A REALIDADE DA SALA DE AULA: PROFESSORES E ALUNOS – O CONFRONTO ENTRE ESTES AGENTES EDUCATIVOS Denise Madeira de Castro e Silva Universidade Federal de Pelotas RESUMO O presente trabalho de pesquisa procura desvelar a realidade da sala de aula. Caracteriza-se por apresentar uma abordagem qualitativa de cunho etnográfico, realizada na cidade de Rio Grande/RS, em uma escola pública estadual. Foram acompanhados pela pesquisadora uma turma de quinta série composta de apenas nove alunos, nos meses de agosto a dezembro de 1999. Os sujeitos da pesquisa eram adolescentes na faixa etária entre quatorze e dezesseis anos, considerados pela direção e pelos professores, como sendo alunos que apresentavam comportamento desviante. Esta turma é originada de outras quintas séries da escola. Os professores, em conjunto com a direção e supervisão, optaram por formar mais uma turma com os alunos que apresentavam “desvio de conduta”. A justificativa para este agrupamento se baseou, em primeiro lugar, na impossibilidade de os professores trabalharem com estes alunos ditos violentos, agressivos e mal educados. Em segundo, os alunos que apresentavam um comportamento e rendimento desejáveis na escola, estariam sendo prejudicados pela convivência com os primeiros, devido aos maus exemplos. Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram as entrevistas com os alunos e as observações participantes. Nesse momentos de observações, houve a possibilidade de interagir com os professores que, seguidas vezes, faziam depoimentos sobre as dificuldades em trabalhar com o grupo, tais como: as famílias dos alunos que não colaboram com o trabalho da escola, a referência saudosista quanto à “escola de antigamente”, a falta de estímulo em função do salário. Sendo assim, foram matriculados nesta turma vinte dois alunos provenientes das outras. No decorrer do ano alguns foram transferidos para o ensino noturno, que se caracteriza como supletivo, na mesma escola. Outros abandonaram, após tentativas não bem sucedidas de mediação do Conselho Tutelar. Ficaram, então, apenas nove alunos, que faltavam excessivamente à aula. Somente uma aluna obteve a aprovação no final do ano. Constatou-se que os docentes buscavam soluções anacrônicas, para novos problemas enfrentados pela escola. Reforçavam o comportamento desviante do aluno, através de normas impostas. Isto era baseado em comportamentos de alunos considerados ideais, como aqueles que a escola de “antigamente” possuía. PALAVRAS-CHAVE: comportamento desviante, relação professor–aluno, situações conflituosas, atividades pedagógicas. Focalizarei neste trabalho o universo da sala de aula. Cumpre ressaltar, que este é um recorte da pesquisa, apenas um dos aspectos analisados. Para preservar a identidade dos sujeitos da pesquisa, todos os nomes utilizados tanto de professores quanto de alunos são 2 fictícios. Essa realidade foi apreendida através da observação participante, durante os meses em que foi desenvolvida a pesquisa. Como o título já sugere, na sala de aula ocorre, por vezes, um confronto entre os professores e os alunos, e entre os próprios discentes. Busquei compreender como se davam as relações entre os agentes educativos dentro deste contexto. Para exemplificar estas situações de confronto, relatarei alguns casos contados pela vice-diretora e pelos alunos, e também vivências conflituosas que presenciei nas observações em sala de aula. Segundo a vice-diretora da escola em estudo, o que falta na educação é mais humanismo. Ela cita casos em que uma professora da escola chama os alunos de “nojentos”, “porcaria” e “vagabundos”. Também uma outra determinou a um aluno que engolisse as bolinhas de papel que jogava: “hoje tu vais engolir as bolinhas” disse ela. Tal episódio foi parar na delegacia de polícia e a professora afastada da escola. A escola, no parecer da vice-diretora, “deveria ser um lugar de prazer”. Infelizmente a escola se torna desagradável e desprazerosa, pois “Os alunos são recebidos com pedras pelo pequeno grupo, pela turma, ou pelos professores”, continua ela. Os alunos são considerados “matéria bruta”, “fazem atos de selvageria”; os pais são considerados marginais, passando a “profissão para os filhos”. Estas foram as palavras de um dos professores que atuava com a turma em estudo, numa conversa coletiva na sala dos professores. Num quadro como este, em que os professores concebem os alunos como pequenos marginais, já se pode imaginar, mas não aceitar, que a relação professor-aluno é carregada de violência. A sala de aula é o locus privilegiado onde se tecem as relações entre os professores e os alunos, e entre os próprios alunos. É lá que se forma o grupo, o coletivo, que nem sempre é respeitado pelo professor, uma vez que este, como pude observar, não se sente parte integrante do grupo, mas alguém de fora com o poder de mando, e único detentor do conhecimento. Guimarães (1996a, p.78), ao falar da classe diz que: “A classe é o lugar onde se tece uma rede de relações. Na medida em que o professor não consegue perceber essa teia, ele concentra os conflitos ou na sua pessoa ou em alguns alunos, e não os desloca para o coletivo. Como não há reversibilidade de posições, forma-se uma rígida divisão entre aquele que sabe e que impõe e aquele que obedece e se revolta. Desta forma, cada um passa a ser movido por uma ordem, por uma obrigação que é imposta e não incorporada.” 3 O professor busca manter a ordem na sala da aula centrando a responsabilidade pela disciplina na sua própria posição, e em muitos casos, assumidamente autoritária. Devido à diversidade de elementos que compõe a sala de aula, torna-se impossível a manutenção desta posição. Esta forma rígida de organização, onde o professor manda e os alunos obedecem, sendo estes últimos considerados não detentores do conhecimento, facilita a irrupções de atos de violência. Sendo assim, como os alunos não são considerados co-partícipes do processo de ensino, que implica na divisão de responsabilidades em construir um espaço tranqüilo em sala de aula, impera o autoritarismo do professor, que busca a manutenção da disciplina sem reflexão sobre sua prática autoritária. Quando iniciei as observações, um incidente com um dos alunos desta turma havia modificado a rotina da escola. Buscavam alternativas viáveis para um menino. Os alunos haviam sido suspensos porque um deles chamou uma professora de um determinado palavrão e um outro professor também foi ofendido pelo mesmo aluno. Houve uma reunião entre a direção, os professores envolvidos, os pais do aluno e o Conselho Tutelar. Para esta reunião não foi concedida permissão para que eu participasse. Quando as aulas retornaram, após a suspensão, pairava um clima de cuidado com as palavras entre os alunos. A professora Janete, que trabalhava com a disciplina de educação artística, lamentou a “calmaria” dos alunos, dizendo-me que “eles não são assim, botam pra quebrar, não sei o motivo porque eles estão tão calmos” (Diário de campo/20-08-1999) O mau comportamento do aluno já é esperado pelos professores. Quando os alunos apresentam um comportamento considerado adequado, os docentes sentem-se surpreendidos e, como mostra este exemplo, não sabem lidar com a situação. Como os professores foram informados dos objetivos da pesquisa, esperavam mostrar-me cenas de violência cometidas pelos alunos, na tentativa de comprovar o quanto os discentes são agressivos, mal educados, e que os professores, hoje não possuem mecanismos eficazes para conter a indisciplina dos alunos. O universo da sala de aula foi colocado em perspectiva, sendo analisado através de três eixos condutores: as atividades pedagógicas, as atitudes dos docentes frente à situações conflituosas e as considerações dos professores acerca da indisciplina evidenciada durante a pesquisa. 4 Atividades pedagógicas utilizadas pelos docentes Iniciarei analisando as atividades pedagógicas utilizadas pelos docentes ou, para ser mais específica, a falta de propostas educacionais executáveis em sala de aula. Em geral os professores, ao entrarem na sala de aula, iam imediatamente reclamando dos alunos. As reclamações giravam em torno de marcas de sapatos em cima classe do professor, ou porque os alunos estavam esperando os professores pela lado de fora da sala, ou ainda por algum gesto ou atitude que os professores considerassem desrespeitoso. Nem mesmo um bom dia formal era dado aos alunos. O professor José, que lecionava as disciplinas de matemática e de ciências, saía constantemente da sala como observei em todas as aulas. Numa das anotações que fiz no diário de campo, escrevi que ele saía da sala de cinco em cinco minutos. Aonde ia e por que saía, não nos falava. Este professor também fez uma consideração sobre o motivo de os alunos estarem calmos: “- hoje eles estão calmos, depois do incidente com o Renato; ele chamou uma professora de p.” (Diário de campo/25-08-1999) Analisarei separadamente as atividades pedagógicas de cada professor, pois cada um apresenta particularidades especificas que compõe a dinâmica estabelecida em sala de aula. As atividades pedagógicas do professor José eram rotineiras. Já se sabia o que se ia fazer: abrir o livro didático de ciências ou de matemática, ler o texto e realizar os exercícios ali propostos. Ou ainda estudar para a prova. A única maneira de os alunos compreenderem os conteúdos, era através da leitura do livro, pois o professor não explicava a matéria. Como este professor lecionava as disciplinas que têm as maiores cargas horárias, ele tinha muitas aulas com esses alunos, às vezes havia três aulas consecutivas, duas de matemática e uma de ciências, por exemplo. Era visível que o professor não preparava suas aulas. O livro didático, que deveria ser um recurso auxiliar, era o único recurso de ensino deste professor. O conteúdo das aulas se esvaziava, ficando os alunos sem atividades. Isto lhe obrigava a mandá-los estudar para a prova de sua própria disciplina ou da de outro professor. Sendo assim, para se utilizar de três períodos consecutivos, o professor precisaria estar preparado e desenvolver a aula com atividades variadas e bem estruturadas para conseguir a atenção dos alunos, o que não era o caso das aulas assistidas. Este optava por levar os alunos para a biblioteca, mudá-los de ambiente de estudo, na tentativa de que eles 5 tivessem maior concentração. Nos dias em que os alunos estavam mais agitados e, diria eu entediados, este professor propunha atividades diferenciadas para os meninos e as meninas. Os meninos deveriam ir para o pátio capinar. As meninas deveriam ir para a biblioteca estudar. Muitas vezes os alunos iam jogar futebol com outros grupos que já estavam no pátio. O professor fingia não saber disto. As provas também eram realizadas em grupos de meninas e de meninos. Todos os professores utilizavam o livro didático como única fonte bibliográfica e único recurso de ensino de suas aulas. A professora de geografia era bastante metódica em aula. No primeiro momento havia a explicação do conteúdo através de exposição dialogada. Ela explorava os documentários que a TV mostra, para exemplificar o conteúdo. Apesar de a aula ser direcionada de forma tradicional, onde ficava evidente a postura autoritária da professora como sendo única e exclusiva dona da verdade, os alunos demonstravam interesse e participação. Acompanhavam com os olhos brilhantes aquilo que a professora contava. Também tinham a oportunidade de relatar alguma coisa que haviam assistido no Fantástico 1 , por exemplo. Era a única disciplina que os alunos evidenciavam algum interesse. Ficava evidente que a aula desta professora era planejada anteriormente. Não era fruto do acaso e da improvisação. As aulas da disciplina de português seguiam da mesma maneira rotineira; o livro didático, os exercícios, a correção no quadro ou oral. Porém, a forma de a professora se relacionar com os alunos era diferenciada. Tratava-os como iguais à ela; não havia uma distinção forte entre professora e alunos. Sentia os alunos interessados, não tanto no conteúdo oferecido pela aula, mas, em conversarem sobre algum assunto do momento, ou sobre alguma dúvida em relação à escola, ou ainda sobre algo comentado na televisão. A professora buscava a interação com outras disciplinas, como por exemplo, um texto do livro didático de português que tratava de cadeia alimentar, pedindo para que os alunos pesquisassem, junto ao professor José, sobre alguns termos que apareciam no texto. Esta professora relatou-me que não considerava como “turma” este grupo de alunos. Para ela seria como aula particular, devido ao número de alunos. Falou-me ainda que, quando a turma estava completa, era impossível ministrar suas aulas, porque muitas vezes não podia entrar na sala. Ela contou-me que uma vez teve que chamar a vice-diretora 1 Programa semanal apresentado aos domingos pela rede Globo de televisão. 6 para mandá-los varrer o chão. Segundo ela, a aula estava como um “chiqueiro de porco”, e isso ela não admitia. Mas me disse que se coloca como amiga deles e não enfrenta grandes problemas. Nunca leva aluno para a secretaria, porque acredita na resolução dos problemas pelo próprio professor. Não leva “à ponta de faca” o que os alunos dizem. Ela considera que foi bom o encaminhamento dos alunos mais velhos para o supletivo noturno, inclusive para os próprios alunos. No dia seguinte havia aula de ciências com o prof. José. Os alunos deveriam perguntar para este professor sobre a substância que aparecia no texto do livro de português, conforme o combinado com a professora Adriana: “Os alunos questionaram o professor sobre o que era DDT. Ele disse que deveriam pesquisar tudo no livro, que tinha tudo no livro, que eram preguiçosos, que queriam tudo nas mãozinhas. Fernando. -Ah, pára, a Adriana mandô a gente perguntar e a aula dela é depois de amanhã. Prof. José: - Vocês tem tempo de pesquisar. O professor ficou lendo o livro didático, enquanto os alunos respondiam o questionário do livro de ciências”. (Diário de campo/1º-09-1999) Com esta atitude por parte do professor, os alunos confirmaram o que haviam falado para a professora de português de que não adiantaria perguntar porque “ele não dava lero nenhum”. Neste dia, ao término da aula, o professor me explicou que não pode trazer materiais didáticos variados para execução de suas aulas. A escola até possui alguns recursos, como cartazes demonstrativos do corpo humano, livros que trazem experiências de ciências que poderiam ser feitas com os alunos. Entretanto, ele considera que, se descuidar, os alunos iriam destruir o material, e ele não tem dinheiro para ressarcir a escola. Quanto às provas, me disse que os alunos levam uma hora decidindo se vão fazer a prova ou não, vão até a porta, até a janela etc. E se ele apertar, o mandam longe. As aulas de História transcorriam da mesma forma. O livro didático era o cerne da aula. Os exercícios visavam a memorização de datas e fatos históricos. Não havia explicação do conteúdo, nem de forma implícita, através de discussões, trabalhos em grupos, nem explícita através da exposição oral da professora. Em uma das aulas assisti a seguinte cena: 7 “Estavam corrigindo um exercício do livro didático. Somente a Liz e a Eduarda tinham realizado a atividade. O Renato empurrava as cadeiras para trás e se embalava na sua própria cadeira. A professora chamou-lhe atenção. O João e o Maurício estavam de caderno fechado. A professora reclamou: - Isto é desmotivador: só as gurias fizeram as atividades. Renato: - Ah, para, sora, tô fazendo. Liz: - Eu queria ser servo, porque eu não ia dá nada do que ganhasse pra ninguém. Risos. Ela demonstrou uma indignação em relação à exploração a que os servos eram submetidos; isto era o conteúdo do dia. Mas, a professora não explorou o comentário da aluna. A professora veio conversar comigo. Disse-me que se sente desmotivada, que a falta de motivação dos alunos é contagiante. No início do ano até tentam, mas quando percebem que os alunos não “querem nada com nada”, perdem o interesse de ensinar.” (Diário de campo/ 25-11-1999) Para um professor “perder o interesse de ensinar”, significa perder o próprio sentido da relação professor-aluno, que preconiza ser pautada no estabelecimento do processo ensino-aprendizagem. Aquino (1996, p.51) argumenta que crianças e jovens são ávidos por conhecimento, desde que a proposta metodológica seja instigante, centrada na reconstrução do conhecimento. Propõe “ o restabelecimento da função da escola, ou seja, que a relação professor-aluno se paute no estatuto do próprio conhecimento. Sendo assim, as práticas pedagógicas desfocarão seu olhar da disciplina”. A preocupação fundamental da escola deveria ser a aprendizagem dos alunos, visando a compreensão crítica da sociedade. Quando o objetivo do professor é somente a manutenção da disciplina, haverá mais chances de ocorrer a indisciplina, porque o foco, que deveria ser a aprendizagem prazerosa, está deslocado. A disciplina de educação artística era ministrada através de trabalhos manuais estanques, ou seja, em um dia eles recortavam e pintavam um peixe de cartolina para colocar em uma rede trazida pela professora, e em outro, faziam rendados com papéis variados. Os alunos eram chamados à atenção quando não traziam o material pedido. A professora me disse que pedia poucos materiais, coisas básicas e, assim mesmo, eles não traziam. Também reclamava porque, na sua visão, os alunos não conseguiam aprender 8 noções muito simples, como a utilização da régua. Na verdade, a proposta de trabalhos era desmotivadora. Era visível a falta de interesse dos alunos em recortar um peixe ou um rendado sem saber para que servia. A criatividade não era explorada, pois os alunos deveriam executar a tarefa tal e qual a professora dissera. Não havia espaço para a criação. Para Aquino (1996), o papel da escola deveria a de fermentar a experiência do sujeito perante a incansável aventura humana do conhecimento. Salienta ainda a importância da reinvenção dos conteúdos, das metodologias, da própria relação professor-aluno: “...O barulho, a agitação, a movimentação passam a ser catalisadores do ato de conhecer, de tal sorte que a indisciplina pode se tornar, paradoxalmente, um movimento organizado, se estruturado em torno de determinadas idéias, conceitos, proposições formais.” (p.53) Nesse sentido, uma aula pautada em correções de exercícios de um livro didático propicia um ambiente favorável para a indisciplina. O espaço da sala de aula deve promover a constante negociação das metodologias de ensino, do sistema de avaliação e dos conteúdos a serem desenvolvidos. Para que ocorra uma aula com estas características, o professor deve inaugurar esta postura dialógica em suas aulas, o que contribuiria para a diminuição dos atos de violência na escola e na própria sala de aula. Atitudes dos docentes frente à situações conflituosas Relatarei, a partir de agora, as atitudes dos docentes na ocorrência de situações conflituosas, ou consideradas por eles como sendo desrespeitosas. Em uma aula do professor José assisti uma briga entre os alunos Renato e o Maurício. Estes discutiam sobre uma rústica promovida pela escola, que iria acontecer para comemorar a independência do Brasil. Assisti a seguinte cena no dia 1º/09/1999, que foi transcrita para o diário de campo: “O Maurício e o Renato começaram a discutir, ameaçando que “iam rebentar a cara” do outro. O professor chama a atenção do Maurício; este rebate: - Ah! Pára ele, tá me provocando. Prof. José: - Já que vocês não estão aproveitando para estudar para a prova, façam o questionário da página 94 do livro de ciências. 9 Liz - - Ah, pára, sor, eu queria estudar! O professor ameaçou o Maurício, dizendo que iria cair um raio na cabeça dele se ele não sentasse. Este respondeu: - Vai cair um raio é na sua careca! José aos berros: - O que que é isso! Já chega! Os alunos se sentaram e começaram a fazer os exercícios. O Maurício, como em todos os outros dias, não fez nada. Ele ficou sentado, calado me observando. Nesta situação relatada acima, a agressão já parte do próprio professor, quando da ameaça do raio cair na cabeça do aluno. Não é admitido que os alunos revidem a uma agressão dos professores. Ao meu ver, os alunos eram agredidos constantemente quando eram expostos às atividades pedagógicas repetitivas e nada interessantes. Na concepção deste professor, esta turma já tivera chances demais. Ele chamava o aluno, que ganhou os óculos da supervisora da escola, de “porco”, porque este não valoriza o empenho dela e da escola, para resgatá-lo da vida errante que levava. Este professor se contrapunha a qualquer atitude que a escola fizesse na tentativa de melhor atender os alunos, evitando os encaminhamentos já citados. Ele acreditava que o caso desses meninos era de irem para a FEBEM. Destacava para a direção da escola o mau comportamento dos alunos, e que deveriam “conhecer quem realmente são estes alunos; não são dignos de confiança” (Diário de campo/ 02-09-1999). Sendo assim, se colocava na posição de vítima. A reflexão crítica acerca de sua prática pedagógica e da situação de exclusão que se encontravam estes adolescentes, não aparecia no discurso nem no exercício de sua profissão. Quando o professor José saía da sala, ficávamos conversando, eu e os alunos, sobre vários assuntos do cotidiano deles. Como este professor saía constantemente, tivemos a oportunidade de trocar idéias e discutir questões. Num desses dias, no retorno do professor, os alunos começaram a pedir para irem para o pátio: “O Maurício estava batucando e sambando e o professor disse: - Desde o início do ano que tu batuca, vou te colocar na frente de uma escola de samba”. Maurício.: - Eu não gosto de carnaval. Professor: - O João também vive batucando, quem sabe tu batuca tua cabeça na parede. 10 João.: - Vai me machucar. Professor: - Não tem problema, tua cabeça é bem dura, não aprendes nada. Após, dispensou-os para o recreio.” (Diário de campo/17-11-1999) Notoriamente este professor buscava manter sua posição através da manutenção da disciplina. Evidentemente que o professor deve ocupar seu lugar com autoridade, e muitas vezes necessita ser limitador, mas deve abrir brechas para a negociação. Guimarães (1996a, p.79) diz que: “O grande problema talvez resida no fato de o professor se concentrar apenas na sua posição normalizadora, achando que com isso ele conseguirá eliminar os conflitos. Contudo, as efervescências do ambiente da sala de aula marcada pela diferença, pela instabilidade, pela precariedade, apontam para inutilidade de um controle, de uma planificação racional, pois os alunos buscam, de modo espontâneo e não-planejado, o ‘querer viver’ que, por ser irreprimível, impede a instalação de qualquer tipo de autoritarismo. Quanto maior a repressão, maior a violência dos alunos em tentar garantir as forças que assegurem sua vitalidade enquanto grupo.” Em uma outra situação, esta postura de autoritarismo e a dominação pela norma de que o professor é quem manda e os alunos obedecem, ficou bastante clara. Os alunos andavam cansados de tantas provas e aulas com o mesmo professor José e por isso resolveram reclamar porque iria aplicar duas provas no mesmo dia. O Renato avisou para os colegas que iria na 18ª DE “dar queixa do professor”: “- Eu vou lá falar, ontem ele não veio e hoje quer aplicar duas provas. A Liz. entra na sala e diz: - Por tua causa Renato o professor Torres vai mesmo aplicar as duas provas. Ele disse que não ia, mas como tu foi lá na supervisão falar, agora ele vai aplicar. Entra o professor na sala e grita: - Vocês precisam aceitar que sou eu quem manda na minha aula. Se tivessem vindo conversar comigo, eu poderia trocar, mas agora não. Renato, convida a Profª. Margarida e podes ir na DE: vai lá agora”. O Renato baixou a cabeça. O Maurício caiu na risada. (Diário de campo/ 25-11-1999) 11 Guimarães (1996a, p.107) analisa a relação entre o controle e o desânimo por parte dos professores: “A tensão resultante dessa tentativa de controle converte-se em desânimo, descrédito e desinteresse, que passam a inspirar práticas normalizadoras que se tornam mecânicas, tediosas e cada vez mais afastadas de um coletivo inquieto e polifônico”. As práticas pedagógicas e disciplinadoras tornam-se obsoletas para atender um público cada vez mais heterogêneo. Nesse sentido, Passos (1996, p. 123) argumenta que: “É do espaço das filas, de cabeça atrás de cabeça, da rotina dos horários, do tempo limitado para cada atividade, dos conteúdos estagnados, das provas homogêneas, que podem emergir formas de relação que ultrapassem o controle e o poder instituído para configurar uma dinâmica de troca, de ação e interação, de luta contra a submissão, que se expressa nas rotinas e relações sociais que caracterizam o cotidiano escolar. Os próprios alunos vão impondo à escola a necessidade de mudança.” Concordo com Laurizete Passos, pois identifiquei que os alunos sentem a necessidade de mudança da instituição escolar, que não consegue dar conta do universo cultural de sua clientela. Nem sempre os alunos conseguem fazer com que a instituição mude, pois seus agentes ainda se prendem à concepções antigas de escola e de adolescência. A relação pedagógica precisa estar aberta às mudanças inerentes ao mundo atual. O professor necessita estar disponível para modificar a sua prática sempre que se fizer necessário. Uma prática engessada, pautada em regras convencionais e homogeneizadoras, não atendem a diversidade de histórias de vida que perpassam os muros escolares. Alencar, um dos alunos que tinha desistido de estudar, resolveu retornar para escola. Na primeira aula que ele assistiu a professora Janete se surpreendeu ao vê-lo na sala, fez uma cara feia e disse: “- Tu não foi para o supletivo? Faz dois meses que tu não vem à aula.”. Neste dia instalou-se uma polêmica; se o Alencar deveria estar na aula ou não. O Maurício sugeriu que chamassem o Conselho Tutelar, porque também queriam chamar para ele. Pôr que não chamar para o Alencar? A professora respondeu que iria se informar com a direção a respeito dessa questão após à aula, e que não precisavam começar um tumulto. Neste mesmo dia a professora levou pelo braço o Maurício para a secretaria, porque ele tinha “sumido” com uma cola e falado um palavrão à uma colega. 12 Um outro dia, enquanto esperávamos o professor José, que estava atrasado, ficamos no pátio, quando uma professora de educação física, que estava dentro de uma sala de aula fazendo exercícios com os alunos de uma outra turma, gritou em tom bastante agressivo, ao avistar a turma da quinta D: “- O que vocês estão fazendo na rua, parem de incomodar no pátio!” O simples fato de ver um grupo de alunos no pátio irritou a professora. Na verdade, o João., o Renato e o Maurício estavam cantando pagode e as meninas Liz e a Eduarda estavam conversando sobre a escola. De acordo com Guimarães, o que os professores temem (1985, p.155), “...Não é o que os jovens façam, ou possam fazer de inadequado, e sim o que eles representam ou possam vir a representar em termos de novos valores, diferentes dos tradicionalmente estabelecidos. Ou seja, se no presente um aluno cometer um ato (não importa o qual) em desacordo com as normas estabelecidas, ele já é considerado um elemento potencialmente ‘desviante’, isto é, já trará em si o elemento da contestação, do inconformismo às normas vigentes.” Neste sentido, a teoria do rótulo adverte que, se um aluno apresenta um comportamento inadequado apenas uma única vez, será o suficiente para que ele receba a etiqueta de desviado. Sendo assim, seu comportamento inadequado já se torna esperado, pois os professores possuem (pré)conceitos e expectativas em relação a este aluno com o chamado comportamento desviante. Isto se dá através das observações pessoais ou pelas informações de outros professores, alunos ou funcionários da escola. Estes conceitos e expectativas tem como base as normas e leis predominantes, se contrapondo, outrossim, com o repetitivo comportamento contrário desse aluno. Assim, a “fama” que o aluno tem, passa a gerar, no professor, expectativas que reforçam cada vez mais o comportamento desviante do aluno, tornando-se previsível também o seu rendimento escolar. Considerações dos docentes a respeito da indisciplina Em vários momentos da pesquisa foi possível identificar as concepções dos professores sobre a indisciplina. Relatarei uma situação em que se reuniram vários professores, para uma discussão sobre o tema. Num dos dias em que cheguei na hora do recreio, fui direto à sala dos professores compartilhar o momento do café. A Margarida, 13 supervisora da escola, trouxe uma reportagem veiculada em um jornal da cidade sobre a questão da indisciplina. Isto suscitou uma conversa entre os professores sobre esta questão. Os professores mais antigos na profissão focaram a diferença entre os primeiros anos de suas carreiras, há vinte anos atrás, e atualmente. Segundo eles, os alunos hoje não têm respeito pelo professor. O professor é desacatado pelo aluno. O que podem fazer os professores? Chamar os pais. Estes, por sua vez, também desacatam os professores com muitos palavrões. Isto, segundo eles, é o que ocorre na escola. Comentaram que o padrão do bairro é muito baixo. Os palavrões fazem parte do cotidiano. Os professores estavam revoltados porque os alunos “podem tudo” e os professores não podem nada. Até por serem menores, os alunos mesmo falam “não dá nada”, disse o professor José. Ele disse ainda que, antigamente, um grupo de estudantes que caminhava na rua era sinal de respeito e que, hoje, é sinal de perigo, pois pode ser, e é bem provável que seja, uma gangue. “Turma de colégio é perigo hoje”, concluiu ele. A supervisora da escola concordou que o caos está instalado e que realmente os alunos fazem o que querem e não acontece nada, porque a escola já não possui dispositivos disciplinares como antigamente, como os supervisores de disciplina, que realmente intimidavam os alunos A prova oral surpresa, que mantinham os alunos sempre preparados, também foi relembradas em tom saudosista. O sinal bateu e os professores ainda ficaram conversando sobre o assunto. O professor José logo saiu, porque tinha que aplicar prova. Neste mesmo dia, o professor entrou na sala e já foi aplicando a prova. Os alunos responderam-na em 5 minutos e foram sendo liberados para o pátio. Quando todos estavam no pátio, decidiram não retornar para a sala, se empurravam e se jogavam pedras. A Liz disse para o professor: “- por que tu soltô a gente, não era pra tu te soltado”. O professor me disse, na tentativa de me alertar: “- viste a gente não consegue contê-los”. Então mandou-os embora para casa, encerrando as aula. Em várias ocasiões presenciei os alunos serem dispensados. A justificativa era a de que os professores não conseguiam manter os alunos por mais tempo na escola, principalmente na sala de aula. A idealização de um adolescente e de uma escola igual a que os professores geralmente freqüentaram, diminui as possibilidades de discussão e negociação acerca da escola que realmente temos. Suas limitações talvez sejam maiores no sentido da falta de valorização profissional, de recursos, mas com certeza temos alguns 14 avanços como a ampliação das vagas e a redução dos exames classificatórios que existiam nos anos 60 e 70, como o “admissão’. É lógico que ainda temos que avançar mais para diminuir os mecanismos de exclusão escolar, embora alguns passos já tenham sido dados. Guimarães (1996b, p.80), alerta para: “Uma disciplina homogeneizadora que valha para a escola toda, feita para um conjunto de alunos equivalentes àqueles de um passado idealizado (‘dos velhos tempos’) está destinada ao fracasso...Existe um conjunto de histórias tão diversificadas que precisam ser conhecidas para que os educadores descubram os mundos de onde os alunos provêm.” Foi possível perceber através, das observações e dos relatos dos professores que atuavam com a turma em estudo, que havia uma desmotivação referente ao próprio ato de ensinar e também aos alunos. Os docentes carregavam pré-conceitos em relação à clientela que a escola atendia, pois eles consideravam o nível sociocultural do bairro muito baixo. Isto era alimentado através de comparações dos “alunos de antigamente” com os de atualmente. As lembranças saudosistas faziam os professores constatarem que não havia mais nada a ser feito para melhorar a situação atual. Percebi que os docentes se sentiam desamparados pedagogicamente frente aos novos desafios que a juventude e o mundo que rodeia a escola, lhes apresentavam. Buscavam soluções anacrônicas trazidas do passados, para novos problemas enfrentados pela escola. Guimarães (1996a) sugere que, para a diminuição da violência implica em formar professores que aprendam, não a tarefa de homogeneizar pelo esquadrinhamento do tempo, mas a arte de lidar com os conflitos, não para suprimi-los, mas para conviver com eles. BIBLIOGRAFIA AQUINO, Júlio Groppa. A desordem na relação professor-aluno: indisciplina, moralidade e conhecimento. In: AQUINO, Júlio Groppa (org.). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo, Summus, 1996. p. 39-56. GUIMARÃES, Áurea M. Vigilância, punição e depredação escolar. Campinas, São Paulo, Papirus, 1985. 15 ____________________. A dinâmica da violência escolar: conflito e ambigüidade. Campinas, Autores Associados, 1996(a) ____________________. Indisciplina e violência: a ambigüidade dos conflitos na escola. In: AQUINO, Júlio Groppa (org.). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo, Summus, 1996(b). p. 73-82. PASSOS, Laurizete Ferragut. A indisciplina e o cotidiano escolar: novas abordagens, novos significados. In: AQUINO, Júlio Groppa (org.). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo, Summus, 1996. p. 117-128.