XI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 1 a 5 de Setembro de 2003 UNICAMP, Campinas, SP Grupo: AS FORMAS SOCIAIS DE PRODUÇÃO NA AGRICULTURA BRASILEIRA Título do trabalho: AS ESTRATÉGIAS DOS AGRICULTORES FAMILIARES DO SUDOESTE DO PARANÁ FRENTE À MODERNIZAÇÃO NO CAMPO Autora: HIEDA MARIA PAGLIOSA CORONA AS ESTRATÉGIAS DOS AGRICULTORES FAMILIARES DO SUDOESTE DO PARANÁ FRENTE À MODERNIZAÇÃO NO CAMPO Hieda Maria Pagliosa Corona1 1 – INTRODUÇÃO O presente artigo é resultado de um processo de pesquisa sociológica no meio rural do Sudoeste do Paraná. Esse processo vem se desenvolvendo desde 1994, quando ingressei no Ensino Superior do CEFET/PR (Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná), Unidade de Pato Branco. As pesquisas desenvolvidas (agricultura familiar, pluriatividade, agroindústria familiar), mais intensamente a partir de 1997, visam compreender as estratégias de reprodução social e econômica dos agricultores familiares. Mais especificamente, este artigo resulta das reflexões sobre o processo de desenvolvimento rural da região, observando as estratégias de enfrentamento ao projeto de modernização. Estratégias que estão vinculadas, por um lado, às ações da ASSESOAR (Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural) que procuram promover um debate político/ideológico e técnico contrário ao projeto modernizador. Por outro lado, às ações concretas desenvolvidas pelos agricultores em suas unidades de produção e de vida familiar. Com base nas reflexões de Renault (1989) e nas contribuições de Ferreira et all (2002), pode-se dizer que para compreender as estratégias de reprodução social e econômica é necessário pensar nos “processos técnicos e econômicos segundo os quais um sistema de produção funciona e se modifica de maneira a produzir e a fazer circular os bens e as mercadorias necessários para que um grupo humano possa continuar a existir e a manter suas trocas com o exterior”, ao mesmo tempo, pensar nas “dinâmicas sociais e culturais pelas quais um grupo social, uma comunidade, uma sociedade global buscam perpetuar-se ao longo da história como sistema organizado, ao mesmo tempo em que se ajustam e se transformam ao passar por períodos de crise” (FERREIRA, et all, 2002. p.6). O modo de produzir, tanto para satisfazer as demandas da própria população rural quanto para a venda ao mercado, foi sendo modificado paulatinamente durante a primeira metade do século XX e de modo mais intenso nas décadas de 1960/70. A chamada “Revolução Verde”, somada à motomecanização e a pesquisa genética, promoveram mudanças importantes no modo de produzir, nas relações dos agricultores com o mercado, com o Estado (fonte dos recursos para o acesso às 1 Doutoranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR; professora e coordenadora do grupo de pesquisa (CNPq) do CEPAD (Centro de Estudo e Apoio ao Desenvolvimento Regional) do CEFET/PR, Unidade de Pato Branco. E-mail: [email protected] ou [email protected] tecnologias) e entre os próprios agricultores. A luta pela permanência de grande parte dos agricultores na terra, em particular no Sudoeste do Paraná, aponta para a diversidade de situações originadas das múltiplas estratégias de sobrevivência, que hoje apontam para a complexidade do rural brasileiro. Os agricultores familiares do Sudoeste do Paraná vivenciaram de modo particular o processo de modernização, pois ele não foi homogêneo nem entre os agricultores nem entre as várias regiões do país. Modernização que de início estava centrada no desenvolvimento do meio “urbano” (infra-estrutura, industrialização, etc), o qual era considerado o lócus privilegiado do progresso econômico. No meio rural, evidências sobre a necessidade de “modernizar-se” apareciam nos debates sobre a integração dos imigrantes (principalmente europeu) que, segundo muitos intelectuais, deveriam ocupar os espaços vazios do território nacional. Isto porque, o “elemento nacional” (caboclos, caipiras, moradores, etc) não preenchia as “condições adequadas à plena realização do projeto nacional [...] e do progresso econômico do Brasil”, por não terem disciplina e regularidade no trabalho, sendo “necessário grandes investimentos para disciplinar e formar o nacional para o trabalho produtivo pois ele não estava preparado para o trabalho extenuante de nossos cultivos” (VAINER & AZEVEDO, citado por GELHEN 1998, p. 61). O desenvolvimento do Sudoeste do Paraná, em linhas gerais, foi marcado por esse processo. A ocupação mais intensiva da região deveu-se à política governamental de Getúlio Vargas, denominada “Marcha para o Oeste” que visava ocupar áreas ainda “livres” para inseri-las como áreas produtivas de alimentos para fomentar o processo de modernização. Foi assim, que foi criada a Colônia Agrícola Nacional de General Osório (CANGO), em 1943 pelo decreto nº 12417, com sede em Francisco Beltrão, que contou com significativos recursos públicos e promoveu num curto espaço de tempo a ocupação da região pelos “colonos” (membros das famílias imigrantes - maioria italianos e alemães – que ocuparam e viviam nas colônias) vindo do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Entre 1950 e 1970, os colonos do Sudoeste experimentaram uma fase de grande prosperidade decorrente: da pose legal das terras (após longa luta que culminou na “Revolta dos posseiros” em 1957); do acesso a terras férteis e em quantidade suficiente para rotação de terra; da tradição dos colonos migrantes que mantinham relações mercantis, que conheciam as técnicas mecanizadas com uso do trabalho animal e praticavam a diversificação da produção com a combinação da policultura-criação. Porém, a partir dos anos 1970, essas técnicas esgotaram a fertilidade do solo e não foram suficientes para atender o mercado urbano em expansão. Uma grande parcela de agricultores empobreceu; outra foi excluída do campo (1970:81,7%; 1980:68,0%; 1991:52,8%; 2000:40,1%) e uma outra aderiu às soluções trazidas pelo projeto de modernização do campo (insumos, moto-mecanização, etc). Porém, tais soluções não atingiram todos os agricultores da região, seja pelas precárias condições de relevo e solo, seja pelas exigências restritivas de acesso aos financiamentos públicos pelos pequenos agricultores (maioria absoluta no Sudoeste). As restrições de acesso às soluções técnicas e tecnológicas para a agricultura promoveu a intensificação do êxodo rural e o empobrecimento de parcela significativa dos pequenos agricultores. Essas dificuldades somaram-se a crise do próprio modelo. Crise explicitada na degradação dos recursos naturais e nos altos investimentos, pela dependência dos insumos industrializados, não compensados pelo pouco ganho na venda dos produtos agrícolas às grandes agroindústrias e atacadistas, mesmo quando intermediada pelas Cooperativas. Para fins deste trabalho, a análise será centrada nas estratégias estabelecidas pelos agricultores mais empobrecidos, que permaneceram no campo e se organizaram. Especificamente, aqueles organizados em torno da ASSESOAR, a qual objetivava dar respaldo político e técnico aos sindicatos de “oposição” ao regime militar, ao cooperativismo e ao associativismo como estratégia de vincular a ação da igreja (fé) às necessidades reais de manutenção e permanência das famílias agricultoras na terra (vida). Durante meados dos anos 1970 e mais intensamente na década de 1980, a estratégia da ASSESOAR foi contrapor-se explicitamente ao modelo modernizador, estimulando a agricultura alternativa; criando uma base de fomento gerida e controlada pelos próprios agricultores; uma rede de comercialização da produção que busca eliminar o “atravessador”; e a agregação de renda à produção agrícola (agroindústrias, etc). As reflexões apresentadas neste artigo foram construídas a partir de um estudo da bibliografia histórica e sociológica (dissertações e teses) sobre o Sudoeste do Paraná, priorizando as informações e dados sobre: o processo de ocupação da região; os movimentos sociais; o desenvolvimento da agricultora familiar e as organizações que os representam. Tais reflexões resultaram, também, de anotações de quatro depoimentos registrados na pesquisa de campo com agricultores familiares, realizada em 1998, como parte da minha dissertação de mestrado (A resistência inovadora: a pluriatividade no sudoeste paranaense), de consulta à parte do material impresso da ASSESOAR, e de uma longa entrevista com um dos membros da ASSESOAR, em junho de 2003, que permaneceu na entidade de 1975 a 1995. 2 - HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO DA REGIÃO O Paraná, embora viesse sendo ocupado desde o período colonial (Litoral e Campos Gerais), teve sua ocupação expressiva a partir do início do século XX. A intensificação das correntes migratória (no norte por paulistas, mineiros e nordestinos e no sudoeste e oeste pelos colonos gaúchos e catarinenses), consolida até a década de 1960 o povoamento de todas as regiões do Estado. Esse processo coincidiu com o início do projeto de modernização, com o estímulo a industrialização e conseqüentemente com o crescimento dos núcleos urbanos. O aumento da demanda por alimentos baratos e acessíveis à classe trabalhadora da cidade motivou a ocupação das novas fronteiras do país, e o desenvolvimento da agricultura familiar com base no campesinato de origem européia. O Sudoeste do Paraná foi sendo ocupado até 1940 pela população indígena e cabocla 2, excluída do projeto desenvolvimentista e motivada pela existência de mata densa e terra “livre”. A população que convergia para a região gozava de uma relativa autonomia econômica e social, porque no Sul do país, as regiões dos campos (pampas) eram muito mais valorizadas que as de florestas. Os centros dinâmicos da economia estavam vinculados à criação e comercialização de gado entre Rio Grande do Sul e São Paulo - o caminho das tropas - e na atividade extrativista da erva mate, o que favorecia a concentração das terras nessas regiões. As regiões dos campos gerais, em especial de Guarapuava e Palmas (circunvizinhas à região Sudoeste), estavam inseridas na dinâmica econômica da época - criação de gado e tropeirismo - inclusive com grande concentração fundiária. O Sudoeste era uma alternativa para os “excluídos” porque a mata, ainda “livre”, fornecia as condições de sobrevivência, tanto pelo acesso a caça, pesca e coleta de frutos como pelas possibilidades de desenvolver as práticas agrícolas de subsistência. As práticas agrícolas dos caboclos desenvolviam-se a partir de dois recursos técnicos fundamentais. Recorriam à queimada da mata para formar a lavoura, porque as cinzas sobre a terra eram, ao mesmo tempo, fertilizante e proteção contra as ervas daninhas e ainda dispensava os trabalhos de limpeza e preparação do solo. Utilizavam a rotação de terras para enfrentar a perda de produtividade e, desta forma, o pousio era compensado pela abundância de terras em relação ao baixo número de habitantes. Em 1920, a região Sudoeste tinha em torno de 3.000 habitantes, o que significava 0,5 habitantes por quilômetro quadrado (Correa, 1970A, p. 88 - citado por ABRAMOVAY, 1981). 2 Desempregados das fazendas dos campos de Palmas e Guarapuava, derrotados da Revolução Federalista de RS, posseiros desalojados pela guerra do Contestado, foragidos da lei e caboclos expulsos do RS após a intensa imigração européia a partir de 1850 (ABRAMOVAY, 1981, p. 7-8). O produto agrícola de maior destaque era a mandioca, que servia de alimento básico da família e podia ser cultivada em pequenas porções de terra e com os poucos instrumentos de trabalho disponíveis3. A semelhança entre a economia cabocla e as práticas indígenas, sustentava-se tanto pelos aspectos culturais em função da convivência e da miscigenação, como pelas condições concretas de sobrevivência da população cabocla na região: a terra era seu espaço de trabalho e quanto mais livre maior as possibilidades de sobrevivência; a moradia rudimentar refletia a vida itinerante. A economia cabocla sustentava-se em uma relativa autonomia, pois os caboclos recorriam ao pequeno comércio, incipiente, apenas para suprir poucas necessidades (sal, tecidos, querosene, etc.) e vender poucos excedentes (peles, produtos agrícolas). Mantinham-se isolados das outras regiões pela falta de estradas e meios de locomoção, o que também justificava o fraco comércio regional. Os caboclos que mantinham uma relação mais estreita com o mercado dedicavam-se à criação de gado e suínos soltos na mata e no roçado (clareira aberta na mata para o plantio do milho). Esses animais eram comercializados com frigoríficos distantes, o que ocasionava perdas significativas pela precariedade do transporte. A economia cabocla, que de início se caracterizava pela coleta, caça, pesca e extrativismo, aos poucos foi se modificando com as práticas rudimentares da agricultura e da pecuária, com a utilização das técnicas como o pousio, a queimada e o roçado. Esse sistema, conhecido como “faxinal”, foi sendo substituído pelas práticas agrícolas dos colonos que migraram para a região a partir da década de 1940. A desarticulação do modo de vida e da economia cabocla no Sudoeste, com a chegada dos colonos gaúchos e catarinenses, aconteceu de forma pacífica. Da mesma forma que os caboclos abriram a mata para plantar e criar animais, eles passaram a abrir a mata para vender a posse para os novos migrantes, criando as condições para a divisão parcelar da terra e a emergência da produção mercantil. Aos caboclos restou as encostas das montanhas e as áreas mais degradadas. A ocupação intensiva da região Sudoeste pelos colonos4 foi resultado da expansão da fronteira agrícola, impulsionada pelo esgotamento das possibilidades de reprodução social dos colonos nos Estados que haviam abrigado seus ascendentes italianos, alemães e poloneses. Três fatores fundamentais motivaram tal esgotamento: a ocupação de toda a área rural pelos colonos proprietários, não restando mais terras “livres”; os limites que a pequena propriedade (maioria dos colonos) teve em viabilizar economicamente todos os membros das famílias, em geral, muito 3 O machado, o facão, a haste de plantar, a foice e a enxada (GEHLEN, 1998, p. 62). Ser colono, está vinculado a ligação concreta entre “família e roça”, porque além de ocupar uma “colônia” (em geral equivalente a 25 há) eles “trabalham na colônia” (TEDESCO, 1998, p. 19). 4 numerosas; e porque essas pequenas propriedades sofriam com o esgotamento da fertilidade do solo decorrente do uso intensivo da terra. A alternativa para o fechamento das possibilidades de reprodução social dos colonos nos seus Estados de origem foi aderir ao projeto de modernização iniciado no governo de Getúlio Vargas. A política governamental denominada “Marcha para o Oeste” destinou recursos públicos para promover a ocupação de áreas ainda “livres”, desprezando seus primeiros ocupantes como os índios e caboclos - de acordo com o pensamento dominante - sem, no entanto, mexer com o latifúndio e seus mecanismos de reprodução. Nesse sentido é que foi criada a Colônia Agrícola Nacional de General Osório (CANGO), com sede em Francisco Beltrão. Quando Vargas assumiu o poder em 1930, ele rompeu todos os contratos com as empresas multinacionais, incorporando seus bens ao Patrimônio Nacional. Essas empresas tinham sido contratadas pelos governos anteriores para levar o “desenvolvimento” para todo o país, visando consolidar a ocupação do território nacional, em troca de pagamento em terras. A empresa norte americana Brazil Railway, possuía como pagamento pela construção de estradas o correspondente a toda a região do Sudoeste do Paraná - glebas Chopim - 715.080.142 m2 e Missões - 4.257.100.000 m2 (ABRAMOVAY, 1981, p. 39). A CITLA (Clevelândia, Industrial e Territorial Ltda) se estabeleceu na região, na década de 1950, com base no “direito” sobre as terras que teriam sido da Brazil Railway, que incorporava as terras da CANGO e propriedades particulares, até a divisa com a Argentina. Essa companhia tinha como objetivo vender os lotes de terra para os colonos, que vinham ocupando rapidamente a região Sudoeste. Porém, ela não era reconhecida pelos colonos como legítima proprietária, porque consideravam injusto o pagamento das terras que ou seriam gratuitas pela política da CANGO ou já teriam sido “pagas” aos caboclos. A ocupação intensiva da região foi estimulada pela política da CANGO que se constituía de doação gratuita de terra, ajuda técnica, assistência social e infra-estrutura, o que satisfazia os interesses dos pequenos agricultores. Com o passar do tempo, tais atrativos proporcionaram uma migração rápida que transformou5 a região e impulsionou o avanço das relações mercantis e o desenvolvimento da infra-estrutura urbana, criando as bases para a consolidação de um campesinato mercantilizado, que compra insumos e produtos e vende parte da sua produção. 5 A população da Colônia Agrícola , em 1950, era de 7147 pessoas e na região 76.373. De 1950 para 1960, houve uma explosão populacional. Em 1956 a CANGO havia cadastrado 15.284 pessoas e 26.000 esperavam cadastramento e em 1960, a região registrava 230.379 pessoas, sendo 119.787 na área rural. (Dados do IBGE e Relatório da CANGO, citados por GOMES, 1986, p. 22). As duas concessionárias da CITLA (Comercial e Apucarana) agiam na região intimidando e pressionando os colonos para assinarem compromisso de compra e venda das terras que ocupavam. Usavam expedientes violentos como saques, espancamentos, mortes e expulsão, utilizando inclusive uma milícia contratada (os jagunços). Os colonos reagiam e, após a morte de lideranças importantes, o movimento de resistência transformou-se em um processo de organização e de luta. Estabeleceram estratégias próprias de defesa, sem o auxílio institucional de segurança, que em última instância ficava do lado das companhias privadas (que contavam com o apoio do governo do Estado). Estas estratégias iam das “tocaias” às tentativas de fechar à força os escritórios das companhias. A reação dos colonos foi apoiada pelos responsáveis da CANGO, pelos profissionais liberais e comerciantes dos núcleos urbanos, intimamente vinculados com o setor rural e posteriormente pelos partidos de oposição (PTB e UDN). As tentativas junto ao governo do Estado e da União (incluindo abaixo-assinados, reuniões com políticos, etc.) foram muitas e de pouco efeito prático. O apoio recebido somou-se ao “surgimento de uma consciência nos colonos de que eles teriam de lutar se quisessem uma solução para seus problemas” (GOMES, 1986, p. 75). Deste processo resultou um grande movimento regional com a criação de Juntas Deliberativas e Comissões Executivas para tomar as decisões e organizar os colonos, caracterizando um levante dos colonos na luta pela terra. Os colonos, juntamente com as lideranças urbanas, expulsaram as companhias imobiliárias da região e negociaram a troca dos ocupantes de cargos do poder judiciário atrelados às companhias, e a não perseguição daqueles que haviam participado do movimento. Esses fatos coincidiram com um parecer do Parlamento contrário à concessão das terras para a CITLA. A legalização da posse dos colonos vitoriosos teve início em 1961, após a declaração de utilidade pública das glebas Chopim e Missões, pelo presidente Jânio Quadros. Em 1962, foi criado o Grupo Executivo para as Terras do Sudoeste do Paraná (GETSOP) para continuar o trabalho da CANGO e até 1972 expediram 35.856 títulos - 30.221 rurais e 5.653 urbanos (LAZIER, s/d). 3 - O DESENVOLVIMENTO DA PEQUENA PRODUÇÃO NA REGIÃO ATÉ A DÉCADA DE 1970 Foram grandes as transformações no modo de apropriação e de utilização do solo no Sudoeste após a chegada dos colonos. O fluxo de grande número de migrantes que ocupou a região, com base na pequena propriedade, ocasionou um rápido povoamento tendo que restringir obrigatoriamente a produção à parcela de terra que cada família ocupava. A base da economia cabocla foi pouco a pouco sendo desarticulada. Acabou o uso coletivo dos recursos naturais, pois a floresta deixou de ser um espaço aberto de extração livre de riquezas pelo agricultor. A transição foi pacífica porque, por um lado, a formação recente da vida cabocla na região (40 anos) não deu tempo para consolidar suas tradições culturais e o apego pela terra. Por outro, suas regras sociais não sofreram agressões explícitas dos novos migrantes que se colocaram como compradores da posse cabocla. A tradição dos colonos, constituída pela herança cultural européia e pelas experiências no Sul do país, sofreu mudanças em função das condições ecológicas, sociais (inclusive a troca de experiência com os caboclos) e econômicas concretas da região Sudoeste. Se a tradição européia continha elementos culturais que levavam em conta progressos técnicos decorrentes da “Revolução Agrícola”, havia a vivência em solo brasileiro que na prática alteravam tais conhecimentos. O entusiasmo pela produtividade das terras ainda inexploradas, obscureceu qualquer inovação das técnicas de preservação do solo. A experiência dos agricultores com o esgotamento do solo gaúcho, tanto na fertilidade como na incorporação de novas terras, não foi suficiente para que eles utilizassem técnicas mais adequadas. A queda da produtividade do trabalho agrícola não foi enfrentada com o uso de adubação com os dejetos de animais e com a rotação de culturas, técnicas já acessíveis aos imigrantes europeus. Em tese, os agricultores que chegaram no Sudoeste, tinham as condições para utilizar os recursos para corrigir o esgotamento do solo. Eles possuíam pelo menos “uma junta de bois, uma vaca leiteira e um rebanho suíno cujas dimensões variavam muito, mas que era sempre superior a uma dezena de animais” (ABRAMOVAY, 1981, p. 65). Tinham acesso aos resíduos dos animais, que poderiam ser lançados na terra como adubação, mas isso significava muito mais trabalho daquele já despendido pela família. A estratégia utilizada para garantir a fertilidade do solo era ainda a rotação de terras (formação de capoeira e queimada) com o encurtamento cada vez maior do ciclo, pois significava uma economia financeira e de trabalho. Essa lógica, aparentemente irracional, se reproduziu na região Sudoeste do Paraná. Apesar da experiência com a redução da produtividade após 30 a 40 anos de uso mais intenso do solo gaúcho, as condições concretas de reprodução social dos camponeses no Brasil permitiram a manutenção daquelas práticas. Os camponeses contaram, por muito tempo, com a alternativa de mobilidade espacial proporcionada pelas “novas fronteiras agrícolas” (Ex: na década de 1940/50 o Sudoeste e Oeste do Paraná; nas décadas de 1970/80 o Centro-Oeste e Norte do país). Os colonos levavam em conta as dificuldades e o grau de penosidade em desbravar novos espaços para a produção agrícola. Ao mesmo tempo, eles buscavam racionalmente obter o máximo de produção e satisfação de suas necessidades, com o menor esforço possível. No entanto, o sistema de produção baseado na policultura-criação e o uso da mecanização com trabalho animal (arado sem lâmina transversal, plantadeira manual e carroça), típico do modelo camponês europeu, foram amplamente utilizados pelos colonos sudoestinos. A área total de cada propriedade agrícola no Sudoeste era dividida em três partes: pequena área com pastagem para poucos animais; área com lavouras que variavam de tamanho segundo as demandas do mercado e a quantidade de braços disponíveis (em 1970: 37,4%; em 1975: 49,7% - Censo Agropecuário - IBGE); e área de capoeira ou pousio (mais de 40% em 1970 - Censo Agropecuário - IBGE). Na área de lavouras, os produtos mais comuns eram: milho para criação de suínos; feijão e trigo para o consumo familiar e venda do excedente; forragem com cana-de-açúcar, mandioca, alfafa para alimentar o rebanho bovino no inverno; arroz e horta doméstica para o consumo familiar. A combinação mais freqüente era a plantação consorciada de milho e feijão, no verão, e de trigo no inverno. A área em pousio era maior que a de lavouras, porque o tempo de rotação das terras dependia de fatores ecológicos e econômicos, entre eles a dimensão da área utilizada e a fertilidade do solo. Diferente das práticas dos caboclos (pousio florestal), os colonos utilizavam um “pousio arbustivo” (6 anos) e um “pousio curto” (um a dois anos), o que veio intensificar o trabalho agrícola (ABRAMOVAY, 1991, p. 108). As relações entre os colonos e os comerciantes do Sudoeste, apontadas desde a luta pela terra, eram próximas e com graus variados de dependência. Os comerciantes, ao mesmo tempo em que compravam a produção, vendiam os produtos para o consumo familiar e emprestavam os recursos necessários para o processo produtivo. Com o resultado da produção, os camponeses pagavam o empréstimo acrescido de juros altos. Mesmo assim, a relação entre eles era de confiança e o tratamento era pessoal e cordial. Era ao comerciante que o camponês recorria em caso de emergência ou necessidade. Entre 1950 e 1970, os colonos do Sudoeste experimentaram uma fase de grande prosperidade (foi comum a aquisição de mais terras). Segundo ABRAMOVAY (1981, p. 76), a explicação encontra-se: na propriedade da terra que retira o grau de incerteza do arrendamento; nas terras férteis cujo tamanho permitiram a rotação de terra e boa produção de cereais; na tradição dos agricultores - economia mercantil e técnicas mecanizadas com trabalho animal; na expansão do mercado urbano; e, o mais importante, no desenvolvimento do sistema agrícola baseado na unidade policultura-criação, que caracterizou a economia camponesa na época. A prosperidade dos colonos começa a declinar na medida em que permaneceram dependentes das técnicas tradicionais, como a queimada e a rotação de terras, para recompor a energia do solo. Deste modo, a agricultura camponesa, na década de setenta, passou a ser pressionada pelas conseqüências do uso constante do solo (ervas daninhas) que dificultavam o florescimento de uma vegetação arbustiva. Assim, “quanto mais fértil a terra, menor o tempo de capoeira necessário para que nela nasça uma vegetação suficientemente densa, capaz de regenerar ao solo os nutrientes de que necessita para receber novas culturas. E, inversamente, uma terra cansada exige mais tempo para recompor as energias que anos de plantio lhe retiraram” (ABRAMOVAY, 1981, p. 81). Ao agricultor restavam duas possibilidades: comprar mais terras para manter o regime de rotação utilizado, mantendo a lógica de poupar trabalho, pois a intensificação deste não representaria um aumento proporcional dos produtos; ou, não podendo comprar terras e não podendo aumentar o tempo de pousio para recompor o solo, ver cair a produtividade e a renda. Tal pressão somou-se ao aumento da demanda por produtos agrícolas pelo mercado brasileiro em expansão. Isso levou o agricultor a produzir mais e a adubação orgânica, que visava recompor a fertilidade do solo já desgastado, não abriu possibilidades de solução satisfatória, pois o agricultor reduziu a área de pousio para intensificar a produção. No Sudoeste, a produção agrícola dos colonos sofreu o processo de desgaste e, na busca de alternativas, modificou profundamente as condições de produção e manejo do solo. Após os anos setenta, uma grande parcela empobreceu; outra foi excluída do campo (População rural em: 1970: 81,7%; 1980: 68,0%; 1991: 52,8%; 1996: 47%; 2000: 40,1% - FIBGE - Censos Demográficos) e uma outra aderiu às soluções trazidas “de fora”, como o uso de insumos industrializados e a motomecanização. 4 – AS TRANSFORMAÇÕES DECORRENTES DAS INOVAÇÕES CIENTÍFICAS E TÉCNICAS: A ESPECIALIZAÇÃO NA AGRICULTURA As mudanças ocasionadas pela “Revolução Agrícola” na Europa, com o uso do arado, da adubação orgânica, da rotação de culturas e da união do processo de cultivo e criação, atingiram de modo parcial a realidade do campesinato brasileiro. No caso do Sudoeste, como vimos anteriormente, essas práticas agrícolas foram adaptadas às situações concretas dos colonos e apenas parcela delas foram efetivadas (uso do arado e a união cultivo/criação). Mas as transformações pelas quais a agricultura passou, a partir da segunda grande guerra, atingiram profundamente a economia camponesa. As modificações na base técnica em que se desenvolvia o modo de vida camponês, alteraram não apenas os fundamentos econômicos como a própria identidade camponesa. Os avanços técnicos foram apresentados em forma de um “pacote tecnológico”: a moto-mecanização, para ser aplicada no preparo do solo, plantio e colheita; os produtos químicos, como os fertilizantes, para recompor o solo; os defensivos, para controle de ervas daninhas e pragas (chamada Revolução Verde); a pesquisa genética aplicada na seleção das espécies animais e vegetais, para encurtar o ciclo reprodutivo e melhorar as espécies. A tendência que se evidenciava era a substituição do trabalho animal pela máquina; o fim da rotação de terras para recompor a fertilidade do solo; a substituição do uso dos recursos naturais para manter o equilíbrio ecológico (erosão e controle de pragas através da manutenção da floresta e dos predadores naturais, etc.); o melhoramento e controle de sementes; e a redução do ciclo de reprodução dos animais. Conseqüentemente, estas transformações trariam a intensificação da força produtiva do trabalho e o aumento da produtividade por área cultivada; fim da autonomia técnica; dependência dos insumos industrializados; e a especialização com o declínio do regime de policultura. No Brasil, o entusiasmo pela modernização atrelava-se à política dos governos militares (após 1964), que pretendiam a auto-suficiência alimentar e a produção de um excedente agrícola para o mercado internacional, que repercutisse positivamente em todos os demais setores da economia. Desta forma, a pretensão de aproximar-se dos países desenvolvidos estaria sendo resolvida pela adoção das tecnologias modernas, que em tese, trariam melhorias econômicas e sociais para todos os setores. A internacionalização era a principal estratégia do projeto de modernização conservadora dos governos militares; a industrialização era o centro irradiador deste processo. Deste modo, a agricultura tornou-se importante espaço de expansão capitalista pois, além de produtora de matérias primas e alimentos, tornou-se mercado para o parque industrial de máquinas e de insumos agrícolas. As culturas que ganharam destaque foram aquelas consideradas dinâmicas, ou seja, aquelas voltadas à exportação ou à grande agroindústria, também consumidora de máquinas e insumos industriais. O desenvolvimento dos transportes contribuiu para a modernização técnica, porque facilitou a comunicação através das ferrovias, rodovias e grandes navios. Ampliou o mercado para os produtos agrícolas e para a aquisição dos produtos industrializados. A expansão da especialização da agricultura contou ainda com a elevação repentina dos preços de determinados produtos no mercado internacional durante a década de 1960. Esse estímulo reforçou a erradicação de certas culturas e sua substituição por aquelas com maior demanda no mercado internacional, como o café, cana, soja e trigo. Coincidentemente, foram esses os produtos que obtiveram maior volume dos recursos provenientes do crédito agrícola subsidiado (MARTINE, 1987, p. 21-25). Foram vários os mecanismos utilizados no Brasil para que a racionalidade técnica penetrasse na agricultura. Essa segunda “revolução agrícola”, que ocorreu tão rapidamente no Brasil, deveu-se em grande parte à política agrícola estatal. Por um lado, houve o estímulo para a formação do parque industrial fornecedor de insumos e consumidor dos produtos agrícolas. Para produzir segundo as demandas da indústria, o Estado injetou recursos na agricultura, em quantidade e custo baixo, beneficiando uma parcela de agricultores. Por outro lado, as necessidades da agricultura em recuperar o solo e a produtividade do trabalho fizeram com que ela acolhesse as novidades técnicas. O crédito beneficiou uma parcela pequena dos agricultores. Em 1975, dos 5 milhões de estabelecimentos agrícolas, apenas 1 milhão teve acesso ao crédito, segundo o Banco Central (ABRAMOVAY, 1981, p. 137). Daqueles que receberam o financiamento em 1975, os estabelecimentos até 10 ha, que representavam 52,1% do total, obtiveram apenas 4,8% do total dos financiamentos. Os estabelecimentos de 1000 a 9999 ha, que representavam 0,8% do total dos estabelecimentos, obtiveram 36,5% do total dos financiamentos (IBGE, Censo Agropecuário, 1975). A tendência em beneficiar a grande propriedade, que produz segundo os pressupostos da modernização agrícola, foi reforçada por outros mecanismos financeiros como as políticas de preço mínimo (reforçou mais a comercialização dos produtos agrícolas adequados ao modelo); o seguro rural (sobre a dívida contraída e não sobre as despesas com a produção a que somente os mutuários do crédito tiveram acesso); e a política de subsídio (para baratear a aquisição dos insumos industrias e máquinas com recursos do Tesouro). Isso estimulou cada vez mais a conjugação dos interesses e dos capitais urbanos-industriais com o agrícola, favorecendo a valorização das terras que passaram a ser também uma alternativa de aplicação dos capitais urbanos para especulação (MARTINE, 1987, p. 25). Além dos mecanismos financeiros, o projeto de modernização contou também com a política nacional de extensão rural criada em meados dos anos 1970, através do Sistema EMBRATER/EMATER/ASTER. A ação extensionista ajustou-se às diretrizes do Sistema Nacional de Crédito Rural e se concentrou nas regiões e nos produtos de resposta rápida aos incentivos públicos. Deste modo, a extensão rural contribuiu para o fortalecimento da especialização da produção e excluiu a maioria dos produtores rurais que não tiveram acesso a tal modernização agrícola. No Paraná, entre 1970 e 1979, o crédito concedido para as lavouras aumentou em 500%. Estimava-se que do montante dos recursos para a produção, 25% destinava-se a aquisição de insumos industriais. Em 1979, 40% do financiamento concedido para custeio destinava-se a aquisição de corretivos, defensivos, fertilizantes, sementes e mudas melhoradas (IPARDES, 1981; VIEIRA, 1977. In: ABRAMOVAY, 1981). Em 1970, no Paraná, o uso da força de trabalho animal era de 44,9% e a mecânica 2,9%; em 1980, a força de trabalho animal cresceu para 56,0% e a mecânica para 44,3%. Essas transformações na base técnica, foram concomitante com as transformações “na pauta dos produtos”. Em 1970, as principais culturas temporárias eram o milho (51%) e o feijão (22%); já em 1980, o soja passa a ocupar 34,3% da área plantada, o milho 30,8%, o trigo 18,7% e o feijão 12,6%. O uso de adubo químico no Estado passou de 10,2 dos estabelecimentos totais em 1970, para 45,6% em 1980. (FREISCHFRESSER & OUTROS. In: MARTINE & GARCIA, 1987, p. 125). Essa mesma tendência verificou-se também nas regiões Sudoeste e Oeste do Paraná. O uso da força de trabalho animal, que era 41,2% do total dos estabelecimentos em 1970, passou para 58,8% em 1980. O uso da força de trabalho mecânica que era de 5,4% em 1970 passou para 54,3% do total dos estabelecimentos. O uso de adubos químicos, era de 1,9% do total dos estabelecimentos em 1970, abaixo da média do Estado, com a “modernização” passou para 50,3% em 1980, representando o maior aumento proporcional entre as regiões estudadas (Paraná Antigo; Grande Norte; Ext. Oeste e Sudoeste) por FREISCHFRESSER e equipe. No Sudoeste a paisagem foi rapidamente alterada. As áreas antes cobertas pelas matas passaram a ser ocupadas com plantações (com exceção das áreas íngremes), restando pouca terra em descanso (em cinco anos 80 mil hectares foram desmatados e 60 mil hectares de terras não utilizadas foram colocadas em cultivo - ABRAMOVAY, 1981, p. 109). No lugar das picadas apareceram estradas asfaltadas ligando a região aos centros maiores e aos corredores de exportação. É evidente que essas transformações não atingiram todos os agricultores, mas todos sentiram seus efeitos. Mesmo com a concentração dos recursos, parcela da produção camponesa foi beneficiada pelo crédito agrícola, promovendo uma rápida modificação da base produtiva do Sudoeste. A inserção da região no progresso técnico não atingiu todos os agricultores, porque as condições de acesso aos financiamentos - porta para a modernização - baseavam-se em critérios que dificultavam o acesso da maioria das pequenas unidades agrícolas. Os recursos passavam pelo sistema bancário que funciona com normas e critérios de distribuição desses recursos. Tais critérios levavam em consideração a “segurança” e “rentabilidade” das aplicações. O agricultor deveria preencher algumas condições básicas para ter acesso ao financiamento, principalmente a propriedade da terra em extensão suficiente para a garantia do crédito (bens para hipoteca) e a utilização do “pacote tecnológico” recomendado. A relação que se estabeleceu era de impessoalidade regulada pelas regras ditadas pelos bancos, muito diferente daquelas anteriormente estabelecidas com os comerciantes locais. A grande parcela dos pequenos produtores, com poucos recursos, com pouca extensão ou sem a propriedade da terra (posseiros, parceiros, etc) e sem escala de produção requerida pelas novas tecnologias, acabaram excluídos da modernização. Poderiam beneficiar-se aqueles agricultores que tinham solo mais favorável (declividade, fertilidade), com extensão e localização mais privilegiada. O acesso à terra pelos pequenos agricultores passou a ser fundamental para que tivessem acesso também ao crédito. Deste modo, a diferenciação social que vai se desenhando na região Sudoeste é entre a camada de agricultores que se “modernizaram”, porque tiveram acesso aos financiamentos subsidiados e, portanto, em tese, às inovações tecnológicas e aqueles que sem acesso ao financiamento e às novas tecnologias permaneceram “atrasados”. A esses restava a manutenção da propriedade via uma super exploração do trabalho familiar, pois para manter a produtividade do solo seria necessário mais trabalho vivo porque não tinham acesso ao trabalho das máquinas; a migração para as novas fronteiras agrícolas; ou, ainda, a exclusão do campo rumo às cidades. Deste modo, o atraso antes atribuído aos caboclos estende-se para os colonos que, pela falta de acesso à modernização, ficaram atrelados às práticas “tradicionais”, consideradas arcaicas frente ao novo modelo de desenvolvimento. No Sudoeste, as contradições geradas pela modernização foram muitas. O soja passou a ser cultivado na grande maioria dos estabelecimentos agrícolas. Os mini e pequenos estabelecimentos (90% do total dos produtores) da região de Francisco Beltrão possuíam, em 1978, 50% das terras mecanizadas (tração motor e animal) e eram responsáveis por 63% da área plantada de soja. Isso significa que, juntamente com a entrada das máquinas (45% dos pequenos e 21% dos mini recorriam a motomecanização), a maioria dos agricultores familiares continuou utilizando a enxada e o arado de tração animal, para produzir os produtos que impulsionavam a modernização (ACARPA. In ABRAMOVAY, 1981, p. 171-172). A alimentação animal passou a depender cada vez mais das rações industrializadas e submeteu o agricultor aos preços e condições do mercado. Porém, o milho continuou sendo produzido na grande maioria das pequenas unidades agrícolas. A combinação dos componentes da tradição camponesa com aqueles trazidos pela modernização indica o grau de diversidade das condições de reprodução social dos agricultores familiares, muito ao contrário da pretensa homogeneização do projeto de modernização. Neste sentido, se repete o mesmo processo que ocorreu quando os colonos chegaram ao Sudoeste. As inovações “modernizadoras” foram parcialmente assimiladas pelos agricultores familiares. A maioria dos pequenos estabelecimentos incorporou no processo produtivo: sementes selecionadas, fertilizantes, defensivos e rações industrializadas, combinadas com técnicas de manejo manual, tração animal e plantio para o consumo da unidade. A permanência da produção voltada para o consumo fomentou, de certo modo, a combinação da produção voltada essencialmente para o mercado, com a produção diversificada de alimentos, seguindo assim a tradição dos colonos da região. A permanência da agricultura familiar é justificada, também, pelo alto potencial de aproveitamento intensivo dos fatores à sua disposição, pois mesmo pouco tecnificada, ela “aproveita uma parcela maior de sua terra, emprega mais mão-de-obra e tem uma produção por hectare muito maior do que os conglomerados e latifúndios” (MARTINE, 1987, p. 21). A possibilidade de eliminar ou controlar determinados riscos sempre imprevisíveis na agricultura, não tem descartado o saber camponês e o acompanhamento diário da produção. E ainda, grande parte da topografia brasileira impede a utilização intensiva de tratores, colheitadeiras e outros implementos, exigindo maior intensidade de mão de obra (grande parte do Sudoeste). Em síntese, é possível afirmar que as transformações pelas quais passou a região Sudoeste do Paraná, a partir da modernização do campo brasileiro, alteraram aspectos importantes da identidade6 camponesa. Os termos “alterar” e “desestruturar” parecem mais adequados para a reflexão sobre a realidade do Sudoeste do Paraná, porque a modernização não significou a eliminação ou a desintegração de todos os elementos sócio-econômico-culturais que caracterizavam a vida campesina. Esses elementos não estão apenas nas “raízes” históricas do agricultor familiar do Sudoeste, encontram-se inseridos nas estratégias de sobrevivência, que passam a ser mais complexas na medida em que os agricultores estabelecem múltiplas relações econômicas e sociais proporcionadas pela sua integração, mesmo que parcial, ao modelo capitalista de produção. As contradições geradas pelo próprio sistema e a parcialidade da modernização, como vimos acima, criaram as condições para uma combinação de elementos “novos” e “tradicionais” que constituem o que pode ser chamado de um “modo de vida” dos agricultores familiares da região. Portanto, é possível compreender a agricultura familiar do Sudoeste a partir da sua condição social, que lhe é própria em função das condições 6 “No sentido sociológico, significa pertença de atores sociais a uma condição social em relação a outros atores e condições sociais. Essa pertença é definida pela concepção geral ou visão de mundo, pelo estilo de vida, pelas relações com os outros e com a natureza, pelo sistema de trabalho e de produção, pelo espírito religioso e pelo sistema de reprodução biológica e social” (GEHLEN, 1998, p. 57. In FERREIRA; BRANDENBURG). concretas de trabalho, de intervenção e uso dos recursos naturais, e das relações que estabelece com as instituições, entidades (inclusive religiosas), empresas e com os demais agricultores e comunidade. Estas transformações foram interferindo na identidade do “colono” que passou a se reconhecer como “agricultor ou agricultor familiar”. Ser “colono” durante os anos 1950/60 era pertencer ao projeto de “desenvolvimento” e “progresso” do país, contra o “atraso” dos caboclos e indígenas. A ocupação e prosperidade da região Sudoeste dependiam das experiências dos colonos de origem européia que ocupavam outros Estados do Sul. Na medida em que aquele modelo entrou em declínio, a partir da modernização, ser “colono” passou a significar ser “atrasado”, porque aderir ao projeto de modernização requeria substituir vários aspectos da tradição camponesa, presentes na vida do “colono” do sul. 5 – OS LIMITES DA MODERNIZAÇÃO NO CAMPO A expansão da modernização da agricultura para os países em desenvolvimento acabou por modificar a estrutura da produção agrícola do Brasil, trazendo modificações importantes para a agricultura familiar. Não conseguiu, contudo, como era a pretensão do projeto modernizador, melhorar substancialmente as condições de vida da maioria da população rural nem da urbana. Promoveu, num curto espaço de tempo, a degradação das condições de vida de parcela significativa da população que, expulsa do campo, não encontrou no meio urbano alternativas de sobrevivência (bóias-frias, desempregados, subempregados). O inchaço acelerado das cidades ocasionou uma ocupação desordenada, em que o acesso aos bens e serviços ficou limitado àquelas pessoas que foram absorvidas nas atividades econômicas urbanas, melhor remuneradas. Como houve concentração da população oriunda do meio rural nas cidades onde mais rapidamente se desenvolveram a indústria e o comércio, houve também maior concentração do desemprego e da miséria. Promoveu, também, a degradação do meio ambiente pelo uso intensivo do solo e a exploração predatória dos recursos naturais. A devastação das florestas e o fim do pousio ocasionaram um grave desequilíbrio ecológico que causou o assoreamento dos rios, poluição das águas e a propagação de pragas e invasores pela falta de seus predadores naturais O solo “compactado” pelas práticas agrícolas de intensa manipulação para produzir soja/trigo, dificultou a incorporação dos insumos para recompor a fertilidade do solo. O solo “descoberto” propiciou a erosão e contribuiu para a queda da produtividade agrícola. O uso indiscriminado de insumos químicos, aliado à precariedade na manipulação e aplicação causou a contaminação dos alimentos e prejudicou a saúde de muitos agricultores. No Sul do país, e em especial no Sudoeste do Paraná, a agricultura familiar viveu o processo de degeneração do solo e das condições de manutenção do sistema de produção “modernizado” (aquele que incorporou o progresso técnico e a pauta dos produtos recomendados). Iniciativas foram sendo tomadas para enfrentar tais problemas. Para controlar a erosão e manter a produtividade do solo, recorreu-se ao plantio direto7 - incremento à revolução verde - trazido dos EUA experimentalmente pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) já no início dos anos 1970. Esse sistema se expandiu rapidamente entre as médias e grandes explorações agrícolas, produtoras de soja/trigo altamente tecnificados. No Paraná, os agricultores das regiões do planalto, principalmente Ponta Grossa e Guarapuava, iniciaram a adoção desse sistema que posteriormente se expandiu para as demais regiões e penetrou, também, nas pequenas explorações agrícolas. Um dos impactos importantes foi à liberação de mão de obra, pela redução do tempo dispensado no preparo e manutenção da produção. A liberação de mão de obra favoreceu a busca dos agricultores familiares por outras alternativas de sobrevivência, entre elas destacam-se as atividades extra-agrícolas (pluriatividade). No entanto, a busca de alternativas técnicas para garantir a produtividade agrícola conviveu com dois problemas importantes. O primeiro, foram às políticas agrícolas dos países Europeus e Norte-americanos, que previam subsídios constantes para manter a produção agrícola e remunerar adequadamente seus agricultores. Como conseqüência, houve o estímulo para a permanência de uma parcela da população rural nas atividades agrícolas e a geração de um volume cada vez maior da produção. A “superprodução” daqueles países interferiu na capacidade de exportação brasileira e na remuneração de seus agricultores. A queda constante dos preços dos produtos agrícolas no mercado internacional, desestruturou o modelo técnico adotado (atrelado à produção do soja) e dificultou, ainda mais, a remuneração dos agricultores familiares que sobrevivem, sem contabilizar a força de trabalho no custo de produção. Essa desestruturação vai estimular iniciativas, inclusive do Sistema de Extensão Rural e Secretarias Estaduais e Municipais de Agricultura, de “diversificação” da produção, 7 ”um sistema de exploração agropecuário, que envolve diversificação de espécies, via rotação de culturas, as quais são estabelecidas mediante a mobilização de solo, exclusivamente, na linha de semeadura, mantendo-se os resíduos vegetais das culturas anteriores na superfície do solo - é um complexo de tecnologias de processo, de produto e de serviço, que atuam de forma integrada e dependentes umas das outras” (DENARDIN; KOCHHANN, EMBRAPA Trigo: mim) conversão de sistemas produtivos e de agroindustrialização, com o objetivo de “agregar renda” às atividades agrícolas tradicionais. O segundo problema foi à ausência de uma política agrícola e agrária brasileira, de interesse da grande massa dos agricultores familiares (só em 1996 o PRONAF - Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar, com parcos recursos). A retirada dos financiamentos subsidiados, da política de preços mínimos e dos estoques reguladores pelo governo brasileiro visou, por um lado, aliviar as despesas do Estado endividado; por outro, participar da “nova onda” de internacionalização do capital, que exigia um Estado “enxuto” e pouco regulador da economia (livre mercado global). A reação tanto dos agricultores como da sociedade civil organizada não tardou. Na década de 1980, surgiu um forte movimento em defesa da agricultura familiar enfraquecida pelo projeto modernizador. O processo de “redemocratização brasileira”, após 1984, revitalizou a base sindical e associativista, com uma pauta de ações de oposição ao modelo instituído (desenvolvimentismo sob tutela dos governos militares). No Sudoeste do Paraná, o movimento sindical e associativista, vinculados aos agricultores familiares, estabeleceram estratégias que se contrapunham ao projeto modernizador. Desde o início dos anos de 1980, a ASSESOAR (Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural), entidade composta e gerida pelos agricultores familiares (sob forte influência da igreja católica) e os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais da “oposição sindical” vinculados à CUT (Central Única dos Trabalhadores), desenvolveram programas alternativos para os agricultores familiares empobrecidos. 6 – ESTRATÉGIAS DA ASSESOAR. A Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural foi fundada em outubro de 1966, por iniciativa dos Missionários do Sagrado Coração (MSC), no contexto da atuação cristã pela democracia, com o envolvimento direto com a evangelização e a busca pela melhoria das condições de vida dos agricultores. Segundo Claudino (entrevista, julho de 2003) “nasce de uma iniciativa de inserção social cristã na região, que se iniciou nos anos de 1962 através do movimento dos padres belgas e da juventude agrária católica (JAC) [...] com um tipo de catequese que incluía toda a família [...] e tinha um enfoque de que a partir da fé deveríamos nos fazer presentes [...] seja na vida social, na produção ou na política”. Num período que se estende de 1966 até 1978, sob a direção dos padres e de profissionais liberais, a ASSESOAR atuou junto “aos movimentos da igreja (Catequese, Renovação Litúrgica, JAC, CEBs, Ministros da igreja) e às organizações dos agricultores familiares, originados dos movimentos católicos (Cooperativas, Sindicatos, EFAs/CFRs, Formação de monitores e Grupos/Associações)” (ASSESOAR, 2001, p. 16). A ênfase nesse período era propiciar espaços de “formação” tanto de quadros capacitados para atuar nas direções das Cooperativas, Sindicatos e Associações, como de agricultores para atuar de forma crítica ao modelo dominante de agricultura, adotando um “projeto alternativo de produção agrícola”. A metodologia utilizada priorizava a participação ativa dos envolvidos. Como diz Claudino, As reflexões eram no sentido de como deveríamos nos relacionar eticamente com os outros, com o mundo e com a natureza, e aí já se vinculava uma idéia de respeito à natureza, sem ainda ter claro um conceito de ecologia, mas uma visão de inserção do ser humano com a natureza de uma forma harmoniosa e não agressiva. Aí nasce uma reflexão crítica dos procedimentos do grande capital no mundo e no Brasil e as concepções de ser humano, de sociedade, de estado e de políticas públicas com as quais trabalhavam (entrevista de julho de 2003). A partir de 1975, segundo Claudino (2003), foi com o auxílio de um casal, monitores das Casas Familiares Rurais francesas, que a ASSESOAR iniciou o projeto de formação para a produção agrícola alternativa. Sob a orientação técnica desse casal, iniciaram-se os cursos nas comunidades e distritos mais organizados, para a capacitação de “monitores agrícolas” e dos “grupos de agricultura alternativa”. A metodologia consistia em reunir os grupos e a partir de suas práticas agrícolas buscar questionar a compra de insumos que poderiam ser produzidos na propriedade. Em geral, reuniam o grupo para uma palestra pela manhã e a tarde realizavam a experiência na propriedade do agricultor e agendavam um encontro de avaliação dos resultados. Se tratava de melhorar a qualidade de vida das famílias que se envolvessem com o processo, e que elas se dessem conta de que indo sozinhas elas não conseguiriam trazer a melhorias necessárias, era preciso se organizar. Assim surgem os grupos que se reúnem, debatem e recebem visitas dos técnicos e começam a desenvolver experiências. Aí começa a se refletir, por exemplo, sobre toda a propaganda na televisão dos produtos químicos, adubos, venenos e sementes e perguntávamos: e as sementes de vocês, que foram boas até agora? Como pode agora não ser mais boas? Aí mostrávamos todo o interesse do capital para eliminar toda a força do poder dos agricultores que vinha do controle da produção de sua semente e adubo. Perdendo esse conhecimento eles nos enfraqueceriam” (idem). Em 1978, a ASSESOAR sofreu uma mudança significativa. A direção passou para as mãos dos agricultores e os técnicos, padres e profissionais liberais foram convidados a atuar dentro dos dois departamentos: social e cultural; produção agrícola alternativa. Isso acabou afastando, principalmente os padres (alguns foram transferidos) e políticos que com o processo de democratização, no início dos anos oitenta, optaram por diferentes partidos e projetos políticos. A maioria dos membros da ASSESOAR filiou-se ao PT. Esse processo culminou com a mudança da “matriz teórico/ideológica [...], que vinculava-se às diretrizes dos movimentos sociais, sobretudo o sindical e sem terra, assumindo um discurso classista, de cunho marxista leninista, mas vivendo uma prática mista, dúbia e contraditória, pois misturava a concepção marxista leninista, com democracia cristã e social democracia” (ASSESOAR, 2001, p. 17). A ação política deveria se dar nas esferas mais gerais e as transformações estruturais da sociedade. No período entre 1978 a 1989, houve grande expansão do número de organizações populares de abrangência regional, estadual e da região sul do país (Ex: Rede de Tecnologias Alternativas (PTA), MASTES – Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste do PR; CUT/Sudoeste; DETR/PR – Departamento Estadual dos Trabalhadores Rurais; DESER – Departamento de Estudos Sócio-Econômicos Rurais; ESMA – Escola Sindical Margarida Alves, atual Escola Sul da CUT). Em meados de 1980, foi iniciado o projeto do crédito rotativo solidário. Como diz Claudino (entrevista, julho 2003), através do “contato com uma organização evangélica européia, que vinha financiando projetos da ASSESOAR, ela propôs que a ASSESOAR criasse um fundo rotativo com [...] o dinheiro que ela emprestava e que não queria de volta [...] ele seria usado para financiar os grupos de agricultores [...] que receberiam o dinheiro e depois de uma carência iriam devolver para o fundo, para financiar outros agricultores”. Esse projeto deu origem ao Fundo de Crédito Rotativo, que financiava os projetos alternativos de produção, industrialização e comercialização, em convênio com CNBB/CPT/CUT/MST e MISEREOR – Alemanha. Esse processo culminou com a construção coletiva do Sistema CRESOL/BASER (Cooperativa de Crédito com Interação Solidária), que atualmente toma dimensão nacional, através do programa de micro-crédito do governo federal. O relativo “abandono” das bases, avaliado pela assembléia de discussão do plano Trienal (87-89), fez com que a ênfase do Plano fosse o “retorno” às bases (associados organizados), para “contribuir na definição de um projeto alternativo de sociedade, a partir das propostas elaboradas pelas práticas dos trabalhadores, nas diferentes áreas: sindical, agrícola, partidária e educacional” (Plano Trienal 87-89, citado ASSESOAR, 2001). Assim, são desenvolvidas ações de cunho: associativista na produção, comercialização e beneficiamento de produtos; sindical com ênfase na formação e articulação dos trabalhadores rurais; profissional no campo da agricultura alternativa; e político partidário e parlamentar para formar quadros para atuar nos partidos e no parlamento. Foi um período de grande ampliação da contratação de técnicos (de 20 para 30), o que na avaliação de muitos agricultores elevou o poder dos assessores e dificultou o controle institucional dos agricultores (ASSESOAR, 2001). A partir de 1991, “após uma segunda grande crise de identidade e um amplo processo de reestruturação, a instituição volta-se para o tripé: construção, sistematização e difusão de propostas populares, visando sua transformação em políticas públicas em atendimento ao desejo da sociedade civil organizada, avançando na luta pela democratização e publicização do estado brasileiro” (ASSESOAR, 2001, p. 19). Esta posição favoreceu as parcerias formais com organizações e instituições oficiais para desenvolver ações de “desenvolvimento sustentável”. Desse processo originou-se programas e projetos de acompanhamento a Cooperativas e Associações de agricultores familiares para a organização da produção, industrialização e comercialização (produção orgânica de grãos, cereais, verduras e frutas e pequenas indústrias de açúcar mascavo/melado, laticínios comunitários, abatedouros de frango, suíno e gado). Originou, também, uma rede de Associações de comercialização e produção que resultou em 160 entidades sob a Coordenação da CRAPA (Coordenação Regional de Associações) e a criação do selo orgânico e do Conselho de Certificação (Núcleo Regional Sudoeste do Paraná da Rede Ecovida de Agroecologia). Diante dessas principais ações da ASSESOAR, pode-se perceber três contraposições explícitas ao plano modernizante: a agricultura alternativa que não utiliza insumos químicos nem manejo das máquinas que degrada o solo; a base de fomento dessa agricultura, não mais sob uma ótica puramente individual, mas coletiva (associativismo), gerida e controlada pelos próprios agricultores (nem comerciante usurário nem banco); e uma rede de comercialização da produção que busca eliminar o “atravessador”, estabelecendo um contato direto entre produtor e consumidor. Para a ASSESOAR, “A agricultura familiar é a que mais produz alimentos, a que melhor distribui a riqueza no meio rural e a que menos agride o meio ambiente; é urgente construir a cidadania no meio rural; o conhecimento se constrói num processo contínuo e participativo, onde todos ensinam e todos aprendem, cada um segundo sua capacidade; o desenvolvimento regional, nesta linha, só será possível por uma ação conjunta das diferentes organizações regionais de caráter popular e progressista” (ASSESOAR, 1997). Do ponto de vista de três agricultores familiares envolvidos neste processo (entrevistados em 1998), pode-se perceber os reflexos tanto nas concepções de agricultura e da sociedade como nas práticas produtivas. São experiências de agricultores (Laticínio coletivo de leite; Criação e abate de frango diferenciado; Fabriqueta coletiva de açúcar mascavo) que são militantes de Sindicatos de Trabalhadores Rurais e da própria ASSESOAR e que passaram a desenvolver, a partir dos anos de 1994, iniciativas alternativas de produção (“ecológica” ou “diferenciada”), de industrialização e de comercialização. Na visão dos entrevistados, a ação da ASSESOAR foi fundamental, pelo trabalho consistente de geração de fontes alternativas de renda através da agregação de valor aos produtos primários e pelo incentivo à organização e ao trabalho coletivo. Afirmam que o resultado conquistado deve-se à priorização do trabalho coletivo, apoiado nos recursos do crédito rotativo e no acompanhamento técnico da ASSESOAR, desde a gestão e organização da propriedade até o acompanhamento de todas as etapas do processo de implantação e desenvolvimento do projeto alternativo de geração de renda. Nos depoimentos dos membros do laticínio coletivo e da fabriqueta de açúcar mascavo é possível apreender o processo de politização e a busca por outros modelos de produção e relação com o mercado, pouco relacionados com o previsto pelo projeto modernizador. “O que nós desejamos é ter uma vida digna, não ter riquezas materiais, mas o suficiente pra ter uma vida tranqüila, não ter que se estar aí se humilhando pra outras pessoas{...}o suficiente até pra ajudar os outros. Que os agricultores pudessem perceber, não ser enganados do jeito que são por quem manda no país e no município, saber ser cidadão. Que as cooperativas que tão surgindo aí que a gente tem certeza que serão as grandes incentivadoras para os agricultores permanecerem na propriedade. Que realmente as mulheres participassem de igual pra igual na sociedade. Que os produtos tejam nome, tenha selos da agricultura familiar e não das agroindústrias que não tem nada a ver{...}que os agricultores ganhem esse dinheiro aí eles podem ficar na agricultura, porque hoje quem tá ganhando são os atravessador” (laticínio coletivo) “É ter uma vida realmente digna não só pra gente como pra família toda e pros companheiros, pra vizinhança toda. Que os agricultores tivessem uma vida melhor. Que o governo desse mais incentivo pra agricultura e não só pras multinacionais que vem pra cá dizendo que geram emprego, só que eles já trazem junto os empregados” (fabriqueta açúcar mascavo) Assim, é possível observar “novos” elementos que se inseriram no “modo de vida” dos agricultores e modificaram alguns aspectos importantes. A preocupação é com os companheiros da mesma forma que com a família. O exercício do trabalho coletivo capacita-os para enfrentar uma série de problemas de modo diferenciado. As tarefas são compartilhadas a partir do momento em que a atividade extra-agrícola é desenvolvida. A produção agrícola ocorre de forma individual, mas o planejamento e a administração das atividades individuais voltadas para a agroindústria, como todo o trabalho de industrialização, gestão e comercialização, são realizados coletivamente. Esses dois produtores são contrários à modernização da agricultura porque “acabou com a agricultura da região, com a natureza, e com a saúde da população”. Todas as famílias dessas associações buscam alternativas de produção “orgânica”, inclusive as famílias da indústria de açúcar mascavo fazem parte do projeto “Terra Preservada”8 (soja e feijão, além da cana). No caso do laticínio, eles não fazem parte de uma organização, mas procuram não usar “veneno” porque buscam alternativas mais “naturais”. 6 – NOTAS FINAIS Para entender as diferentes “ruralidades” que se manifestam no sudoeste do Paraná, é necessário compreender, como diz Wanderley (2000), a trama social e a trajetória de seu desenvolvimento. É necessário reconhecer que a pretendida homogeneização do projeto de modernização do campo gerou, ao contrário, uma maior heterogeneidade. Se considerarmos que o rural brasileiro, do início do século XX, era marcado pela presença dos grandes latifúndios voltados para a produção agro-exportadora e pelas relações camponesas no interior ou nas margens da grande propriedade, essencialmente produtora de alimentos, os efeitos do projeto de modernização, intensificado nos anos sessenta e setenta promoveu mudanças significativas. Os impactos da modernização foram variados, pois o pacote tecnológico e os produtos da pauta de exportação e de demanda da indústria brasileira, penetraram as regiões de modo diferente, porque são diferentes as condições ambientais e sociais do meio rural. Se os impactos do projeto modernizador foram diferentes, também foram diferentes as estratégias utilizadas pelos agricultores familiares para enfrentar a “crise” deste modelo, que marca fortemente os anos noventa. Crise desencadeada pelos próprios limites do produtivismo, evidenciados na super produção, na queda de preços dos produtos agrícolas, no aumento dos preços dos insumos industrializados, além dos problemas ambientais pelo uso excessivo de agrotóxicos e dos recursos naturais. Soma-se, ainda, os problemas sociais promovidos pelo intenso êxodo rural e pela precariedade das condições de vida no campo e na cidade. As chamadas “novas ruralidades” são resultantes deste processo. O turismo rural, a produção orgânica, as áreas de preservação ambiental onde vivem populações “tradicionais”, assentamentos da reforma agrária, a pluriatividade, entre outros. 8 Terra Preservada Indústria e Comércio de Alimentos Orgânicos Ltda: empresa que compra e exporta produtos orgânicos, vem trabalhando na região de Capanema com a soja orgânica com integração com os pequenos agricultores. Seus produtos são certificados pelo Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento Rural. Neste sentido é que se torna relevante às estratégias dos agricultores familiares que se articularam e se articulam em torno da ASSESOAR. Principalmente as experiências que buscaram enfrentar, tanto os pressupostos políticos/ideológicos do projeto de modernização como as ações e os problemas por ele suscitados. No limite, propuseram ações que se contrapõem ao modelo de desenvolvimento promovido pelo Estado e que se tornou hegemônico na sociedade brasileira. Ações que visam tornarem-se referências para promover a mudança das próprias políticas públicas, com base nas experiências concretas dos agricultores organizados. Um projeto que pode ser considerado em parte vitorioso, pois a proposta do atual governo de expandir o micro-credito leva em conta a experiência do Sistema CRESOL/BASER. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOWAY, R. Transformações na vida camponesa: o sudoeste do Paraná. Campinas, 1981. Dissertação de Mestrado - UNICAMP. ASSESOAR. Uma história em construção: 32 anos fortalecendo a agricultura familiar. Francisco Beltrão: Grafit, 1997. ___. Revista Cambota, Ano XXVII, nº 250, julho de 2001. ASSESOAR/FACIBEL. 1957-1997: A revolta dos colonos. Francisco Beltrão: Grafit, 1998. BRANDENBURG, A, FERREIRA, A. D. (orgs.). Para pensar outra agricultura. Curitiba: UFPR, 1998. DENARDIN, J; KOCHHANN, A. Pesquisa e desenvolvimento em sistema plantio direto no Rio Grande do Sul. XXVI Congresso Brasileiro de Ciências do Solo. Rio de Janeiro: 1997. DEPARTAMENTO SINDICAL DE ESTUDOS RURAIS. Diagnóstico sócio-econômico da agricultura familiar do sudoeste do Paraná. Ijuí: DESER/UNIJUI, 1992. 2v. FERREIRA, A. F. et all. Desenvolvimento sustentável e preservação da natureza: estratégias dos atores sociais do meio rural em áreas de Proteção Ambiental – Guaraqueçaba, litoral norte do Paraná – projeto de pesquisa. Texto mim., 2002. GEHLEN, I. Agricultura familiar de subsistência e comercial: identidade cabocla e inclusão social. In: FERREIRA, A; BRANDENBURG, A (orgs). Para pensar outra agricultura. Curitiba: Editora UFPR, 1998. p 51-70. GOMES, I. Z. 1957 A revolta dos posseiros. Curitiba: Criar Edições, 1987. IPARDES. Boletim de análise conjuntural. Curitiba: Fundação Edison Vieira, v. 2, n. 8, ago-set, 1980. LAZIER, H. Coleção cadernos do sudoeste do Paraná. Francisco Beltrão: s/d. n 1. MARTINE, G. A trajetória da modernização agrícola: a quem beneficia. 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