Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6 África e América: olhares jesuíticos sobre a natureza das colônias lusitanas Leandro Garcia Pinho1 As definições físicas, geográficas, da natureza, são importantes só na medida em que nos indica o palco da grande aventura humana. (LOPES; ARNAUT, 2008: 35). Resumo: Os jesuítas, desde sua chegada ao Novo Mundo, estiveram preocupados em descrever a paisagem e seus componentes naturais do mundo colonial do qual faziam parte e ajudavam a descortinar. E isso é o que se percebe tanto em leituras de missivas – como as de Ambrosio e Antonio Pires, Manuel da Nóbrega e Anchieta – como de textos mais extensos – como os de Francisco Soares e Fernão Cardim. Paralelamente, inacianos também começavam a se dirigir às terras de conquista lusitana na África. Como estes jesuítas perceberam a flora e fauna das terras do continente africano? Em uma natureza diversa da americana, em que sentido sua visão de mundo natural era semelhante ou diferente da apresentada por seus “irmãos” de Ordem na América? Como podemos (re)pensar um estudo comparativo entre os escritos jesuíticos africanos e americanos do século XVI sobre a natureza das colônias lusitanas? A proposta é discutir estas e outras questões. Introdução Por forças legais, a historiografia brasileira tem começado a descortinar um vasto campo de estudos que tem como tema a História da África. Isto não significa dizer que estivemos totalmente cegos aos acontecimentos que fazem parte do passado de um continente que em muito contribuiu para nossa formação, como se pode perceber por alguns pioneiros estudos realizados no último século e no início deste (PANTOJA; SARAIVA, 1999; ALENCASTRO, 2000; COSTA E SILVA, 2002). Vários fatores justificam esta quase ausência de reflexões acerca de estudos históricos sobre o continente africano entre os pesquisadores brasileiros. Assim como a historiografia Doutor em Ciência da Religião/Ciências Sociais da Religião (UFJF-MG), Mestre em História Social (UNICAMP-SP), Professor do Instituto Superior de Educação de Itaperuna (FAETEC-RJ) e Vice-Reitor, Coordenador de Curso e Professor do Centro Universitário São José de Itaperuna (UNIFSJ). 1 1 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6 ocidental, a nossa sofreu com os preconceitos sedimentados sobre o objeto de estudos em relevo. Eurocentrismo, determinismos biológico-raciais, teorias equivocadas, informações distantes da realidade, forças ideológicas dominantes e diferentes outros aspectos podem ser buscados para entendermos o porquê da distância entre o elo real do mundo europeu com a África e um conhecimento realmente qualificado acerca deste último continente por parte dos habitantes do Velho Mundo. Esta perspectiva pode ser percebida desde os remotos contatos da chamada “civilização européia” com o enorme continente ao Sul da Europa. A menção pejorativa em relação ao continente africano já está presente nas interpretações medievais a respeito da constituição do mundo (LOPES; ARNAUT, 2008: 13), da cartografia aos textos escritos por viajantes. Com exceção dos estudos árabes, em que sua contribuição para o conhecimento sobre a África é muito importante e pouco estudada, até mesmo as modernas ciências sociais sofreram deste determinismo, relegando a patamares “primitivos” o universo cultural africano. As contribuições que questionariam o exacerbado eurocentrismo presente nas ciências sociais só seriam realizadas por estudos pioneiros como os de Guerreiro Ramos (1958) e Abdel-Malek (1972). E efetivamente pertencentes ao universo intelectual das discussões acadêmicas com a publicação de O Orientalismo de Edward Said, em 1978. (BARBOSA, 2008, p.46). No Brasil, difícil seria apagar as marcas da contribuição. Em compensação, assim que começavam a surgir novos estudos que tentavam dar conta da presença dos africanos e seus descendentes na América lusitana, como no clássico Casa-grande e Senzala (1933), de Gilberto Freire, a ênfase estava voltada ao legado africano em nossa cultura. Mais especificamente, Freire enaltece a capacidade de adaptação do negro ao trópico, bem como a profundidade das marcas culturais dos africanos na formação da nacionalidade brasílica. E, num ponto bem característico da tomada de posição de Freire, o mesmo “atribui uma função social diferente da convencionalmente atribuída ao negro na formação brasileira, a partir da qualificação dele como colonizador” (BASTOS, 2001: 228), o que enfatiza o papel de civilizador por ele representado. Na esteira de estudos sócio-antropológicos, realizados a partir da publicação da obra de Freire, não se falava da história da África em si, com seus componentes e particularidades, 2 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6 mas sim dos atributos culturais deixados pelos africanos na formação de nossa sociedade, o que juntamente com os elementos ibéricos e indígenas evidenciaria nossa particularidade em relação aos demais povos e países do mundo. É a partir de pontos como estes – lacunas historiográficas, preconceitos teóricos e a certeza de um enorme campo a ser explorado pelos estudos históricos – que este estudo se justifica, objetivando entender as percepções dos europeus que se dirigiram à África como missionários, levando o cristianismo, de feições ibéricas, aos rincões do continente negro. Partindo de minha trajetória de estudos voltados para a percepção do jesuítas acerca do mundo natural do Novo Mundo, tento entender quais seriam as particularidades e as aproximações existentes na visão dos inacianos ao participaram da empreitada colonizadora tanto da África quanto da América. Desta forma, pretendo perceber, através de um estudo de história comparada, uma possibilidade de entendermos os meandros do “projeto” missionário jesuítico em contato com diferentes “mundos” extra-europeus. Até que ponto a visão sobre o mundo natural da África e da América por parte dos jesuítas teria sido somente mais uma parcela do grande número de estudos que ajudaram a formar uma mentalidade deturpada e dotada de estereótipos por parte dos mundo Ocidental em relação aos continentes colonizados a partir do início da Era Moderna? Percebi, através de meus estudos realizados ao longo de alguns anos de pesquisa para o desenvolvimento de minha tese de doutorado que havia textos jesuíticos do século XVI, escritos a partir do contato desses missionários com as terras do Novo Mundo, que pouco tinham sido explorados pelos analistas de obras dos inacianos. Cartas, datadas da primeira década da chegada dos jesuítas na América lusitana, tentavam dar conta da compreensão da natureza dessas regiões exóticas à mentalidade européia. Pelos textos dos jesuítas Antonio Pires, Manuel da Nóbrega e Ambrosio Pires, pude perceber como os pioneiros jesuítas começaram a revelar em seus escritos o mundo natural das nossas terras. Notei também que, seguindo a trilha dos primevos escritos jesuíticos, um texto do José de Anchieta, datado de quando a Companhia já fazia onze anos de atuação na América, em 1560, existem peculiaridades sobre as terras da América inexistentes nos outros textos jesuíticos destacados até então. A tentativa de ser mais esclarecedor, bem como sua preocupação em tornar o mais visível possível a imagem do elemento natural descrito, seriam atributos deste texto do 3 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6 famoso jesuíta e farão dele um “discurso fundador”, fazendo-o imitado por outros escritos que tentariam dar conta de nosso mundo natural. À medida também que se passavam os anos de contato dos inacianos na América portuguesa e aprofundava-se a relação destes com a “nova terra” mudanças na forma como apresentar essas terras começam a ocorrer. É o que textos como os de Francisco Soares e Fernão Cardim podem nos mostrar. Tentativas compiladoras em forma de tratados, estes textos – Coisas notáveis do Brasil e Do clima e terra do Brasil, respectivamente – serão fontes impressionantes da preocupação que passa a fazer parte de escritos jesuíticos neste momento. Esses dois textos seriam os que dentre aqueles dos jesuítas na Luso-América dos quinhentos que mais se aproximam, em tentativa compiladora e densidade analítica, do texto de José de Acosta. Assim, a partir da análise desses textos quinhentistas, escritos por jesuítas que para a América vieram, ajudando a compor o que poderia ser chamado de processo de Ocidentalização2, tento no projeto que agora divulgo seu andamento, perceber se esta problemática de percepção do mundo natural, a partir de uma filosofia natural à moda jesuítica, também esteve presente entre os textos dos inacianos que se dirigiram para a África. Numa abordagem comparativa, ao mesmo tempo em que tento entender a dinâmica dos textos jesuíticos em contato com novas terras, pretendo discutir as diferenças e aproximações na percepção da pensamento europeu do século XVI em relação à África e à América. No intuito de evangelizar, os jesuítas vão se dirigindo às terras conquistadas – ao mesmo tempo em que também ajudavam nessa conquista – não só levando o arcabouço cultural europeu às “novas” áreas, como também trazendo a seu modo, é importante dizer, as percepções do que viam e sentiam para o universo mental europeu. Para este fim, a catequese foi a porta principal pela qual os jesuítas levavam a cultura européia para a América e para a África. Como lembra Miranda (2004: 148), “os jesuítas foram os pioneiros na educação do negro no Brasil e na África”. Uma escola jesuítica para os africanos já existia em Luanda no início do século XVII. Ainda em andamento, o presente projeto tenta oferecer uma oportunidade de se comparar textos considerados canônicos e clássicos dentro da produção letrada jesuítica com Duas obras de Gruzinski são fundamentais para entender esta idéia do autor mencionado: Cf. GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço; A colonização do imaginário. 2 4 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6 os chamados documentos de história colonial da América e da África. A empreitada jesuítica de descrever a natureza brasílica e africana pode ser importante chave para compreendermos como o pensamento europeu da era Moderna se moldava ao mesmo tempo em que imprimia uma visão das terras extra-européias que seriam gradativamente conquistadas pelo avanço do Velho Mundos aos mais distantes rincões do globo terrestre. A análise desses escritos pode nos permitir ver tanto as apropriações feitas pelos africanos e indígenas dos elementos europeus – como fez Gruzinski com estes últimos no Novo México – quanto às adaptações realizadas pelos representantes da cidade das letras (RAMA, 1985) ao referencial por estes trazidos no intuito de facilitar e/ou efetivar o processo de colonização. E mesmo inconscientemente de que assim estavam fazendo, os jesuítas serão importantes contribuintes na formação de um pensamento de via de mão-dupla no alvorecer da época moderna. Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ANCHIETA, José de. Cartas. Informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. BARBOSA, Muryatan Santana. Eurocentrismo, História e História da África. Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana. n.1, jun. 2008, p.46-63. BASTOS, Elide Rugai. Gilberto Freire. Casa-grande e senzala. In: MOTA, Lourenço Dantas. (Org.). Introdução ao Brasil. Um banquete no Trópico. 3.ed. São Paulo: Senac, 2001. p.215234. CANÊDO, Letícia Bicalho. A descolonização da Ásia e da África. São Paulo: Atual, 2004. Características da Educação da Companhia de Jesus. São Paulo: Loyola, 1986. CARDIM, Fernão. Tratado da terra e gente do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978. Cartas Jesuíticas II: Cartas Avulsas (1550-1568). Belo Horizonte: Itatiaia, s.d. GATTI, Ellen; GATTI, Attilio. A África de hoje. São Paulo: Melhoramentos, s.d. História Viva. Edição Especial. Dossiê Presença Negra. São Paulo: Duetto, s.d. 5 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85288-0061-6 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. _____. A colonização do imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. HERNANDES, Leila Leite. A África na sala de aula. Visita à História Contemporânea. 2.ed. São Paulo: Agir, 2008. LOPES, Ana Mónica; ARNAUT, Luiz. História da África. Uma introdução. Belo Horizonte: Crisálida, 2005. LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África. Uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. MENDONÇA, Marina Gusmão de. Sobre a dinâmica dos movimentos religiosos africanos. Caminhos da História. Montes Claros, v.13, n.1, 2008. p.7-21. MESGRAVIS, Laima. A colonização da África e da Ásia. A expansão do imperialismo europeu no século XIX. São Paulo: Atual, 1994. MIRANDA, Evaristo Eduardo de. O descobrimento da Biodiversidade. A ecologia de índios, jesuítas e leigos no século XVI. São Paulo: Loyola, 2004. OLIVA, Anderson Ribeiro. Da Aethiopia à Africa: as idéias de África, do medievo europeu à Idade Moderna. Revista de História e Estudos Culturais. Vol. 5, Ano V, n.4, 2008. RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. Revista de História da Biblioteca Nacional. Dossiê “África reinventada”, Rio de Janeiro, Ano 1, n.6, dez.2005. SILVA, Alberto da Costa e. A África explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008. _____. A manilha e o libambo. A África e a escravidão de 1500-1700. Nova Fronteira/Fundação Biblioteca Nacional, 2002. THORNTON, John. A África e os africanos na formação do Mundo Atlântico. Elsevier, 2004. 6