo do Estado Democrático de Direito é garantir os direitos fundamentais, como inverter a posição no sentido de aplicá-los somente quando houver orçamento à disposição? O orçamento Estatal deve ser previsto para efetivar os direitos fundamentais e não o contrário. A análise econômica pode e deve contribuir para a justiça social, afinal, isto será o objetivo maior do Estado, todavia, não há como ratificar que os direitos fundamentais devem ficar reféns da escassez porque, neste caso, haverá uma inversão dos papéis. A sociedade financia tais prestações por meio do pagamento dos tributos, e ao orçamento caberá uma melhor previsão de forma a atender o interesse de seus demandados, afinal, desperdício de recursos públicos gera injustiça. 7 MALISKA, Marcos Augusto. O Direito à Educação e a Constituição. Porto Alegre: Sergio Antônio, 2001.P. 48. 8 HOLMES, Stephen. SUSTEIN,Cass. The Cost of Rights: Why Liberty depends on Taxes. New York: W.W. Norton Company, 1999. P. 94 5 Aqui, verifica-se, portanto, a importância do conceito de deveres fundamentais como forma de concretização dos direitos fundamentais. Além da previsão orçamentária, cumpre observar a necessidade de toda a sociedade cumprir com seu papel nos deveres sociais, como, por exemplo, o pagamento de tributos. CANOTILHO9 bem assim observa ao tratar do tema, “os deveres fundamentais podem ser compreendidos como o outro lado dos direitos fundamentais”. 10 Todavia, deve ser afastada a idéia de que para se proteger um direito, necessariamente deveria ser cumprido um dever. Os deveres podem ser balizados por ideais de solidariedade e fraternidade.11 O ideal de solidariedade está diretamente relacionado ao ideal de comunidade, de pertencer e partilhar obrigações dentro de um grupo social. De acordo com COMPARATO,12 é através dela que se complementa e aperfeiçoa a liberdade, igualdade e segurança. Isso porque, ao contrário de colocar as pessoas umas diante das outras como pressupõem liberdade e a igualdade, a solidariedade as reúne em uma mesma sociedade. Todavia, é certo que uma norma jurídica não pode prescrever o impossível. Diante disso, a importância da Reserva do possível para o estudo do direito é o fato de que, apesar de ser exterior a ele e não determinar seu conteúdo, poderá afetar diretamente sua eficácia. E quais seriam as restrições a estas imposições fáticas? Na tentativa de uma solução a este impasse entre limitação orçamentária versus as garantias fundamentais, a doutrina desenvolveu o conceito de mínimo existencial como sendo o núcleo dos direitos sociais. Dessa forma, torna-se impossível a aplicabilidade da cláusula da “Reserva do Possível” de forma a não conceder o mínimo existencial. Ou seja, a razoabilidade e proporcionalidade devem reger sua observância e efetividade. Ao lecionar sobre o tema, especialmente sobre o fornecimento de medicamentos, BARROSO traduziu a questão da proporcionalidade ao definir que: 9 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2006. P. 531 10 Ibidem, p. 532 11 Ibidem, p. 536 12 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 580. 6 Nas discussões travadas em ações coletivas abstratas – para a modificação das listas – o judiciário só deve determinar que a Administração forneça medicamentos de eficácia comprovada, excluindo-se os experimentais e alternativos. Ademais, o judiciário devem como regra, optar por substâncias disponíveis no Brasil e por fornecedores no território nacional. Por fim, dentre os medicamentos de eficácia comprovada, deve privilegiar aqueles 13 de menor custo, como os genéricos. Assim, não será possível que em nome da Reserva do Possível, o comando constitucional seja destituído de eficácia, todavia, também não será razoável defender que o judiciário poderá, em qualquer situação, independentemente do pedido e do bem a ser protegido, comprometer toda uma política pública sendo que existiriam outras possibilidades mais razoáveis para a realização de tais direitos. 3 BUSCA DE UM CONCEITO DE MÍNIMO EXISTENCIAL Resta claro que os direitos sociais são essenciais para o bom desenvolvimento social. Essas necessidades fundamentais são determinadas pela sociedade e está intimamente relacionada à vida e à dignidade da pessoa humana. Por este motivo, pela perspectiva objetiva, estes direitos serão caracterizados como núcleo axiológico da Constituição. Deixar de atendê-los pode causar na sociedade um sentimento de injustiça. E, nesse sentido, compreender a noção de mínimo existencial será essencial para exigir tais prestações do Estado de forma razoável. Se os direitos sociais estão fundamentados no conceito de dignidade da pessoa humana, estudar o mínimo existencial é estabelecer os limites impostos pela Constituição como garantias sociais mínimas aos indivíduos para que tenham realizada a sua própria dignidade. Trata-se do desenvolvimento lógico e direto do núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, núcleo este protegido pela intervenção estatal. Além disso, o fato da garantia ao mínimo existencial não estar reconhecida expressamente no texto constitucional, não significa que o constituinte deixou de considerar tal direito. Na verdade ele foi muito além quando previu as garantias sociais. 13 BARROSO, Luís Roberto. O fornecimento gratuito de medicamentos e a judicialização excessiva. Disponível em www.migalhas.com.br/mostra_noticias_articuladas. Acessado em 21/04/2009. 7 A discussão passa então para a compreensão sobre o que significa este mínimo. Doutrinadores alemães14 deram início, após a entrada em vigor da Lei Fundamental de 1949, às pesquisas acerca do conceito de mínimo existencial. Entendem que estas condições mínimas integram o conteúdo essencial do Estado Social de Direito. Todavia, tal dignidade propriamente dita não é passível de quantificação, dependerá de condições temporais, espaciais e ainda do padrão sócio-econômico vigente.15 O núcleo fundamental de tal conceito é o fato de que a vida humana não pode ser reduzida à mera existência. Esta existência deve ser digna, muito além da mera sobrevivência física e do limite da pobreza absoluta. Como exemplo, o óbvio: não deixar alguém sucumbir pela fome não é o suficiente. O indivíduo necessita de conhecimento para a fruição de todos os direitos fundamentais de forma a se desenvolver plenamente, foco este que pode ser dado primeiramente pelas condições básicas de vida como moradia, saúde e complementado pela educação. 16 BARCELLOS17 buscou nas teorias de RAWLS e WALZER o conceito de mínimo existencial. Segundo a autora, RAWLS propõe uma teoria liberal de justiça. Acredita em um novo pacto social no qual os homens deixam de lado suas posições sociais, riquezas e profissões e estabelecem novas regras sociais que prevêem que todos detêm condições iguais de participação na sociedade. Este estado do indivíduo seria a cobertura por um “véu de ignorância” fundando nos princípios da igualdade ao sistema de liberdades básicas, desigualdades econômicas e sociais distribuídas de forma a garantir a todos a expectativa de benefícios e oportunidades. Na teoria de RAWLS, trabalha-se com o conceito de mínimo existencial em dois momentos. Primeiramente como uma condição pré-existente aos princípios da diferença e do arbítrio do legislador. Ainda de acordo com a autora, o filósofo traduz o princípio da diferença em três elementos: maximização do bem-estar dos menos 14 Especialmente Otto Bachof, que considerava que o princípio da dignidade da pessoa humana não reclama apenas a garantia de liberdade, mas, também, um mínimo de segurança social. SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: Algumas aproximações. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2008, p. 19. 15 Ibidem, p. 20. 16 Ibidem, p. 21 – 24 17 BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia Jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P.126. 8 favorecidos, posições e funções abertas a todos e igualdade equitativa de oportunidades. Estes elementos determinariam um fim estabelecido pelo constituinte e dirigido ao legislador. Neste ponto, o conceito de mínimo existencial seria um pressuposto lógico da construção destes princípios. Em um segundo momento, irá distinguir dentro do princípio da diferença um conteúdo mínimo e este mínimo terá status de direito subjetivo constitucional. A importância disso é que esse mínimo deixa de ser uma vinculação à atuação do legislador para se tornar um direito constitucionalmente assegurado, independente da intervenção legislativa.18 Essa tese, aliás, vem corroborar o fato de que o mínimo existencial não precisaria estar taxativamente expresso na Constituição Federal. ALEXY também trabalha com o conceito do mínimo sopesando os princípios da dignidade da pessoa humana, de um lado, e da separação dos poderes, de outro. Para o autor, “direitos individuais podem ter peso maior que razões políticofinanceiras”19 e, além disso, para o autor, o princípio da separação dos poderes e vinculação orçamentárias não são absolutos: são meios para atingir fins constitucionais. Complementa seu raciocínio, ainda, afirmando que o conteúdo da dignidade humana é importante demais para ser deixado a encargo do legislador. Já OLSEN20 irá utilizar o conceito apresentado por FLORENZANO de que o mínimo existencial faz referência ao disposto no art. 7º, IV da Constituição Federal 21 que prevê tudo aquilo que o salário mínimo deve envolver, “... necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, educação, alimentação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Para BARCELLOS, este conceito será um pouco mais restritivo “o mínimo existencial que ora se concebe é composto de quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, saúde básica, assistência aos desamparados e acesso à justiça”22. 18 Ibidem, p. 127. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Ed. Traduzida por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008 p. 513 20 OLSEN, op. cit., p. 316. 21 “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;” 22 BARCELLOS, op. cit., p. 258. 19 9 Enfim, embora possa variar na doutrina de acordo com o alcance, parece possível reconhecer um núcleo mínimo de direitos sociais que devem ser reconhecidos para o cidadão para que possa ele se dar por devidamente garantido diante do Estado. Determinações constitucionais nesse sentido existem várias espalhadas no texto constitucional parecendo impossível reconhecer que essa não seja uma vinculação real ao poder público. 4 AS RESTRIÇÕES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Na tentativa de proteção aos direitos fundamentais, frequentemente ocorrerão choques entre eles. Pensando nesta problemática, Virgílio Afonso da Silva23 desenvolveu um trabalho sobre as restrições dos direitos fundamentais que foi desenvolvido em duas grandes partes: primeiramente, contrapõe a teoria externa e interna, há tempos utilizada pelos civilistas para justificar a possibilidade de restrições, e, em um segundo momento, analisa a questão da proporcionalidade. A compreensão da diferença entre a teoria interna e externa passa, em princípio, pelo estabelecimento das definições terminológicas utilizadas por elas. Normalmente, as palavras “limites” e “restrições” são utilizadas como sinônimos, o que incorre em profundo erro conforme define VIRGÍLIO DA SILVA. Segundo o autor, limites são processos internos, não influenciados por processos externos. Já as restrições não influenciam no conteúdo do direito, mas, simplesmente, restringem seu exercício em um determinado caso concreto, não afetando sua validade. Diante disso, limites imanentes não podem conviver com a expressão “restrições de direitos” ou “sopesamento”, pois, como será melhor detalhado a seguir, para a teoria interna que trabalha com o conceito de limites, não há como se pensar em influências externas. Todavia, tais influências são pressupostos para a restrição ou sopesamento de princípios defendidos pela teoria externa. 23 SILVA, Luis Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. P. 126-182. 10 4.1 Teoria Interna Para a teoria interna, o processo de definição de limites ao direito é algo interno a ele. Isso significa que não há interferência de aspectos externos, e, portanto, não há a possibilidade de existência de colisão entre direitos. A idéia central pode ser traduzida pela frase de PLANIOL e RIPERT 24 de que “o direito cessa onde o abuso começa”. Assim, como para a teoria interna não existem influências externas, estes direitos terão sempre a estrutura de regras. A norma será sempre aplicada quando a hipótese prevista por ela ocorrer, e, diante disso, terá validade estrita. O desafio da teoria será de demonstrar como a limitação a estes direitos pode ocorrer a partir “de dentro” destes próprios direitos. Para isso, se utilizará dos limites imanentes ou da teoria institucional.25 Limites imanentes são aqueles limites definidos pela própria Constituição. Um exemplo de utilização da teoria interna trazido por VIRGÍLIO DA SILVA é o caso da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no caso “Ellwanger” em que, ao tratar dos limites do exercício dos direitos fundamentais, o então Ministro CORRÊA recorreu à idéia dos limites imanentes ao dizer que “como sabido, tais garantias, (liberdade de expressão e pensamento) como de resto as demais, não são incondicionais, razão pela qual devem ser utilizadas de forma harmônica, observados os limites traçados pela própria Constituição Federal em seu art. 5º, §2º, primeira parte”26. Diante disso, a expressão limites vem a calhar já que não se trata de restrições, mas de limites impostos pela própria Constituição. Já a Teoria Institucional, em breve explanação, irá traduzir a preocupação com os limites dos direitos fundamentais e com seu conteúdo essencial. Utiliza-se da teoria de HÄBERLE de que os direitos fundamentais de liberdade deixam de ser exclusivamente individuais para se tornarem a liberdade de todos. A liberdade será algo aplicado a partir do direito, e, portanto, não se trata de algo natural. Diante 24 Propuseram intensos debates sobre a teoria interna e externa na França; In Planiol, Marcelo. Ripert, Georges, Traité élementaire de droit civil, vol.II,10 ed. Paris: LGDJ, 1926, p. 298, Apud SILVA, Luis Virgílio Afonso da, Direitos fundamentais. Conteúdo essencial, restrições, eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. P. 127. 25 SILVA, Luis Virgílio Afonso da, Direitos fundamentais... P. 130. 26 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82424/02. Relator original Min. Moreira Alves. Entrada em 12 de setembro de 2002. Julgamento em 17 de setembro de 2003. 11 disso, a teoria de HÄBERLE também é um exemplo de teoria interna já que a Liberdade como instituto seria criada pela atividade Estatal que não a restringe, apenas a delimita.27 Portanto, trabalhar com a teoria interna é considerar que não existem restrições externas a direitos. Além disso, para esta teoria não pode haver uma distinção entre o conteúdo prima facie de um direito e o conteúdo definitivo de direitos fundamentais, assim, não existiria o sopesamento entre os princípios. Contrária a esta teoria estão as explanações da teoria externa que será abordada a seguir. 4.2 Teoria Externa A teoria externa está diretamente relacionada à teoria dos princípios desenvolvida por Ronald DWORKIN, seguido por ALEXY 28. Conferir normatividade aos princípios e estabelecer a distinção entre regras é um dos maiores desafios à doutrina. Princípios determinam valores, um fim. Os direitos fundamentais são garantidos por uma norma que consagra um direito prima facie. Para ALEXY, “princípios exigem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes, neste sentido, eles não contém um mandamento definitivo, mas apenas prima facie.”29 Isso significa que, em determinados casos, aquilo que um princípio determina pode ser afastado por razões antagônicas. O critério prima facie de um princípio pode ser fortalecido por uma carga argumentativa a favor de alguns e em detrimento de outros30. A solução entre a aplicabilidade da teoria interna ou externa para ALEXY pode ser solucionada ao se partir do pressuposto de que as normas de direitos fundamentais são princípios ou regras, se forem consideradas princípios refuta-se a teoria interna, se forem consideradas normas, refuta-se a teoria externa.31 27 Ibidem, p. 133- 137. BARROSO, Luís Roberto. O fornecimento gratuito de medicamentos e a judicialização excessiva. Disponível em www.migalhas.com.br/mostra_noticias_articuladas. Acessado em 21/04/2009. 29 ALEXY, op. cit, p. 104 30 Ibidem, p. 105 e 106. 31 Ibidem, p. 78. 28 12 De qualquer forma, o ponto a ser trabalhado é o fato de que a colisão de princípios poderá gerar uma restrição a um deles. A definição do conteúdo destes direitos será dada a partir das condições fáticas existentes e, assim, as restrições poderão se dar por meio de regras ou por meio de princípios. Ainda para VIRGÍLIO DA SILVA, algumas regras podem proibir condutas que seriam permitidas por princípios, e, com isso, a regra restringiria um princípio. Apesar de considerar que as regras traduzem princípios e que, portanto, ao final o que se teria seria sempre um choque entre princípios, o autor acredita que trabalhar com esta análise seria genérico demais. Daí que VIRGÍLIO DA SILVA prefere analisar a questão da restrição dos direitos fundamentais por meio de regras, de forma a diferenciá-la das restrições baseadas em princípios.32 Diante desta explanação, a restrição ocasionada entre colisão de princípios, ocorreria somente quando não houver previsão infraconstitucional, ou seja, quando não houver uma regra que restrinja um deles. Nesse caso, caberá então ao magistrado sopesá-los por meio de decisões judiciais33. Esse sopesamento pode então ser compreendido como o caminho realizado para que um direito prima facie se torne um direito definitivo nos casos concretos.34 Diferente deste critério de sopesamento será a aplicação da regra da proporcionalidade. Trata-se a proporcionalidade de uma regra especial, conforme descreve VIRGÍLIO DA SILVA35, porque irá impor um dever definitivo não sujeito às condições fáticas e jurídicas existentes. A aplicação da proporcionalidade ocorre quando, no momento de elaboração do texto legal, e após a realização do sopesamento de princípios, o legislador propõe uma regra que restrinja direitos fundamentais. Quando esta regra for questionada em juízo, aplica-se a regra da proporcionalidade. As variáveis a serem consideradas pelo juízo ao se deparar com a necessidade de aplicar a proporcionalidade devem ser: (a) eficiência das medidas ao se realizar o objetivo; e (b) definição do meio menos gravoso ou que menos 32 SILVA, op. cit., p. 141 e 142. Ibidem, p.143 34 Ibidem, p. 165 35 Ibidem, p. 168 33 13 restrinja direitos fundamentais, ou seja, adequação e necessidade.36 Diante disso, não haverá como fugir da subjetividade do juiz. E ainda que a tentativa de aplicação de normas matemáticas acabe proporcionando uma maior simplicidade para a resolução dos possíveis casos de restrições, muitas vezes existem soluções alternativas, que não são mais adequadas, mas que restringem menos os direitos fundamentais. Ponto essencial na discussão acerca da proporcionalidade será avaliar o limite se sua aplicação, ou seja, até que ponto um direito poderá ser restringido para que não se caracterize violação. Para solução desta questão será necessário o desenvolvimento do conceito de conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Este conteúdo poderá se configurar de diversas formas, todavia, para o presente trabalho pretende-se correlacionar a utilização do critério de sopesamento e proporcionalidade em relação apenas aos direitos fundamentais sociais. Utilizando-se da definição de suporte fático dos direitos fundamentais percebe-se que aos direitos sociais cumpre uma abordagem diversa daquela utilizada para a compreensão das assim chamadas liberdades. Isto porque a restrição se dará de forma diferenciada: não se questionará a necessidade do Estado se manter inerte para não interferir nas relações; o problema será exatamente o oposto, com o Estado permanecendo inerte quando deveria agir. De qualquer forma, conclui-se, portanto, que a restrição aos direitos sociais somente pode ser pensada até o limite do núcleo destes direitos que pode ser conhecido como mínimo existencial para a dignidade da pessoa humana. Somente assim cria-se uma linha de divisão entre a possibilidade de restrição e a violação a este direito. Adiante será melhor abordado o conceito de mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais sociais e como limitador à possíveis restrições aos direitos fundamentais. No Brasil, em relação às normas de Direitos Fundamentais Sociais, o constituinte de 1988 previu para alguns casos restrições expressas e, em outros casos, não as estabeleceu. No primeiro caso, utilizou-se das expressões “na forma da constituição”, “na forma da lei” e “nos termos da lei” ao invés de detalhar os 36 Ibidem, p. 172. 14 meios de sua exeqüibilidade e proteção. Diante disso, deixou a cargo do legislador a interferência no conteúdo dos direitos. Todavia, tal atuação não poderá ser ilimitada. Exemplo disso fica a cargo do art. 6º da Constituição Federal, nele está previsto que a proteção aos direitos fundamentais se dará “na forma da Constituição”. Diante disso, para sua aplicabilidade deverão ser observadas todas as normas previstas no título II, bem como o capítulo da Ordem Social da própria Carta Magna. Retornando aos tipos de reservas previstas pela constituição, nota-se, ainda, a existência de direitos sociais que não possuem reservas expressas pelo constituinte que deixou, portanto, de prever ou traçar as restrições. Isso não significa que toda a autonomia se transfira ao legislador na exata medida em que ele deve estar vinculado ao texto constitucional. Um exemplo desta cláusula sem reservas foi a inclusão do termo “moradia” trazido pela Emenda Constitucional 26 ao artigo 6º. Mesmo não tendo maiores especificações sobre as limitações que deveriam ser aplicadas a ela, todas as normas que desrespeitavam a proteção à moradia foram revogadas. 37 Diante da compreensão de que existem as possibilidades de restrições aos Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988, resta estabelecer que a qualquer restrição dessa espécie está submetida ao princípio da proporcionalidade, ou seja: “uma restrição aos direitos fundamentais somente estará em conformidade com a proporcionalidade se, simultaneamente, for apta para fins a que se destina, for o menos gravosa possível para que estes fins sejam atingidos, e cause benefícios superiores aos malefícios eventualmente implicados”38. Assim, a judicialização dos direitos fundamentais está diretamente relacionada à teoria externa apresentada. 5 A JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Intimamente relacionada à cláusula da reserva do possível está a judicialização dos direitos fundamentais. Conforme disposto no artigo 5º, XXXV da 37 38 OLSEN, op. cit., p. 163. Ibidem, p. 170. 15 Constituição Federal39, sempre que houver lesão ou ameaça a algum direito, o judiciário poderá ser acionado. Trata-se do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, fundamento básico de um Estado Democrático de Direito. Assim, considerando os direitos fundamentais como direitos subjetivos, terá o cidadão o direito de exigir do Estado, judicialmente, a concretização das garantias constitucionais. Para CLÉVE40, a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais desempenha três funções: (a) primeiramente, a função de defesa do indivíduo contra a ingerência do poder público que pode tentar impedir a satisfação de um direito fundamental; (b) em segundo lugar, a função de prestação, prevendo que o indivíduo poderá demandar a realização do objeto do direito fundamental; (c) finalmente, a função de não discriminação, significando que o indivíduo deve ter o direito aos bens e serviços necessários à satisfação dos direitos fundamentais. Em uma condição ótima, o Estado, na medida em que está vinculado a realizar os objetivos constitucionais – e entre eles aquelas disposições referentes aos direitos fundamentais sociais –, se obriga à prestação positiva da série de condições mínimas à garantia da dignidade da pessoa humana. Todavia, como é sabido, nem sempre o Estado consegue fazê-lo como deveria, o que se justifica segundo diversas explicações de ordens variadas: falta de condições materiais, falta de interesse político, descabimento social, etc. Em um país em desenvolvimento como o Brasil, são notórias as falhas dessa ordem. De qualquer forma, considerando, portanto, que a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais faz com que o cidadão possa agir ativamente de forma a obter tutela do poder judiciário, tem-se que o judiciário pode passar a ser garantidor dos direitos fundamentais, principalmente quando não há a atuação do executivo. Tratase de prerrogativa do Estado Democrático de Direito. Todavia, a cláusula da reserva do possível pode ser visualizada como óbice à concretização destes direitos por meio do Poder Judiciário. Passa-se ainda, a ser questionada a legitimidade democrática da atuação do Judiciário nesse sentido, pois 39 “Art. 5º (...)XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”. 40 CLÈVE, Clemerson Mèrlin. Desafio da efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 04 de Abril de 2009. 16 a garantia dos direitos sociais dependerá de um gasto orçamentário e quem detém competência para a análise do orçamento e eleição das políticas públicas são o Executivo e o Legislativo, e não o Judiciário41. Diante disso, independentemente de estar determinando políticas públicas ou efetivando direitos, o Judiciário estaria interferindo na esfera dos demais poderes42. Assim, a problemática provocada pela interferência do Judiciário se fundamenta especialmente na sua limitação: é de se perguntar até onde poderá o Judiciário efetivar os direitos fundamentais sociais sabendo que tais normas dependem de situações fáticas e jurídicas. Diante desta questão, procedimentalistas e substancialistas travam uma permanente discussão43. Com base na teoria desenvolvida por HABERMAS, procedimentalistas tecem críticas à politização do Judiciário, defendendo que não caberia ao judiciário interferir nas condutas do Executivo, pois, isso seria uma deturpação do princípio da separação dos poderes. Caberia, portanto, ao Judiciário, interpretar de forma procedimental a Constituição, preservando o procedimento democrático. Em contraposição aos procedimentalistas estão os que defendem que da Constituição emana um agir político do Estado. Posição que se coaduna muito mais com as constituições dirigentes que outorgam “ao judiciário, a responsabilidade – compartilhada com os demais poderes públicos – de tornar efetivos os direitos fundamentais”44. Nessa toada, principalmente em sociedades que dependem da atuação Estatal para que possam deter condições mínimas de sobrevivência, o papel do Judiciário será primordial para garantir os direitos previstos constitucionalmente. Em análise da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 4545, o relator à época, Ministro MELLO, tratou da questão da interferência do Judiciário da seguinte forma: 41 BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Jurisdição Constitucional. Entre o Constitucionalismo e a Democracia. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 181, 182. 42 Ibidem, p. 185 e 186. 43 OSLEN, op. cit., p. 272. 44 Ibidem, p. 277. 45 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45 (2003). Relator: Ministro Celso de Mello. Distribuição em 15 de outubro de 2003. Julgamento em 29 de abril de 2004. Disponível em 17 No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos 46 constitucionais . Corroborando com tal entendimento, a defesa da interferência pode se dar de diversas maneiras. Primeiramente pela compreensão de que “para que se tenha um eficaz controle de freios e contrapesos dos poderes Executivo e Legislativo, é necessário também um crescimento dos papéis do judiciário”47. Assim, o controle realizado pelo Judiciário deveria ser efetivo sobre os demais poderes, evitando abusos pelo excesso de liberdade. Outra questão a ser abordada trata da não aplicação plausível do orçamento púbico. Como se sabe, frequentemente são definidos gastos que não refletem as determinações da Constituição, sendo, portanto, considerados inconstitucionais. Seria então mais uma razão para que houvesse a interferência do judiciário. Afinal, embora o sistema constitucional seja construído sobre a confiança em uma racionalidade dos gastos públicos, nem sempre esse pressuposto é levado a cabo pelo poder público. Ou seja, interesses políticos, necessidades econômicas e, até mesmo, determinações escusas podem provocar o gasto inadequado dos valores arrecadados pelo Estado. Assim, valores que deveriam ser indicados para o custeio da afirmação de direitos sociais poderiam ser indevidamente direcionados para outros fins menos importantes. Nesse sentido, o Judiciário exerceria o contrapeso necessário através da garantia de direitos individuais sociais pela via judicial. Ou seja, diante disso, parece que não se pode vincular a efetivação dos direitos fundamentais sociais à exclusiva exigência de previsão orçamentária. Afinal, isso significaria restringir a eficácia desses direitos para além das questões fáticas existentes. Em suma, parece certo que caiba, sim, ao Judiciário, se preciso for, interferir na projeção orçamentária ou na definição de políticas públicas de forma a http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=45&processo=45. Sítio visitado em 27 de março de 2009. 46 Idem. 47 BARBOZA, op. cit., p. 187. 18 garantir a efetividade dos direitos fundamentais, especialmente no caso aqui trabalhado, dos direitos fundamentais sociais48. Caberá então aos magistrados, enquanto aplicadores do direito, avaliar as possibilidades para concretização dos direitos que foram eleitos pela sociedade brasileira, garantindo assim, a manutenção do Estado Democrático de Direito. Aparentemente corroborando com tal ideal está definição do §1 do Artigo 5º 49 da Constituição Federal que define a aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais. No caso do Brasil, o julgado paradigmático acerca da efetividade de direitos frente à cláusula da Reserva do possível foi o já mencionado julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45 que questionava um veto presidencial em um dos incisos da lei orçamentária que previa a vinculação das políticas públicas e sociais. À época, o relator Ministro MELLO, assim se manifestou, referindo-se primeiramente em relação ao controle do Supremo frente às políticas públicas: Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais - que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da 50 própria ordem constitucional. Complementa, ainda, acerca da interferência do Judiciário na elaboração das políticas públicas: É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. 48 Ibidem, p. 183-186. “Art. 5º (...) § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. 50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45 (2003). Relator: Ministro Celso de Mello. Distribuição em 15 de outubro de 2003. Julgamento em 29 de abril de 2004. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=45&processo=45. Visitado em 27 de março de 2009. 49 19 Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de 51 conteúdo programático . (Grifo nosso). Assim, parece certo que, se o Legislativo ou o Executivo deixarem de atuar no que condiz às suas atribuições, caiba ao Judiciário a obrigação de intervir de forma a garantir que as polícias públicas e sociais sejam aplicadas. Todavia, também parece certo entender que as restrições aos direitos fundamentais ocorram quando existirem critérios fáticos e externos que os restrinjam obrigatoriamente. Tal é a justificação dos que criaram a cláusula da reserva do possível – segundo a corrente, não se poder conceder o impossível e todos os direitos possuem seus custos. No mesmo voto acima citado, o Ministro MELLO trabalha a questão da restrição aos direitos fundamentais pela cláusula da reserva do possível: Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de 52 um sentido de essencial fundamentalidade . (Grifo nosso). Diante disso, as limitações para a aplicação da Cláusula se darão a partir da análise de um binômio: Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele 53 reclamadas. 51 Idem. Idem. 53 Idem. 52 20 Em suma, dadas as obrigações vinculantes emanadas da Constituição Federal, o Estado está obrigado a oferecer ao cidadão um mínimo de garantias que lhe permitam a dignidade. Embora exista disputa nessa questão, sobretudo a partir de um embate entre teses mais ou menos formalistas, parece evidente, segundo o posicionamento do tribunal superior, que a interferência do Judiciário nas políticas adotadas pelo Executivo e pelo Legislativo, no sentido de garantir a prestação de direitos fundamentais, é algo certo. Segundo se vê do julgamento paradigma aqui discutido, a opção do Judiciário não é cega, mas está atenta especialmente à possível existência de “motivo justo objetivamente aferível54” para a negação de um direito fundamental social. Enquanto restrições específicas não se apresentarem, parece claro que será esta a posição adotada pela experiência futura dos embates democráticos entre os três poderes, especialmente naquilo que toca à questão da garantia dos direitos fundamentais e da assim chamada reserva do possível. CONCLUSÃO. O tema em discussão, como se viu, é extremamente complexo. O envolvimento de questões políticas que compõem a base do sistema democrático e constitucional que devem constituir um Estado Democrático de Direito é evidente: discute-se a garantia de direitos fundamentais, o sistema de separação de poderes, a relação entre Estado e cidadão e, até mesmo, o sentido e alcance da própria dignidade da pessoa humana. De qualquer forma, algumas conclusões parecem vir à tona a partir de toda essa discussão. Em primeiro lugar, na realidade de um país como o Brasil, é certo que o Estado assume obrigações de garantir os direitos fundamentais do cidadão. Todavia, não o faz mais na forma clássica das garantias negativas, evitando atuar para proteger os direitos referentes à liberdade da pessoa humana. Como Estado Social de Direito, o poder público está vinculado a uma atuação positiva no sentido de permitir ao cidadão uma condição mínima de bem-estar social, especialmente a partir do reconhecimento de que o indivíduo não é mais um homem genérico, mas 54 Idem. 21 deve ser visto na “especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade55”. E em que pese a existência de uma apontada crise do Estado de bem estar social, a vinculação constitucional não pode ser ignorada pelo poder público por qualquer nova opção política de tendência neoliberal, de forma que o Estado, nos termos da Carta Magna, está obrigado a garantir aos seus cidadãos um mínimo essencial para a construção da dignidade humana. É certo, também, que algumas restrições aos direitos fundamentais são necessárias. Afinal, sendo os direitos fundamentais heterogêneos, a convivência comum de vários direitos gera a necessidade de limitação entre eles 56. Limitações de ordem física e temporal são muito evidentes, mas também há limitações de outra ordem que se aplicam à relação entre Estado e indivíduo e podem impedir a máxima realização dos direitos sociais. A discussão do limite para a restrição desses direitos vem logo e inexoravelmente, especialmente quando se entende que normas constitucionais que estabelecem direitos fundamentais têm eficácia direta, o que decorre de expressa manifestação do texto constitucional. Dessa contradição surge a necessidade de equalizar a capacidade de investimento social do Estado, determinada eminentemente pela arrecadação de tributos, e obrigação de realização dos direitos sociais. E embora se possa reconhecer um limite lógico a essa realização, determinado pela capacidade financeira do poder público, parece evidente também que esse limite não pode alcançar jamais os investimentos que tocam ao que se chama de “mínimo existencial”. Apontado como o parâmetro chave para a constituição da dignidade humana, esse é o limite final para a negativa de investimento do Estado. Em um país que cresce com vigor e onde se quebram seguidamente os recordes de arrecadação tributária, a garantia do mínimo essencial aos cidadãos deve ser obrigação clara e evidente. Isso é o que decorre do próprio texto constitucional e não fica sujeita a qualquer espécie de limitação política que venha a ser adotada pelo poder público. Daí a função do Judiciário de evitar esse desvio funcional da administração pública: como elemento chave do sistema de freios e contrapesos característico de um regime democrático, o Judiciário precisa intervir 55 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Ed. Traduzida por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. P. 83. 56 Ibidem, p. 39. 22 para exigir que a administração pública racionalize adequadamente os seus gastos e obedeça às determinações constitucionais no sentido de cumprir as obrigações de um Estado Democrático e Social de Direito. Nesse sentido, a judicialização dos direitos fundamentais não é um problema de intromissão do Judiciário nas esferas do Executivo e do Legislativo. É sim a solução do problema de aplicação inadequada, equivocada e, às vezes, tendenciosa, dos recursos arrecadados pela administração pública. Afinal, é nesses termos que a Constituição Federal estabelece limites ao orçamento: tendo em consideração uma administração que gerencia racionalmente os custo e investimentos colocando em primeiro plano a realização do indivíduo e não qualquer outro fim político que entenda adequado e que, por vezes, infelizmente, se revela até mesmo escuso ou criminoso. Nunca é demais lembrar que a consecução do indivíduo como ser humano é o primeiro objetivo do Estado e não pode ser relegado à segunda instância simplesmente porque “primeiro vem o indivíduo (...), que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o Estado é feito pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado57”. E mais: “em relação aos indivíduos, doravante, primeiro vêm os direitos, depois os deveres; em relação ao Estado, primeiro os deveres, depois os direitos58”. 57 58 Ibidem, p. 76. Idem. 23 REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Ed. Traduzida por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Jurisdição Constitucional. Entre o constitucionalismo e a democracia. Belo Horizonte: Fórum, 2007. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2006. 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