Pulsão de Vida e Pulsão de Morte Congresso Brasileiro de Psicanálise – 2009 “ . . .o terrível e a morte são os lugares obrigatórios do humano.” Nicole Loraux Suad Haddad de Andrade O tema proposto para esta mesa, Pulsão de Vida e Pulsão de Morte envolve uma dualidade, o que para nos, psicanalistas, é uma constante. Desde o início Freud se defrontou com a tarefa de lidar com dualismos: instinto de auto-preservação e instinto sexual, consciente e inconsciente, processo primário e processo secundário, princípio do prazer e princípio da realidade, instinto de vida e instinto de morte, objeto bom e objeto mau etc. Mas este tema, pulsão de vida e pulsão de morte, de todas as dualidades, me parece a mais polêmica. Até hoje não há unanimidade quanto à aceitação da pulsão de morte. E evidentemente não cabe a uma mesa como esta entrar na polêmica. Prefiro ficar com a Hanna Segal que diz: aceitar a dualidade pulsional é extremamente útil no trabalho clínico onde nos defrontamos permanentemente com embates, com conflitos. A existência de duas forças antagônicas no psiquismo é inquestionável: uma que tende à construção e outra à destruição, uma que congrega e outra que é desagregadora. Mas a questão que ainda fica é: destruímos para sobreviver ou destruímos por destruir? É interessante como aceitamos facilmente a existência e a importância da agressividade. Quando falamos de agressividade falamos de energia, de combatitividade, de disposição ativa e empreendedora, de defesa, de auto-proteção. A agressividade está, para muitos autores, ligada à pulsão de vida. Já a existência da uma 1 destrutividade interna, não seria suficiente ou não bastaria para provar a existência da pulsão de morte - a tendência a destruir não seria natural, mas apareceria, ou passaria a existir à partir das frustrações provocadas pelas falhas ambientais. Para Antonino Ferro “ pulsão de morte ou instinto de morte poderia ser apenas resultado de inadequações reais da capacidade de nossa espécie de transformar informações sensoriais”. Alguns autores que não concordam com a existência de um instinto de morte dizem que na verdade o que existe é sempre um empenho em dar forma ao que não tem forma, é encontrar representatividade ao que está sem representação, é preencher o vazio intolerável. Matte Blanco, por sua vez, vê no conceito de pulsão de morte de Freud, a presença da interação entre os modos consciente e inconsciente de pensar, o que amplia, em muito, nossas possibilidades de pesquisa. Se aceitamos que a destrutividade está à serviço da vida então estamos descartando a existência da pulsão de morte como tal. Em 1967 o saudoso Armando Ferrari, num artigo da RBP mostra como alguns tipos de reações patológicas provam que o I. M. existe e existe para destruir mesmo. Mas a maioria dos autores fica no aspecto intermediário que vê a pulsão de morte como pulsão mobilizadora da vida. As defesas, por ex., existem para nos proteger da atuação da destrutividade interna e representam então uma força de vida. Penso que ambas vêm juntas, formam uma unidade e interagem no psiquismo, como consciente-inconsciente, e são responsáveis pela atividade mental. Mas se não temos como provar a existência do instinto de morte, temos que nos contentar com a proposta freudiana de que os instintos são figuras míticas: “os instintos são seres míticos soberbos e indefinidos.” 2 O que é evidente é que vivemos conflitos todo tempo; até para estarmos, aqui, agora, cada um de nós enfrentou o conflito da escolha e da perda, que sempre ocorre quando escolhemos. Como psicanalistas sabemos que o que importa não é corrermos em busca das soluções dos conflitos mas sempre na identificação dos conflitos. Não negar o conflito, admitir sua existência e torná-la clara para o paciente, é nossa tarefa. A filósofa Suzanne Langer faz, muitas vezes em seus escritos, a distinção entre homens e animais. A colocação básica é de que os homens se diferenciam dos animais porque constroem símbolos: o pensar acerca das coisas, a linguagem, a imaginação, a especulação são os principais produtos da mente humana. Mas é o conhecimento antecipado da morte a diferença fundamental; só o ser humano sabe que vai morrer. Só o ser humano é capaz de se observar, se conhecer, enfim, se pensar e pensar sobre tudo que o rodeia. E sabe que a morte é seu destino. Sabemos da morte porque a vemos acontecer ao nosso redor? Aprendemos sobre ela por observações? Não, sabemos da morte porque a conhecemos internamente, nas múltiplas e constantes mortes que vivemos dentro de nós, nós que temos a capacidade de pensar, de desejar, que vivemos para nos auto-afirmar, buscando a felicidade. Os animais vivem para dar continuidade à espécie, nós vivemos para dar continuidade a nossa própria existência, para nos auto-realizarmos. Costumamos dizer, então, que estamos condenados à morte. Mas também estamos condenados à vida. Desde que somos concebidos, estamos, digamos assim, condenados a viver, a lutar pela vida. E também condenados a nos desenvolver, a criar e a fazer liames que nos garantem 3 o envolvimento com a humanidade, com os outros homens. Suzanne Langer fala ainda que é no protocolo, no ritual, na investidura de autoridades, em sansões e honras onde se situa nossa segurança contra a perda de envolvimento com a Humanidade; e estas ligações, estes vínculos vão garantir nossa liberdade e nossa individualidade. Como psicanalistas, penso, podemos ir mais longe, ou mais fundo: não é o liame com a humanidade, não é no social que nos definimos humanos. Na verdade teríamos antes que definir quando se inicia a socialização; para muitos autores é a vivência edípica que inaugura o processo socializador em cada um, quando desistimos da fusão com o genitor e partimos para a aceitação do casal parental do qual estamos excluídos; buscamos então ao nosso redor (irmãos, avós, baba) com quem partilhar nossas vivências. Mas eu penso que antes mesmo desta socialização, desde o nascimento, quando tomamos conhecimento da existência de outra mente, nos definimos humanos. As duas mães, a que atende e a que frustra existem desde sempre; a existência da mãe já nos assinala a existência de outra mente, com outros desejos, e outras reações. É este envolvimento com o outro, com outra mente, que me define humano, que me dá a clara noção de minha existência, de meus limites e de minhas necessidades. E começamos muito cedo a luta pela sobrevivência. É a persistência desta energia de luta que nos manterá vivos. Antonio Medina Rodrigues, no seu livro sobre as utopias gregas fala que o ideal não é aquilo que nós queremos mas aquilo que nos faz querer alguma coisa; e a persistência da energia do querer é que nos mantém vivos. A ameaça de morte nos faz querer viver! E não só: se o estar satisfeito é o mais importante, nosso destino está comprometido com a estagnação, com a banalidade. São as insatisfações e ameaças que nos mantém permanentemente ativos e 4 criativos. Então o que nos mobiliza a viver e a explorar ao máximo nossos recursos são os perigos que a pulsão de morte trás já que a estagnação é a morte da vontade e a banalização é também uma destruição dos nossos reais valores. Pessoalmente não vejo como pensar a pulsão de vida sem incluirmos a pulsão de morte. E eu lembro aqui o trabalho do Gari, “Negatividade e positividade”, quando ele mostra que até os aspectos disruptivos podem ser vistos como positivos, na medida que expressam um esforço vital para salvar vínculos, para preservar o existir psíquico. Quando Freud falou ao mundo da existência do irracional as reações foram muito fortes. Parecia que ele estava atacando o ser humano e não como vemos hoje que o grande ataque é a negação do inconsciente; e eu penso o mesmo quanto à violência interna, que é do ser humano. Negar a destrutividade interna é nos rebelarmos contra nossa humanidade, que inclui amor e ódio. Freud não se deteve no biológico; ele ficou no psicológico quando falou de Vida e Morte. Klein fala de Amor e Ódio, de sentimentos, portanto. Não precisamos do biológico para sabermos da morte; ela é uma experiência interna comum: quando desanimados sabemos que está morrendo o ânimo; quando desamparados matamos a esperança, a alegria, a confiança em nossos próprios recursos. Quando cheios de ódio sabemos que estamos matando ou está morto o afeto, o querer bem. Estamos todo tempo lutando contra a morte dos bons sentimentos, contra a morte de nossos projetos, contra a morte da esperança e contra a estagnação do pensar. Então o que estou afirmando é, como diz Laplanche, pulsão de morte é pulsão da própria morte, ataca internamente quando são atacados os objetos internos e os recursos do ego. É sempre 5 destrutividade contra o self, mas que pode ser projetada para fora. Não temos idéia da morte, temos a vivência da morte quando nossos recursos internos são aniquilados; o medo adulto da morte também está ligado a este medo interno de aniquilamento do psíquico. Comentando um trabalho do Eduard Elias, intelectual palestino que escreveu um texto sobre “Moisés e o monoteismo”, do Freud, a inglesa Jacqueline Rose diz assim:”Não há agremiação social sem violência; as pessoas se unem de forma efetiva pelo que concordam em odiar. O que amarra as pessoas umas às outras e ao seu Deus, é que estas pessoas o mataram.” Ela comenta então que é aceita de modo geral a tese de que a violência está presente sempre na origem dos grupos humanos. Se as pessoas se unem de forma efetiva pelo que concordam em odiar, é preciso estarmos atentos ao fato de que elas se unem para poder sobreviver, por amor à vida. Ela, a Jacqueline Rose, acentua a violência mas a vontade de viver é o móvel mais importante. Portanto Amor e Ódio sempre juntos, sempre presentes. A questão da dualidade, ou da conciliação entre tendências opostas é básica no ser humano e comparece magnificamente na tragédia grega. E somos trágicos, como diz a Rachel Gazolla, enquanto somos lugar de conflito.O que é universal no homem é este aspecto trágico de uma luta permanente entre vida e morte. A condição trágica consiste em termos que viver com esta dualidade; este é nosso aspecto vulnerável que não é para ser eliminado mas para ser explorado. Para os gregos como para nós e para todo o ser humano em qualquer época a conclusão é: trágico é termos que conservar o que não pode ser perdido ou trágico é a queda na realidade, é a perda das ilusões e o termos que viver com nossas limitações. 6 Só que, a meu ver, e aqui eu repito a Hanna Segall, o que mais nos angustia é a sensação de aniquilamento, é o medo da morte, que existe desde sempre. Assim como existe desde sempre o desejo de matar. Freud fala de nosso desejo e do medo - de matar e de ser morto. O que é o Édipo senão isto! Atualmente o que os autores, filósofos e psicólogos, apontam insistentemente é a existência clara na nossa cultura ou na sociedade atual das posturas que chamam de indiferença e desinteresse. O que mais chama atenção é o desinteresse em buscar o significado dos acontecimentos, internos ou externos, o que é uma maneira de escapar da vivência dos próprios sentimentos; as pessoas agem muito e pensam pouco. Quando pensamos corremos sempre o risco de sentir os sentimentos, sentir amor ou ódio. Nos incidentes da escola pública na zona leste de S. Paulo, quando os alunos depredaram a acontecimento escola e agrediram os professores, no de Londrina, em que os estudantes de medicina depredaram o hospital e agrediram os pacientes, no cruzeiro para universitários entre Santos e o Rio quando uma jovem morreu por excesso de bebidas, podemos encontrar algo em comum: em qualquer das situações os jovens eram jovens ajustados e aparentemente festejavam suas conquistas. Aparentemente estavam bem adaptados. Mas ficamos em dúvida agora quanto à adaptação e o sentimento de conquista. Ou melhor, sem que eles mesmos se dessem conta, não estariam eles expressando que se sentem divididos, confusos e insatisfeitos? Se eles mudam de maneira tão significativa quando algo muda no contexto geral em que vivem, isto significa o que? Nossa sociedade está oferecendo aos 7 jovens mensagens contraditórias e extremamente falsas e por isto estarem ocorrendo estas explosões tão inesperadas e surpreendentes? Ou este é um tipo de defesas que não estamos ainda compreendendo bem? Alguns observadores vêem, nestes episódios, muito apelo ao prazer e muita facilitação. Como psicanalistas podemos ver mais. A destrutividade que está comparecendo agora, nestas situações descritas é sintomática, conseqüência de algo que ocorreu antes, com muita intensidade. Eu me arrisco a afirmar: não houve ódio ao que lhes foi oferecido até agora, e também não houve amor. Parece que apenas vivem as situações como lhes são propostas sem qualquer avaliação de se são boas ou más. Não puderam dar valor, não puderam amar o que recebiam e também não odiaram. Pior que isto, tudo foi vivido com indiferença e, portanto, destituído de significação. A indiferença destrói a dimensão ética e sem a conotação ética perdemos de nossa essência. Quando vivemos com intensidade nossos sentimentos de amor e ódio estamos certamente atribuindo significado às nossas ações e às dos outros; estaremos refletindo, pensando o que é melhor, mais justo etc. Parece que o que aprenderam ou vivenciaram não foi preservado como algo bom, importante, e sim como algo comum, corriqueiro, sem valor, tão pouco importante quanto qualquer outra gratificação do momento. Foi muito antes, lá atrás, que amor e ódio não foram vividos e daí os bons sentimentos, como gratidão e admiração não estarem existindo. Como também a capacidade de odiar não está clara: a quem eles atacam? O que reivindicam? O objeto atacado é anônimo, despersonalizado, e muda com facilidade. E não está diretamente relacionado com seus desejos ou seus objetivos; são ataques alheatórios. O que estes jovens estão mostrando em diferentes situações e contextos é: indiferença e indiscriminação. E 8 este tipo de postura nos remete imediatamente à idéia de autismo. Somos levados a pensar em componentes autistas, muito peculiares, e que se apresentam com uma roupagem diferente, com esta marca de atuação não pensada e não vinculada. O ataque aos vínculos é o grande problema já que são os vínculos que limitam, criam parâmetros e nos definem. Estes jovens vivem angustiados e não se dão conta disto; o ruim, o ameaçador, o desesperador é a escola, o hospital, a tarefa a ser cumprida; feita a projeção, eles atacam o ambiente, depositário de suas angustias. Este vértice leva a uma constatação: estes acontecimentos estão expressando o temor, nestes jovens, de uma invasão psicótica. Ou dito de outra maneira, não seria a parte psicótica da personalidade, encoberta e contida até agora, que estaria emergindo de sua cápsula protetora? E não seria este um pedido desesperado de contensão ou de significação? Foi o passado que os fez assim? È muito comum se fazer uma revisão minuciosa do passado para entender as condutas atuais, seja dos pacientes, ou de situações, como estas descritas. Não é o passado pontual que pode explicar qualquer coisa mas o que é feito dele, como o passado foi vivido, o que ficou dele, e o que foi transformado. Em psicanálise sabemos bem que não somos vítimas das personagens do passado mas de nós mesmos, de nossa bagagem interna, de nossos recursos ou da ausência deles. É o relacionamento com nossas pulsões, através do relacionamento com o outro, que nos faz únicos; nas nossas primeiras relações são nossas vivências em sentimentos que nos definirão para sempre. A única coisa que fica evidente nestas situações é o ataque à vida, à potência de vida como diz o Nietzsche. Nascemos com uma potência de 9 vida da qual não nos libertaremos nunca. A vontade de vida ou de viver nos é inerente e cobra de nos renovação permanente. Então é a vida que nos dá trabalho, que não nos permite repouso. Quando estes jovens destroem o que está organizado é porque estão, sem perceber, denunciando a ausência de vida, de vigor, de confiança em valores significativos e a presença do falso e do contraditório. Nossa sociedade parece não estar oferecendo continência ou um bom suporte para estes conflitos que são de cada um e de todos. Mas não é só, se está ocorrendo uma denúncia está também evidente a existência de uma fantasia infantil de busca do paraíso, onde se tem tudo de bom, de maneira fácil, confortável, sem conflitos, desconfortos ou insatisfações. Como mostra Ponde: “vivemos numa sociedade maníaca pela construção social do paraíso”. E este é o outro aspecto da pulsão de morte: a idéia de tranqüilidade tem a ver como a volta ao inanimado, primeira colocação de Freud para a pulsão de morte. A idéia de Paraíso inclui autonomia narcísica e negação da necessidade do outro. Vemos muito isto na clínica; é comum o paciente se considerar, ou ser considerado pelos outros como uma pessoas fraca porque faz análise. Eu costumo propor examinarmos esta idéia: é fraco quem admite ter problemas, quem admite precisar de ajuda e vai buscá-la? Quem reconhece limites e os aceita? Ou é fraco quem não pode admitir isto e precisa sempre se provar auto-suficiente? Quem está mais desamparado? O que nossos pacientes vão descobrir na análise é que eles não são o que descobrem ali conosco: ao se descobrirem eles deixam de ser quem são e passam a ser eles + a descoberta, eles + a aquisição feita sobre si mesmos, são eles enriquecidos com a nova percepção. E este tipo de enriquecimento encanta alguns e assusta outros. 10 Outro aspecto que quero mencionar e que expressa a presença da pulsão de morte dentro de nós são as depressões. De onde vem esta depressão que assola nossa sociedade e lota os consultórios psiquiátricos? Sentimento de culpa, claro! Mas qual a culpa? Um bom exemplo: estamos nos responsabilizando muito rápida e facilmente pela deteriorização do Planeta Terra o que mostra que acreditamos muito facilmente no nosso poder de fazer estragos e também no nosso poder de controlar o universo. Tanto em um extremo, quando nos sentimos extremamente destrutivos, como no outro, em que acreditamos ser totalmente responsáveis e salvadores, é nossa onipotência atuando. A depressão nada mais é do que o resultado da culpa terrível que sentimos onipotentemente e desde sempre: o desejo de eliminar o outro, frustrador, me faz acreditar ser um criminoso e vivo perseguido por isto, por uma culpa tão onipotente quanto a da arrogância de ser Deus e chegar ao paraíso. Numa sociedade onde a reflexão é desprezada e o que importa é termos o remédio rápido para o mal estar presente, a psicanálise é compreensivelmente dispensável, como o pensar é dispensável, o conhecer quem eu sou é dispensável. Importante é a gratificação imediata. O que importa é eu me sentir feliz já, poderoso, auto-suficiente sem qualquer desconforto interno. Nunca a verdadeira condição humana foi tão rejeitada, desprezada mesmo. Esta é a questão mortífera básica quando negamos nossos limites e também queremos negar ou eliminar o que é o núcleo da condição humana: a existência permanente do conflito entre Vida e Morte. FIM 11