ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO VETOR DE POLÍTICA CRIMINAL E SUA APLICABILIDADE PELO MINISTÉRIO PÚBLICO Rodrigo de Queiroz Leite1 RESUMO A realidade contemporânea das sociedades, moldada em razão do neoconstitucionalismo, requer a necessidade de adaptação constante dos sistemas jurídicos dos Estados Democráticos, sobretudo no que diz respeito ao direito de punir. Diante desse contexto, este trabalho teve como objetivo analisar a aplicabilidade do principio da insignificância como elemento de política criminal adotado pelo sistema jurídico brasileiro, com ênfase na sua utilização pelo Ministério Público. A abordagem deste princípio foi realizada de modo descritivo, através de pesquisas em periódicos e obras jurídicas especializadas, assim como na jurisprudência das Cortes Superiores brasileiras, notadamente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Do estudo realizado, constatou-se que a aplicação desse postulado se revela, atualmente, como importante instrumento para subsidiar o juiz e os membros do Ministério Público nos casos em que a repressão penal pelo Estado se mostra inadequada. Também se verificou que o princípio da insignificância, por ser um desdobramento do princípio da intervenção mínima, reflete uma exemplar progressão dos Estados em matéria de política criminal, em louvável deferência ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Palavras-chave: Direito Penal contemporâneo, Política criminal, Princípio da insignificância, Ministério Público, requisitos. THE PRINCIPLE OF INSIGNIFICANCE VECTOR POLICY AS CRIMINAL AND ITS APPLICABILITY BY PROSECUTOR ABSTRACT The reality of contemporary societies, shaped by reason of neoconstitutionalism, requires the need for adaptation of Democratic States' legal systems, especially with regard to the right to punish. Given this context, this paper had as objective to examine the applicability of the principle of insignificance as an element of criminal policy adopted by the Brazilian legal system, with emphasis on its use by prosecutors. The principle of this approach was presented in a descriptive, through research in specialized legal journals and articles, as well as the jurisprudence of Brazilian High Courts, especially the Supreme Court and Superior Court. From the study, it was found that the application of this postulate is revealed today, as an important instrument to support the judge and prosecutors in cases where the prosecution by the State proves inadequate. It was also found that the principle of insignificance, being an offshoot of the principle of minimum intervention, reflects an exemplary progression of states in crime policy in commendable deference to the constitutional principle of human dignity. Keywords: Contemporary Penal Law, Criminal politics, Principle of insignificance, Public Prosecutor, requirement. 1 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Especializando em Prática Judiciária pela UEPB. Servidor Público do Tribunal de Justiça da Paraíba – TJPB. E-mail [email protected] 95 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 INTRODUÇÃO A máxima insculpida no art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB) estabelece que na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Como vetor hermenêutico de interpretação teleológica, esse dispositivo visa direcionar a aplicação da lei à verdadeira finalidade para a qual foi criada, para que desse modo, e, sobretudo, atenda aos anseios da sociedade, que é a principal destinatária dos atos normativos. Nessa árdua tarefa de interpretar e aplicar corretamente a lei, o ordenamento jurídico confere ao exegeta algumas ferramentas que o auxiliam em seu mister, tais como o emprego da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito (LINDB, art. 4º). Estes últimos, a seu turno, detém posição de relevo no mundo jurídico, porquanto se constituírem em verdadeiros nortes para a resolução das controvérsias que se instauram, tanto no meio científico, como nas querelas levadas aos órgãos judicantes do Estado. No universo dos princípios de maior destaque, máxime no Direito Penal, vem ganhando cada vez mais força, na doutrina e na jurisprudência, o princípio da insignificância. Ao se analisar os recentes julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, especialmente em matéria penal, percebe-se que nunca se debateu tanto nessas Cortes sobre esse princípio e a viabilidade da sua aplicação. Há, portanto, um nítido amadurecimento jurisprudencial sobre o assunto. Infelizmente, a utilização desse postulado pelos demais juízes e membros do Ministério Público ainda tem sido realizada de maneira tímida. A raiz desse problema se deve principalmente a duas razões: a uma, à cultura jurídica conservadora que impera entre nossos magistrados e membros do parquet; a duas, ao estudo incipiente do princípio da insignificância, ao qual ainda não é dada a devida relevância no meio acadêmico. Além disso, para uma parcela considerável da doutrina e dos tribunais, a ideia de extinguir uma ação penal em virtude da irrelevância do fato representa muito mais um gesto de impunidade provocado pelo Estado do que um ato eficaz de política criminal. Esquecem-se que nosso país ainda vive sob a égide de leis ultrapassadas e que o nosso falido sistema penitenciário não reúne as condições necessárias para efetivar a escorreita recuperação do apenado. 96 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 A bem da verdade – infelizmente – prevalece ainda no Brasil uma resistência de boa parte da comunidade jurídica em adotar doutrinas e teses jurídicas de vanguarda, que prestigiam a atual conjuntura social e jurídica de outros países, sobretudo os desenvolvidos. E é em vista disso que a relevância do tema escolhido para este trabalho se torna patente, eis que a aplicação do princípio da insignificância, sobretudo pelos membros do parquet, ainda se apresenta como fenômeno raro no cotidiano forense. Feitas essas ponderações, importa registrar também que o presente artigo, além de demonstrar a forma e a importância da utilização do princípio da insignificância pelo Ministério Público, também primou por traçar, em linhas gerais, a evolução histórica desse postulado, assim como seu conceito e o exame pormenorizado dos parâmetros que a jurisprudência tem se valido para a aplicação da teoria dos crimes de bagatela. Sem perder de vista a perspectiva constitucional do tema, também foram colacionadas ao longo do texto algumas lições de juristas renomados na seara penal e constitucional, cujo magistério também serviu de base para grande parte das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, e que, ainda hoje, se presta a subsidiá-los em sua missões institucionais. 1. ORIGEM E CONCEITO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA Embora a origem histórica do princípio da insignificância seja objeto de controvérsia doutrinária, é irrefutável que esse postulado teve o seu embrião no Direito Civil Romano, haja vista ter sido edificado sob o espírito do insigne aforismo de minimus non curat praetor. Essa máxima, que traduzia a ideia de que o pretor2 não deveria se ocupar de causas tidas como irrelevantes, foi aprimorada à medida que os Estados percebiam a necessidade de se implementar políticas de repressão criminal ligadas ao valor atribuído a determinado bem jurídico. Nada obstante, já é consenso que, em matéria penal, o princípio da insignificância, tal como entendido na atualidade, foi formulado pelo jurista alemão Claus Roxin, na obra Kriminalpolitik und Strafrechtsystem, datada de 1964. Sua fundamentação parte da premissa de que o fato punível não pode ser analisado unicamente de modo literal pela lei, refutando2 Magistrado que administrava a justiça, na Roma antiga. 97 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 se, desse modo, a flébil interpretação gramatical da norma. Roxin defende que os princípios de política criminal, e.g., intervenção mínima, fragmentariedade e proporcionalidade, devem sempre ser utilizados por ocasião da aplicação do Direito Penal. Assim, o exame da letra da lei representa apenas o início do processo de compreensão do direito posto. Pelas conclusões de Roxin, uma conduta só pode ser submetida a sanções penais no caso de ser absolutamente incompatível com uma convivência harmônica, livre e materialmente assegurada.3 Isso se deve ao fato do Direito Penal contemporâneo tratar unicamente de questões que apresentem potencialmente poder de lesividade social. A despeito da difícil trajetória histórica para ser aceito pela doutrina e ser concretizado nas decisões dos tribunais, na atualidade, o princípio da insignificância já pode ser considerado um dos postulados fundamentais do Direito Penal, não se olvidando que sua evolução doutrinária se constituiu no desdobramento de outros princípios, sobretudo o da intervenção mínima e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.4 Por sua vez, a exata compreensão do que vem a ser o princípio da insignificância é empreitada igualmente difícil, uma vez que tal análise demanda conclusões impregnadas de alto grau de subjetivismo. É que os valores tidos como significantes para uma pessoa ou um grupo podem representar interesses diametralmente opostos para outros, e aí, se tornarem insignificantes. Nesse passo, a imprecisão do termo pode suscitar vários questionamentos. A título de exemplificação, como distinguir o que seria furto insignificante de um furto de pequeno valor? Trata-se de questão complexa, porém essencial, visto que furto de pequeno valor e furto insignificante são tratados de maneiras distintas no ordenamento jurídico brasileiro.5 Há também que se ressaltar que a bagatela não é um princípio explícito na Constituição Federal e tampouco nas legislações penais pátrias. Por tal motivo, como não se 3 In: BRUTTI, Roger Spode. O princípio da insignificância frente ao poder discricionário do delegado de polícia. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1230, 13 nov. 2006. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/9145>. Acesso em: 18 jun. 2012. 4 No mesmo sentido: “O princípio da insignificância tem origem em outro princípio: o princípio da intervenção mínima, que significa que „o direito penal só deve cuidar de situações graves, de modo que o juiz criminal só venha a ser acionado para solucionar fatos relevantes para a coletividade. [...] Na prática, uma decorrência do princípio da intervenção mínima foi o reconhecimento do princípio da insignificância, que considera atípico o fato quando a lesão ao bem jurídico tutelado pela lei penal é de tal forma irrisória que não justifica a movimentação da máquina judiciária” (Victor Eduardo Rios Gonçalves apud OLIVEIRA, Marcelo Ristow de. Direito Penal: o princípio da insignificância no STF. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2134, 5 maio 2009. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/12754>. Acesso em: 21 jun. 2012.) 5 Código Penal. Art. 155. § 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa. 98 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 acha expressamente definido em nossa legislação, a tarefa de conceituar o postulado em análise ficou a cargo da doutrina e dos tribunais, quando da construção da jurisprudência acerca do tema. Assim, em respeito à segurança jurídica, é deveras relevante o papel exercido pelas Cortes Estaduais, Regionais e Superiores, cuja função precípua está em uniformizar os precedentes sobre a matéria, enquadrando, caso a caso, as condutas tidas como insignificantes, não se olvidando de se valer de outros parâmetros basilares de nosso sistema penal, como a intervenção mínima do Estado, a fragmentariedade e a subsidiariedade. O caráter fragmentário do Direito Penal impõe que a norma só deverá incidir sobre determinados bens jurídicos e formas de agressão substancialmente contrárias ao ordenamento jurídico, protegendo apenas os bens considerados essenciais à manutenção e ao desenvolvimento do indivíduo e da coletividade, sob pena de tornar inviável a manutenção do já deficitário sistema penal brasileiro. Por subsidiariedade, entende-se que só caberá a incidência das sanções estabelecidas no Direito Penal quando os demais ramos do direito se mostrarem insuficientes para reprimir determinada conduta. Desse modo, o direito penal deve ser considerado como a ultima ratio para as resoluções dos conflitos sociais, ou seja, deve-se prestar a tutelar tão somente bens relevantes para a própria existência do homem e da sociedade.6 Frise-se que, ao analisarmos o Direito Penal sob à ótica dos princípios da intervenção mínima, fragmentariedade e subsidariedade, não se está negando a autonomia desse ramo do direito, nem muito menos reduzindo-o a um simples instituto que sanciona atos ilícitos que não foram punidos em outras esferas. O que estar-se a dizer é que existem condutas ilícitas que não possuem os elementos suficientes para enquadrarem-se num tipo penal, logo, não fazem parte de seu campo de intervenção. Dentre uma série de atos ilícitos, o 6 RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. PROCESSUAL PENAL MILITAR. FURTO. INEXISTÊNCIA DE LESÃO A BEM JURIDICAMENTE PROTEGIDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO PENAL MILITAR. 1. Os bens subtraídos pelo Paciente não resultaram em dano ou perigo concreto relevante, de modo a lesionar ou colocar em perigo o bem jurídico reclamado pelo princípio da ofensividade. Tal fato não tem importância relevante na seara penal, pois, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal, incide, na espécie, o princípio da insignificância, que reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por conseqüência, torna atípico o fato denunciado. É manifesta a ausência de justa causa para a propositura da ação penal contra o ora Recorrente. Não há se subestimar a natureza subsidiária, fragmentária do Direito Penal, que só deve ser acionado quando os outros ramos do direito não sejam suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos. 2. Recurso provido. (RHC 89.624/RS, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 10/10/2006, publicado no DJ de 07/12/2006) (Grifo nosso) 99 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 Direito Penal, só se estende aos mais graves, situando-se, de forma harmônica, dentro do contexto social do ordenamento jurídico. Inclusive, a utilização desses princípios em matéria penal é tema recorrente nas decisões do Supremo Tribunal Federal, conforme se observa dos trechos dos seguintes julgados: As circunstâncias do caso concreto levam-me a entender não ser razoável que o direito penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância típica à utilização indevida, em proveito próprio, de bens públicos, em operação que totalizaria hoje a pequena monta de R$ 40,00 (quarenta reais) e, à época dos fatos de R$ 70,00 (setenta reais). A despeito de conseguir enxergar no caso a denominada tipicidade formal – perfeita adequação entre a conduta praticada e o modelo abstrato previsto na lei penal –, não consigo vislumbrar, sob qualquer ótica que se olhe, a denominada tipicidade material, dado que as condições que circundam o delito dão conta da sua singeleza, miudeza e não habitualidade, não havendo qualquer lesividade efetiva e concreta ao bem jurídico tutelado, sendo atípica a conduta imputada ao paciente. Isso porque, ante o caráter eminentemente subsidiário que o Direito Penal assume impõe-se sua intervenção mínima, somente devendo atuar para proteção dos bens jurídicos de maior relevância e transcendência para a vida social. Em outras palavras, não cabe ao direito penal - como instrumento de controle mais rígido e duro que é - ocupar-se de condutas insignificantes, que ofendam com o mínimo grau de lesividade o bem jurídico tutelado. Assim, só cabe ao Direito Penal intervir quando os outros ramos do direito demonstrarem-se ineficazes para prevenir práticas delituosas (princípio da intervenção mínima ou ultima ratio), limitando-se a punir somente condutas mais graves dirigidas contra os bens jurídicos mais essenciais à sociedade (princípio da fragmentariedade). (HC 104.286/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 03/05/2011, publicado no DJ de 20/05/2011) (Grifo nosso) HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO. 1. A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa e casuística. 2. Princípio que se presta a beneficiar as classes subalternas, conduzindo à atipicidade da conduta de quem comete delito movido por razões análogas às que toma São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, para justificar a oculta compensatio. A conduta do paciente não excede esse modelo. 3. A subtração de aparelho celular cujo valor é inexpressivo não justifica a persecução penal. O Direito Penal, considerada a intervenção mínima do Estado, não deve ser acionado para reprimir condutas que não causem lesões significativas aos bens juridicamente tutelados. Aplicação do princípio da insignificância, no caso, justificada. Ordem deferida. (HC 96.496/MT, Rel. Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 10/02/2009, publicado no DJ de 22/05/2009) (Grifo nosso) Partindo-se da ideia central que rotula os postulados acima comentados, a tarefa de definir o princípio da insignificância torna-se bem menos complexa, cabendo, ainda, no ponto, consignar que, enquanto que aqueles princípios são direcionados com maior intensidade ao Poder Legislativo, o princípio da bagatela tem como objetivo maior auxiliar o 100 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 Poder Judiciário e o Ministério Público em adequar a suas atividades às diretrizes de política criminal adotadas pelo Estado. Posto isso, dentre os conceitos com maior receptividade pela doutrina e pelo Supremo Tribunal Federal, destacamos o Diomar Ackel Filho, para quem “o princípio da insignificância pode ser conceituado como aquele que permite infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade, constituem ações de bagatela, despidas de reprovabilidade, de modo a não merecerem valoração da norma penal, exsurgindo, pois como irrelevantes.”7 De igual modo, merece a transcrição do magistério de Carlos Vico Mañas sobre o tema, que assevera: O princípio da insignificância é um instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal.8 Entretanto, com a devida vênia que se impõe aos demais doutrinadores, o conceito esboçado por Maurício Antônio Ribeiro Lopes parece-nos ser o mais preciso. Em sua lição sobre o tema, assevera o Promotor de Justiça paulista que: O princípio da insignificância se ajusta à equidade e correta interpretação do Direito. Por aquela acolhe-se um sentimento de justiça, inspirado nos valores vigentes em uma sociedade, liberando-se o agente, cuja ação, por sua inexpressividade, não chega a atentar contra os valores tutelados pelo Direito Penal. Por esta, se exige uma hermenêutica mais condizente do Direito, que não pode se ater a critérios inflexíveis de exegese, sob pena de se desvirtuar o sentido da própria norma e conduzir a graves injustiças.9 Pela análise das proposições doutrinárias acima destacadas, pode-se seguramente concluir que o princípio da insignificância se insere em nosso sistema jurídico-penal como um importante instrumento de política criminal, cuja finalidade está voltada para a aferição da tipicidade, em estrita observância à real missão da norma jurídico-penal, que deve orientar o aplicador da lei a considerar típicas apenas as condutas que lesionem materialmente ou 7 ACKEL FILHO, apud LOPES, 2000, p. 41. In: SANTOS, Maurício Macêdo dos; SÊGA, Viviane Amaral. Sobrevivência do princípio da insignificância diante das disposições da Lei 9099/95. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em:<http://jus.uol.com.br/revista/texto/950>. Acesso em: 21 jun. 2012. 9 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 55. 101 8 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 ponham substancialmente em risco o bem jurídico penalmente tutelado. O princípio da insignificância é, por excelência, um princípio complementar do Direito Penal. Frise-se que o postulado em estudo não é aplicado no plano abstrato. Portanto, não é plausível, e. g., afirmar que todas as contravenções penais são insignificantes, haja vista que, a depender do caso concreto, tal afirmativa pode se revelar incoerente. Nesse norte, andar pelas ruas armado com uma faca é um ato contravencional que não pode ser considerado insignificante. Por isso que é importante estabelecer uma fronteira entre a conduta de menor potencial ofensivo e aquelas de irrelevância penal. As primeiras se subordinam ao procedimento sumaríssimo e beneficiam-se de institutos despenalizadores, tais como a composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo, enquanto que as últimas são tão brandas que não chegam sequer a passar por tal procedimento. São, tautologicamente falando, insignificantes. Digressões à parte, é forçoso registrar que a linha que separa a conduta de menor potencial ofensivo das condutas consideradas insignificantes para o Direito Penal é bastante tênue, e, é em vista disso, que a aplicação do princípio da bagatela deve ser realizada de forma prudente e casuística, a fim de se evitar decisões contraditórias e, por conseguinte, um indesejável estado de insegurança jurídica.10 Cabe, ainda, estabelecer uma distinção entre o princípio da insignificância e o princípio da ofensividade ou lesividade. Enquanto que no primeiro a conduta que viola formalmente determinado tipo penal é capaz de provocar, ainda que de forma mínima, uma lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal, a ofensividade se relaciona com a própria inexistência de lesão a esses bens. Na ofensividade há, portanto, uma subsunção do fato ao tipo, contudo, esse é concretamente inofensivo, a teor do que ocorre com os crimes impossíveis (art. 17 do CP) ou tentativa impunível (art. 31 do CP). Consoante a clássica a lição de Francesco Palazzo sobre o princípio da ofensividade: 10 Essa também é a orientação que vem sendo propalada pelo STF, que adverte: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REPARAÇÃO DO DANO. ATENUAÇÃO DA PENA. APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DO DISPOSTO NO ART. 34 DA LEI N. 9.249/95, VISANDO À EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE EM RELAÇÃO AOS CRIMES DESCRITOS NA LEI N. 8.137/90. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. 1. A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa, cautelosa e casuística. [...] (HC 92.743/RS, Rel. Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 19/08/2008, publicado no DJ de 14/11/2008) 102 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 Em nível legislativo, o princípio da lesividade (ou ofensividade), enquanto dotado de natureza constitucional, deve impedir o legislador de configurar tipos penais que já hajam sido construídos, in abstracto, como fatores indiferentes e preexistentes à norma. Do ponto de vista, pois, do calor e dos interesses sociais, já foram consagrados como inofensivos. Em nível jurisdicional-aplicativo, a integral atuação do princípio da lesividade deve comportar, para o juiz, o dever de excluir a subsistência do crime quando o fato, no mais, em tudo se apresenta na conformidade do tipo, mas, ainda assim, é inofensivo ao bem jurídico específico tutelado pela norma.11 Nessa ordem de idéias, é claramente perceptível que os princípios da insignificância e da ofensividade atuam em cenários distintos quando da aplicação da norma penal. Encontram-se, assim, em diferentes níveis axiológicos. Em uma primeira situação, a conduta delituosa atinge infimamente o bem jurídico protegido e, ao se vislumbrar a infração bagatelar, aplica-se o princípio da insignificância. Já em outra ocasião, o fato foi tão inofensivo que tornou-se incapaz de gerar a própria conduta delituosa, aplicando-se, então, o princípio da ofensividade. 11 In MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Parte Geral. Vol. 1. 3. ed. rev. atual. e ampl., – São Paulo: Editora Método, 2010, p. 39. 103 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 2. APLICABILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO Na lição de Piero Calamandrei, de todas as missões, a mais árdua é a do Ministério Público. Como órgão acusador, deveria ser tão parcial tal como um advogado; como fiscal da lei, deveria ser tão imparcial como um juiz.12 Muito embora dentre os sujeitos processuais o parquet figure em uma posição sui generis, jamais deve se olvidar de sua nobre função de defender a correta aplicação das regras e princípios estatuídos em nosso ordenamento jurídico. Sendo assim, a aferição da possibilidade de se aplicar o princípio da insignificância deve ser sempre precedida de um confronto axiológico, no caso concreto, entre a conduta típica (formal) e o nível da lesão jurídica causada para a vítima e para sociedade. Apenas dessa forma será possível chegar com mais segurança a uma conclusão valorativa da necessidade de aplicação da legislação penal. Em que pese ser o princípio da insignificância um postulado implícito, deve ser levado em consideração que sua aplicabilidade advém de uma combinação de outros princípios fundamentais do Direito Penal. Portanto, se partimos do raciocínio que o postulado sob análise constitui também em um desdobramento do princípio da intervenção mínima do Estado, sua incidência, assim como os demais, estará jungida à satisfação de determinados requisitos objetivos.13 Esses vetores são, de certo modo, auto-elucidativos. Portanto, cuidam-se de elementos cuja utilização como critério para a aplicação do princípio da insignificância podem ser considerados até óbvios. Conforme o magistério jurisprudencial da Suprema Corte brasileira, o postulado da bagatela só poderá ser aplicado caso as seguintes condições estejam cumulativamente presentes no caso concreto: a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.14 12 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 8. Ed. Ver. E atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1117. 13 A utilização de critérios de natureza subjetiva para viabilizar a utilização do postulado da bagatela não é questão pacífica nem na doutrina e muito menos na jurisprudência. Todavia, a corrente majoritária parece ser aquela que defende a aplicação tão somente dos requisitos objetivos. 14 Nesse sentido: I. Recurso extraordinário: descabimento: falta de prequestionamento da matéria constitucional suscitada no RE: incidência das Súmulas 282 e 356. II. Recurso extraordinário, requisitos específicos e habeas corpus de ofício. Em recurso extraordinário criminal, perde relevo a inadmissibilidade do RE da defesa, por falta de prequestionamento e outros vícios formais, se, não obstante - evidenciando-se a lesão ou a ameaça à liberdade 104 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 Entretanto, parte da doutrina defende que uma dessas condições é consequência do outra, encontrando-se em seus termos uma certa dose de redundância, como assevera Paulo Queiroz: É de notar, por fim, que há diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal condicionando a adoção do princípio aos seguintes requisitos: a) mínima ofensividade da conduta; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade; d) inexpressividade da lesão jurídica. Parecenos, porém, que tais requisitos são tautológicos. Sim, porque se mínima é a ofensa, então a ação não é socialmente perigosa; se a ofensa é mínima e ação não perigosa, em conseqüência, mínima ou nenhuma é a reprovação; e pois, inexpressiva a lesão jurídica.Enfim, os supostos requisitos apenas repetem a mesma idéia por meio de palavras diferentes, argumentando em círculo.15 (Grifo nosso) Com a devida vênia, preferimos enxergar tais requisitos de forma independente, contudo, harmoniosa entre si. Sob essa ótica, podem ser considerados vetores sucessivamente cumulativos, ao passo que a análise de um dependeria da satisfação do anterior e, ao revés, o não preenchimento de um deles impediria o exame dos demais. Observe-se que, mesmo valendo-se dessa técnica de análise, os elementos autorizadores da aplicação do princípio da bagatela devem ser examinados individualmente à luz do caso concreto, posto que, conforme se verá adiante, cada um atua sobre um aspecto distinto que permeia a conduta delituosa. 2.1 REQUISITOS OBJETIVOS Em uma leitura mais apressada, ao se interpretar os requisitos utilizados pelo STF ou pelo STJ, pode-se chegar a conclusões precipitadas. É necessário, por conseguinte, que se compreenda precisamente a função de cada um desses critérios, para que não se confundam os conceitos e nem os apliquem de modo equivocado. de locomoção - seja possível a concessão de habeas-corpus de ofício (v.g. RE 273.363, 1ª T., Sepúlveda Pertence, DJ 20.10.2000). III. Descaminho considerado como "crime de bagatela": aplicação do "princípio da insignificância". Para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos, referentes à infração praticada, assim a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; a inexpressividade da lesão jurídica causada (HC 84.412, 2ª T., Celso de Mello, DJ 19.11.04). A caracterização da infração penal como insignificante não abarca considerações de ordem subjetiva: ou o ato apontado como delituoso é insignificante, ou não é. E sendo, torna-se atípico, impondo-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa (HC 77.003, 2ª T., Marco Aurélio, RTJ 178/310). IV. Concessão de habeas corpus de ofício, para restabelecer a rejeição da denúncia. (AI 559.904/RS QO, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 07/06/2005, publicado no DJ de 26/08/2005) (Grifo nosso) 15 QUEIROZ, Paulo. Direito Penal Parte Geral. 4. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.53. 105 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 2.1.1 Mínima ofensividade da conduta do agente A mínima ofensividade da conduta representa a ínfima violação ao bem jurídico tutelado pela normal penal. Para ser reputada ofensiva, a conduta do agente deve ter plenas condições de provocar um dano ou um perigo de dano penalmente relevante à sociedade. Estando a conduta imbuída de um grau menor de ofensividade, o fato deverá ser considerado minimamente lesivo ao bem jurídico da vítima e, pelo menos sob este aspecto, insignificante. No entanto, é necessário rememorar que, como já foi dito alhures, não se pode confundir mínima ofensividade da conduta com ausência ou inexistência de ofensividade, haja vista a distinção no tratamento jurídico conferido às duas situações. 2.1.2 Ausência de periculosidade social da ação Por sua vez, a ausência de periculosidade social da ação, conduz o julgador à avaliação dos efeitos sociais originados pela conduta praticada, assim como sua eventual descriminalização pela sociedade em geral. Desse modo, a aplicação do princípio da insignificância em um caso concreto não deve provocar descrédito dos jurisdicionados no Poder Judiciário, sob pena de instaurar grave crise de insegurança jurídica na sociedade. Fica evidente que o item a ser avaliado aqui é até que ponto a conduta foi periclitante, de modo que a sua atipicidade não possa causar descrença por parte da sociedade. É um requisito que deve ser analisado, por sua essência, pro societate. 2.1.3 Reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento Semelhante ao requisito anterior, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente consiste na avaliação do desvalor da conduta perante à sociedade, sopesando-se, também, as condições pessoais da vítima. Por esse critério, o empregado que furta uma cesta básica em um supermercado não pode ser tratado da mesma forma que o sujeito que a subtrai de um miserável que a tinha recebido como doação e utilizaria os alimentos para o sustento de sua família. 106 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 2.1.4 Inexpressividade da lesão jurídica provocada Por fim, como último elemento objetivo a ser analisado quando da aplicação do princípio da insignificância, tem-se a inexpressividade da lesão jurídica. Esse vetor refere-se ao ínfimo valor do bem jurídico atingido pela conduta formalmente típica. Por isso, apresentase como um elemento muito mais quantitativo do que qualitativo. Importa ressaltar que, na valoração do bem jurídico objeto de ilícito, o Supremo Tribunal Federal também tem levado em consideração as condições socioeconômicas vivenciadas pelo país à época do fato. 2.2 PROCEDIMENTO Observado os critérios acima delineados, ao receber da autoridade policial os autos de um inquérito ou até mesmo em sede de procedimento administrativo que tenha tramitado no próprio órgão, o representante do Ministério Público deverá analisar se estão presentes os requisitos que autorizam a aplicação do princípio da bagatela. Estando as referidas condições simultaneamente satisfeitas, e entendendo o parquet que a conduta formalmente típica é penalmente insignificante, deverá requerer ao juiz competente o arquivamento dos autos da investigação. Ao proceder dessa forma, o Ministério Público realiza a concretização administrativa do princípio da insignificância. E é assim porque, nos termos do art. 28 do Código de Processo Penal, o arquivamento do inquérito policial, a requerimento do MP, ocorre em sede de procedimento administrativo anterior à fase judicial, que só se iniciará com o oferecimento da respectiva ação penal. Esse modo de concretização do princípio da bagatela pelo Ministério Público encontra ampla guarida na doutrina, destacando-se, no ponto, o magistério de José Guaracy Rebêlo, que assim adverte: Ao se deparar com uma situação a merecer a incidência do Princípio da Insignificância, deve o Promotor de Justiça requerer o arquivamento do inquérito policial, haja vista não constituir crime o fato narrado nos autos, na medida em que a falta de tipicidade material leva à ausência da própria tipicidade. Se não existe 107 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 tipicidade, não se pode falar em fato típico. Se não há fato típico, não subsiste a própria infração penal.16 Perfilhando o mesmo entendimento, Ricardo de Brito Freitas ensina que: Graças ao princípio da insignificância, permite-se ao Judiciário e ao Ministério Público renunciar ao jus accusationis e ao jus persequendi in judicio, desde que a lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídica protegido pela lei penal não tenha ocorrido, ou, mesmo na hipótese de ter ocorrido, revela-se muito pequena.17 Em situação diversa, caso o pedido de arquivamento formulado pelo parquet seja rejeitado, o juiz remeterá o inquérito ou as peças de informação ao Procurador-Geral de Justiça, ou, se for o caso, à Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, em conformidade com o que estabelece o art. 28 do CPP. Nessa instância revisora, ainda é possível uma segunda análise pelo MP dos requisitos necessários à aplicação do princípio da insignificância. Assim procedendo, o respectivo órgão poderá reiterar o pedido de arquivamento requerido em sede de primeiro grau de jurisdição, ocasião em que o juiz estará obrigado a realizá-lo, na forma do mesmo dispositivo. É evidente que, nos casos de competência originária, não haverá necessidade de remessa a outro órgão superior, cabendo ao tribunal tão somente o arquivamento dos respectivos autos, sem qualquer ingerência na seara meritória dos fatos contidos na investigação. Essa orientação, inclusive, emana da jurisprudência iterativa do Supremo Tribunal Federal, conforme se observa do acórdão a seguir ementado: PEDIDO DE ARQUIVAMENTO POR AUSÊNCIA DE BASE EMPÍRICA PARA O OFERECIMENTO DE DENÚNCIA: PEDIDO IRRECUSÁVEL, QUANDO FORMULADO POR SUBPROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, COM A APROVAÇÃO DO CHEFE DA INSTITUIÇÃO. 1. É irrecusável o pedido de arquivamento formulado por Subprocurador-Geral da República, com a aprovação expressa do Procurador-Geral da República, quando fundamentado na inexistência de indícios mínimos de ilegalidade: Precedentes. 2. Agravo regimental ao qual se nega provimento. (Pet 4131 AgR, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 26/06/2008, publicado no DJ de 29/08/2008) (Grifo nosso) 16 REBÊLO, José Henrique Guaracy. Princípio da insignificância: interpretação jurisprudencial. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p 44-45. 17 FREITAS, Ricardo de Brito A. P. O direito penal militar e a utilização do princípio da insignificância pelo Ministério Público. Revista da Esmape. Recife: Esmape, ano 1, n. 2, Nov/1996, p. 161/176. 108 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 No entanto, caso se verificarem a existência dos requisitos para a configuração do crime da bagatela apenas quando a ação penal já estiver em curso, haverá também a possibilidade do membro do Ministério Público pugnar pela absolvição do acusado, nos termos do art. 386, inciso III, do CPP. Com a devida vênia aos que adotam entendimento diverso, é um contrassenso que o Ministério Público promova uma ação penal cujo delito seja considerado atípico, ainda que apenas materialmente. Ora, se por expressa disposição constitucional o parquet tem o dever de guarda da ordem jurídica (CR, art. 127, caput), a observância às regras e princípios vigentes (explícitos ou implícitos), notadamente o princípio da insignificância, é a postura que mais se adéqua às aspirações compreendidas na noção de Direito Penal contemporâneo. Além disso, essa atitude reflete um louvável prestígio ao princípio constitucional da eficiência, inserido no caput no art. 37 da Carta Magna, assim como ao princípio da efetividade, postulado subjacente a todo o sistema jurídico processual brasileiro. CONSIDERAÇÕES FINAIS Parcela conservadora da doutrina dos juízes e membros do Ministério Público entende que a aplicação do princípio da insignificância serve de estímulo à prática de pequenos delitos. Entende essa corrente que o princípio da insignificância, pelo fato de não encontrar respaldo legislativo, sendo apenas criação doutrinária e chancelada pela jurisprudência, tornaria o Direito Penal muito liberal e culminaria no esvaziamento de sua função sancionadora. Ainda o contestam, também, sob o argumento de que seu reconhecimento traria à sociedade um nocivo sentimento de insegurança jurídica. Ocorre que essa visão, com o devido respeito às opiniões dissonantes, caminha em direção contrária à função do Direito Penal conforme vem se entendendo na atualidade, sobretudo dos adeptos da corrente do funcionalismo teleológico. Os juristas adeptos dessa corrente – idealizada por Claus Roxin – entendem que a finalidade do Direito Penal está voltada a assegurar a proteção de bens jurídicos por meio de medidas de política criminal, adotadas para a satisfação do bem comum. Nesse contexto, é irrepreensível que com a evolução jurisprudencial, mormente dos tribunais de cúpula do Judiciário pátrio, impulsionada pelas modernas políticas criminais 109 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 adotadas pelos Estados, o princípio da insignificância vem assumindo paulatinamente posição de destaque na comunidade jurídica, podendo, inclusive, ser erigido como um dos postulados de maior estatura no Direito Penal contemporâneo. Desse modo, recomenda-se retirar desse ramo do direito, ações cujo conteúdo se revela inadequado para a atuação da Justiça Penal, evitando-se, com isso, a saturação de seus já sobrecarregados órgãos, com a retirada de um sem número de controvérsias que podem ser solucionadas por outros meios proporcionados pelo Estado. É visível que a crise estrutural que assola o Poder Judiciário brasileiro está intimamente ligada ao considerável desenvolvimento social, econômico e político do país, ou seja, esse Poder não conseguiu acompanhar as demandas trazidas pelas modificações havidas na sociedade nas últimas décadas. Por via de consequência, não é surpresa que a sociedade viva em um angustiante clima de insatisfação com a Justiça, pois esta não evoluiu para lhe dar um resultado satisfatório. A infraestrutura – material e humana – é insuficiente, e as querelas levadas ao Judiciário ainda convivem com a temível lentidão de seus órgãos. Foi também impulsionado por esse contexto, que foram criados instrumentos de auxílio aos jurisdicionados e, em última análise, ao Estado. A Lei dos Juizados Especiais é um bom exemplo disso. Conquanto não tenha a pretensão de resolver o problema, mas tão somente abrandá-lo, essa lei se insere no ordenamento jurídico como uma importante ferramenta de combate à morosidade da Justiça. E é nessa tônica que a utilização de princípios como o da insignificância deve ser tratada. Como um recurso a mais em face dos obstáculos, atuais e vindouros, que comprometem a atuação eficaz do Poder Judiciário. Também é de bom alvitre salientar que conduta atípica não é sinônimo de conduta permitida. Dada a subsidiariedade e fragmentariedade do Direito Penal, o fato penalmente irrelevante pode e deve receber tratamento adequado pelo Estado, buscando-se soluções amparadas em outros ramos do direito, respeitando-se, ainda, o caráter de intervenção mínima do Direito Penal. O princípio da insignificância visa, portanto, “separar o joio do trigo”, deixando a cargo do Direito Penal somente as condutas que violem ou coloquem em risco bens jurídicos relevantes. Ademais, é válido memorar que submeter pessoas que cometam delitos insignificantes ao nosso falido sistema penitenciário, e consequentemente ao convívio com 110 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 criminosos mais perigosos, é muito mais pernicioso do que se imagina, pois aquele réu que cometeu o delito pequeno hoje poderá facilmente se tornar um violento delinquente no futuro. Nessa linha de raciocínio, é facilmente perceptível que a desconsideração do princípio da insignificância nos casos em que a conduta tenha atingido bens penalmente irrelevantes, é prática que atenta, inclusive, contra o princípio da dignidade da pessoa humana, postulado de maior valor axiológico do Direito Constitucional moderno. Contudo, atualmente ainda se percebe uma certa resistência, principalmente dos Juízes, Promotores e Procuradores da República, em aplicar o princípio da insignificância.18 É, no entanto, lamentável que, em virtude de uma atuação tímida das instâncias inferiores, estes casos tenham de chegar até o STF ou STJ para serem solucionados de maneira adequada. Para modificar esse panorama, é de suma importância que os órgãos de cúpula do Poder Judiciário e do Ministério Público assumam uma posição mais proativa, com o objetivo de intensificar o debate acerca das infrações penais bagatelares, através da promoção de palestras e fóruns de discussões sobre o tema. Esse significativo investimento institucional, que visa estimular os seus membros ao aprimoramento do princípio em estudo e, principalmente, à sua concretização material (administrativa e judicial), certamente seria sentido por toda comunidade jurídica nacional, tornando cada vez mais raro o debate de querelas que versam sobre bens penalmente insignificantes e, quiçá, desafogando as já assoberbadas varas criminais país afora. Por derradeiro, é de se concluir que a norma penal em um Estado Democrático de Direito não é apenas aquela descreve formalmente um fato como crime. Ao revés, sob pena de colidir frontalmente com a Constituição Federal, o tipo penal tem a estrita obrigação de 18 Analisando-se as atas das sessões das Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF, observa-se que, ultimamente, o MPF vêm aplicando o princípio da insignificância com maior frequência aos crimes de descaminho. A título de ilustração, merece destaque a ementa do Processo 1.31.000.001342/2009-61, cuja relatoria coube ao Subprocurador-Geral da República e atual coordenador da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, Dr. Wagner Gonçalves: Inquérito policial. Art. 28 do CPP. Descaminho. Tributos não recolhidos estimados em R$ 864,00 (artigo 65 da Lei nº 10.833/2003). Aplicação do princípio da insignificância. Representação Fiscal para Fins Penais instaurada para apurar a prática, em tese, do crime de descaminho (art. 334 do Código Penal). Mercadoria avaliada em R$ 1.728,00 e tributos sonegados no valor estimado de R$ 864,00 (art. 65 da Lei nº 10.833/2003). Aplicável ao caso sub examine o princípio da insignificância. Precedentes do STJ e STF. Voto pela homologação do arquivamento. Decisão: Acolhido por unanimidade o voto do Relator. Participaram da votação a Dra. Ana Maria Guerreiro Guimarães e a Dra. Elizeta Maria de Paiva Ramos. (2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, Proc. n. 1.31.000.001342/2009-61, Relator: Dr. Wagner Gonçalves, votação unânime, 18 de fevereiro de 2010). 111 ORBIS: Revista Científica Volume 3, n. 2 ISSN: 2178-4809 Latindex Folio 19391 selecionar, dentre todos os comportamentos humanos, apenas aqueles que possuam incontestável lesividade social. REFERÊNCIAS ACKEL FILHO, Diomar. O princípio da insignificância no direito penal. São Paulo: Revista de Jurisprudência do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, v. 94, 1988. BRUTTI, Roger Spode. O princípio da insignificância frente ao poder discricionário do delegado de polícia. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1230, 13 nov. 2006. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/9145>. Acesso em: 28 ago. 2012. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 8. Ed. Ver. E atual. São Paulo: Saraiva, 2008. CAPEZ, Fernando. Princípio da insignificância ou bagatela. 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