UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS ISALVADOR / BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
NERIVALDO ALVES ARAÚJO
NAVEGANDO NAS MARGENS: NARRATIVAS ORAIS DO
VELHO CHICO
Salvador
2010
1
NERIVALDO ALVES ARAÚJO
NAVEGANDO NAS MARGENS: NARRATIVAS ORAIS DO
VELHO CHICO
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens da
Universidade do Estado da Bahia, como
requisito para obtenção de grau de Mestre em
Estudo de Linguagens.
Orientadora: Profa. Dra. Edil Silva Costa
Salvador
2010
2
TERMO DE APROVAÇÃO
NERIVALDO ALVES ARAÚJO
NAVEGANDO NAS MARGENS: NARRATIVAS ORAIS DO
VELHO CHICO
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudo de
Linguagens, Universidade do Estado da Bahia, pela seguinte banca examinadora:
Alvanita Almeida Santos ______________________________________________________
Doutora em Letras e Linguística, Universidade Federal da Bahia, UFBA, Brasil
Universidade Federal da Bahia
Edil Siva Costa – Orientadora ___________________________________________________
Doutora em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
PUC/SP, Brasil
Universidade do Estado da Bahia
Silvio Roberto dos Santos Oliveira _______________________________________________
Doutor em Teoria e História Literária, Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP,
Brasil
Universidade do Estado da Bahia
Salvador, 29 de março de 2010.
3
À Cida Sodré, com carinho e gratidão por sua presença e incansável apoio ao longo de todo o
período de realização dos estudos e elaboração deste trabalho.
4
AGRADECIMENTOS
Neste momento, direciono meus agradecimentos a todas as pessoas e às instituições que
contribuíram para a realização desta viagem pelas margens literárias do Velho Chico;
presenças essenciais para a concretização deste trabalho. Sem a preciosa contribuição delas,
não o teria concluído com êxito. Muito obrigado por me possibilitarem viver esta experiência
tão enriquecedora e gratificante, ponto fundamental ao meu crescimento como ser humano e
como profissional.
Inicialmente, agradeço a Deus, por ter me concedido sabedoria, saúde e forças para lutar pela
realização do sonho de ser mestre; e humildade para reconhecer não só as minhas
imperfeições e limitações, mas o quanto meu conhecimento é pequeno diante da imensidão do
universo.
À professora Edil Costa, minha orientadora e presença decisiva durante esta viagem para o
enriquecimento da minha trajetória profissional. Agradeço por ter acreditado em mim, pela
acolhida e pela sua extrema atenção e carinho, além das suas palavras de confiança e
otimismo, fazendo-me desejar, e cada vez mais ir ao encontro de novos conhecimentos para
que pudesse estar à altura de suas expectativas. Agradeço também pela disponibilidade, pelas
críticas, sugestões, enfim, por todas as suas tão sábias, competentes e cuidadosas palavras
proferidas durante a nossa convivência no Mestrado, sem esquecer a tranquilidade que sempre
me transmitia em nossas conversas.
A Cida Sodré, pela presença constante nesta caminhada e por toda a ajuda que me
proporcionou nos momentos mais difíceis. Muito obrigado por tudo. A Gabriela Sodré, pelo
apoio manifestado e acolhimento em seu apartamento.
Aos meus pais e à minha família, agradeço pelo apoio e confiança, desde o primeiro momento
da aprovação na seleção e por compartilharem comigo a minha alegria.
À minha irmã Micaele e ao meu cunhado Robério, pela disponibilização do seu apartamento
durante o tempo em que necessitei residir em Salvador, à minha amiga Sidney, à minha tia
5
Dilma e à minha prima Valéria, pela acolhida nas idas a Salvador para as aulas como aluno
especial e durante o processo seletivo.
Aos meus amigos, que sempre acreditaram e torceram pelo meu sucesso, compreenderam as
minhas ausências e sempre estiveram dispostos a atender aos meus apelos.
Aos meus companheiros de caminhada: Alisson, Edicarlos, Eliane, Eumara, João Neto e
Marquileide, por todo o apoio durante a pesquisa de campo, principalmente nas gravações e
fotografias.
À Universidade do Estado da Bahia (UNEB), por meio do Departamento de Ciências
Humanas e Tecnologias (Campus XXIV) de Xique-Xique. Agradeço a João Rocha, diretor do
Departamento, pela parceria e colaboração; aos funcionários, pelos gestos de solicitude e
compreensão; e aos colegas de trabalho, pelos momentos inesquecíveis de troca, interação e
palavras de incentivo e confiança, além da disponibilização de referencial teórico.
À Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC), pelo afastamento concedido durante o
período do Mestrado, e aos colegas do Colégio Estadual Professora Aydil Lima dos Santos
que desejaram o meu sucesso e contribuíram, direta ou mesmo indiretamente, para a
realização deste trabalho, especialmente ao diretor e amigo Nilton Guimarães, pela
compreensão nos momentos em que precisei me ausentar.
Aos meus colegas de turma do PPGEL (Programa de Pós-Graduação em Estudo de
Linguagens - UNEB), com os quais pude compartilhar grandes momentos de troca de
conhecimentos, pelas sugestões, companheirismo e apoio na realização das atividades.
À minha colega e amiga Lise Arruda, companheira de jornada, pela presença constante,
torcida, incentivo, apoio e material disponibilizado.
A todos os meus professores do Programa, pelas preciosas colaborações, através das
contribuições teóricas necessárias ao amadurecimento intelectual das ideias aqui defendidas; e
a Camila e Danilo, funcionários, sempre dispostos a nos ajudar, fazendo o possível para
facilitar a nossa vida acadêmica.
6
À professora Alvanita Santos e ao professor Silvio Roberto Oliveira, por terem aceito o
convite para integrar a banca avaliadora, demonstrando muita atenção e companheirismo; e
pela pertinência de suas colocações e sugestões por ocasião da qualificação e da defesa.
À professora Mariza Sodré, pela ajuda nas correções ortográficas.
Ao meu colega Paulo Esteves, pela ajuda com as traduções.
Agradeço também aos meus colegas e amigos Andréa Betânia, Crizeide, Ilmara Valois,
Jacimara, João Neto e José Henrique, pelo incentivo e apoio com a disponibilização de livros
e outros suportes teóricos.
E por fim, às minhas narradoras e narradores, pelas suas narrativas encantadoras e fantásticas,
sem as quais eu não conseguiria alcançar o sucesso na realização deste trabalho. Agradeço a
disponibilidade, a solicitude, o acolhimento e, sobretudo, a generosidade ao compartilhar o
acervo oral de sua memória cultural.
7
Este jeito
de contar as coisas
à maneira simples das profecias
- Karingana ua Karingana
é que faz a arte sentir
o pássaro da poesia.
E nem
de outra forma se inventa
o que é dos poetas
nem se transforma
a visão do impossível
em sonho do que pode ser.
-Karingana!
(José Craveirinha, 1974)
8
RESUMO
Este trabalho é resultado de um estudo sobre as narrativas orais dos povos ribeirinhos da
região da Ilha do Miradouro e Mocambo dos Ventos, uma comunidade formada por
remanescentes de quilombo, situada às margens do Rio São Francisco, na região de Barra e
Xique-Xique, Estado da Bahia. Tem por objetivo investigar a construção da identidade
cultural a partir da análise de suas narrativas orais, buscando destacar o papel dessas
narrativas na consolidação da memória cultural, as suas formas de transmissão e de recepção,
ressaltando as suas principais marcas culturais, dentre elas a afrodescendência. Nele,
procurou-se discutir a identidade cultural a partir de uma visão centrada no multiculturalismo,
na incompletude e nas relações com o outro, além de estabelecer um diálogo entre literatura e
identidades. Para tanto, empreendeu-se a análise do corpus composto por cinco narrativas
orais, que foram gravadas, transcritas e adaptadas, a saber: “A Serpente da Ilha do
Miradouro”, “O Nego d‟Água”, “A Mãe d‟Água”, “O Arco-íris” e “O Rio que Dorme”. Com
o intuito de atingir os objetivos colimados, utilizaram-se, como fundamentação, os
pressupostos teóricos trazidos por Alcoforado (1990, 2008), Bauman (2005), Bernd (2002,
2003), Bhabha (2003), Burke (2006), Canclini (2006), Cascudo (2006, 2008), Hall (2000), Le
Goff (1996), Meihy (2005), Ortiz (2003) e Zumthor (1993, 1997, 2007), dentre outros. Tratase de uma pesquisa qualitativa de cunho etnográfico, na qual se procurou desenvolver uma
relação estabelecida no processo de construção de sentidos, em que o pesquisador e demais
participantes estão envolvidos. A análise empreendida sobre as narrativas orais revelou uma
identidade cultural ribeirinha em estado de movência, que apresenta marcas das principais
matrizes culturais brasileiras: indígena, portuguesa e africana. São identidades líquidas,
produtos de uma hibridização permanente, construídas a partir da interação entre os sujeitos
que navegam nas margens, num processo perene de autoconstrução identitária, em busca de
um reconhecimento cultural, de um porto possível.
Palavras-chave: Identidade cultural. Narrativas orais. Multiculturalismo. Hibridização.
Afrodescendência.
9
ABSTRACT
This work results from a study about oral narratives of rivershore peoples from Miradouro
island and Mocambo dos Ventos, a community made of quilombolas, along São Francisco
River in Barra and Xique-Xique towns, in the state of Bahia. It aims to investigate the
construction of cultural identity from analyzing its oral narratives, highlighting the role of
these narratives in the consolidation of cultural memory, their way of transmission and
reception, focusing their main cultural marks such as the African origin. In this work, it was
discussed cultural identity from multiculturalism in the incompleteness and in the
relationships to other subjects. It also promotes a dialogue between literature and identities.
So it was analyzed a corpus made of five oral narratives, that were recorded, transcribed and
adapted: “A Serpente da Ilha do Miradouro”, “O Nego d‟Água”, “A Mãe d‟Água, “O Arcoíris” e “O Rio que Dorme”. In order to fulfill the proposed objectives, it were used, as
theoretical perspective, the works by Alcoforado (1990, 2008), Bauman (2005), Bernd (2002,
2003), Bhabha (2003), Burke (2006), Canclini (2006), Cascudo (2006, 2008), Hall (2000), Le
Goff (1996), Meihy (2005), Ortiz (2003) e Zumthor (1993, 1997, 2007), among other authors.
It is a qualitative research with an ethnographic character which was intended to develop a
relationship set up in the process of meaning construction that researcher and informants are
involved in. The analysis about the oral narratives showed a rivershore cultural identity in a
moving state that presents marks of the main Brazilian cultural matrices: Indigenous,
Portuguese and African. They are liquid identities, products of a permanent hybridization,
built from the interaction between the subjects that sail on the shore, in an endless process of
identity selfconstruction looking for a cultural recognition, from a possible harbor.
Keywords: Cultural identity. Oral narratives. Multiculturalism. Hybridization. African
origins.
10
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
12
1.1 O ESTUDO: PRIMEIRAS REMADAS
12
1.2 DOS LIVROS AO LEITO DO RIO E À CAMINHADA NA AREIA:
PERCURSOS METODOLÓGICOS
17
1.3 DELINEANDO O CORPO DO TRABALHO
21
2 RETRATOS AO VENTO: BELEZA E ENCANTAMENTO RUMO À ILHA
DO MIRADOURO E MOCAMBO DOS VENTOS
25
2.1 PRIMEIRAS REMADAS EM BUSCA DAS NARRATIVAS
25
2.2 APORTANDO NA ILHA DO MIRADOURO
26
2.3 A CIDADE DA BARRA: HISTÓRIA, COLONIZAÇÃO E POVOAMENTO DA
REGIÃO
28
2.4 UM MOCAMBO AO SABOR DOS VENTOS: CONTEXTUALIZAÇÃO
29
3 LITERATURA ORAL: SAINDO DAS MARGENS, RESSIGNIFICANDO AS
FRONTEIRAS
43
3.1 O MULTICULTURALISMO COMO MARCA DAS NARRATIVAS ORAIS
48
3.2 LITERATURA E IDENTIDADES: DISCUTINDO CONCEITOS
51
3.2.1 Identidade: um conceito em construção
51
3.2.2 Cultura afrodescendente: firmando identidades
53
3.2.3 Hibridismo cultural e identidades líquidas
58
3.2.4 A identidade e os meios de comunicação de massa
59
3.2.5 Representação de identidades nas narrativas orais
62
3.3 O CORPO E A VOZ NA ARTE DE CONTAR AS NARRATIVAS ORAIS DO
VELHO CHICO
64
3.3.1 As narrativas orais e o testemunho
66
3.3.2 Braços e mãos como pincéis das narrativas
68
3.3.3 O ato de narrar: ser mulher, ser negra
71
3.4 O LUGAR SOCIAL E A RECEPÇÃO DAS NARRATIVAS ORAIS NO
COTIDIANO RIBEIRINHO
75
11
4 TRADIÇÃO ORAL ÀS MARGENS DO VELHO CHICO: UM PASSEIO
PELAS NARRATIVAS
83
4.1 “A SERPENTE DA ILHA DO MIRADOURO”: MARCAS IDEOLÓGICAS NA
LITERATURA ORAL RIBEIRINHA
84
4.1.1 A simbologia da serpente e da água
91
4.1.2 Outras considerações sobre a narrativa
93
4.2 O NEGO D‟ÁGUA
94
4.3 A MÃE D‟ÁGUA
97
4.4 O ARCO-ÍRIS
100
4.5 O RIO QUE DORME
104
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ENTRE AS MARGENS E UM PORTO
POSSÍVEL
107
REFERÊNCIAS
111
ANEXOS
117
12
1 INTRODUÇÃO
Gosto de contá história [...] Qualqué história eu gosto de contá.
Se é um caso alegre, de brincá com os otro, eu vô contano e vô rino.
Se é história de sofrimento, eu vô falano,
o coração vai doeno e tem vez que dá choro.
Aí nós chora junto e lembra tudo de difici que nós passô.
É um choro manso, uma chuva fininha...
(Clóvis Barbosa, 1992)
1.1 O ESTUDO: PRIMEIRAS REMADAS
O trabalho, ora apresentado, está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia e tem, por objetivo, investigar a
construção da identidade cultural1 dos povos ribeirinhos, a partir da análise de suas narrativas
orais, buscando destacar o papel destas narrativas na consolidação da memória cultural, as
suas formas de transmissão e de recepção, ressaltando as suas principais marcas ideológicas.
Ampara-se inicialmente em reflexões contemporâneas acerca da cultura popular,
da literatura oral e suas relações estabelecidas com o processo de construção da identidade,
especificamente a dos povos da Ilha do Miradouro e do Mocambo dos Ventos, nas margens
do Velho Chico, na região de Barra e Xique-Xique, Estado da Bahia. As narrativas orais
desses lugares constituem-se em elemento fundamental para a compreensão do processo de
consolidação da memória cultural ribeirinha, uma vez que são reveladoras do imaginário
local.
A realidade brasileira aponta, em sua história, para a valorização de uma cultura
dominante, de base eurocêntrica, que negava a diversidade de um país multicultural. Hoje,
tanto no Brasil, como em outras nações, há um grande interesse pela busca das
particularidades e o senso de diferença vem se intensificando a cada momento. Diante disso,
torna-se mister salientar que tem havido uma crescente problematização das diferenças
culturais e étnicas, próprias do Brasil e que as múltiplas faces, desfavorecidas e suprimidas
por uma visão tradicional e elitista tendem a se descortinar, pois verdadeiramente
desempenham um papel extremamente relevante na elaboração da consciência nacional.
1
“Identidade” compreendida, de acordo com Hall (2000, p. 13) como “[...] uma celebração móvel: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpolados nos sistemas
culturais que nos rodeiam”. O termo será retomado em discussão posterior.
13
A literatura oral, em muitas circunstâncias, não vinha recebendo a devida
importância para a compreensão da formação da identidade nacional, mas atualmente, isso
tem sido revisto por muitos. Conforme aponta Meihy (2005), ela pode ser vista como um
manancial que se constitui em base da organização cultural de um grupo que, sem isso, não
teria garantida parte relevante de sua identidade.
A literatura oral é considerada por Meihy (2005, p. 22), como “todas as narrativas
transmitidas oralmente e com estrutura de conto, poesia, „causos‟2 não escritos e mantidos na
tradição3 popular.” As narrativas orais de um povo trazem consigo, elementos capazes de
proporcionar o entendimento da sua cultura. Dessa forma, pode-se então considerar, que a
construção da identidade cultural desses povos ribeirinhos se sustenta nas suas narrativas
orais, sendo o seu estudo, um dos caminhos para o entendimento de uma cultura popular
reconhecida e respeitada, tornando-se capaz de sobressair-se das margens literárias e integrarse à cultura nacional.
Neste sentido, as margens literárias aparecem como lugar a que estão destinadas
as manifestações literárias orais, as quais não apresentam os padrões estéticos e ideológicos
exigidos pelo cânone literário, que, segundo Reis, R. (1992), se constitui numa lista de obras e
autores a serviço de uma elite cultural dominante. Tem-se visualizado, portanto, uma
democratização desse cânone tido como oficial, a partir da criação de um contracânone, a fim
de que manifestações literárias importantes para a cultura nacional possam sair das margens e
ocupar um lugar no centro canônico, conforme já vem acontecendo com alguns autores da
nossa literatura. Esta questão será discutida no capítulo 3 LITERATURA ORAL: SAINDO
DAS MARGENS, RESSIGNIFICANDO AS FRONTEIRAS.
Dentro desta perspectiva, entende-se que, através das representações, a literatura
reforça a identidade de grupos colocados à margem, por um grupo elitista e conservador, o
qual se baseia nos cânones literários seculares, como uma estratégia de poder. As
representações literárias produzem sentidos sobre a nação e “esses sentidos estão contidos nas
estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com o seu
passado e imagens que delas são construídas” (HALL, 2000, p. 51).
Toda a riqueza literária que habita nessas margens ribeirinhas não pode ser
deixada para trás. Faz-se necessário conhecê-la melhor, para valorizá-la como elemento
2
Neste trabalho, a expressão “causo” traz a mesma significação utilizada por Cascudo para se referir às histórias
populares contadas pelo povo, das quais os mesmos ou conhecidos se fazem personagens. Segundo o dicionário
Michaelis (2009), o mesmo que caso, acontecimento, fato, ocorrência.
3
Deverá ser entendida com o mesmo sentido trazido por Jerusa Pires Ferreira (2003, p. 91) que define tradição
como “uma espécie de reserva conceitual, icônica, metafórica, lexical e sintática, que carrega a memória dos
homens, sempre pronta a se repetir, e a se transformar, num movimento sem fim”.
14
principal de preservação e de divulgação da memória local. Para tanto, ela necessita de
registro escrito, gravações de áudio e de vídeo, de estudos mais detalhados, a fim de que possa
ser disponibilizada para um maior número de leitores e estudiosos da temática,
compartilhando assim, conhecimentos sobre aspectos peculiares da sua oralidade.
Estes registros, antes de significarem uma forma de preservação, são uma forma
de divulgação das narrativas para além das margens, para além do Mocambo dos Ventos.
Estudos como este, poderão ser publicados e disponibilizados em bibliotecas, universidades,
livrarias e servir ainda de ponto de partida para outras pesquisas, registros e publicações.
Outra forma de divulgação é a organização de eventos em que se apresente e discuta sobre
estes registros. O trabalho com a literatura oral nas escolas também é fundamental para a sua
valorização e divulgação.
Convém ressaltar que a palavra “margem”, neste trabalho, passa a assumir o
sentido de beira do rio e, também, de um lugar de desmerecimento, de discriminação
sociocultural e literária, estabelecido a partir de um centro canônico. A expressão “Navegando
nas margens” passa a referir-se então, ao fato de se realizar, nas margens do rio, o estudo de
uma literatura popular e ribeirinha, muitas vezes marginalizada, desmerecida por um centro,
no qual o cânone literário ocidental se encontra enraizado.
Faz-se, portanto, uma relação com o fato de trazer para o centro das discussões,
uma literatura que se localiza geograficamente nas margens do Rio São Francisco, em
comunidades ribeirinhas e também por esta literatura ser produto de comunidades carentes, de
situação econômica desfavorável, com uma cultura que foge aos padrões conceituais da
cultura dos dominantes. Também, por se apresentar uma literatura fora dos padrões da
literatura escrita e que ainda se constitui de marcas culturais dos povos marginalizados
socioculturalmente, como os negros e os índios.
O Mocambo dos Ventos, como já sinaliza o próprio nome, é um lugar que,
segundo sua história, a ser detalhada mais à frente, neste trabalho, possui uma população
descendente de negros escravizados, embora não seja oficialmente reconhecido como
quilombo pelos órgãos governamentais. Mesmo assim, faz parte de um grupo étnico cuja
identidade cultural tem sido negada historicamente por uma elite social que a despreza e
marginaliza. Porém, toda uma cultura peculiar a este grupo de remanescentes de quilombo
existe, mesmo que muitas vezes pareça estar à mercê dos ventos, correndo o risco de ser
encoberta pelas areias do embranquecimento, presentes na mídia e no discurso ocidental
preponderante. Para compreender melhor por que o Mocambo dos Ventos pode ser
15
considerado como uma localidade de remanescentes de quilombo, observem-se as
considerações de Munanga (1996, p. 58-63) sobre o conceito de quilombo.
O quilombo é seguramente uma palavra originária dos povos de língua
bantu (kilombo, aportuguesado: quilombo). Sua presença e seu significado
no Brasil têm a ver com alguns ramos desses povos bantu cujos membros
foram trazidos e escravizados nesta terra [...] tem a conotação de uma
associação de homens, aberta a todos sem distinção de filiação a qualquer
linhagem, na qual os membros eram submetidos a dramáticos rituais de
iniciação que os retiravam do âmbito protetor de suas linhagens e os
integravam como co-guerreiros num regimento de super-homens
invulneráveis às armas de inimigos. O quilombo amadurecido é uma
instituição transcultural que recebeu contribuições de diversas culturas:
lunda, imbangala, mbundu, kongo, wovimbundo, etc. [...] São campos de
iniciação à resistência, campos esses abertos a todos os oprimidos da
sociedade (negros, índios e brancos), prefigurando um modelo de
democracia plurirracial que o Brasil ainda está a buscar.
Face à problemática até aqui delineada, busca-se preencher as lacunas para as
questões relacionadas ao processo de construção da identidade dos povos ribeirinhos, à função
das narrativas com suas marcas culturais, recepção e performance. Na busca das respostas
para um entendimento maior do problema, fez-se necessário ainda, procurar responder a
outras indagações secundárias complementares, que puderam oferecer subsídios e
informações necessárias à conclusão deste estudo, como a presença da afrodescendência nas
narrativas, dentre outras.
Procurou-se desenvolver uma investigação criteriosa da tessitura literária destes
povos, que está presente na sua memória cultural, considerando todo o simbolismo de uma
ancestralidade que tem resistido ao preconceito étnico-racial4 e se impõe enquanto memória e
história na formação da identidade cultural do lugar, para além dos estereótipos. Este trabalho
se torna importante e necessário por se constituir numa “porta” capaz de permitir adentrar-se
em uma literatura fantástica, de espaço misterioso e encantador como é o Velho Chico, de
personagens guerreiros e resistentes, mas fragilizados pela eminência da discriminação
cultural. Também por trazer à pauta um embate cultural existente em nossa sociedade,
proporcionando reflexões mais aprofundadas para os problemas relacionados à temática,
4
O preconceito racial, no Brasil, surgiu a partir da interação entre dois grupos – uma classe política e
economicamente dominante que assumiu uma concepção de mundo considerada superior e estigmatizou o outro
grupo, neste caso, o dos não brancos, caracterizando-o como de qualidade inferior, crença que passa a ter a
função de justificar a dominação sobre ele. (FERREIRA, R., 2004, p. 51-52).
16
dentre eles, a possível construção de uma identidade nacional infiel ao multiculturalismo5 que
a compõe.
As reflexões apresentadas pretendem contribuir para a inversão desta tendência
em valorizar a cultura do colonizador europeu e desmerecer as culturas populares, que se
constroem na diversidade, para que ocorra, então, o fortalecimento de uma identidade cultural
local e possivelmente, para o próprio reconhecimento oficial do Mocambo dos Ventos, pelas
autoridades governamentais, como uma localidade quilombola. Além do avivamento de
narrativas marginalizadas e desqualificadas em relação às práticas culturais hegemônicas.
Convém ressaltar que este trabalho não se refere exclusivamente à presença da
afrodescendência na identidade dos povos ribeirinhos. Desta forma, não se tratará somente de
questões da cultura afrodescendente, trazendo e esgotando todas as discussões e
conhecimentos sobre a temática. Juntamente com a Ilha do Miradouro, o Mocambo dos
Ventos é apresentado como um espaço da cultura popular, que se apoia na diversidade e na
liquidez6, o que contribui para uma reflexão que possa contemplar as marcas da pluralidade
cultural.
É
importante
acrescentar
ainda,
que
o
termo
“afrodescendência”
ou
“afrodescendente” será empregado neste trabalho para referir-se a determinado segmento da
cultura brasileira, o qual apresenta marcas da cultura africana, trazidas para o Brasil pelos
negros escravizados durante a colonização e que ao chegar aqui, devido às circunstâncias
locais impostas pelo colonizador, dentre outras, como a união e a convivência entre povos de
diversas tribos e culturas africanas, assumiram características diferenciadas, mas sem perder a
sua ligação com as matrizes culturais. Também aos povos que fazem parte desse segmento
cultural. Observe-se Fonseca (2006, p. 38) para que se possa compreender melhor o tema:
[...] as expressões “afro-brasileiro” e “afro-descendente” circulam com
maior desenvoltura, afirmando-se, sobretudo, quando são discutidas
questões relacionadas com determinados segmentos da cultura brasileira. O
uso dessas expressões não esgota as complexas questões que circulam em
torno de seus significados, mas pode revelar, certamente, um modo de se
considerar a pluralidade como um traço da cultura brasileira.
5
O multiculturalismo possui, na sua essência, a idéia, ou ideal, de uma coexistência harmônica entre grupos
étnica ou culturalmente diferentes em uma sociedade pluralista. [...] Ideologicamente, o multiculturalismo
abrangeu temas relacionados, incorporando a aceitação de diferentes grupos étnicos, religiões, práticas culturais
e diversidades lingüísticas numa sociedade pluralista (CASHMORE, 2000, p. 370).
6
Bauman (2005) utiliza as expressões “liquidez” e “fluidez”, para se referir à mobilidade das identidades.
Segundo ele, já não existem mais identidades fixas, sólidas e imutáveis, pois ganharam um livre percurso,
cabendo a cada indivíduo, homem ou mulher, capturá-los em pleno vôo, utilizando os recursos a as ferramentas
disponíveis. Outros autores, dentre eles Canclini (2006), também utilizam as expressões com o mesmo sentido.
17
1.2 DOS LIVROS AO LEITO DO RIO E À CAMINHADA NA AREIA:
PERCURSOS METODOLÓGICOS
Para ir ao encontro das narrativas orais, principais objetos deste trabalho, e dos
seus narradores7, além da busca de conhecimentos teóricos sobre a temática que percorre este
estudo, foi necessária a adoção de procedimentos metodológicos específicos e qualificados
para a coleta das narrativas, observação e registros da vivência nas margens do São Francisco.
Com o objetivo de melhor compreender as nuances da identidade ribeirinha,
representada em narrativas orais, o caminho metodológico escolhido, por ser aquele que
melhor nos conduz entre os rios e suas margens, miradouros e dunas de areia e ao encontro de
uma cultura popular, segue os princípios e determinações da pesquisa qualitativa de cunho
etnográfico.
Os caminhos trilhados pelo pesquisador são aqueles que permitem contemplar,
baseado em concepções contemporâneas sobre o processo de conhecimento, o real como um
“fenômeno cultural, histórico e dinâmico, cuja complexidade não deve ser rompida, como um
tecido que não pode ser esgarçado sem o risco de se perder sua identidade e, portanto, sem a
possibilidade de ser conhecido” (FERREIRA, R., 2004, p. 27).
Há na pesquisa qualitativa de cunho etnográfico, que aqui se procurou
desenvolver, uma relação estabelecida no processo de construção de sentidos, em que o
pesquisador e demais participantes estão envolvidos. Mas, vale ressaltar que esse
envolvimento entre pesquisador e pesquisados pode ocorrer somente em aspectos que não
venham comprometer o cunho científico da pesquisa, ou seja, estabelece-se uma relação de
confiança, de inclusão no grupo, mas sem que isso venha causar o direcionamento ou a
modificação do objeto de pesquisa. Sendo assim, não se pode somente estabelecer critérios
para a escolha dos participantes (narradores), pois estes não devem mais ser vistos como
simples sujeitos que fazem parte de amostras representativas de uma população, eles vão
muito mais além.
Antes de começar a trilhar pelo caminho da pesquisa qualitativa, é preciso que o
pesquisador preencha a sua bagagem com aspectos relacionados ao seu conhecimento prévio
da temática, interesse pela pesquisa, valores pessoais condizentes com a realidade, já que tais
aspectos incidem diretamente sobre o delineamento da pesquisa e suas interpretações.
Contudo, é necessário conscientizar-se de que esse conhecimento prévio não deve contribuir
7
A palavra “narrador” refere-se aos contadores e contadoras das histórias. Apesar de, neste trabalho, aparecer no
gênero masculino, refere-se também às mulheres narradoras.
18
para que o pesquisador venha interferir nos dados, emitir um parecer já pré-estabelecido ou
produzir um saber, uma visão influenciada por valores generalizados e estigmatizados. É
preciso preparar-se para a pesquisa com o intuito de não se deixar influenciar, não repetir ou
ratificar uma situação que se consolida através de estereótipos, isto é, não impregnar as suas
interpretações com conceitos prévios, fixados por uma formação pessoal.
Deve-se, portanto, evitar o que Said (2007) aponta em sua obra sobre o
Orientalismo, na qual mostra o fato de que o Ocidente criou uma visão distorcida do Oriente
como o "Outro", trazendo uma tentativa de diferenciação que estivesse de acordo com os
interesses da política colonialista ocidental, ou seja, o oriente como “invenção” do ocidente.
Said (2007) na introdução do seu estudo, ressalta sobre os estereótipos que permaneceram e
que nos levam a perceber o Oriente como fonte de mistério, corrupção, sensualidade ou
(paradoxalmente), iluminação espiritual.
Pode-se chamar esta preparação e este processo de estudo como uma tomada de
consciência, a fim de que não se cometa o erro da política do desmerecimento do outro,
através da formação de conceitos discriminatórios e dicotômicos em relação ao tema. Sendo
assim, deve-se estar preparado, obtendo o máximo de conhecimento possível sobre a temática
da pesquisa, para que esta possa corresponder da maneira mais fiel possível à realidade
pesquisada, atendendo aos objetivos propostos sem a interferência de uma visão já enraizada.
Tais circunstâncias mostram que não existe uma total neutralidade na pesquisa científica e é
esta consciência que leva o pesquisador a conclusões mais precisas.
Desta forma, na fase da redação, convém apresentar uma descrição, de modo
mais detalhado e rigoroso possível, do contexto em que ocorreu a sua realização, do caminho
percorrido e ainda de como se procedeu em sua interpretação, permitindo, como versa
Ferreira, R. (2004, p. 27), uma “visão caleidoscópica do fenômeno estudado”.
Descrevendo-se os passos da caminhada, inicialmente fez-se uma análise da
documentação indireta com o levantamento, fichamento e estudo de referencial bibliográfico
relacionado à temática: identidade cultural, cultura popular, literatura oral, cultura e literatura
afrodescendente. Utilizaram-se, como fundamentação para norteamento do trabalho, dentre
outros, os pressupostos teóricos trazidos por Alcoforado (1990, 2008), Bauman (2005), Bernd
(2002, 2003), Bhabha (2003), Burke (2006), Canclini (2006), Cascudo (2006, 2008), Hall
(2000), Le Goff (1996), Meihy (2005), Ortiz (2003) e Zumthor (1993, 1997, 2007). Fez-se
ainda uma pesquisa documental em arquivo municipal e na Prefeitura de Barra, também na
sede do IBGE da cidade de Xique-Xique.
19
Depois destas incursões teóricas e documentais, rumou-se para a pesquisa de
campo. O percurso desenvolvido, a partir deste momento, constou de uma sucessão de passos,
os quais nem todos foram previamente definidos e planejados, pois na verdade, muito se
construiu à medida que a pesquisa ia se realizando. Tal pesquisa desenvolveu-se a partir de
conversas com os moradores sobre a localidade, a história e os costumes. Depois, procurou-se
utilizar entrevistas não padronizadas e não estruturadas que eram gravadas em áudio e vídeo.
Um roteiro prévio, com as abordagens, foi definido para a entrevista e de conhecimento
somente do entrevistador/ouvinte/interlocutor, já que o objetivo era registrar as narrativas
orais que navegam por entre as pessoas, percebendo o seu lugar social e as suas formas de
transmissão.
Buscou-se estabelecer, entre o pesquisador e os participantes da pesquisa, uma
relação de confiança, cumplicidade e interlocução, a fim de que não houvesse nenhum
direcionamento das histórias narradas, ou tolhimentos de qualquer ordem. No primeiro
momento em que se chegou ao povoado do Mocambo dos Ventos, fomos recebidos
inicialmente por crianças que iam para a escola. Em seguida, nos aproximamos das pessoas
adultas, estabelecemos uma conversa amistosa, onde nos apresentamos como professores e
estudantes que estavam ali para conhecer um pouco da história do lugar e realizar uma
pesquisa. Foi explicada a finalidade, o objeto e a relevância da pesquisa, ressaltando a
necessidade de colaboração.
Desta forma, as entrevistas foram feitas nos momentos mais descontraídos e
naturais, procurando-se interferir o mínimo possível na exposição das narrativas, a fim de que
os narradores pudessem expressar livremente as suas ideias, a sua memória cultural. Durante
todos os momentos em que se esteve presente no local da pesquisa, procurou-se fazer
observações e registros, por meio de um “diário de campo”, da rotina, das conversas
informais, do cenário e dos costumes do lugar.
Em termos gerais, a coleta de dados etnográficos pertinentes teve como
ferramenta central, o emprego de observação participante que permitiu o acesso aos eventos
sociais cotidianos, onde as relações e interações puderam ser flagradas, facilitando ainda o
contato com os narradores e suas histórias.
Os próprios moradores se aproximaram e conduziram o pesquisador às pessoas
tidas como mais conhecedoras dos causos e da história do lugar. Dona Maria Alexandrina
Caxiado – 73 anos (Figura 1), (Dona Xandu, como é chamada por todos) foi a primeira a ser
apresentada como a principal narradora. Além de Dona Xandu, outros moradores participaram
desta pesquisa com seus depoimentos e histórias, os quais, a sua utilização e publicação neste
20
trabalho, inclusive das fotografias, foram autorizados através de termos de autorização
anexos.
Convém apresentar, portanto, os demais narradores, nossos eminentes
colaboradores do Mocambo dos Ventos, sem os quais não se poderia ter realizado tal estudo.
São eles: Alberto de Souza Dias – 56 anos, Domingos Pereira de Carvalho – 49 anos, Maria
Francisca da Silva – 70 anos, Maria Pereira de Carvalho – 75 anos, Marilene de Souza Vargas
– 48 anos e Valdemar Caxiado da Silva – 62 anos (Ver figuras 2 a 7 com as fotografias dos
narradores). As narrativas coletadas no Mocambo dos Ventos, trazidas posteriormente neste
estudo, sob a forma de adaptações baseadas nas transcrições são: “O Nego d‟Água”8, “A Mãe
d‟Água”, “O Arco-íris” e “O Rio que Dorme”.
Já a narrativa “A Serpente Da Ilha do Miradouro” não foi coletada da mesma
forma que as narrativas do Mocambo dos Ventos, mas extraída de versões documentadas em
registros da sede do IBGE, na cidade de Xique-Xique e em Barbosa et al. (2007), também em
uma versão escrita apresentada pela própria narradora. As versões foram apresentadas,
respectivamente, por Jorge Pinheiro Meira, Raimunda Francisca Bonfim – 62 anos e
Marquileide da Silva Oliveira – 28 anos (Figura 08).
Na visita à Ilha do Miradouro, apenas registros fotográficos e algumas
observações sobre a localidade foram feitos, vez que a eminente narradora em questão não se
dispôs a contar a história da serpente, justificando que as pessoas só prometem, mas não
contribuem para a reforma da igreja e por isso, não iria mais contar histórias ou dar
informações.
Quanto às fotografias apresentadas neste trabalho, a maioria é de autoria do
próprio autor da pesquisa, inclusive a da capa, por isso não há em todas, a indicação da
autoria, mas somente naquelas que foram extraídas de outras fontes. Optou-se por apresentálas agrupadas no interior do texto, ao final de cada capítulo, para melhor visualização do
leitor.
Outro passo seguido foi a transcrição e adaptação das diversas versões das
narrativas contadas. Esta etapa pode ser considerada com uma das mais importantes, pois
permitiu relembrar e reviver grandes e inesquecíveis momentos da pesquisa. As transcrições
das falas gravadas foram feitas pelo pesquisador, na íntegra, buscando considerar as regras
básicas para a transcrição, e depois adaptadas, no sentido de garantir conteúdo, estilo e
legibilidade, procurando sanar as dificuldades de entendimento, evitando repetições
8
O “Nego d‟Água” também é chamado por alguns moradores do Mocambo dos Ventos de “Cumpade d‟Água”.
21
desnecessárias, truncamentos, ou seja, o excesso de expressões e símbolos complicados que
viessem a comprometer o sentido do texto. Nas narrativas apresentadas como um todo e nas
citações dos narradores, utilizam-se algumas adaptações feitas de acordo com orientações
teóricas. Para tanto, baseou-se nas orientações trazidas na REVISTA ESTUDOS
LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS, n. 7, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras,
Salvador: out. 1988, 146 p.
Procurou-se, a todo momento, conservar, nas adaptações, o discurso dos
narradores, a fim de preservar o máximo possível a fidelidade às marcas da oralidade,
proporcionando ao leitor o contato com essa literatura que representa a memória cultural do
povo brasileiro. Preocupou-se em trazer várias versões das mesmas narrativas, inclusive as
fragmentadas, para um confronto durante as análises e também porque a fragmentação faz
parte da tradição oral.
Na sequência, por último, consolidou-se a fase da redação, momento em que se
procurou apresentar alguns entendimentos teóricos sobre o tema dissertado, as narrativas
coletadas, bem como suas análises e ainda as considerações finais referentes à identidade
cultural ribeirinha. Para todo este procedimento de coleta e análise das informações, como
também da tessitura conclusiva, foram considerados os preceitos da história oral, enquanto
produtora de uma literatura oral capaz de garantir parte relevante da identidade cultural. Neste
sentido, Meihy (2005, p. 22) afirma que “a literatura oral é outra manifestação eloqüente das
fontes orais”.
1.3 DELINEANDO O CORPO DO TRABALHO
O trabalho apresentado foi edificado em três capítulos que se estruturam e se
constroem, a partir das relações estabelecidas entre a teoria e as narrativas com suas marcas
discursivas e seus elementos formadores da memória cultural da população ribeirinha,
acrescidos deste texto introdutório e das considerações finais.
Em RETRATOS AO VENTO: BELEZA E ENCANTAMENTO RUMO À
ILHA DO MIRADOURO E MOCAMBO DOS VENTOS, faz-se uma apresentação do
campo de pesquisa que compreende a Ilha do Miradouro e o Mocambo dos Ventos. Procurase retratar, inclusive com fotografias, o cenário paisagístico, os povos ribeirinhos, seus
costumes e atividades diárias, além de trazer todo um conhecimento histórico-geográfico da
22
região com informações sobre o processo de povoamento e alguns aspectos socioculturais e
econômicos.
O
capítulo
LITERATURA
ORAL:
SAINDO
DAS
MARGENS,
RESSIGNIFICANDO AS FRONTEIRAS traz uma reflexão baseada em teóricos,
exemplificada com situações e falas que envolvem os narradores. Inicia-se com a
apresentação de conceitos e informações sobre a cultura popular e a literatura oral, ressaltando
as formas como se apresentam e suas características fundamentais. Discute o
multiculturalismo como marca das narrativas, busca problematizar conhecimentos sobre
literatura oral e identidade, inclusive a afrodescendente, trazendo a visão da identidade em
construção. Aborda temas como hibridismo cultural e identidades líquidas, identidade e os
meios de comunicação de massa, e a representação da identidade através das narrativas. Ainda
destaca a performance e o testemunho dos narradores, o lugar social e a recepção das
narrativas orais no cotidiano ribeirinho, além de uma abordagem da posição social da mulher,
em especial, a negra.
Em TRADIÇÃO ORAL ÀS MARGENS DO VELHO CHICO: UM
PASSEIO PELAS NARRATIVAS, apresentam-se as narrativas, em suas diversas versões,
destacando-se as marcas ideológicas e os elementos identitários presentes, os quais mostram a
diversidade cultural. Procura-se discutir toda uma simbologia e representações culturais
trazidas pelas narrativas. Ainda se destaca e se comenta sobre a afrodescendência, como uma
marca do multiculturalismo, presente na identidade cultural ribeirinha, tomando como
exemplo as narrativas.
Na conclusão, parte na qual as CONSIDERAÇÕES FINAIS se situam ENTRE
AS MARGENS E UM PORTO POSSÍVEL, procura-se fazer uma recapitulação sintética da
pesquisa sobre a identidade ribeirinha, reforçando a presença das marcas da pluralidade
cultural encontradas nas narrativas, através dos discursos apresentados. Faz-se ainda, uma
inferência sobre a construção identitária ribeirinha, a partir do multiculturalismo, da
hibridização e da liquidez.
23
Figura 1 – Maria Alexandrina Caxiado
Figura 2 – Alberto de Souza Dias
Figura 3 – Domingos Pereira de Carvalho
Figura 4 – Maria Francisca da Silva
24
Figura 5 – Maria Pereira de Carvalho
Figura 6 – Marilene de Souza Vargas
Figura 7 – Valdemar Caxiado da Silva
Figura 8 – Marquileide da S. Oliveira
25
2 RETRATOS AO VENTO: BELEZA E ENCANTAMENTO RUMO À
ILHA DO MIRADOURO E MOCAMBO DOS VENTOS
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num
meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é
ela própria num certo sentido, uma forma
artesanal de comunicação. Ela não está interessada
em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como
uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa
na vida do narrador para em seguida retirá-lo dele.
Assim se imprime na narrativa a marca do narrador,
como a mão do oleiro na argila do vaso.
(Walter Benjamin, 1987)
2.1 PRIMEIRAS REMADAS EM BUSCA DAS NARRATIVAS
A viagem rumo ao Mocambo dos Ventos, passando pela Ilha do Miradouro em
busca das narrativas orais que o Velho Chico tem para contar, é feita navegando-se pelas suas
próprias águas, partindo-se da cidade de Xique-Xique. Utilizam-se como meios de transporte,
vários tipos de embarcações, desde pequenas e rudimentares canoas a remos e velas precárias,
até as embarcações maiores, com capacidade de aproximadamente 20 pessoas, movidas a
motor. A partida é considerada algo realmente singular. Já na saída, a paisagem nos convida a
embarcar de encontro aos mistérios, beleza e encantos das narrativas (Figura 9).
No caminho, pode-se tomar conhecimento da rotina dos povos ribeirinhos, que
têm o rio como personagem principal para as suas vidas. Este se constitui na principal via de
acesso à cidade, e o trânsito de embarcações é considerável, pois diariamente os pescadores
utilizam o seu leito para viajarem a Xique-Xique com o intuito de vender seus pescados.
Vários elementos compõem a paisagem ribeirinha e fazem parte de um cenário
ímpar, próprio da região. Vale destacar, a presença dos pescadores em suas canoas e nas
margens do rio (Figura 10), as lavadeiras batendo as suas roupas n‟água acompanhadas de
seus meninos nus a observar as embarcações (Figura 11), as casinhas e ranchos rudimentares
próximos aos barrancos (Figura 12), a garça que espera pacientemente o peixe (Figura 13), as
aves chamadas de mergulhões, o vento e o sol, nossos fiéis companheiros em todas as
viagens, não esquecendo a constante presença imaginária do Nego d‟Água que nos
acompanhava nas viagens. Mas esta é uma narrativa que será apresentada e discutida em
abordagem próxima.
26
Há uma intensa relação estabelecida entre os povos e o Rio São Francisco, que
carrega consigo, a memória, a história daqueles momentos de glória, dos grandes vapores, da
riqueza econômica e cultural que representara. Tudo funciona em estreita ligação com o rio, o
qual se constitui como fator preponderante de subsistência, sustentando o imaginário da
população ribeirinha. Inclusive para o próprio povoamento da região, pois se sabe que foi a
principal via de acesso para os colonizadores ali chegarem. Tem-se conhecimento de que,
desde o início do processo de colonização do Brasil, havia investidas do governo pelo sertão,
com o objetivo de descobrir riquezas minerais, aprisionar índios para usá-los na lavoura e
garantir a colonização, com o povoamento do sertão nordestino. E assim, a viagem continua
rumo à próxima parada e seus encantos: a Ilha do Miradouro.
2.2 APORTANDO NA ILHA DO MIRADOURO
Segundo documentação encontrada na sede do IBGE da cidade de Xique-Xique,
de autoria de Jorge Pinheiro Meira (2009), Francisco Garcia Dias D‟Ávila, o conde da Casa
da Torre, foi o primeiro latifundiário brasileiro que conquistou o direito de propriedade em
quase toda a área esquerda do São Francisco. Nos idos de 1549 a 1553 começou o
povoamento da sua margem, com a construção de currais a cada 20 léguas e deixando um
casal de escravos, alguns novilhos e equinos. Por volta de 1649, tendo começado pela foz,
Francisco Garcia Dias D‟ Ávila e seus homens chegaram à região do Miradouro, iniciando o
processo de colonização.
Segundo o dicionário Michaelis (2009), “miradouro” corresponde a um ponto
elevado de onde se descobre largo horizonte. A ilha está localizada numa região do São
Francisco que recebe este nome, certamente por possuir as características apontadas no
dicionário, ou seja, lugar de onde se pode mirar o horizonte. Os seus moradores dizem que da
ilha mirava-se o ouro da Serra do Assurá, local em que se localiza atualmente, o município de
Gentio do Ouro. Daí, se pode compreender melhor a origem do nome da Ilha do Miradouro.
A povoação ocorreu por devotos de Nossa Senhora Santana em terras de
propriedade da viúva de Francisco Garcia Dias D‟Ávila, a qual mandou construir na ilha, a
capela de Nossa Senhora Santana (Figura 14). A Ilha do Miradouro foi posteriormente doada
pela viúva aos garimpeiros da Serra do Assurá, aos lavradores e pequenos criadores de
animais.
27
São aproximadamente 20 minutos de viagem de barca, rio acima, até chegar à Ilha
do Miradouro, localizada no município de Xique-Xique, a cerca de dois quilômetros da sede.
A Ilha do Miradouro possui cerca de 280 habitantes, segundo o censo (2007) do IBGE, todos
com um grau de parentesco entre si e vivendo principalmente da pesca. A capela, em estilo
colonial, ainda resiste ao tempo, embora se perceba claramente a necessidade de uma reforma,
a fim de se preservar essa marca histórica de tão preciosa arquitetura, que além do valor
histórico-cultural, também faz parte do cenário das narrativas. Os próprios narradores
afirmam que ela abriga embaixo de si, a cabeça da Serpente da Ilha do Miradouro e que
também ouvem rugidos e murmúrios vindos de seu interior.
A nossa viagem e nossa atenção voltam-se de forma mais detalhada ao Mocambo
dos Ventos, pela sua história de remanescência quilombola9, não reconhecida oficialmente
pelo governo, além da sua localização geográfica e do seu povo. A aportagem na Ilha do
Miradouro deu-se pela necessidade e importância de se conhecer melhor o cenário da
narrativa da Serpente da Ilha do Miradouro, tão presente e contada nas comunidades
ribeirinhas. Sendo assim, buscou-se conhecer também um pouco da história da ilha e de seu
povo.
O interesse pela pesquisa no Mocambo dos Ventos surgiu de uma visita feita pelo
pesquisador, juntamente com um grupo de alunos do curso de Letras da Universidade do
Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias – Campus XXIV –
Xique-Xique, como atividade de campo de um curso de extensão realizado pelo professor e
antropólogo Guilherme Santos10. Ao conhecer a beleza e o encantamento do lugar, pela sua
história, seu povo e sua localização geográfica, surgiu o interesse em investir numa pesquisa
que pudesse trazer das margens, as narrativas fantásticas que permeiam o imaginário da sua
gente, bem como a sua cultura.
Depois de uma parada para conhecer e fotografar a Ilha do Miradouro, a viagem
continua em direção ao Mocambo dos Ventos, a parada final. O rio se torna mais largo, as
“c‟roas”11 aparecem no caminho e em alguns momentos, percebe-se que fica raso em certos
9
Os próprios moradores ao contarem a história do lugar, ressaltam que os primeiros habitantes foram negros
escravizados que vieram fugidos e se estabeleceram no local, formando uma espécie de quilombo, tomando
como base a conceituação de Munanga (1996).
10
Prof. Dr. Guilherme dos Santos Barboza é etnólogo, antropólogo, observador da ONU e presidente do Centro
Afro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Culturais. Percorre o Brasil desde os anos 1960 estudando os quilombos e
outros aspectos da cultura negra, como o candomblé e a capoeira.
11
Espécie de pequenas ilhas, formadas por bancos de areia no meio do leito do rio quando a sua vazão baixa, em
que os pescadores costumam aportar-se para pescar. Também é utilizada pelas pessoas para passeios e banhos. A
palavra original é coroa, mas sofre uma transformação lingüística para “c‟roa”, ou seja, é uma variante local da
palavra coroa.
28
trechos, devido ao assoreamento e erosão das margens. São aproximadamente três horas de
viagem de barca da cidade de Xique-Xique até o Mocambo dos Ventos. A paisagem vai
ficando cada vez mais paradisíaca e exuberante. Dunas de areia começam a surgir nas
margens. Apesar de, em boa parte, a realidade nos mostrar a degradação das margens, a falta
de mata ciliar e de investimentos do poder público na revitalização do rio, a região ainda nos
proporciona as mais belas imagens de uma natureza peculiar.
O Mocambo dos Ventos é um povoado pertencente ao município de Barra. Está
localizado a 42 km da sede do município (Figuras 15, 16 e 17). A sua fundação, segundo o
morador Alberto de Souza Dias, 56 anos, foi há aproximadamente 135 anos. Ainda segundo a
história do lugar, contada pelos próprios moradores, o Mocambo dos Ventos foi fundado por
escravos fugidos. “[...] era uns nego assim altos, sem cabelo, era escravo que chegaram
fugidos [...]” (Alberto Souza Dias). Mas, antes de maiores apresentações sobre esta
localidade, convém apresentar também um breve passeio pela história da cidade da Barra.
2.3 A CIDADE DA BARRA: HISTÓRIA, COLONIZAÇÃO E
POVOAMENTO DA REGIÃO
Sede do município onde está situado o Mocambo dos Ventos, a cidade da Barra
está localizada numa região cuja colonização e povoamento se deu também por volta do final
do século XVI, pelos mesmos colonizadores da região do Miradouro. Conforme dados do
IBGE (2009), a região era primitivamente habitada pelos índios Acroás, na margem esquerda
do Rio São Francisco, e pelos índios Mocoazes, na direita, além de Tupiniquins, Xacriabás,
Caiapós, Cariris e Aricobés. O território integrava a sesmaria da Casa da Torre, de Garcia
D'Ávila. O povoamento iniciou-se por volta de 1670, pelo segundo Conde da Torre, Francisco
Dias D‟Ávila Pereira que instalou, na foz do Rio Grande com o São Francisco, a fazenda
Barra do Rio Grande.
Em 1680, religiosos franciscanos erigiram a capela de São Francisco, ficando o
local conhecido por São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande do Sul. A atividade
econômica da povoação consistia na criação de gado e agricultura, com o cultivo da cana-de
açúcar. Abrigava grande diversidade populacional: portugueses, escravos africanos,
brasileiros, filhos de portugueses, mestiços de branco e índio, índios puros, holandeses,
flamengos e espanhóis que exploraram a região sob o comando da Casa da Torre. Em 1752,
criou-se o município com a denominação de Vila de São Francisco do Rio Grande do Sul. O
29
topônimo, simplificado para Barra do Rio Grande, em 1873, e alterado para Barra, em 1931,
tem origem atribuída ao fato do Rio Grande ter sua barra em frente à cidade.
O município de Barra localiza-se a 807 Km de Salvador, capital da Bahia e está
totalmente inserido no Vale do São Francisco, na mesorregião do Vale-São-Franciscano da
Bahia e na microrregião de Barra. Limita-se ao Norte com Buritirama e Pilão Arcado, ao Sul
com Muquém do São Francisco, a Leste com Xique-Xique, Morpará e Ibotirama, a Oeste com
Buritirama, Cotegipe e Santa Rita de Cássia (Figuras 15 e 17). Segundo o IBGE, possui uma
área territorial de 11.333 km2 e de acordo com o Censo (2007) do IBGE, uma população de
47.755 habitantes.
A cidade da Barra ainda conta com inúmeras manifestações da cultura popular, a
maior parte ligada à religiosidade, seja com caráter litúrgico ou profano. O barrense procura
preservar, na medida do possível, a sua memória, como se pode perceber na arquitetura e
escultura locais, também nas histórias contadas pelos moradores e em documentos e
fotografias encontradas em arquivos públicos e particulares. Há em seus moradores certa dose
de orgulho pelo que a cidade da Barra já significou histórica, econômica e culturalmente para
a região.
No século passado, até meados da década de 30, o transporte fluvial era o
principal meio de locomoção e ligação entre as diversas cidades do Vale do São Francisco, e
destas com os demais estados ribeirinhos. A cidade da Barra era um importante entreposto
comercial. Destaca-se ainda a beleza dos brejos e das dunas, localizadas nas margens do
Velho Chico, o espetáculo da natureza no encontro dos Rios Grande e São Francisco, além do
conjunto arquitetônico da cidade.
2.4 UM MOCAMBO AO SABOR DOS VENTOS: CONTEXTUALIZAÇÃO
Fazendo parte desse contexto de beleza e história, encontra-se, situado sobre
dunas de areia nas margens do São Francisco, o Mocambo dos Ventos. O povoado possui 36
casas e aproximadamente 200 habitantes. Possui luz elétrica, um telefone público (Figura 18)
e uma escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental até a quarta série, com turmas
multisseriadas e dois professores. Não possui água encanada, igrejas, nem outros serviços ou
benfeitorias do poder público.
As casas são construções simples, sem banheiros, nem privadas (Figura 19). É um
hábito dos moradores, usarem o rio para o banho, para lavar roupas e a louça. As necessidades
30
fisiológicas são feitas no mato, no fundo das casas, um costume ainda rudimentar. Segundo o
dicionário Michaelis (2009), “mocambo” significa lugar em que os escravos se recolhiam
quando fugiam para o mato, habitação comum, sem nenhum conforto. O Mocambo dos
Ventos, portanto, apresenta as características apontadas pelos dicionários, uma vez que os
próprios moradores afirmam ser descendentes de escravos fugidos que se firmaram no local, e
a própria estrutura da moradia também confirma a denominação recebida. A Sra. Maria
Pereira de Carvalho, 75 anos afirma que a sua bisavó, tratada de Maria Braba, era escrava
fugida e foi “pegada a dente de cachorro na caatinga”.
Quanto ao nome “mocambo”, o Sr. Alberto Souza Dias explica o porquê: “Diz
que é por causa de uns escravo que chegaram fugido antigamente [...]”. Já a Sra. Maria
Alexandrina Caxiado, 73 anos, moradora do lugar desde o nascimento, complementa a
afirmação do Sr. Alberto, dizendo: “Porque venta muito, eles botaram esse nome de
Mocambo dos Ventos”.
Um fato que chama a atenção é a presença da TV e antena parabólica na maioria
das casas (Figura 20). Em todas elas, não se observou em seu interior ou em área externa a
construção de banheiro, de sanitário. Também não possuem piso de cerâmica ou cimento,
nem cômodos forrados. A maioria delas nem possui reboco ou pintura nas paredes, e até
mesmo o fogão é uma espécie de trempe formada de três pedras ou armação de ferro,
geralmente numa cozinha de palha no fundo das casas.
Mas a presença da TV e da antena parabólica nos leva a perceber o fascínio e o
estímulo ao consumo que a modernidade tecnológica e a cultura de massa exercem nas
sociedades, por mais isoladas que pareçam, ou seja, o desejo por conhecer o mundo, a cultura
do outro e de pertencimento a essa cultura. Como se tem conhecimento, cada vez mais as
tecnologias se inserem de forma inevitável no cotidiano das pessoas. Costa (1998, p. 22)
destaca que “a interferência dos meios de comunicação de massa, e com eles o popular nãotradicional, também contribui para a transformação da cultura popular”. Uma discussão mais
aprofundada sobre os meios de comunicação de massa e a cultura popular será feita mais
adiante neste trabalho.
A região do Mocambo dos Ventos é um lugar paradisíaco, formado por dunas de
areias brancas, as quais se quebram e se molham nas águas do Velho Chico (Figuras 21 e 22).
O povoado está situado sobre essas dunas que se movem ao sabor do vento e da erosão das
margens do rio. Considerada também como uma característica do texto oral, presente na
memória das narrativas ribeirinhas, a movência das dunas é uma realidade, uma vez que
muitas casas já não existem mais e outras vão sendo construídas cada vez mais afastadas da
31
margem. Morros de areia surgem e se desfazem com tempo. “Sei que aqui não tinha esse
morro não. Depois que virou esse morro, aí era plano” (Maria Pereira de Carvalho).
Zumthor (2007) chama de movência o processo de consolidação da memória, que
se implica na reiteração, e em incessantes variações recriadoras. Ou seja, além das dunas e do
próprio povoado, que se movem ao sabor dos ventos, a memória presente nas narrativas
também se move ao sabor dos seus intérpretes, dos seus contadores, de suas performances e
recriações.
Podem-se perceber ruínas de moradias antigas que foram soterradas pela areia
(Figura 23). No lugar em que já foi uma igreja, hoje existe apenas uma cruz, pois a construção
ruiu e desapareceu com o movimento da areia. Vê-se, próximo à localidade, também
provocado por essa movência, emergir-se, meio às dunas, um cemitério antigo e desconhecido
para muitos moradores, provavelmente de seus antepassados (Figura 24). Com isso, vem
surgindo novas histórias, novos personagens, que, embora não estejam mais vivos, podem ser
tomados como referências pelos atuais moradores, possivelmente no resgate como
personagens de suas narrativas. Toda a área do povoado é repleta de uma areia esbranquiçada
e fina. Justificando o próprio nome do povoado, o vento faz-se presente em todas as horas,
dias e meses do ano.
Vale ressaltar nos moradores do Mocambo dos Ventos, o saudosismo e a forte
lembrança de um passado em que o Velho Chico se destacava pela sua importância viária,
reforçada pela imponência dos vapores. Não apenas casas e dunas se desfizeram pela ação do
vento, mas outra realidade de um rio com uma força e uma vitalidade, cujo brilho ainda se
reflete nos olhos de seus moradores, assim como as luzes dos vapores.
Tinha o vapor que encostava era aqui, o pessoal cortava lenha na caatinga.
Nesse tempo, o primeiro vapor que veio aqui no rio era o Saldanha, tinha
uma roda no meio e os outros era atrás... Tinha o Venceslau, o Barão, o São
Francisco. Era bonito, o Barão, quem tinha coração, chorava quando ele
apitava... Hoje dá aquele aperto no coração quando lembra (Maria Pereira
de Carvalho).
A população do Mocambo dos Ventos é formada de pessoas simples, humildes e
acolhedoras. As portas das casas sempre estão abertas e o convite para adentrar ao espaço
interior das casas, é feito a todos que chegam. Sempre oferecem e compartilham o que têm:
água, comida, cadeira e também uma boa conversa, conforme se percebe na pré-disposição
em contarem as suas narrativas. Vivem da pesca, da agricultura de subsistência e do criatório
de animais domésticos como porcos e galinhas.
32
A pesca e a agricultura servem para a alimentação das famílias e o que vendem, é
para a satisfação das necessidades básicas, como a compra de vestuário, materiais de higiene,
alimentos que não cultivam, alguns móveis e utensílios. O programa do Governo Federal
Bolsa Família complementa a renda familiar. Embora o povoado esteja localizado nos limites
do município de Barra, a população tem a cidade de Xique-Xique como referência maior para
a realização das atividades urbanas e venda do peixe. A cidade é a mais próxima e o acesso é
mais rápido, pois é mais fácil descer o leito do rio.
Não é possível retratar, fielmente, neste trabalho, toda a singularidade do lugar, do
seu povo, de suas paisagens. É preciso ir, conhecer, ver. Assim como a magia e o
encantamento de suas narrativas e seus personagens, o lugar nos enfeitiça. Impossível não
querer voltar, conhecer melhor, conviver mais com aquelas pessoas. Mas fica a tentativa de
apresentar imagens, narrativas, mistérios, beleza e sedução, retratos ao vento de uma cultura
que não pode ser encoberta com o tempo, pelas areias do esquecimento.
Pode-se afirmar que o Mocambo dos Ventos constitui-se numa comunidade
narrativa, pois fazem parte do seu cotidiano, narrativas orais com as quais os seus moradores
constroem o sentido de pertencimento e se reconhecem como próprios personagens. As
histórias são contadas com a mais pura veracidade pelos narradores que convivem
naturalmente com a presença de seus personagens e situações desencadeadas.
Convém ressaltar que o sentido utilizado para comunidade narrativa neste estudo,
apresenta-se em conformidade com Lima (1985), no qual considera como tal, o conhecimento
mútuo de narrativas e o hábito de compartilhá-las, recriá-las e performatizá-las entre
narradores e o seu público, numa unidade interdependente, indissociável e dinâmica. Ou seja,
é o espaço onde se constrói uma relação de pertencimento entre os narradores e ouvintes; um
envolvimento de ambos, estabelecido a partir das narrativas.
As narrativas orais estão presentes na cultura e no próprio lugar, da mesma forma
que o rio, as dunas, o vento e o sol. Não se pode pensar em retratar o Mocambo dos Ventos
sem trazer para o conhecimento, o mistério, a fantasia e os exemplos de suas narrativas. A
singularidade dessas narrativas não se limita ao valor estético, mas à sua força de
representação e seu mérito sociocultural. Diante desse retrato, pode-se, a partir de então,
passar a uma abordagem teórica a respeito da Literatura Oral e outras considerações
relacionadas à cultura popular e identidades, o que nos permitirá compreender melhor a
identidade cultural da região.
33
Figura 9 – Cais da cidade de Xique-Xique de onde saem as embarcações
Figura 10 – Pescadores
34
Figura 11 – Lavadeiras
Figura 12 – Rancho: espécie de moradia e abrigo dos pescadores
35
Figura 13 – Garça à espera do peixe, seu principal alimento e da população
Figura 14 – Capela de Nossa Senhora Santana na Ilha do Miradouro (Foto Marquileide)
36
Barra
Figura 15 – Localização do município de Barra no mapa da Bahia (Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Microrregi%C3%A3o_de_Barra)
37
Xique-Xique
Figura 16 – Localização do município de Xique-Xique no mapa da Bahia (Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Bahia_Municip_XiqueXique.svg)
38
*
Barra
* Xique-Xique
Figura 17 – Localização das cidades de Barra e Xique-Xique nas margens do Rio São Francisco no
mapa da Bahia (Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1)
39
Figura 18 – O único telefone do lugar ao lado de moradia simples
Figura 19 – Moradia no Mocambo dos Ventos
40
Figura 20 – Moradia simples com TV e antena parabólica
Figura 21 – Dunas no Mocambo dos Ventos (Foto PDDU, município de Barra)
41
Figura 22 – Dunas no caminho de acesso ao povoado
Figura 23 – Ruínas de moradias encobertas pela areia (Foto PDDU, município de Barra)
42
Figura 24 – Dunas próximas ao Mocambo dos Ventos onde se visualiza marcas de um cemitério
antigo
43
3 LITERATURA ORAL: SAINDO DAS MARGENS,
RESSIGNIFICANDO AS FRONTEIRAS
As narrativas de vida, tanto quanto as de ficção,
podem ser a janela para entender-se com o mundo.
(Eliana Yunes, 2002)
Antes de dar início a uma discussão em torno da cultura e da literatura popular,
convém afirmar que a representação de cultura trazida neste trabalho é a mesma utilizada por
Campos, C. (2004, p. 39) que a considera como sendo um “conjunto de práticas perpetuadas
transgeracionalmente”. Indo ainda mais além, cultura pode ser entendida como um texto
amplo e contínuo, composto de camadas que se sobrepõem a todo instante, trocando
informações e construindo novos textos.
A cultura popular passa a ser também entendida neste trabalho, a partir da mesma
visão de Costa, (2005, f. 22):
[...] não como algo exótico, produto de exportação ou atração turística, mas
considerando-a um estrato da cultura brasileira em suas relações com os
outros estratos mais sujeitos à rapidez das transformações das sociedades
modernas e à velocidade contemporânea.
Há uma tendência ao desmerecimento das manifestações culturais que fogem às
regras estabelecidas pela hegemonia cultural, de base eurocêntrica. Com isso, muitas vezes,
essa cultura popular tem sido marginalizada por uma elite cultural, a qual na maioria das
vezes desqualifica as demais formas que fogem aos padrões de cultura estabelecidos pelos
dominantes, pois como se tem conhecimento, “toda manifestação popular tende portanto a ser
inserida num espaço de subordinação que arbitrariamente é imposto a partir do alto” (ORTIZ,
2003, p. 78). Não há, contudo, entre a cultura popular e a cultura hegemônica, uma relação de
alienação, como até pode parecer, mas uma relação de forças, em que o dominante determina,
classifica e exclui.
Considera-se se como elite cultural, aquela que representa uma visão de cultura,
tomando como referência maior a hegemonia cultural de base eurocêntrica, imposta pelo
colonizador durante a colonização, embora se saiba que atualmente, a elite cultural brasileira
não aparece exclusivamente ratificada somente pelos preceitos e valores canônicos desse
colonizador.
44
Desta maneira, já não se pode afirmar que a cultura brasileira da elite seja, na
atualidade, apenas eurocêntrica e firmada nos valores da época do colonizador, porque há
muitos modos de reprodução centralizadores, os quais não são apenas do etnocentrismo
europeu. Muitos desses valores etnocêntricos do colonizador foram também apropriados e
reinventados pela cultura popular e encontram-se bem fundamentados dentro das suas
próprias bases de discriminação e de marginalização. Isto nos faz perceber que tais ideias
valorativas e hierarquizantes perpassam por todas as camadas culturais brasileiras, inclusive
pelas ditas marginalizadas.
Para melhor entendimento do que vem a ser uma visão etnocêntrica, convém
afirmar que “Etnocentrismo é uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado
como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores,
nossos modelos, nossas definições do que é a existência” (ROCHA, 1988, p. 5). Uma visão
etnocêntrica é aquela em que um indivíduo, ou grupo de indivíduos faz de um grupo social
diferente do seu, tomando como base, os valores, referências e padrões adotados pelo grupo
social ao qual esse indivíduo ou grupo fazem parte. Segundo Rocha (1988), o grupo do “eu”
faz da sua visão a única possível, a melhor, a natural, a superior, a certa e o grupo do “outro”
passa a ser considerado como engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível.
Apesar de Câmara Cascudo, tido como o maior folclorista brasileiro, e das suas
posições, as quais podem ser consideradas como conservadoras, torna-se pertinente a sua
presença na discussão sobre estudos culturais e contemporaneidade, proposta neste trabalho,
uma vez que foram inúmeras as contribuições do autor aos estudos da cultura popular, por ser
um dos primeiros a trazer uma série de abordagens e informações, o que muito contribuiu
para o conhecimento da cultura popular brasileira. Partindo-se de suas considerações, pode-se
chegar até a uma ressignificação das fronteiras culturais do Brasil, ou seja, repensar valores,
discursos e práticas culturais. Dessa forma, as palavras de Cascudo são validadas para tratar
da temática.
Sendo assim, não se deve compreender cultura popular através do seu conceito
clássico e predominante que se estabeleceu por muito tempo. Segundo Chartier (2003), a
cultura popular era concebida na Europa e, possivelmente nos Estados Unidos, a partir de três
ideias: como algo que se opunha à cultura letrada e dominante; como popular conforme o seu
público; e tomando as expressões culturais como essencialmente puras, destacando algumas
como intrinsecamente populares.
Segundo Ortiz (2003), não se pode mais pensar a cultura popular associada
somente à persistência do elemento conservador e à valorização da tradição como presença do
45
passado, apesar desta posição conservadora da cultura popular ter dominado grande parte da
literatura folclórica brasileira. O conceito de cultura popular deve ultrapassar a barreira da
assimilação com a tradição e ir mais além, relacionando-se com ideia de conscientização, de
ação política, de crenças, valores e posicionamentos que representem o povo. Dessa forma
também se pode considerar que:
“Cultura Popular” não é, pois, uma concepção de mundo das classes
subalternas [...] nem sequer os produtos artísticos elaborados pelas camadas
populares, mas um projeto político que utiliza a cultura como elemento de
sua realização (ORTIZ, 2003, p. 72).
Na contemporaneidade, os estudos culturais não mais coadunam também com a
utilização dos rótulos: erudito e popular, uma vez que as expressões culturais, até então tidas
como populares, não têm qualidade inferior ou mais simples que as vistas como eruditas e
nem podem mais ser consideradas como de baixo merecimento.
Torna-se mister, acrescentar ainda, uma comparação sobre Literatura popular e
tradicional, feita por Cascudo, (2008, p. 331-332) em seu Dicionário do Folclore Brasileiro,
no qual define a literatura popular como aquela que “tipicamente impressa, não exclui a
passagem à oralidade. É veiculada por meio de folhetos que abordam os mais variados
assuntos” e a literatura tradicional, como aquela que “sempre impressa, tem sua permanência
no tempo, constantemente renovada pela reimpressão [...]”.
O termo “Literatura oral” foi criado oficialmente em 1881, por Paul Sèbillot. A
literatura oral, considerada por Cascudo (2008, p. 333) como “todas as manifestações
culturais, de fundo literário, transmitida por processos não gráficos”, capaz de caracterizar um
determinado grupo social, tendo a memória como a principal forma de registro, sofre um
processo de marginalização, pois se constitui na maioria das vezes num produto cultural de
uma população economicamente menos favorecida.
A elite cultural tende a deixar às margens, excluir a literatura popular do cânone
oficial, chegando a criar estereótipos e a classificá-la como ineficaz, pitoresca e desprovida de
valores estéticos. Nessas circunstâncias, vale destacar ainda Cascudo (2006, p. 25), quando
declara que:
A Literatura Oral é como se não existisse. Ao lado daquele mundo de
clássicos, românticos, naturalistas, independentes, digladiando-se,
discutindo, cientes da atenção fixa do auditório, outra literatura sem nome
em sua antiguidade, viva e sonora, alimentada pelas fontes perpétuas da
imaginação, colaboradora da criação primitiva, com seus gêneros, espécies,
46
finalidades, vibração e movimento, continua rumorosa e eterna, ignorada e
teimosa, como rio na solidão e cachoeira no meio do mato.
Nada melhor do que as palavras poéticas supracitadas de Cascudo para retratar a
literatura oral como uma das formas de expressão cultural. Logo, não se pode desmerecer a
literatura popular, frente à literatura tradicional. Esta “literatura que chamamos oficial, pela
sua obediência aos ritos modernos ou antigos de escolas ou de predileções individuais,
expressa uma ação refletida e puramente intelectual” (CASCUDO, 2006. p. 25).
A literatura tida como oficial tem se desenvolvido e se classificado tomando como
base aspectos que constituem, na sociedade, a configuração de produções literárias escritas, as
quais privilegiam a norma linguística adotada por um grupo restrito de falantes que, mediados
por estratégias políticas, sociais e ideológicas, divulgam sua opção como a única aceita e
condizente com a representação do perfil do povo brasileiro. Tal circunstância ocasiona a
marginalização das produções que se afastam desse perfil, as quais passam a ser consideradas
como imperfeitas, não podendo fazer parte do seleto grupo literário estabelecido pelo cânone
oficial.
Entende-se como cânone, uma seleção de obras do ramo específico do
conhecimento, algo que passa a ser considerado como um modelo, o qual tende a ser
referendado por diversas gerações. Porém, a cultura dos dominantes acaba elegendo e
reverenciando as suas criações como padrão, excluindo aquelas que se distanciam de tais
marcas estéticas.
[...] O conceito de cânon implica um princípio de seleção (e exclusão) e,
assim, não pode se desvincular da questão do poder: obviamente, os que
selecionam (e excluem) estão investidos da autoridade para fazê-lo e o farão
de acordo com os seus interesses (isto é: de sua classe, de sua cultura, etc.)
(REIS, R., 1992, p. 70).
Deste modo, esse caráter excludente faz o cânone tornar-se um problema, pois é
preciso tomar cuidado para que nesse processo de escolha dos parâmetros de seleção
canônica, não se impeça a entrada de artistas com suas obras e modalidades culturais que
fogem a critérios pré-estabelecidos, quer sejam estéticos ou ideológicos.
Críticos como
Harold Bloom, por exemplo, têm nos mostrado que a estética é uma condição essencial para
uma obra fazer parte de uma lista canônica, causando certo apagamento dos aspectos
ideológicos.
O movimento de dentro da tradição não pode ser ideológico nem colocar-se
a serviço de quaisquer objetivos sociais, por mais moralmente admiráveis
47
que sejam. A gente só entra no cânone pela força poética, que se constitui
basicamente de um amálgama: domínio da linguagem figurativa,
originalidade, poder cognitivo, conhecimento, dicção exuberante. (BLOOM,
1995, p. 36)
Mas, como se percebe, Reis, R. (1992) destaca que a ideologia não deve ser
apagada, pois é algo latente em todas as escolhas do homem. E até para o estabelecimento dos
critérios estéticos, a marca ideológica impera. Logo, pode-se afirmar que ideologia e estética
se completam na consolidação dos cânones sem nenhuma sobrepor-se à outra.
O que se sugere, portanto, não é o apagamento do cânone, mas a democratização
de um espaço para o “não-canônico”, ou seja, a criação de um “contracânone”, um cânone
paralelo, para que expressões artístico-culturais de grande importância como a literatura oral
possam ter visibilidade e não sejam relegadas a um plano inferior, pois a cultura nacional
popular e a de elite, durante muito tempo, vêm convivendo lado a lado.
Sendo assim, poderá ocorrer uma alternância de lugar, uma penetração de
manifestações marginalizadas nas barreiras do cânone ocidental. Como se sabe, autores e
obras antes tidos como não-canônicos, hoje, fazem parte desse cânone oficial. Não se propõe
o fim do modelo oficial, pois os modelos sempre existirão, mas uma democratização para que
as culturas excluídas possam adentrar nessa lista e deixem de ser vistas como subculturas, e
sim como representações da identidade nacional.
Mas, percebe-se ainda que estas produções orais vêem-se relegadas ao grupo das
criações populares e rotuladas como iniciativas isoladas que tendem a trilhar pelas margens
desse cânone excludente. Os seus criadores e receptores não recebem o devido
reconhecimento social, nem são considerados como aptos a representarem a literatura e a
cultura nacional, embora já se visualize uma certa transformação das opiniões nesse aspecto.
Tem-se notado, nos últimos tempos, uma mudança no que concerne aos temas e
conceitos relacionados à literatura popular. Para Santos, (1995), o próprio termo “popular” é
literalmente repleto de definições verdadeiras ou falsas, consideradas como problemáticas por
gerações de estudiosos. Aparece muitas vezes distorcido ou associado a algo inferior, quando
comparado ao erudito, oficial e culto, que geralmente são associados à cultura escrita,
ratificada pela sociedade grafocêntrica. Mas, essa visão vem sendo revista e redimensionada,
pois de acordo com Santos, (1995, p. 33-34),
A definição da literatura oral, por sua vez, mudou consideravelmente desde
Paul Sébillot, criador oficial do termo, que o assimilava a popular e
analfabeta [...] a literatura oral está saindo do gueto da folclorização [...]
(grifo da autora).
48
São diversas as formas em que a literatura oral se apresenta. Pode-se considerar
como literatura oral, os contos, as lendas, mitos, causos, advinhações, provérbios, parlendas,
cantos, orações, anedotas, dentre outras manifestações literárias transmitidas oralmente.
3.1 O MULTICULTURALISMO COMO MARCA DAS NARRATIVAS
ORAIS
As narrativas orais constituem um segmento da literatura popular capaz de fazer
emergir os traços culturais de um grupo, de uma comunidade, de uma nação. Essas narrativas
confirmam uma cultura que se apoia na diversidade, uma vez que as diversas culturas se
relacionam e se interpenetram, influenciando-se mutuamente. Já não é mais possível defender
um conceito de cultura centrado na homogeneidade, numa visão tradicional, a qual
desconsidera as variedades de influências, pois Bhabha (2003, p. 24, grifo do autor) mostra
que “os próprios conceitos de culturas nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou
contígua de tradições históricas, ou comunidades étnicas „orgânicas‟ – enquanto base de
comparativismo cultural –, estão em profundo processo de redefinição”.
Considerado como a existência de muitas culturas num determinado grupo social,
cidade ou país, o multiculturalismo apresenta-se como uma realidade em praticamente todas
as culturas brasileiras, já que se pode observar a predominância do pluralismo cultural em
todas as regiões do Brasil. Sendo assim, Honwana (2006, p. 20) ressalta que:
Cresce a consciência de que a preservação do pluralismo cultural é a única
forma de garantir que a nossa arte, a nossa literatura, como os outros
elementos que definem a nossa identidade cultural, possam se manifestar e
florescer no espaço que lhes é próprio.
No multiculturalismo, essas culturas convivem umas com as outras deixando as
suas marcas nas diversas formas de expressão cultural, como na literatura por exemplo. No
Brasil, uma nação multicultural, as culturas afrodescendentes e indígenas convivem lado a
lado com a do colonizador português, dentre outras de povos que aqui se firmaram durante e
após o processo de colonização, através do processo migratório.
Como a cultura pode ser considerada uma referência a crenças, comportamentos,
valores, instituições, regras morais que permeiam e identificam uma sociedade, a nação
brasileira acaba se constituindo culturalmente na diversidade cultural, trazendo consigo
referências de diversos povos e seus elementos, marcas e características. O sentido rigoroso
49
de nação como grupo de pessoas com os mesmos hábitos, costumes, tradiçoes e valores passa
a ser democratizado para a visão de um grupo, o qual apresenta aspectos que os aproximam
como língua e território, mas com certas diferenças em outros, emboram convivam entre si
diariamente com tais diferenças. É o que se poderia chamar de nação multicultural.
Uma das maneiras de se confirmar o multiculturalismo nas narrativas orais, como
as do Mocambo dos Ventos é através da sua própria autoria, a qual não é atribuída
exclusivamente a um indivíduo, isto é, não se pode nomear, identificar um autor específico
para a narrativa oral, pois esta é de autoria coletiva. Mesmo podendo-se atribuir uma autoria
ao narrador, no momento da transmissão da narrativa, não se pode dizer que o texto é
exclusivamente seu, pois os textos narrados são repassados de geração a geração, embora cada
narrador acrescente o seu estilo pessoal e as marcas culturais locais.
Para Almeida e Queiroz (2004, p. 148) “o contador figura sempre como
intérprete, e a função da autoria é atribuída a abstrações como a tradição, a coletividade, o
povo, não se cogitando a identificação de um autor individual”. Acrescente-se que, além de
intérprete, pode-se considerá-lo também um criador de seu texto, um artífice da memória,
ainda que represente uma coletividade, mas não um autor exclusivo. Pode-se perceber a
incerteza quanto ao momento de criação das narrativas, mas não se pode negar a fluidez com
que são re-elaboradas de narrador para narrador, e recontadas a partir das experiências
individuais de cada um, estabelecidas na relação com o outro.
Com isto, pode-se afirmar que o multiculturalismo faz-se notório na constituição
histórico-cultural dos povos, especialmente do brasileiro. O Brasil apresenta uma realidade
cultural apoiada na heterogeneidade, uma vez que a nação brasileira é constituída
principalmente na miscigenação de povos nativos, colonizadores e afrodescendentes.
Confirmando tal assertiva, Cascudo (2006, p. 27) aponta que:
A literatura Oral brasileira se comporá dos elementos trazidos pelas três
raças para a memória e o uso do povo atual. Indígenas, portugueses e
africanos possuíam cantos, danças, estórias, lembranças guerreiras, mitos,
cantigas de embalar, anedota, poetas e cantores profissionais, uma já longa
e espalhada admiração ao redor dos homens que sabiam falar e entoar.
Sendo assim, a cultura brasileira é plural, diversificada e não uma cultura
uniforme e singular, pois as diversas vertentes culturais aqui presentes, contribuem para a sua
consolidação numa mistura das múltiplas faces de seus múltiplos povos. Para Bhabha (2003,
p. 25), “cada vez mais, as culturas „nacionais‟ estão sendo produzidas a partir da perspectiva
de minorias destituídas.” Então, essas “minorias destituídas”, que formam a nação brasileira,
50
tornam-se extremamente importantes para a definição de uma cultura capaz de melhor
representar o nosso povo, pois não existe povo que possua uma só cultura, fechada,
desprovida de influências externas. Nesse sentido, as discussões e análises das narrativas não
estão pautadas a partir de uma única origem cultural, mas de um texto híbrido, pois se busca o
estudo de uma poética própria, a qual faz parte de um processo que amplia a perspectiva de
criação do texto oral.
As narrativas orais são compostas de elementos não somente regionais, mas de
caráter universal. Pode-se até, equivocadamente, entender que pelo fato de fazer parte da
camada popular, essas narrativas constituam-se apenas de elementos e temas da região, do
lugar onde se encontram. Muito pelo contrário, “as estórias populares no Brasil não são mais
regionais ou julgadamente nascidas no país, mas aquelas de caráter universal, antigas,
seculares, espalhadas por quase toda a superfície da terra” (CASCUDO, 2006, p. 33).
Bhabha (2003) ressalta a junção do universal com o regional nas culturas
populares, como ocorre com as narrativas, as quais não devem ser vistas como
exclusivamente representantes de aspectos regionais. Essas narrativas apresentam elementos
universais, que foram introduzidos pela memória dos colonos e por isso não se pode afirmar
que exista uma narrativa de origem exclusivamente ibérica, africana ou indígena. Há sempre
uma fusão de elementos das diversas culturas.
Até mesmo porque, quando se fala da cultura ibérica, esta se apresenta composta
de elementos temáticos de várias culturas como a celta, a moura e a latina, dentre outras. Não
se pode esquecer também de que os povos afrodescendentes são oriundos de uma pluralidade
cultural advinda de várias regiões, as quais formam a vastidão territorial do continente
africano, conforme se observa em depoimento de Amadou Hampâté Bâ, recolhido em 1986
por Hélène Heckman:
Quando se fala da “tradição africana”, nunca se deve generalizar. Não há
uma África, não há um homem africano, não há uma tradição africana
válida para todas as regiões e todas as etnias. Claro, existem grandes
constantes (a presença do sagrado em todas as coisas, a relação entre os
mundos visível e invisível e entre os vivos e os mortos, o sentido
comunitário, o respeito religioso pela mãe, etc.), mas também há numerosas
diferenças: deuses, símbolos sagrados, proibições religiosas e costumes
sociais delas resultantes, que variam de uma região a outra, de uma etnia a
outra; às vezes, de aldeia para aldeia (HAMPÂTÉ-BÂ, 2003, p. 14).
Já no que se refere às narrativas indígenas, que também são de autoria de povos de
diversas etnias, quando estas chegaram ao nosso meio e se traduziram para a língua
51
portuguesa, naturalmente os elementos externos à sua cultura foram incorporados. Nesse
sentido, Costa (1998, p. 21) afirma:
No caso da cultura brasileira, devemos ter em mente que a tradição oral
ibérica trazida com a língua e a cultura portuguesa, por razões históricas, é a
principal vertente de nossa cultura popular. Porém o legado ibérico,
mesclado com a contribuição negra e indígena, enriquecido pela
interferência de elementos tomados de um contexto sociocultural brasileiro,
resultou em uma tradição diferenciada da européia.
Cascudo (2006 p. 34) discute essa ausência de exclusivismo total na literatura
oral, que pode até constituir-se de elementos locais, de alguma coisa curiosa e sugestiva que
não se recebeu de fora, mas em maioria, de elementos universais, importados, acrescentando
que:
A produção local, de fundo indígena, reduzir-se-á às áreas geográficas em
que a tribo se fixou. A negra espalhar-se-ia mais rapidamente através do
mestiço. A segunda geração brasileira, mamelucos e curibocas, “cabras” e
mulatos, foi a estação retransmissora, espalhando no ar as estórias de seus
pais.
Nos últimos tempos, a literatura oral começa então a sair das margens para
ultrapassar as fronteiras do preconceito e as barreiras impostas pelo cânone, para adentrar
num espaço em que o foco dos estudos literários faz com que comece a ganhar relevância no
universo da literatura, passando a ser vista como um instrumento capaz de retratar o seu povo,
transmitir conhecimentos, valores, religião, costumes, através dos contos, lendas, poesias,
músicas, orações, etc. Dessa forma, convém afirmar neste estudo, que o texto literário oral
Poderá ser melhor definido pelo conceito de etnotexto, que designa o
discurso que um grupo social, uma coletividade elabora sobre sua própria
cultura, na diversidade de seus componentes, e através do qual reforça ou
questiona sua identidade” (SANTOS, 1995, p. 39, grifos da autora).
3.2 LITERATURA E IDENTIDADES: DISCUTINDO CONCEITOS
3.2.1 Identidade: um conceito em construção
A discussão sobre a identidade cultural tem se tornado cada vez mais presente no
campo da teoria social. Abre-se um campo discursivo no que concerne aos conceitos de
52
cultura e identidade, e de como se consolidam e têm se mantido dentro dos grupos sociais, em
especial daquelas culturas de fronteiras12.
Não se admite mais a homogeneidade da cultura, como também a sua
imutabilidade. Nota-se que o conceito de identidade passa por um processo de instabilidade e
de redefinição. Nesse sentido, Meihy (2005, p. 86) nos diz que:
Modernamente, no mundo globalizado, novos problemas têm atingido a
estabilidade do conceito de identidade, o que leva a duas alternativas
possíveis: a “multiplicidade de identidades” ou a “negociação de
identidades”.
Deste modo, a visão de Meihy, como as de outros estudiosos do tema, nos
mostram que o conceito de identidade, assim como a própria identidade, ainda estão em
formação, buscando um consenso diante da diversidade de conceitos e de afirmações
existentes. Nesse aspecto, Hall (2000, p. 08) afirma:
O próprio conceito com o qual estamos lidando, “identidade”, é
demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco
compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente
posto à prova.
Tem-se notado que o conceito de identidade, tida como fixa e estável, já não se
enquadra mais nos nossos dias, pois ela se constrói, apoiando-se em um processo contínuo de
identificação, que a cada momento se aprimora e se completa. Para Hall (2000) a identidade
plenamente unificada, completa e segura é uma fantasia. Considerando-se esse fato da
identidade estar sempre inacabada e em construção, Meihy (2005, p. 82) informa que:
Modernamente, todos estamos submetidos a uma multiplicação de pólos
possivelmente identitários, que, por sua vez, sofrem alterações dadas as
influências das variações da cultura e as situações a que se submetem as
pessoas.
Percebe-se ainda, que o trabalho com as identidades, devido a essa multiplicidade
de pólos e de fatores identitários presentes em uma única pessoa, torna-se de difícil precisão,
uma vez que a identidade cultural consolida-se na diversidade. De certo modo, a cultura
diversificada dos grupos minoritários, considerada como inferior e desmerecida pelos grupos
hegemônicos, tem soado como falsa nos discursos dos mesmos propagadores do cânone
12
Segundo Canclini (2006), hoje, todas as culturas são culturas de fronteira. São culturas que se influenciam
mutuamente, que acabam se construindo no choque de uma com as outras, ou seja, no contato, na interação e na
troca; são culturas em trânsito.
53
elitista, o que não deve mais ser tolerado. Burke (2006, p. 14), versando sobre esse processo
de desmerecimento das minorias na construção da identidade, chama a atenção de que:
Um dos sinais do clima intelectual de nossa época é o uso crescente do
termo “essencialismo” como um modo de criticar o oponente em todo tipo
de discussão. Nações, classes sociais, tribos e castas têm todos sido
“desconstruídos” no sentido de serem descritos como entidades falsas.
Sendo assim, defende-se o conceito de identidade como um processo dinâmico e
em construção, em torno do qual o indivíduo se referencia e procura construir a si mesmo e a
seu mundo, desenvolvendo um sentido de pertencimento e de autoria. A identidade se constrói
no estabelecimento de relações entre o indivíduo e o seu mundo e também entre o indivíduo e
o outro, ou seja, a partir das relações que estabelece com o outro e com as diferenças. Sobre a
construção da identidade e a relação do indivíduo com o outro, pode-se apontar que:
Tanto o indivíduo quanto suas concepções de realidade são constituídos nas
relações interpessoais. Essas inter-relações são mediadas por crenças,
padrões, práticas e normas de toda uma sociedade e esta, por sua vez, em
parte, é constituída por esse mesmo indivíduo dela participante, em um
processo contínuo e dinâmico de mútua construção, cuja direção não é
casual, mas determinada pelo somatório das ações políticas de todos os
indivíduos que a constituem. (FERREIRA, R., 2004, p. 44).
Logo, pode-se concluir essa acepção sobre identidade, trazendo FERREIRA, R.
(2004, p. 47), que a considera como “uma referência em torno da qual o indivíduo se
autorreconhece e se constitui, estando em constante transformação e construída a partir de sua
relação com o outro”. Ainda, dentro dessa perspectiva de uma visão de identidade como lugar
de confluência múltipla, Chamoiseau, (1997, p. 200 apud Bernd 2003, p. 27-28), diz que:
O Outro me modifica e eu o modifico. Seu contato me anima e eu o animo.
E estes desdobramentos nos oferecem ângulos de sobrevida, e nos desselam
e nos amplificam. Cada outro torna-se um componente de mim, embora
permaneça distinto. Eu me torno o que sou em meu apoio aberto sobre o
Outro.
3.2.2 Cultura afrodescendente: firmando identidades
Conforme as estatísticas atestam, o Brasil é o segundo país do mundo que
apresenta a maior quantidade de negros. Somos a maior população negra fora da África e
dessa forma não há como negar no Brasil, a expressiva presença demográfica de
54
afrodescentes13, pois os valores da ancestralidade africana encontram-se presentes e muito
atuantes no processo de construção da identidade e da cidadania. Contudo, percebe-se a
desvalorização dos elementos das cosmovisões de matrizes africanas e que os valores
determinados pela cultura do branco europeu são considerados superiores, fazendo com que
em certos momentos da história cultural brasileira, os afrodescendentes venham desenvolver
uma autoimagem negativa, uma baixa autoestima .
Nota-se que o próprio sistema social contribui para a perpetuação de um processo
de exclusão, gerando assim uma condição desumana de existência dos afrodescendentes. O
próprio negro, desde muito tempo atrás, costumava negar a sua cultura e tradição, pois
O africano escravizado, com sua estranheza e diferença, era tanto mais
aceito quanto mais negava e se distanciava de seus ritos e de sua cultura. Só
na negação de si mesmo ele podia ser reconhecido como gente, como
pessoa, como humano (GÓIS, 2008, p. 87).
Essa situação é reafirmada pelo discurso do “branqueamento”, estimulado por
parcelas da sociedade, através da mídia e da literatura, que atrelavam, há até bem pouco
tempo, a imagem do negro a estereótipos negativos, reforçando o preconceito racial criado no
Brasil desde a época da colonização. Com isso, aspectos importantes deixam de ser
considerados, como a efetiva integração social dos antigos negros escravizados, dentre outros.
É preciso salientar que o processo de interação social contribui para a construção
da identidade afrodescendente e que muitas vezes, os valores negativos sobre o negro são
repassados e incorporados dentro de um grupo social, causando o desenvolvimento de uma
identidade que inclui valores estigmatizados, como se pode observar na fala da Sra. Maria
Francisca da Silva, moradora do Mocambo dos Ventos, em parte de sua narrativa sobre o
Nego d‟Água: “A moça era bonitona, cabelão bom, né? Ele só gostava de mulher bonita, de
gente feia não, ele é negro preto e não gosta de preto não. A moça era morena, bonita do
cabelão na cintura”.
Há, portanto, a reprodução pelo próprio afrodescendente, de um discurso
preconceituoso, pautado em valores da cultura do colonizador (branco) que desmerece e
desqualifica o negro. Vale ressaltar, que a Sra. Maria Francisca possui 70 anos de idade e é
negra. (Figura 27).
13
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD, IBGE (2007), a população
brasileira é composta de 49,5 % de negros (pardos ou pretos) que se autodeclararam, comprovando que,
praticamente, metade da população brasileira constitui-se de afrodescendentes. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2007/sintese/tab1_2.pdf.
Acesso em: 17 set. 2009.
55
O Brasil, país que se constitui culturalmente numa pluralidade de grupos étnicos,
apresenta um imaginário coletivo que é compartilhado, evidentemente, por toda a coletividade
social. Muito desse imaginário coletivo está relacionado à cultura do afrodescendente, logo
“o desenvolvimento da identidade do brasileiro está absolutamente condicionado à
participação dos africanos na vida brasileira e sua sabedoria está presente nas manifestações
culturais, nos gestos e nas relações” (FERREIRA, R., 2004, p. 40). E os seus valores,
repassados de geração a geração, agem diretamente no processo de formação da cidadania.
O desmerecimento da cultura e da imagem do afrodescendente perpetua-se em
nossa história há muito tempo, sob o amparo do clero. Segundo FERREIRA, R. (2004), o
homem africano e seus valores foram associados a qualidades negativas pelo europeu desde
antes do processo de colonização do Brasil e a Igreja Católica era a agência legitimadora dos
valores e práticas humanas que iam de encontro ao negro e à sua cultura, com a intenção de
regulamentar as ações dos cruzados e dos colonizadores. Para reforçar tal acepção e entender
como se consolida, desde a idade média, o uso dessas práticas, traz-se a bula Romanus
Pontifex, de 8 de janeiro de 1454, do Papa Nicolau V, a esse respeito:
Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso dileto
filho d. Henrique, incendido no ardor da fé e zelo da salvação das almas, se
esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe o nome gloriosíssimo
de Deus, reduzindo à sua fé não só os sarracenos, inimigos dela, como
também quaisquer outros infiéis. Guinéus e negros tomados pela força,
outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao reino, o que
esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de muito mais.
Por isso nós, tudo pensado com devida ponderação, concedemos ao dito rei
Afonso a plena e livre faculdade entre outras, de invadir, conquistar,
subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, sua terra e
bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos
seus descendentes. Tudo declaramos pertencer de direito in perpetuum aos
mesmos d. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se alguém, indivíduo ou
coletividade, infringir essas determinações, seja excomungado [...]
(RIBEIRO, D., 1995 apud FERREIRA, R., 2004, p. 41, grifo nosso).
Na atualidade, como se tem conhecimento, tais procedimentos discriminatórios
não são mais tolerados na sociedade brasileira. A presença das leis anti-racismo, da lei
10.639/03, alterada pela 11.645/200814, que versa sobre a obrigatoriedade do estudo da
14
Segundo a Lei Federal 11.645 de 10 de março de 2008, o conteúdo programático deverá incluir diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no
Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as
suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. Estabelece ainda que os
conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no
56
história e cultura afro-brasileira e indígena para estabelecimentos de ensino fundamental e
médio, públicos e privados, em todo o país, bem como de outros atos legais voltados para essa
esfera, tem coibido atitudes racistas explícitas e motivado, de certa forma, a valorização da
cultura afrodescendente.
Mas não impede que indiretamente, preconceitos contra os negros e sua cultura
ainda existam dentro da sociedade. Ou seja, o discurso do “branqueamento” até agora não foi
banido da realidade social brasileira, pois o afrodescendente ainda enfrenta, nos dias de hoje,
uma constante discriminação racial, de forma aberta ou encoberta. Dessa forma, não se pode
negar que “a identidade da pessoa negra traz do passado a negação da tradição africana, a
condição de escravo e o estigma de ser um objeto de uso como instrumento de trabalho”
(FERREIRA, R. 2004).
No Mocambo dos Ventos, essa identidade e a condição de escravo não é negada.
Apesar da internalização, até de forma inconsciente, de alguns aspectos do discurso
branqueador europeu, os seus moradores reconhecem a sua descendência de negros
escravizados, o que consolida o local como um lugar de remanescentes de quilombos. Após
ser questionada sobre a sua descendência, a Sra. Maria Alexandrina Caxiado não hesitou em
afirmar-se descendente de escravos. “A minha bisavó era escrava fugida. Foi pega no mato,
braba, de dente de cachorro [...] Aqui todo mundo é descendente de escravo”.
Dentro de um universo que deforma toda essa diversidade cultural, criado pelo
colonizador
europeu,
o
afrodescendente
segue
enfrentando
dificuldades
para
o
desenvolvimento de sua identidade. É preciso assim, compreender a maneira como ele
desenvolve essa identidade, principalmente em contextos sociais adversos. A literatura negra
é um exemplo de sobrevivência nessa adversidade. Sabe-se que a literatura negra brasileira,
como nos mostra BERND (2003, p. 18) “tem sua gênese no resgate de uma memória coletiva
solapada pelo monologismo da historiografia oficial”.
Com as narrativas orais do Mocambo dos Ventos não acontece de forma diferente,
que, por fazerem parte de uma comunidade formada por afrodescendentes, não recebem a
devida valorização e reconhecimento literário. Elas têm sido marginalizadas pelo cânone,
porque, segundo Duarte (2002), a literatura negra, de certo modo denuncia o caráter
etnocêntrico de muitos dos valores adotados pela academia literária. Elas são excluídas do rol
das literaturas tidas como belas, devido à falta do purismo, ou seja, ao fato de que o
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e de história
brasileiras.
57
conservadorismo estético elege como belo canônico universal uma literatura sem
contaminação com as contingências ou pulsões da história.
Proibidos pelos senhores de escravos de manifestarem a sua cultura, os negros
escravizados aqui no Brasil tiveram que criar elementos que os permitissem sobreviver
culturalmente e uma das alternativas foi a ressignificação dos seus laços culturais. Surge daí,
o sincretismo15 religioso como forma de manter os cultos de suas divindades que tiveram de
ser batizadas com os nomes dos santos católicos, camuflando os rituais religiosos de origem.
Como a religião, muitos aspectos da cultura negra tiveram que ser reinventados para que
pudessem ser aceitos em suas práticas, tornando-se elementos da identidade cultural.
A construção da identidade afrodescendente, diante de toda uma história de
supressão cultural, traz a marca da reinvenção e do compartilhamento de traços culturais.
Assim, a hibridização passou também a ser a marca dessa identidade, que através da
adaptação da sua cultura à nova realidade, acabou incorporando elementos da hegemonia
europeia, proporcionando a construção de uma nova identidade cultural.
E assim esse processo se desenrola até hoje. A tradição oral nos proporciona
apreender as marcas do multiculturalismo presentes na identidade afrodescendente, sendo
que, na vivência desses povos ainda é latente a prática da ressignificação de marcas culturais,
pois tal como na época da colonização, o processo de desmerecimento e supressão dos laços
da afrodescendência continuam no contexto sociocultural brasileiro.
Firmar uma identidade afrodescendente, portanto, exige o reconhecimento de
diversas marcas multiculturais que são incorporadas nesse processo. Muitas vezes, há nessa
identidade do afrodescendente, uma afirmação ideológica que não lhe favorece e também o
soterramento de elementos de sua cultura capazes de o identificarem com maior
fidedignidade. Dessa forma, segue procurando firmar-se nessa instabilidade identitária em que
a sua condição sociocultural na maioria das vezes, dificulta o seu autorreconhecimento, a sua
autoidentificação.
15
Sincretismo visto como uma intermistura de elementos culturais, o que dá uma nova fisionomia às culturas
que se colocam em contato. Ressalte-se que “o sincretismo não é uma coisa fixa, cristalizada, mas variável.
Continua ainda hoje sua evolução criadora, pois penetrou de tal forma nos costumes que dá sempre lugar a novas
identificações" (BASTIDE, 1973, p. 164).
58
3.2.3 Hibridismo cultural e identidades líquidas
Fica difícil afirmar, que alguma cultura nos dias de hoje, possa viver num
processo total de isolamento. Por mais que haja resistência do seu povo, ou mesmo que as
situações de interação sejam as mais escassas, nenhuma cultura sobrevive sem receber
influência de outras tradições e valores. Pode até não ocorrer incorporação direta de marcas
exteriores, mas há influências no comportamento, inclusive quando o próprio grupo se
manifesta resistente, pode-se considerar que esse comportamento se consolida sob influências.
A realidade global aponta para um processo contínuo de transculturação, movido pela
intercomunicação promovida pelas tecnologias de informação e comunicação. Como afirma
Burke (2006, p. 101):
Em nosso mundo, nenhuma cultura é uma ilha. Na verdade já há muito
tempo que a maioria das culturas deixaram de ser ilhas. Com o passar dos
séculos, tem ficado cada vez mais difícil se manter o que poderia ser
chamado de “insulação” de culturas com o objetivo de defender essa
insularidade. Em outras palavras, todas as tradições culturais hoje estão em
contato mais ou menos direto com tradições alternativas.
Vale ressaltar que o contato entre os povos e suas culturas conduz ao que se
considera como hibridismo cultural. Nesse sentido, as formas híbridas que se constroem
dentro dessas culturas devem ser entendidas como o “resultado de encontros múltipos e não
como o resultado de um único encontro, quer encontros sucessivos adicionem novos
elementos à mistura quer reforcem os antigos elementos [...]” (BURKE, 2006, p. 31). As
influências mútuas se processam constantemente nesses contatos, porque ainda segundo
Burke (2006), não há entre os grupos uma fronteira cultural nítida ou firme e sim, pelo
contrário, um continuum16 cultural.
É como se essas culturas acabassem se interpenetrando, não havendo uma linha
limite entre elas. Daí surge o processo de hibridização da cultura, ou seja, de formação
cultural a partir de influências, características e aspectos múltiplos e não apenas de uma
origem única, unilateral e fechada. Canclini (2006) nos leva a compreender melhor a
hibridização quando a considera como processos socioculturais nos quais estruturas ou
práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas,
objetos e práticas.
16
Expressão e grifo do próprio Burke no texto, quando fala da relação híbrida entre as culturas, referindo-se à
continuidade entre as culturas de fronteira. (BURKE, 2006, p. 14).
59
O hibridismo cultural tem recebido especial atenção nas discussões, ocupando
espaço relevante no tratamento dado à temática da identidade cultural, até porque a hibridez
tem desenvolvido um longo trajeto por entre as culturas latinoamericanas. Burke (2006, p. 16)
diz que “os historiadores também, inclusive eu mesmo, estão dedicando cada vez mais
atenção aos processos de encontro, contato, interação, troca e hibridização cultural”.
Um exemplo apontado por Canclini (2006) são os países em que as suas fronteiras
se entrecruzam, substituindo a solidez pela fluidez das formas culturais que se interpenetram
hibridizando as culturas de cada um.
Quando se trata de entender o entrecruzamento nas fronteiras entre países,
nas redes fluidas que intercomunicam os povos, etnias e classes, então o
popular e o culto, o nacional e o estrangeiro aparecem não como entidades,
mas como cenários. Um cenário – conforme vimos a propósito dos
monumentos, dos museus e da cultura popular – é um lugar onde o relato é
levado à cena (CANCLINI, 2006, p. 362).
Bauman (2005) também aponta para uma discussão sobre o fim da solidez das
identidades. Na modernidade, há uma maior influência entre as culturas, devido ao alcance
que os meios de comunicação de massa ocupam nas comunidades, até mesmo aquelas com
um maior grau de isolamento. O contato entre pessoas e entre culturas se faz com mais
facilidade e as identidades deixam de ser estáticas e fixas para se abrirem à fluidez cultural.
Como as águas do rio nunca são as mesmas, as identidades ribeirinhas também se
transformam e vivem numa movência constante de construção e reconstrução. Juntamente
com suas águas, se movem e flutuam, adotando uma transitoriedade de forma, assim como os
fluidos.
Estamos agora passando da fase “sólida” da modernidade para a fase
“fluida”. E os “fluidos” são assim chamados porque não conseguem manter
a forma por muito tempo e, a menos que sejam derramados num recipiente
apertado, continuam mudando de forma sob a influência até mesmo das
menores forças [...] Em nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo
livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, “estar fixo” – ser
“identificado” de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vem mais
mal visto (BAUMAN, 2005, p. 35-57).
3.2.4 A identidade e os meios de comunicação de massa
Além das marcas culturais locais, não se pode desconsiderar as influências
culturais externas na definição identitária. Até mesmo essas culturas das “minorias” recebem
60
constantemente influências da globalização hegemônica através dos meios de comunicação de
massa, em especial a TV. “Todos os níveis culturais se reconfiguram quando se produz uma
reviravolta da magnitude implicada pela transmissão eletrônica de imagens e sons.” (SARLO,
2000, p. 102).
Por isso, no processo de construção da identidade cultural, devem-se considerar os
meios de comunicação de massa e as influências que eles exercem sobre as culturas
populares, pois segundo Sarlo (2000), não há culturas populares não influenciadas pela
cultura de massa. Ainda para ela, culturas populares são artefatos que não existem em estado
puro. As culturas populares já não recebem apenas influências locais das vozes tradicionais
trazidas pela igreja e pelos setores dominantes, mas também dos meios de comunicação de
massa.
Essas culturas, através desses meios e das antenas parabólicas, como no caso do
Mocambo dos Ventos, acabam sendo influenciadas por outra perspectiva cultural,
estabelecendo-se um diálogo entre o seu mundo e o mundo apresentado pela modernidade
tecnológica. Dessa forma, são incorporadas inovações no discurso, na maneira de contar e de
representar a cultura dos sujeitos, mas não a superação ou extermínio dessas manifestações,
fazendo surgir um diálogo entre essas marcas e valores culturais que se entrecruzam e se
incorporam muito lentamente.
Daí que nossas populações possam, com certa facilidade, assimilar as
imagens da modernização e não poucas mudanças tecnológicas, porém
somente muito lenta e dolorosamente possam recompor seus sistemas de
valores, de normas éticas e virtudes cívicas. Tudo isso nos exige continuar o
esforço por desentranhar a cada dia mais complexa trama de mediações que
a relação comunicação/cultura/política articula. (MARTIN-BARBERO,
2003, p. 12-13).
Com a presença dos meios de comunicação de massa, há um processo de ruptura,
ou seja, o choque do tradicional com o moderno. E nesse choque, as tradições devem ganhar
força para, através desses meios, participarem de um espaço de maior repercussão na
construção da própria identidade nacional, pois Sarlo (2000, p. 103) nos mostra que “com a
televisão todas as subculturas participam de um espaço nacional-internacional que adota
características locais segundo a força que tenham as indústrias culturais de cada país”.
Isso nos faz perceber que a própria unidade nacional se fortalece através dos
meios de comunicação, pois eles contribuem para o avivamento das marcas identitárias, uma
vez que fazem com que essas marcas deixem as margens do isolamento e possam ser
reconhecidas como elementos essenciais na construção da identidade nacional. Com isso,
61
pode-se afirmar que há uma influência recíproca entre as culturas populares e as de massa,
pois de certa forma uma acaba absorvendo elementos da outra.
Embora os meios de comunicação de massa possam trazer uma cultura
homogeneizada, entende-se que esta homogeneização, de certa forma, pode até ser
considerada como benéfica, porque contribui para a consolidação de uma cultura local forte e
reconhecida na totalidade cultural hegemônica, fazendo constituir-se como parte dela. Tais
meios servem para a divulgação dessa cultura local marginalizada. Monsiváis (1984 apud
Canclini 2006, p. 256) vem reforçar essa acepção afirmando que:
Os mexicanos aprenderam no rádio e no cinema a reconhecer-se como uma
totalidade que transcende as divisões étnicas e regionais: modos de falar e
de vestir-se, gostos e códigos de costumes antes distantes e dispersos,
juntam-se na linguagem com que a mídia representa as massas que
irrompem nas cidades e lhes dão uma síntese da identidade nacional. Tais
divisões étnicas e regionais acabam tomando uma dimensão nacional e
torna-se, de certa forma, inserida numa homogeneização cultural nacional.
Diante disso, a hegemonia provocada pelos meios se constrói e não se pode negála. Dessa forma, só resta tê-los como um forte instrumento para a manutenção e conservação
das culturas populares e das suas identidades, embora não se possa ver claramente o que tenha
sido considerado como ganho.
As culturas populares, então, atravessam uma longa transição sobre a qual é
difícil fazer um balanço. Sabemos o que se perdeu, mas ninguém sabe ao
certo o que se ganhou desde que os meios audiovisuais implantaram sua
hegemonia (SARLO, 2000, p. 103).
Os meios de comunicação chegam e com eles a possibilidade de destruição e
corrosão das tradições culturais, mas trazem também a capacidade de criar pontes para ligar as
tradições culturais a uma multicultura. Basta, portanto, que se perceba a relevância desses
meios e que a sociedade os veja como possibilidade de fortalecimento da cultura popular e
não apenas de destruição. Não se pode fechar os olhos e negar a sua influência na hibridização
cultural que a cada dia se torna mais presente nas comunidades.
E para que, com esta hibridização, marcas identitárias não venham ser encobertas
pela areias do esquecimento, torna-se necessário permiti-las adentrarem na cultura de massa
através dos meios de comunicação. Para tanto, resta a democratização do acesso aos meios e
ofertas audiovisuais para estas culturas populares, igualdade e liberdade na seleção dos
instrumentos, das manifestações e das expressões culturais, pois ainda percorre nas veias de
nossa sociedade o sangue do poder elitista que tende a desmerecer a cultura popular das
62
margens, impedindo
que ocorra, conforme Martin-Barbero (1996), a verdadeira
democratização da televisão, sem tanta vinculação ao poder econômico, mas como espaço de
ressignificação cultural.
Essa democratização já pode ser percebida na TV Educativa da Bahia, a qual traz
em sua programação, a cultura dos povos de várias regiões do Estado. Programas como o
“Bahia de todos os cantos”, apresentado, atualmente, às quartas-feiras 20:30 horas e aos
Sábados nove horas, oportunizam o conhecimento dos territórios baianos e suas identidades,
através da exibição das suas manifestações culturais e religiosas. A divulgação dessas
manifestações para uma grande massa contribui para o fortalecimento das marcas locais, pois
nessa circunstância, muitos povos acabam se reconhecendo juntamente com sua cultura.
Pode-se utilizar como exemplo dessa realidade, o Mocambo dos Ventos que,
conforme relatado anteriormente neste trabalho, a maioria dos seus moradores possui em suas
casas, um aparelho de rádio, televisão e antena parabólica (Figura 25). Mesmo sendo uma
comunidade consideravelmente isolada dos grandes centros culturais, apresenta um contato
direto e permanente com a cultura dos meios de comunicação de massa. Esse contato e
interferência dos meios de comunicação de massa não apagam as marcas da cultura popular,
mas transformam-na e acrescentam-lhe outras marcas, outros discursos advindos de uma
ideologia e de uma intencionalidade presentes nessa cultura massificada, imposta pelo poder
socioeconômico, porque “os meios de comunicação constituem hoje espaços-chave de
condensação e intersecção de múltiplas redes de poder e de produção cultural [...]”
(MARTIN-BARBERO, 2003, p. 20).
3.2.5 Representação de identidades nas narrativas orais
Faz-se mister também neste estudo, uma abordagem sobre as manifestações
literárias e a representação da cultura da qual fazem parte. Hall (2000, p. 48) nos mostra que
“as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e
transformadas no interior da representação”. Coadunando com estas considerações, Bernd
(2003, p. 19) afirma que “a construção da identidade é indissociável da narrativa e
conseqüentemente da literatura”. Desse modo, é através das manifestações literárias, inclusive
as de cunho oral, que a identidade cultural se torna consistente e capaz de promover a sua
autoafirmação, uma vez que os textos literários expressam a identidade através das
representações.
63
Nesse sentido, Hall (2000, p. 71) ainda argumenta que “a identidade está
profundamente envolvida no processo de representação”. Essa argumentação é também
confirmada por Bernd (2002, p. 36): “o texto literário pode ser um poderoso agente ou pelo
menos um excelente coadjuvante, quando se trata de construção, expressão e solidificação de
identidades de diferentes coletividades ou grupos étnico-culturais”.
As narrativas orais trazem representações temáticas, definições e conceitos, que,
mesmo modificados durante a transmissão, deixam marcas que possibilitam a identificação de
modos específicos da cultura brasileira. Expressam hábitos e valores cujo compartilhamento
se dá no ambiente familiar, religioso, comunitário, escolar. Todo este patrimônio está no
corpo e na mente das pessoas, onde quer que elas estejam. Dessa forma, faz-se necessário o
reconhecimento da pluralidade e polifonia17 da literatura como representação de culturas
multifacetadas e abertas às relações com o outro. Vieira (2003, p. 104) comenta que “rejeitar
ou marginalizar as histórias e as culturas daqueles que não representam o grupo dominante
tem conseqüências profundas na expressão da subjetividade e da identidade”. Nesse sentido,
Souza (2006) afirma que:
Com o processo de desierarquização do cânone literário, no entanto, essas
narrativas, outrora marginalizadas, atualmente são consideradas como uma
importante fonte de estudo, tanto nas vertentes da crítica literária, como no
âmbito cultural, sobretudo em pesquisas que visem a compreender e realçar
as diversidades culturais de localidades a serem analisadas. Além disso, as
narrativas orais podem contribuir para o entendimento do comportamento
humano em relação aos fenômenos naturais, bem como em relação à sua
própria história, tradições, hábitos, valores, medos, crenças e superstições
que, estabelecidas pelo imaginário, constituem a sua identidade. Pode
mostrar, ainda, a utilidade e o sentido das instituições sociais que
determinam o comportamento coletivo da comunidade em estudo.
A oralidade torna-se um fator preponderante para a construção da identidade
coletiva de uma etnia18, que passa a ganhar projeção e visibilidade, ou seja, consegue sair das
margens e adentrar ao espaço, o qual, até então só era permitido ser ocupado por uma
literatura tradicional, estruturada e caracterizada aos moldes do cânone ocidental excludente.
17
Entenda-se o termo “polifonia” como sendo, segundo Bakhtin (2005), a presença de outros textos dentro de
um texto, causada pela inserção do autor num contexto, o qual já inclui previamente textos anteriores que lhe
inspiram ou influenciam. A polifonia pode ser também relacionada à heterogeneidade enunciativa.
18
O termo deriva do grego ethnikos, adjetivo de ethos, e refere-se ao povo ou nação. Em sua forma
contemporânea, “étnico” ainda mantém o seu significado básico no sentido em que descreve um grupo possuidor
de algum grau de coerência e solidariedade, composto por pessoas conscientes, ao menos em forma latente, de
terem origens e interesses comuns. Um grupo étnico não é mero agrupamento de pessoas ou de um setor da
população, mas uma agregação consciente de pessoas unidas ou proximamente relacionadas por experiências
compartilhadas (CASHMORE, 2000, p. 196). Para Casas (1984 apud Ferreira, R. 2004, p. 50), etnia refere-se a
uma “classificação de indivíduos, em termos grupais, que compartilham uma única herança social e cultural
(costumes, idioma, religião, e assim por diante) transmitida de geração a geração”.
64
Através das narrativas orais, os registros de conhecimento de mundo, os valores, as crenças,
enfim, toda a história de vida, toda a cultura de um povo perpetua-se entre as diversas
gerações, sobrevivendo dentro de uma memória coletiva. Essas narrativas fazem parte,
segundo Bhabha (2003), de um processo social de representações, de reprodução e de reelaboração simbólica.
Em uma comunidade que tem a memória coletiva consolidada pela tradição oral,
visto que, através dela, a identidade cultural, crenças e valores se perpetuam
transgeracionalmente, as narrativas, como as do Mocambo dos Ventos e região do Miradouro,
tornam-se peças fundamentais para que a sua cultura sobreviva e exerça a sua força em meio
às influências de outras formas culturais, pois para essas culturas, a oralidade é considerada
como
[...] um conjunto complexo e heterogêneo de condutas e de modalidades
discursivas comuns, determinando um sistema de representações e uma
faculdade de todos os membros do corpo social de produzir certos signos,
de identificá-los e interpretá-los da mesma maneira: como – por isso mesmo
– um fator entre outros de unificação das atividades individuais
(ZUMTHOR, 1993, p. 22).
Para Le Goff (1996), nas sociedades em que a memória social constitui-se,
sobretudo na oralidade ou que ainda estão em vias de constituírem uma memória coletiva
escrita, faz-se notória a luta pelo domínio da memória, a fim de que não se perca a identidade
coletiva. Na transmissão oral dessas narrativas, repassam-se valores responsáveis por toda a
estrutura social, por toda a tradição de um povo. Logo, a literatura oral constitui-se em
instrumento de expressão identitária. É preciso compreender o grande valor da oralidade,
reforçar a importância dessas narrativas orais para o coletivo, pois
A memória realmente, para as culturas de pura oralidade, constitui-se – no
tempo e parcialmente no espaço – o único fator de coerência. À medida que
se expande o uso da escrita, sua importância social decresce, assim como
seu poder sobre os indivíduos – lentamente e não sem arrependimento.
Nada a eliminará jamais (ZUMTHOR, 1997, p. 232).
3.3 O CORPO E A VOZ NA ARTE DE CONTAR AS NARRATIVAS ORAIS
DO VELHO CHICO
A literatura oral, para que possa sobreviver dentro da cultura popular, depende
exclusivamente da transmissão entre os povos, através das palavras, das entonações e dos
65
gestos. Com isso, não se pode deixar de lado o papel que os elementos performáticos exercem
na transmissão das narrativas orais do Velho Chico, pois o seu sentido não se constrói
exclusivamente na palavra. O texto oral narrado se compõe ainda de elementos extremamente
relevantes para o desfecho do enredo, a consolidação das ideias e das verdades narradas.
De acordo com Alcoforado (2008) estão associados à voz do narrador, vários
aspectos translinguísticos, específicos do discurso oral, como os gestos, dicção entonacional,
mímica facial, expressão corporal e o próprio estímulo da plateia, que não reduzem a
transmissão da mensagem exclusivamente à ação específica da voz. Outro aspecto
considerável é a pausa, utilizada pelo narrador experimentado, para intencionalmente dar um
sentido de ambiguidade, ou mesmo reforçar o efeito de seu discurso sobre o interlocutor.
Para a literatura oral, a performance19 contribui ativamente na construção do seu
sentido. É ela que vai dar ao ouvinte das narrativas orais, por exemplo, um entendimento que
só será consolidado por completo, mediante também a leitura dos gestos faciais, corporais e
da entonação da voz. Na recepção da oralidade, a palavra sozinha não constituirá o verdadeiro
e único sentido, pois
A “recepção” vai se fazer pela audição acompanhada da vista, uma e outra
tendo por objeto o discurso assim performatizado: é, com efeito, próprio da
situação oral, que transmissão e recepção aí constituam um ato único de
participação, co-presença, esta gerando o prazer. Esse ato único é a
performance. (ZUMTHOR, 2007, p. 65).
Dentro do universo performático, em meio ao qual o texto oral tradicional habita,
uma série de componentes da arte de narrar contribui para o envolvimento emocional da
plateia que passa a apreender em sua memória os valores e saberes da tradição. A
performance imprime mais funcionalidade e sentidos narrativos na recepção desse texto pela
comunidade. Conforme Alcoforado (2008), o efeito vocal da transmissão e a presença física
do produtor do texto imprimem ao ato da performance, um poder de persuasão e esse ato não
se restringe a um contexto exclusivamente verbal.
A linguagem performática contribui para a efetivação de um discurso que não
dever ser somente artisticamente verdadeiro, mas ainda culturalmente correto para os seus
interlocutores, para a sua plateia. Explicando melhor, a voz do narrador não pode destoar das
vozes da coletividade, sob o risco de comprometer o texto recriado.
19
Performance entendida como o desempenho, a maneira de atuar, de realizar e se comportar durante uma
apresentação. No caso deste estudo, refere-se ao modo de narrar, utilizando-se de gestos, entonações,
onomatopeias, dentre outros elementos.
66
Dessa forma, o dialogismo bakhtiniano20 se consolida através da interação entre as
vozes do narrador e as do seu público, sendo que nessa interação, o sentido é construído e a
memória é consolidada. Assim, os elementos que compõem o ato de narrar, tanto os
linguísticos como os extralinguísticos, são responsáveis pela legitimação das narrativas e de
seus narradores.
A performance faz com que o conhecimento seja modificado, pois permite uma
ressignificação da palavra, já que uma entonação, um gesto ou expressão facial pode mudar
totalmente o seu sentido. Ela está inserida dentro de um contexto cultural e de situações,
fazendo estabelecer-se uma relação direta entre narrador e plateia, os quais necessitam estar
integrados em um mesmo espaço cultural, permitindo dessa forma, o seu reconhecimento
mútuo. “A performance realiza, concretiza, faz passar algo que eu reconheço, da virtualidade
à atualidade [...] Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o
marca” (ZUMTHOR, 2007, p. 31-32).
3.3.1 As narrativas orais e o testemunho
Todos os narradores deixam evidente em suas performances, a preocupação com a
veracidade das narrativas. Há a necessidade de convencer, de exprimir a verdade dos fatos,
mesmo que as narrativas tragam personagens e situações fantásticas e mitológicas. O
testemunho, fator relevante na relação entre o imaginário inventado e a verdade, torna-se o
fator essencial para a fidelidade dos acontecimentos. Para o narrador, “o que importa é a
realidade, a verdade das ações narradas; função parecida com a que na Idade-Média tiveram
gêneros literários tais como o exemplum e a parábola [...]” (LEMAIRE, 2002, p. 110).
Essas narrativas fazem parte do que se pode chamar segundo Lemaire (2002), de
“Literatura do Testemunho”. Desse modo, pode-se considerá-las como narrativas de
testemunho, por seus narradores trazerem em suas performances as características
fundamentais do testemunho. Para entender melhor tais considerações sobre o testemunho e
as narrativas, torna-se pertinente conhecer mais sobre a palavra “testemunho”.
Derivada da palavra indo-européia trists que denota literalmente uma
terceira pessoa – a testemunha, está presente como “terceiro” (quer dizer
20
Bakhtin (2003) considera o dialogismo como o processo de interação entre textos, pois o texto não deve ser
visto isoladamente, mas sim correlacionado com outros discursos similares e/ou próximos. No caso das
narrativas, a interação se processa entre as vozes discursivas que as compoem, entre os interlocutores da
comunicação.
67
vindo de fora), para testemunhar, para trazer a verdade, ou a prova da
verdade [...] Características fundamentais do testemunho são:
- a presença da testemunha, da terceira pessoa que veio de fora para trazer a
verdade;
- a transmissão deliberada, desejada, intencional da verdade;
- uma verdade que essa pessoa, como tristis/terceiro, descobriu, por a ter
vivido, visto (testemunha ocular) ou ouvido dizer (testemunha auricular)
(LEMAIRE, 2002, p. 92).
Na região do Mocambo dos Ventos, quando os fatos narrados não são vivenciados
pelos próprios narradores, estes afirmam com veemência ter visto um parente, um conhecido
vivenciar, ou ouvido dizer de alguém que vivenciou. “Eu tenho uma nora, uma afilhada, que
ele já carregou ela um pedaço e ela ficou sem fala. Eu já vi. Ele é deste tamanho assim, da
cabeça careca” (Maria Alexandrina Caxiado, sobre o Nego d‟Água). “Tem gente que já viu
ele lá no Brejo, a cabecinha dele é assim redonda [explicando com as mãos o formato da
cabeça], mas não tem um fio de cabelo. Diz que se a gente pedisse peixe a ele, ele dava”
(Maria Francisca da Silva, sobre o Nego d‟Água). “A Mãe d‟Água, quando a gente via,
mergulhava. Era assim: cabelão bom, a metade era de peixe e carne, sabe?” (Valdemar
Caxiado da Silva). “Eu já ouvi falar, mas nunca vi não. Não vou mentir, né? Diz que ela é
alva, do cabelão e com um cabo de peixe” (Maria Alexandrina Caxiado, sobre a Mãe
d‟Água).
É comum entre os narradores, em busca do reconhecimento do parceiro, a
confirmação das informações e da veracidade dos fatos com seus interlocutores, dos quais
alguns também são narradores. No início das narrativas, percebe-se que o local e muitas vezes
os nomes das pessoas são estrategicamente assinalados para reforçar a autenticidade das
histórias. Como se percebe, em trechos narrados no parágrafo anterior, podem-se identificar
tais características e, portanto, classificá-las como narrativas de testemunho.
A performance do narrador-testemunha, aliada ao desejo de estar em comunhão e
de exprimir empatia com o seu interlocutor ou público contribuem para a recomposição da
realidade.
Em cada nova performance, nos quadros do jogo que ele estabelece junto
com a platéia, co-produtora da realidade, poeta e público redefinem as
margens entre repetição e variante, entre realidade e invenção, entre
conservação e esquecimento (de componentes) da tradição, do passado,
estabelecendo assim, - eles próprios! – os limites da própria credulidade
(LEMAIRE, 2002, p. 117-118).
Nesse sentido, poeta e narrador acabam assumindo o mesmo papel quando
buscam a credulidade. Essas narrativas que podem ser consideradas como do gênero
68
testemunho, consolidam seu valor não apenas pela veracidade dos fatos contados, mas pela
sua importância e representatividade para a construção da identidade cultural, para o
entendimento do seu povo, do lugar, da época e das circunstâncias que envolvem tais fatos.
Oportunizam, através dos seus narradores-testemunhas, o conhecimento do contexto
sociocultural, histórico e político da comunidade da qual fazem parte.
A narrativa oral de testemunho, através das marcas da oralidade como a
performance e entonação, evidenciam as referências e vivências do narrador, a sua visão e
posicionamento diante da sua história, do seu mundo. Mesmo trazendo um cunho fictício e
fantástico, essas narrativas, acompanhadas das intervenções dos seus narradores, como seu
modo de contar e de testemunhar, representam a sua identidade cultural, uma vez que a
própria consciência de sua história e formação cultural, aliada a tais marcas de oralidade
acabam construindo uma suposta realidade da qual o sujeito faz parte, passando a interferir na
aceitação e autenticidade do discurso. As particularidades desse discurso, ou seja, a palavra
falada tem muito a revelar sobre a identidade cultural do sujeito narrador e da sua própria
comunidade.
O testemunho, portanto, consolida-se como uma forma de narrativa independente,
capaz de contribuir para o fortalecimento de uma literatura marginalizada, desprovida da
estética canônica e que geralmente representa grupos, etnias e comunidades desmerecidas
socialmente, economicamente e culturalmente. Assim, as narrativas orais seguem no curso
das águas do Velho Chico tendo os seus próprios narradores como testemunhas que buscam o
cumprimento da sua missão de perpetuar a memória da comunidade a que pertencem, de
modo mais verossímil possível. Para finalizar esta discussão, convém afirmar que “uma das
características do testemunho, no sentido original da palavra, situa-se na necessidade de a sua
verdade ser compartilhada, aceita pela comunidade que o recebe” (LEMAIRE, 2002, p. 111).
3.3.2 Braços e mãos como pincéis das narrativas
As narrativas orais do Velho Chico são encantadoras. Trazê-las neste trabalho sob
a forma de transcrições ou adaptações, permitirá ao leitor conhecê-las, até envolver-se com os
fatos e com os discursos apresentados. Poderá o leitor conhecer a história ou parte dela, dos
povos ribeirinhos, sua visão de mundo, suas crenças, seu modo de viver. Mas, o leitor, apenas
com estas palavras não poderá deleitar-se com detalhes e aspectos da oralidade que poderão
69
ser percebidos somente presencialmente, ou mesmo, embora com algumas perdas, através das
gravações audiovisuais.
Aportar num cenário paradisíaco, ser recebido por pessoas acolhedoras e alegres,
participar do seu cotidiano e poder observar a sua vivência já se torna uma grande
oportunidade para um estudioso da literatura oral. Mas ver e ouvir os próprios moradores
contarem as suas histórias é muito gratificante e especial. Observar o semblante sereno da Sra.
Maria Francisca da Silva e o seu olhar azulado como o céu, ao narrar a história da Mãe
d‟Água e do Nego d‟Água, é poder assistir a um show, no qual além de se poder conhecer os
personagens ribeirinhos e as suas ações, pode-se ainda envolver-se pela suavidade da voz na
maioria das vezes, e em outras, um próprio aumento do seu timbre e da intensidade, para
inspirar veracidade, enfatizar certos momentos das narrativas (Figura 28).
Dona Maria Francisca utilizava-se de um gestual particular, apontando sempre
para o rio, para o cenário das narrativas. O seu corpo também narrava, seus braços e mãos
gesticulavam a todo instante quando estava narrando. O seu olhar fixo em nós, mais ouvintes
do que interlocutores, a sua entonação, ou seja, suas formas verbais e gestuais nos levavam a
penetrar na veracidade das narrativas, nos faziam aumentar o desejo de que tais narrativas não
terminassem e de que ali, pudéssemos permanecer por mais de mil e uma noites (Figura 27).
Pudemos encontrar ali no Mocambo dos Ventos, várias Sherazades 21, que cada
vez mais nos encantavam, não somente por suas narrativas, mas pelas suas maneiras tão
próprias de narrarem. “[...] quando ela [a Mãe d‟água] viu ela, tchum... caiu dentro d‟água”
(Sra. Maria Francisca, utilizando-se de sons e gestos), (Figura 29). As mãos e os braços de
Dona Maria Francisca, assim como as de outros narradores, funcionam como pincéis
fantásticos, pintando figuras no ar, desenhando os personagens e o cenário.
Na literatura oral, o narrador utiliza os efeitos da teatralidade da performance e
procura explorar o máximo os seus elementos prosódicos. Dona Maria Francisca, bem como
outros narradores, transforma as imagens auditivas em imagens verbais, quando se utiliza de
sequências fônicas, buscando imitar os sons com a voz e o corpo, lançando mão dos recursos
onomatopeicos, muito comuns na literatura oral, como reforça Alcoforado (2008), afirmando
que as onomatopeias são largamente usadas pelo transmissor do saber popular tradicional.
Eles procuram utilizar-se, além dos símbolos convencionalmente estruturados na nossa
21
Personagem dos contos de fadas que para não morrer no dia seguinte pelo próprio marido, um sultão traído,
que matava a esposa após a noite de núpcia, Sherazade contava histórias para o rei, deixando-as para concluí-las
na noite seguinte. Assim, o seduziu com suas histórias por mil e uma noites quando o sultão já não tinha mais
ressentimentos e livrou-lhe da condenação. Versão baseada em As mil e uma noites: contos árabes. Trad. Ferreira
Gullar. Rio de Janeiro: Revan, 2000. Disponível em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/ 7Sem_07.html.
Acesso em: 10 set. 2009.
70
língua, de elementos linguísticos de criação própria, considerados como signos sonoros
especiais. O barulho do vento e da água motiva a todo instante a criação desses signos
especiais pelos narradores do lugar.
O Sr. Domingos Pereira de Carvalho (Figura 26) se utiliza muito das
onomatopeias acompanhadas de gestos e expressões faciais que tornam o ato de narrar um
verdadeiro espetáculo teatral cativante, pois prende o interlocutor em sua “rede”, como se
pode perceber em alguns trechos destacados na narrativa sobre a Mãe d‟Água. Os braços e as
mãos do Sr. Domingos não paravam durante a narrativa, o seu olhar e os gestos, apontando na
direção do rio, envolvia a todos que o acompanhavam.
Ela mudou pra serra, lá tinha um riacho, depois o riacho secou. Aí ela
mudou mais pra longe, ficou em riba da serra e quando batia o buzo de cá,
que a turma dizia:
- Bamburrou22 de peixe!
Ela
também
[a
Mãe
d‟Água]
batia
o
buzo,
buuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu! Nesse tempo eu era maior que esse
moleque aí [apontando para um garoto], eu batia nas lata, putuco, putuco,
putuco e a turma puxando a rede e eu putuco, putuco, putuco.
O bom narrador, segundo Alcoforado (2008), demonstra prazer ao contar as
histórias e possui as qualidades de narrador habitual, exercendo frequentemente essa função,
apresentando um bom repertório, desenvoltura expressiva e facilidade em comunicar-se
verbalmente. Ao narrar, o Sr. Domingos demonstra altivez, segurança e conhecimento dos
fatos, o que dá um cunho de veracidade ainda maior às narrativas, além de toda uma
performance própria. Assim também se apresentam os outros narradores citados neste estudo.
Quanto ao conhecimento do repertório, todos dominam as mesmas histórias, as
quais sempre têm uma ligação com o rio. Embora haja variação na maneira de contar e a
incorporação de marcas próprias e adaptações, as narrativas são as mesmas e giram em torno
da mesma temática e dos mesmos personagens e fatos. O próprio Cascudo (2006) traz em seu
Dicionário do Folclore Brasileiro, a presença do Nego d‟Água, da Mãe d‟Água, do Arco-íris
e da Serpente e suas diversas histórias no repertório das narrativas brasileiras, inclusive na
região do São Francisco. Elas percorrem todo o território brasileiro e assumem versões
específicas em cada lugar.
22
A expressão “bamburrar” ou “embamburrar” vem de “bamburro”, que em Campos, C. (2004) aparece com o
sentido de sujeira, algo que atrapalha a vida e a vista. Uma espécie de matas baixas e impenetráveis. No sentido
da narrativa apresentada, entende-se como encher a água de peixes, sujar a água com muitos peixes.
71
3.3.3 O ato de narrar: ser mulher, ser negra
A mulher, em determinados momentos da história, não tem sido favorecida
socialmente da mesma forma que o homem. Aparece numa posição de inferioridade em
relação aos seus direitos e comportamentos dentro da sociedade, que sempre procurou, através
dos seus meios, fortalecer uma concepção de mulher submissa, casta, mãe, dedicada ao lar e
aos afazeres domésticos. Esta ideologia se fortalece com a idade média e a difusão do
cristianismo, que muito vem contribuindo para a sua consolidação.
Já no Iluminismo, no século XVIII, mesmo com uma nova concepção e filosofia
de vida centrada nos ideais de autonomia, de igualdade e de liberdade, pressupostos
fundamentais da Revolução Francesa, “a maior parte dos homens das Luzes ressaltou o ideal
tradicional de mulher silenciosa, modesta, casta, subserviente e condenou as mulheres
independentes e poderosas” (PINSKY; PEDRO 2003, p. 267). Nesse mesmo século, num
outro momento da história da América inglesa, o modelo republicano de mulher que emerge
junto à nova nação é o de mãe, afastada dos seus direitos políticos e assuntos públicos, que se
dedica de corpo e alma à família. E assim, essa imagem de que as mulheres exerciam um
papel social importante, atuando como mães em suas famílias, é reforçada por todo o século
XVIII.
O século XIX, apesar da ampliação de algumas possibilidades, do florescimento
do feminismo e da ação das mulheres em diversos movimentos sociais, também traz a
continuidade e a difusão dessa visão centrada na desigualdade.
É verdade que esse século popularizou o ideal da mulher restrita à esfera
doméstica, limitada ao cuidado do lar e da família, maximizou o imaginário
da segregação sexual dos espaços público e privado, reforçou concepções
tradicionais da inferioridade feminina, negou às mulheres muitos direitos e
impôs muitos obstáculos à sua independência (PINSKY; PEDRO, 2003,
p. 265-266).
Dessa forma, o ideal de mulher sentimental, passiva, casta, vulnerável,
dependente e destinada ao lar foi se estabelecendo e a maior parte das mulheres terminaram se
convencendo do seu papel de mãe e esposa obediente. A própria educação feminina primava
por essa mulher de “boa família” e por isso, essas atribuições femininas contrárias ao trabalho
e à vida pública acabavam representando sucesso, status e ascensão social. A educação
escolar aparecia, nesse cenário, reforçando as disparidades entre os sexos, já que era oferecida
de maneira diferenciada para homens e mulheres.
72
No início do século XX, os novos códigos e leis nacionais acabaram também
regulamentando e fortalecendo essa relação entre os sexos de modo desfavorável à mulher,
uma vez que consideravam a submissão, a dependência e a repressão feminina como natural.
A partir do final do século XX, começa-se a ampliar as possibilidades de atuação das
mulheres, novas oportunidades de emprego e outras conquistas sociais. Mas, apesar de ser o
século XX considerado como o “séculos das mulheres” (PINSKY; PEDRO, 2003), na prática,
a igualdade de direitos ainda hoje, no século XXI, não se aplica totalmente, pois:
Os estereótipos de gênero atravessaram os tempos e naturalizaram a
diferença entre o masculino e o feminino, como se essa visão social e
cultural que varia a depender da civilização, época e povo, fosse uma
característica biológica. Até hoje, é predominante entre as instituições
sociais, tais como a família e a escola, as idéias preconcebidas do que seria
apropriado para os indivíduos a depender do sexo. E mais do que isso, essa
hierarquia entre os gêneros, na qual o ser masculino é visto como superior
ao feminino, mantém-se na atualidade até no mercado de trabalho. Embora
desempenhe as mesmas funções que os homens, as mulheres ainda ganham
menos que eles, como provam algumas pesquisas (PALMEIRA; SOUZA,
2008).
O modelo falocêntrico de comportamento feminino continua se reproduzindo
dentro da sociedade, inclusive por algumas mulheres, por imposição das estruturas políticas,
econômicas e sociais. Esse modelo de papel social tipicamente feminino ainda se consolida
nos últimos tempos, pois, segundo Lemaire (1995), cada vez em que seu condicionamento
político e histórico torna-se mais aparente, tende a deslizar imperceptivelmente em direção a
um “eterno feminino”, justificador de novas restrições e normas, impostas às mulheres.
Mesmo na contemporânea sociedade do conhecimento, as mulheres que
manifestam a sua liberdade sexual e erótica, bem como a maternidade independente fora do
casamento, em muitas comunidades, ainda são vistas com certa marginalização e
estranhamento. Por isso, pode-se considerar que:
De simples “costela de Adão” à conquista da cidadania plena, é uma longa
trajetória ainda não completada pelas mulheres. Mesmo no Ocidente, onde
o avanço é maior e a subordinação social das mulheres tem se reduzido
sensivelmente, elas ainda sofrem com a violência, salários menores,
preconceitos de diferentes tipos (PINSKY; PEDRO, 2003, p. 265-266).
Ser mulher na sociedade colonial já era difícil, devido à sua condição social de
submissão e desmerecimento em relação ao homem. Imagine ser mulher e ser negra, fator que
vem reforçar mais ainda a marginalização dessa mulher. Como se sabe, os negros
73
escravizados eram tidos como mercadorias dos seus donos e deviam-lhes toda obediência e
respeito.
Para a mulher negra, além da posição desfavorável do gênero, havia a posição
étnica, de maior discriminação e destrato, inclusive eram submetidas aos caprichos sexuais
dos seus senhores. Muitas mães negras também exerciam a função de amas-de-leite que
trabalhavam nas Casas-Grandes e além do cuidado, influenciavam na formação cultural dos
filhos de suas senhoras. Sobre o papel da mulher negra, Cascudo (2006, p. 165) aponta que:
Fazia deitar as crianças, aproximando-as do sono com as estórias simples,
transformadas pelo seu pavor, aumentadas na admiração dos heróis míticos
da terra negra que não mais havia de ver. Dos elementos narrados pelas
moças e mães brancas, as negras multiplicavam o material sonoro para a
audição infantil.
Mas, esse papel social da mulher negra, ainda hoje no século XXI, não sofreu
muitas mudanças quanto a esse estado de inferioridade. Muitas delas trabalham de
empregadas domésticas ou babás, interferindo de certo modo na formação das crianças. Até
mesmo a própria literatura brasileira contribui para a consolidação desses estigmas, conforme
no mostra Campos, M. (2007):
A representação hegemônica da mulher negra na literatura brasileira, ao
longo da história, resultou, como sabemos, de construções de escritores
brancos: integrou uma tripartição de funções socialmente atribuídas a
mulheres brancas, mulatas e negras, elaborada pelo imaginário masculino
eurodescendente. Centrada nos interesses do projeto de hegemonia deste
segmento, via patriarcalismo, não apenas nas relações entre os gêneros, mas
também nas econômicas, de dependência da mulher ao homem, e políticas,
de marginalização dela da esfera pública e, sobretudo, do poder.
No Mocambo dos Ventos, todas as mulheres narradoras são de fenótipo negro,
de classe economicamente baixa, com pouca escolaridade; apenas uma tem menos de 50 anos
e as outras, mais de 65, o que vem ratificar essa realidade social. As narrativas ganham vida
no corpo das contadoras, uma vez que, através delas, transmitem as suas experiências, suas
crenças e conhecimentos com tamanha veracidade que contagia o interlocutor. Todas as
emoções são repassadas no momento da recepção das narrativas. O corpo fala, mostra,
enuncia os sentimentos de ira, medo, desejo, angústia, alegria, tristeza, enfim, todas as
emoções sentidas pelo narrador, contagiando também o interlocutor. Cascudo (2006, p. 177)
ressalta que as mulheres são melhores narradoras, porque:
74
[...] possuem o arquivo mental em desenvolvida extensão. Cícero dizia-as
sabedoras de arcaísmos porque tinham menor contato com a multidão e
falavam com menos gente. Porque são as narradoras de estórias para os
filhos e netos, exercitam-se com vantagem [...] A maioria absoluta dos
contos populares constituindo as coleções famosas [...] foram participações
femininas, as tias em Portugal, para Adolfo Coelho e Consiglieri, a Brígida
para Almeida Garrett, mucamas, mães-pretas para o Brasil (grifo do autor).
Vale ressaltar também que a negra e o negro se destacam na literatura oral do
Brasil pela sua forma de narrar. Assim também é no Mocambo dos Ventos, um lugar de
remanescentes de negros escravizados, fator que vem justificar a maneira peculiar de
apresentar oralmente as suas narrativas. A maneira da negra e do negro contarem as suas
histórias é singular e diferenciada, pois na cultura negra, as pessoas são mais soltas nos
gestos, na dança, no canto, na desenvoltura, no riso, o contrário do branco europeu, tolhido
pela Igreja Católica e suas castrações.
Segundo Cascudo (2006), no Brasil, com a chegada dos negros africanos,
depressa a velha indígena foi substituída pela velha negra, por talvez ser esta mais resignada a
ver entregue ao seu cuidado a ninhada branca do colonizador, que confiava o cuidado dos
seus filhos às mães pretas e estas se utilizavam das entonações e performances ao deitar as
crianças, fazendo-as dormir com as suas narrativas.
Sendo
assim,
as
narrativas
de
origem
portuguesa
acabaram
sendo
consideravelmente modificadas por essas velhas e amas-de-leite negras, que munidas de
gestos, entonação e docilidade, “[...] se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias”
(CASCUDO, 2006, p. 165). Estas características performáticas da mulher negra permanecem
até hoje na literatura oral brasileira.
As negras tiveram um papel fundamental na propagação, fixação e desdobramento
dos contos africanos e portugueses. Pode-se afirmar que o negro e a negra predominam como
narradores nas narrativas orais do Brasil, com “[...] seu interesse supremo no enredo,
gesticulação insuperada e a mobilidade fisionômica, encarnando, personalizando os
sucessivos personagens, gente e bichos, ocorrentes” (CASCUDO, 2006, p. 175).
Como se observou no Mocambo dos Ventos, onde todos os moradores podem ser
considerados como afrodescendentes, a performance, a atuação dos narradores caracterizamse de maneira semelhante às registradas na história da cultura popular brasileira.
[...] O negro ou negra que narra a estória consegue efeitos maravilhosos de
sinceridade, verismo de expressão, sugestionando inteiramente seu
auditório, dando a impressão vaga e assombrosa de angústia ameaçadora, de
75
próxima e vingadora alegria, de antevista e negaceante justiça, infalível e
esmagadora. (CASCUDO, 2006, p. 175).
Desta forma, como bem pode ser comprovado durante a exposição das narrativas
pelos moradores do Mocambo dos Ventos, conclui-se que:
O ato de narrar cria um espaço de fantasia próprio, com características
especiais que o transforma de fria transmissão a uma encenação em que o
emissor e receptor se tornam personagens e passam a viver conjuntamente
em um mundo de faz-de-conta, numa “aventura psicológica” onde a
narração é um espetáculo, o narrador e os ouvintes são atores
(ALCOFORADO, 1990, p. 57).
Neste momento, é preciso destacar a Sra. Maria Alexandrina Caxiado como uma
das grandes “atrizes” do povoado. Ela é respeitada por todos e as suas narrativas, muito bem
contadas, envolvem os seus ouvintes que se inserem e acabam também assumindo os seus
papéis de atores dentro do contexto. Dona Xandu, como é chamada carinhosamente pelos
moradores, é a primeira pessoa a quem se deve procurar, para tomar conhecimento das
narrativas. O espetáculo que se estabelece na consolidação da memória cultural ribeirinha a
tem como atriz principal, com sua atuação peculiar e envolvente durante o ato de narrar.
“Ele é deste tamanho assim, da cabeça careca [...] aí o menino passou e botou a mão assim na
cabeça e pulou assim paf dentro d‟água” (Dona Xandu e suas performances, narrando sobre o
Nego d‟Água), (Figura 30). As expressões destacadas em negrito, na transcrição supracitada,
eram proferidas acompanhadas de uma entonação diferenciada, expressões faciais e toda uma
performance, utilizando-se das mãos, dos braços e do próprio corpo.
3.4 O LUGAR SOCIAL E A RECEPÇÃO DAS NARRATIVAS ORAIS NO
COTIDIANO RIBEIRINHO
As narrativas orais fazem parte da cultura dos povos das margens do São
Francisco desde a sua colonização. São histórias que, juntamente com o rio e seus
personagens, compõem o imaginário da região. O povoado de Mocambo dos Ventos
constitui-se em uma comunidade narrativa e a coleta e análise dessas narrativas contribuem
para a compreensão da vida desses povos e de sua cultura local, permitindo a inclusão de suas
vozes marginalizadas em um discurso que possa representá-los, não como elemento exótico,
mas como componente da identidade nacional.
76
É através dessas narrativas, que a memória cultural do Mocambo dos Ventos se
consolida e perpetua, porque a transmissão entre os seus moradores, de geração a geração
ocorre por meio da oralidade que se concretiza ainda nas rodas à sombra das árvores, nos
momentos em que os pescadores e pescadoras se reúnem para pescar ou tratar os peixes e nas
atividades laborais nas quais há reunião de pessoas. Devem-se destacar ainda na efetivação da
oralidade, as viagens dos pescadores de ida e volta à cidade de Xique-Xique para a venda do
pescado. Nesse momento, começam a contar as suas histórias, cada um à sua maneira,
imprimindo ao texto oral as suas marcas, suas vivências e suas memórias. Os causos também
são reproduzidos ao chegarem ao convívio familiar, fazendo com que ocorra a sua
memorização pelos filhos, netos e esposas.
Graças à força da oralidade, nas comunidades narrativas, como a do Mocambo
dos Ventos,
Toda uma cultura marginalizada dissemina-se e sobrevive, apesar das
pressões, das coerções de uma cultura oficial, policiada por instituições
tradicionais veiculadoras de um padrão dito culto, muitas vezes
distantes das raízes formadoras da cultura de um povo
(ALCOFORADO, 1990, p. 57, grifo da autora).
Assim, as atividades de transmissão das narrativas e a sua recepção tornam-se essenciais para
a sobrevivência das marcas culturais ribeirinhas.
Os meios de comunicação de massa e a escola com sua prática pedagógica muitas
vezes tradicional e reprodutora do discurso hegemônico, contribuem, hoje, para a formação
das preferências literárias do público leitor. Nesse meio, que prioriza a leitura do texto escrito
e desfavorece a audição do texto oral, a transmissão e a apreensão das narrativas orais chegam
muitas vezes a ser soterradas pelas preferências por leituras difundidas na mídia e na escola.
Com isso, narradores e ouvintes do texto oral acabam muitas vezes em desvantagem.
Porém, no Mocambo dos Ventos, as areias que soterram são moventes e com isso,
tal soterramento não dura. As narrativas emergem em meio a toda essa imposição e se fazem
presentes na memória de todas as pessoas, desde os mais velhos, até as crianças em idade
escolar. As narrativas sobre o Nego d‟Água e a Mãe d‟Água, por exemplo, trazem
personagens do imaginário ribeirinho, conhecidos e narrados pelas crianças, inclusive aquelas
que estão em idade escolar.
Deste modo, a literatura oral acaba sobrevivendo ao lado da cultura impressa e
seus artefatos, pois no Mocambo dos Ventos, além da TV e da escola com o seu livro
77
didático, há uma presença muito forte no cotidiano popular das narrativas e seus elementos:
enredo, personagens e discursos.
Chegar ao Mocambo dos Ventos em mais uma tarde de sol e ver, à sombra de
uma árvore frondosa que fica no centro do povoado, Dona Xandu rodeada de outros
moradores, é presenciar um dos mais preciosos momentos de transmissão e de recepção das
narrativas (Figura 31). Tal situação faz parte da rotina, pois, geralmente, as atividades
relacionadas à pesca e à lavoura ocorrem no início e final do dia, momentos em que o sol
brilha com menos intensidade nas águas e nas areias da região, como dizem os próprios
moradores, “a hora em que o dia está mais fresco”.
Ao lado dos gêneros televisivos que não são objetos deste estudo, as narrativas
orais podem ser consideradas como um dos principais gêneros textuais para a leitura dos
povos do Mocambo dos Ventos, já que estes povos apresentam costumes que desfavorecem a
leitura de textos escritos, pois as suas atividades diárias se voltam especialmente à pesca e à
pequena lavoura de subsistência. Boa parte dos seus habitantes não é alfabetizada e poucos
detêm o domínio da leitura e da escrita fluentes. O índice de escolaridade dos seus moradores
é baixo. Apenas as crianças e poucos jovens frequentam a escola, já que, para cursarem, a
partir da quinta série do Ensino Fundamental, precisam se deslocar para as cidades de XiqueXique ou da Barra.
Nota-se que o contato com os textos escritos é muito raro e não há a prática da
leitura dos seus mais diversos tipos (revistas, jornais, romances...). O contato com essa
modalidade de leitura se dá praticamente através dos textos escolares dos livros didáticos.
Mas a leitura dos textos orais das narrativas, que se processa através da sua audição e se difere
em muitos aspectos da leitura do texto escrito, aparece nessas comunidades como hábito e
como elemento formador de identidades. As formas de socialização ocorrem de maneira bem
natural, como parte do cotidiano.
As narrativas estão presentes em rodas de amigos sob a sombra das árvores,
quando estão exercendo alguma atividade como: debulhando milho, fazendo farinha de
mandioca, tratando os peixes e até mesmo nas pescarias quando estão em grupos ou nas
viagens para vender os peixes. Na figura 31, tem-se um exemplo de um costume diário dos
moradores. Neste dia, estavam reunidos sob a sombra da árvore, Dona Xandu, alguns
moradores e crianças catando mamona23 e conversando. Esse foi um dos momentos em que se
aproveitou para fazer o registro de algumas narrativas.
23
Catar a mamona significa nesse caso, estourar a semente, retirar a sua casca e deixar apenas os caroços.
78
Dessa forma, as narrativas orais são repassadas na comunidade e cada
narrador/ouvinte estabelece os seus sentidos e absorve os seus valores morais, os
conhecimentos e as informações. Através da transmissão oral entre os moradores, inclusive
para as gerações mais jovens, dá-se a própria sobrevivência dessas narrativas que ocupam um
lugar social de destaque, pois cada ouvinte ao fazer a sua leitura, ou seja, ao construir um
sentido sobre o texto oral, contribui para a sua perpetuação, para a fixação da memória
coletiva. Elas permanecem vivas dentro da cultura oral do Velho Chico, pois de acordo com
Campos, C. (2004, p. 44) “numa cultura de tradição oral, além do cotidiano, os narradores, os
„contadores de causos‟, desempenham uma tarefa educativa extremamente importante. O
papel da memória, em comparação com as culturas letradas é significativo.
Como afirma Benjamin (1987, p. 200), em considerações sobre a narrativa:
[...] tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária.
Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa
sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer
maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos.
As narrativas orais do Mocambo dos Ventos e região ribeirinha refletem bem tal
característica, pois na maioria delas, há sempre uma referência a alguma contravenção do
personagem, seguida de uma punição, trazendo assim um ensinamento, uma formação moral
para os ouvintes, como se verá adiante em “A Serpente da Ilha do Miradouro”.
79
Figura 25 – A antena parabólica, presente em praticamente todas as casas, confirmando a presença dos
meios de comunicação de massa
Figura 26 – Sr. Domingos Pereira de Carvalho
80
Figura 27 – Momentos da performance da Sra. Maria Francisca
Figura 28 – Momentos da performance da Sra. Maria Francisca
81
Figura 29 – Momentos da performance da Sra. Maria Francisca
Figura 30 – Sra. Maria Alexandrina Caxiado (Dona Xandu) narrando sobre o Nego d‟Água
82
Figura 31 – Um dos momentos de recepção das narrativas
83
4 TRADIÇÃO ORAL ÀS MARGENS DO VELHO CHICO: UM PASSEIO
PELAS NARRATIVAS
E era texto, porque havia gesto.
Texto, porque havia dança.
Texto, porque havia ritual.
Texto falado, ouvido e visto.
(Manuel Rui, 1987)
A cultura popular brasileira, mesmo consolidada na diversidade, na mistura com
as diversas culturas que aqui chegaram, ou já estavam em nosso país quando foi colonizado
pelo português, apresenta em suas diversas formas de manifestações, especialmente a
literatura oral, a marca ideológica da colonização europeia. Não existe uma literatura neutra,
sem intencionalidade, sem ideologia impregnada em suas linhas, em suas letras, em suas
palavras.
Então, a literatura oral não possui exclusivamente a finalidade ingênua de
divertimento, distração, recreação, ou mesmo de provocar sono nas crianças e até adultos. As
narrativas orais apresentam no corpo do seu texto, uma função educadora, formadora da
moral. Para Cascudo (2006), a finalidade da literatura oral é doutrinar, por ao alcance da
mentalidade infantil e popular os ensinamentos religiosos e sociais que presidem a
organização do grupo.
Por ser um discurso produzido no interior de um grupo social, as narrativas orais
apresentam-se impregnadas de marcas ideológicas, sobressaindo-se a ideologia hegemônica.
Dessa forma,
O discurso literário também porta traços ideológicos, embora de maneira
menos substantiva, que são absorvidos na recepção do texto, na relação que
se estabelece, no movimento de circulação entre o produtor do discurso e o
seu consumidor (ALCOFORADO, 1990, p. 23).
As narrativas trazem consigo marcas discursivas como fruto dessa hibridização
cultural. Nelas, há a presença de personagens, elementos e temática de uma pluralidade
cultural, sobressaindo-se toda uma ideologia cristã conservadora. As proibições e as lições da
moral conduzem o comportamento da sociedade e a consolidação de valores como a
virgindade, a submissão e a maternidade da mulher, dentre outros.
84
Vale ressaltar ainda, que as tradições orais, no decorrer dos tempos, têm sido
perseguidas pela Igreja Católica, a qual manifestava seu descontentamento e repreensão em
seus Concílios e Capitulários.
[...] conhece-se a amplitude das perseguições que a Igreja Católica inflingiu
com uma obstinação particularmente agressiva e violenta às tradições orais
dos povos europeus, tanto às dos homens quanto às das mulheres. Por sua
concepção “pagã” da vida, da sexualidade, da posição da mulher, da
natureza, estas tradições orais constituíam um perigo permanente de
subversão, uma ameaça para as doutrinas da Igreja. [...] constata-se que as
perseguições visavam sobretudo às mulheres, consideradas como
instigadoras e condutoras das práticas (divertimentos, jogos, danças) às
quais os homens vinham participar (LEMAIRE, 1995 p. 110).
4.1 “A SERPENTE DA ILHA DO MIRADOURO”: MARCAS
IDEOLÓGICAS NA LITERATURA ORAL RIBEIRINHA
Antes de iniciar especificamente a análise das marcas ideológicas, convém
apresentar algumas versões das narrativas sobre a Serpente da Ilha do Miradouro. A primeira
versão é uma adaptação livre, baseada em uma narração24 da Senhora Raimunda Francisca
Bonfim de 62 anos.
Era uma mulher que teve uma filha, mas que queria ficar moça virgem toda
vida. Ele teve a filha, jogou dentro d‟água e essa menina virou uma
cobrinha. Não sei como foi, mas descobriro que tinha sido essa moça que
ficou grávida e teve a menina. Aí veio a santa missão, vem missionário,
padre, papa, bispo e não sei mais o quê. Vem celebrar a missa aí na igreja.
O padre disse:
- Vai entrar uma cobra aqui, mas vocês não se mexa e não tenha medo que
ela não vai fazer má, bulir com ninguém. Ela vai procurar sua mãe. Gente,
vocês não se mexa que não vai bulir com ninguém.
Lé vai, lé vai... que quando chegou aqui nos pé dela, diz que chegou
cheirando nos pé dela... O padre disse:
- Não se tema! Assente e dê mama a sua fia.
Aí foi a mãe quem virou serpente. Porque o padre xingou:
- Tu é uma serpente! Como é que tu tem sua filha e cabá joga n‟água?! Pois
aí é tua filha e você é que é a serpente!...
24
Narração disponível em: BARBOSA, Irailde. et al. A poética oral às margens da comunidade ribeirinha.
2007. 56 f. Trabalho de Conclusão do Curso (Licenciatura em Língua Portuguesa e Literaturas da Língua
Portuguesa). Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias, Campus XXIV, Universidade do Estado da
Bahia, Xique-Xique, 2007.
85
Na sequência, apresenta-se outra versão narrada pelo Sr Jorge Pinheiro Meira e
registrada em documento do IBGE da cidade de Xique-Xique, uma folha digitada e datada de
26 de julho de 2009 (Ver anexo A).
Um rico fazendeiro de Miradouro, da família Moribeca, temido por muitos,
teve notícia de que sua filha única estava grávida de um tropeiro. Com
grande temor do pai e muito assustada, a filha negava tudo, e daí por diante,
por mais de seis meses, para esconder sua gravidez, amarrava fortemente a
sua barriga... Pariu sozinha, jogando a criança dentro do rio. A criança virou
uma serpente encantada e nos dias de missas saía do rio e vinha mamar em
sua mãe dentro da capela, e há muito tempo, se refugia sob o altar de Nossa
Senhora Santana na Igreja do Miradouro.
Por último, traz-se uma adaptação feita pelo pesquisador, da versão de
Marquileide da Silva Oliveira, filha e neta de pescadores da região, professora da rede pública
municipal, que desenvolve desde o ano de 2006, um projeto envolvendo arte e educação,
trabalhando com a coleta e divulgação das narrativas orais ribeirinhas, em especial esta da
Serpente da Ilha do Miradouro. Ela construiu a sua versão, a partir das várias apresentadas
pelas crianças, jovens, adultos e velhos, moradores nas imediações da Ilha do Miradouro e por
isso, apresenta um número maior de informações e detalhes.
Segundo as contadoras de história das margens do Rio São Francisco, existe
uma serpente encantada na Igreja de Nossa Senhora Santana na Ilha do
Miradouro. De acordo com os mais velhos, essa história aconteceu há
muitos anos. Com a chegada dos bandeirantes, veio gente de todo o Brasil
atrás de ouro e cristais preciosos e com eles os negros escravizados para
ajudarem na procura pelo ouro. Dizem que da ilha mirava-se ouro na Serra
Assuruá, hoje município de Gentio do Ouro, por isso o nome de Ilha do
Miradouro.
Dentre essa nova população que estava se instalando na ilha, veio uma
família de gente muito poderosa e muito rica e construíram uma igreja
muito bonita em homenagem a Nossa Senhora Santana. Essa igreja tinha
que ter uma estrutura forte para aguentar as enchentes e um espaço para
servir de esconderijo para o ouro encontrado, então foi feito um porão
embaixo do altar de Nossa Senhora Santana, lugar onde se encontra a
serpente.
Esse senhor era conhecido como o fazendeiro mais importante daquele
lugar pela construção da igreja, mas ele não veio sozinho para cá, trouxe
com ele a sua esposa e filhos. Ele tinha uma filha que se destacava por sua
beleza e encanto, uma moça muito bonita que atraía a atenção e os olhares
de todos os moradores. Ela se chamava Mariá e adorava se banhar nas
águas do “Velho Chico”.
Naquela época, havia muitos tropeiros, pessoas que estavam apenas de
passagem vendendo ou trocando mercadorias com os moradores e a jovem
se envolveu e se apaixonou por um tropeiro que a abandonou depois de
alguns meses. Ela não se conformou com a partida do amado e chorava nas
margens do rio. Meses depois, ela começou a perceber mudanças no seu
86
corpo e sentiu falta das suas regras25, não sangrava há três meses. Ela
desconfiada de uma suposta gravidez, começou a amarrar sua barriga, a
apertá-la e a usar roupas folgadas para esconder o “erro” cometido, já que
naquela época as mulheres não podiam ter relação sexual antes do
casamento, pois eram vistas como “mulheres da vida” e ela não podia sujar
a reputação da sua família, já que o pai nunca aceitaria uma mulher com um
filho sem pai. Desesperada e sem conseguir esconder a gravidez, ela não
saía mais de casa, vivia escondida para não atrair olhares e fofocas na
comunidade. Aos nove meses, nos dias de ter a criança, Mariá começou a
sentir dores muito forte e, desconfiada de que o bebê iria nascer, corre em
direção ao rio, onde acabou tendo a criança, decidindo jogá-la no rio,
porque assim estaria livre de todos os problemas e ninguém saberia da
existência daquela criança.
Nossa Senhora Santana é uma santa muito milagrosa, dizem que foi ela que
não deixou a criança morrer, mas que aquela mãe merecia um castigo pelo
pecado que cometeu e a criança foi transformada numa cobra, uma cobrinha
que viveu muitos anos nas águas do São Francisco, uma cobra que não fazia
mal para ninguém, uma cobrinha com um olhar de gente, um olhar humano.
Um dia, uma mulher que estava lavando as suas roupas no rio, ficou
observando aquela cobra indo e voltando, fixando o olhar como se quisesse
dizer alguma coisa. A senhora ficou com aquela imagem na cabeça e
resolveu procurar o padre da igreja e contar o que havia acontecido, o padre
não se espantou, pois também já havia observado aquela cobra. Foi então
que ele chegou à conclusão de que aquela cobra era encantada, que havia
um mistério com aquela cobra, resolvendo levar o caso aos seus superiores
para um estudo mais detalhado sobre a misteriosa cobra do São Francisco.
O bispo mandou um aviso para a paróquia de Nossa Senhora Santana
mandando convocar toda a população da ilha e região para uma missa,
principalmente as mulheres e que não deveria faltar ninguém.
A notícia se espalhou rapidamente, todo mundo só falava dessa missa e
diziam que na missa ia ser desvendado o mistério da cobra. No dia da
missa, a igreja estava lotada, muito gente apareceu para assistir à celebração
e fazia muito barulho, foi então que o padre falou em voz alta:
- SILÊNCIO! Façam silêncio, que hoje é um dia muito importante para essa
ilha e contamos com a presença do Bispo, por favor, façam silêncio, os
homens dê lugar às mulheres, elas precisam ficar sentadas. Afastem,
afastem, deixa esse lugar aqui livre, esse lugar que dá acesso ao altar,
afastem que por aquela porta vai entrar uma cobra.
Dito isso, todos na igreja ficaram assustados e com medo da cobra. O padre
falou novamente: - Não fiquem com medo que essa cobra não vai fazer mal
pra ninguém, ela só vai procurar a mãe dela.
As mulheres ficaram nervosas, ninguém queria ser mãe da cobra. O padre
continuou:
- Não se preocupem que ela saberá quem é sua mãe.
Se dirigindo a cobra disse:
- Agora vá, vá procurar sua mãe.
A cobra saiu andando, indo no pé de uma, no pé de outra, vai lá, vai cá, de
uma a uma. Algumas mulheres se assustava e começava a gritar com medo
da cobra. Chegando no fundo da igreja, sentada num cantinho como se
estivesse querendo se esconder, estava Mariá, a cobra parou e fixou o seu
olhar no olhar da sua mãe, nesse momento o padre se aproximou dizendo:
- Ponha o seio para fora e dê de mama a sua filha.
25
Menstruação.
87
Mariá ficou com receio, queria negar e afirmava que tudo aquilo era um
engano, que ela não era mãe de uma cobra. Devagar, ela foi colocando o
seio para fora e a cobra subiu até o seu colo e mamou pela primeira vez o
leite materno. Foi então que se desfez o encanto e a cobra foi transformada
novamente em uma criança. E o padre continuou:
- Como é que você tem seu filho e depois você joga n‟água? Você é que é
uma serpente! Mãe que é mãe não abandona seu filho em momento algum,
mãe é pra proteger, é pra cuidar, pra enfrentar todos os problemas, pois
então você é que é uma serpente!
Dito essas palavras, Mariá foi transformada em uma enorme serpente e foi
trancafiada no porão da igreja. Dizem que até hoje ela não se conformou
com o castigo e não se arrependeu do que fez e costuma fazer vários
barulhos que estremece toda igreja, um barulho que é escutado por todos os
moradores da ilha. Ela só se acalma depois de rezarem um ofício a Nossa
Senhora Santana.
Percebe-se nas versões apresentadas, a presença de um discurso punitivo e
repressor, especialmente quanto à virgindade, ao comportamento subversivo e à repressão
sexual feminina. A mulher idealizada pela igreja católica seria aquela que se aproximasse da
pureza e conduta da virgem Maria. Fica evidenciado que o modelo de mulher a ser seguido
não deve se distanciar da submissão, da docilidade, da dedicação aos afazeres domésticos, à
maternidade e à família, reprimindo a própria sexualidade.
O sexo deveria ser apenas uma forma de procriação e afastar-se dos prazeres, o
que não ocorre com a personagem (a moça mãe da serpente), a qual rompe as amarras da
repressão e é punida, sendo, no final da primeira e da terceira versão, transformada em
serpente, por cometer o pecado da luxúria.
A luxúria é um desejo desordenado ou um gozo desregrado do prazer
venéreo. O prazer sexual é moralmente desordenado quando é buscado por
si mesmo, isolado das finalidades de procriação e de união (CATECISMO
DA IGREJA CATÓLICA, 1998, p. 530).
Alcoforado (1990, p. 53) comenta sobre o modelo feminino intencionalmente
defendido pelo discurso hegemônico nas narrativas populares:
Os contos que dizem respeito à conduta da mulher insistem num modelo
feminino que valorizando a beleza, a ingenuidade e a submissão ao pátrio
poder, que não é apenas do pai, mas também do marido e da sociedade,
nega-lhe iniciativas mais ousadas e independência de ação.
À mulher, destinava-se a subserviência pregada por um discurso machista. No
decorrer dos tempos, ela aparece na literatura como perigosa e causadora de danos à moral
social. Assim também ficou impregnada a literatura oral.
88
É muito expressivo o número de estereótipos negativos que caracterizam a
mulher, como: seres poucos inteligentes, incapazes de pensar, objetos de
desejo pecaminoso, de modo que a própria Bíblia utiliza-se da figura
feminina, colocando-a como responsável pela introdução do pecado no
mundo (BARBOSA et al. 2007, f. 31-32).
Sabe-se que o poder natural da mulher de genitora, capaz de procriar, gerar a vida,
era visto como ameaça à sociedade falocêntrica, que sempre procurou a todo custo apagar tal
circunstância, através de uma ideologia, de uma política de desfavorecimento e opressão da
mulher, que se perpetuou por todos os séculos. Lemaire (1999-2001, p. 105), através da
história sobre Mélusine26, comenta sobre essa realidade nas tradições orais:
Ao mesmo tempo, Mélusine ilustra também a força e a capacidade de
resistência das tradições orais que, apesar de séculos e séculos de luta
política e ideológica dirigida contra elas, guardaram uma história e um
imaginário ancestrais, permitindo assim até hoje em dia, evocar e viver
emoções, um saber, uma sabedoria diferentes e através delas, questionar
aquela “ordem do discurso” oficial que a tenta excluir e ocultar [A autora
refere-se à ordem do discurso trazida por Michel Foucault, L’Ordre Du
Discours, PUF, Paris, 1970].
Esse poder ancestral da mulher acaba sendo conduzido ao seu apagamento e
desmerecimento, por isso, esse estado de subalternidade ao qual a mulher tem sido submetida.
Consequentemente, nas histórias orais como estas, tendem a destacar-se mais os atos de
“subversão” ou fatos que apagam a sua bravura e qualidades, por influência da hegemonia
ocidental. É o que nos faz perceber (LEMAIRE, 1999-2001, p. 105) ao se referir à Mélusine:
Figura emblemática da história da mulher na sociedade ocidental, o
percurso de Mélusine ilustra o lento e progressivo declínio do poder
ancestral da mulher, a sua utilização para os objetivos do poder patriarcal, a
perda de controle sobre o que era tradicionalmente a base do seu poder: a
procriação, a progenitura.
O tratamento dado à mulher evidencia ainda a sua castração em relação ao sexo.
Estudos histórico-culturais nos revelam que tanto na cultura dos afrodescentes como na dos
indígenas, o sexo era visto com algo natural, que fazia parte da realidade humana, sendo
aceito por toda a comunidade e jamais era reprimido ou tido como algo sujo e impuro,
26
Boa mãe e esposa, mas que escondia um mistério: aos sábados, transformava-se em mulher da cabeça até a
cintura e serpente com uma cauda enorme da cintura até os pés. Ver: LEMAIRE, Ria. Melusine – Melusina /
Mélusines – Melusinas: serpentes, sereias e dragões. In: REVISTA LUSITANA. (Nova Série), 19-21, Lisboa:
Centro de Tradições Populares Portuguesas Professor Manuel Viegas Guerreiro, Universidade de Lisboa –
Faculdade de Letras, 1999-2001, p. 81-107.
89
passível de punição. Apesar de em algumas sociedades haver determinadas regras, o sexo não
era visto como pecado ou algo proibido. Há registros na história de comunidades indígenas
em que a poligamia é aceita até hoje. Essa visão castradora do sexo é uma marca ideológica
da Igreja Católica, que instituiu regras e castigos para aqueles que o praticassem fora do
casamento ou com a finalidade de prazer, já que só era permitido com o intuito de procriação
da espécie humana sem ligação à libido e a sensualidade. Para a igreja, o corpo jamais deveria
ser visto e desejado sexualmente.
Quanto à mulher, nas culturas afrodescendentes e indígenas, ela aparece sendo
respeitada por toda a sociedade, inclusive desempenhando funções importantes. Há culturas
em que a mulher muitas vezes ocupa uma posição social de maior destaque que a do homem.
Esse discurso de depreciação e opressão da mulher faz-se presente nessas culturas ribeirinhas
por influência da igreja, que reforçava o patriarcalismo da cultura eurocêntrica. Nas culturas
africanas, a mulher era vista de forma bem diferente dessa forma de hoje, motivada por um
falocentrismo colonial que permanece até hoje e é reproduzido nas narrativas. Sobre a
importância do papel das mulheres em muitas tribos da África, inclusive do seu
comportamento sexual, convém afirmar que:
[...] a mulher negra, porém, apesar das mutilações corporais que por vezes
lhe eram infligidas, gozava também de prerrogativas que são precisamente o
contrário da opressão... liberdade sexual, por vezes exagerada, aliás, antes
do casamento em certos países animistas; .....liberdade de deslocamento....
liberdade econômica pela apropriação de ganhos das suas múltiplas
atividades rurais ou comerciais,... direitos políticos ou espirituais que lhes
abrem por vezes o caminho do trono e da regência ou fazem dela
sacerdotiza respeitada, em particular dos ritos de fertilidade. E isto apesar
de as feiticeiras terem sido particularmente maltratadas (KI-ZERBO, 1999,
p. 225, apud REIS, L., 2008, p. 54).
A forte presença da ideologia católica nessas comunidades ribeirinhas é revelada
dentro das próprias narrativas, quando relatam a chegada das Santas Missões e as missas, com
seus padres, bispos e missionários, cujo objetivo era “evangelizar” as comunidades,
principalmente aquelas mais isoladas. A igreja estabelece um discurso em que a mulher é
vista como inferior e subserviente ao homem. Como se tem conhecimento da história da
região, a presença da Igreja Católica e sua ideologia foram marcantes no processo de
povoamento e colonização. Destaca-se a presença dos religiosos franciscanos ainda no século
XVII e das frequentes missões catequizadoras que se instalaram na região de Barra e XiqueXique. Para se ter uma ideia, em Portugal, as mudanças no tratamento dado às mulheres só
90
vieram a se manifestar por volta de 1976 com o fim da ditadura militar e a diminuição do
poder da Igreja Católica.
A mulher que infringisse as normas religiosas e sociais, como por exemplo, a
perda da virgindade ou a gravidez antes do casamento, era e ainda é punida dentro da
sociedade, embora hoje, com menor veemência e maior tolerância. Com isso, muitas
escondiam a gravidez, matavam seus filhos, livravam-se deles, a fim de não serem expulsas
de casa, da igreja e do convívio social, como ocorre com a moça das narrativas.
O discurso trazido nas versões da narrativa revela também uma falta muito grave
da mulher, quando esta rompe com os laços de maternidade e abandona a sua cria. Para
esconder uma falta cometida: a da perda da virgindade, ela comete outra maior, que é o
descumprimento do seu papel de prestar acolhimento, cuidados e carinho ao seu filho. Deixa
de ser a mãe zelosa e devotada que amamenta e educa o filho para desprezá-lo, jogando-o na
água, deixando de ser a “mãe-maria” para tornar-se a “mãe-desnaturada”. Nas culturas
africanas e indígenas, o abandono e o descuido com o filho pela mulher, também não era
tolerado, sendo motivo de punição em alguns casos com a morte e a expulsão do grupo social.
Sendo assim, nas culturas populares brasileiras, as marcas da punição e da
repreensão também aparecem de maneira vigorosa, como se pode perceber no trecho da
narrativa de Marquileide Oliveira:
- Como é que você tem seu filho e depois você joga n‟água? Você é que é
uma serpente! Mãe que é mãe não abandona seu filho em momento algum,
mãe é pra proteger, é pra cuidar, pra enfrentar todos os problemas, pois
então você é que é uma serpente!
Dito essas palavras, Mariá foi transformada em uma enorme serpente e foi
trancafiada no porão da igreja.
Outro aspecto que pode ser presenciado ainda é o fato de a própria mulher
narradora reproduzir em suas histórias esse modelo falocêntrico de comportamento feminino.
Nesse caso, ela acaba contribuindo para a confirmação dessa ideologia, quando ressalta as
atitudes subversivas da personagem e a punição sofrida. Simplesmente com o seu ato de
narrar, contribui para a transmissão, entre os povos, de uma marca ideológica que estabelece
para a mulher, um lugar de submissão e obediência aos dogmas referendados pela igreja e
pela sociedade conservadora. Sem se dar conta, não somente nesta narrativa, mas em muitas
outras, muitas vezes um discurso que inferioriza não somente a mulher, mas a cultura popular,
seu povo e seus valores é repassado e consubstanciado pelos próprios narradores.
91
4.1.1 A simbologia da serpente e da água
Lemaire (1999-2001, p. 84), versando sobre a serpente e as suas raízes indoeuropeias, nos diz que:
No mundo inteiro, em já extintas e em ainda existentes, não globalizadas
civilizações, a serpente era e é um animal sagrado, celebrado e venerado em
ritos, cultos, danças e outras formas de expressão artística e religiosa.
Animal ao mesmo tempo aquático e telúrico, a Serpente vive, nesses dois
mundos, uma existência que o imaginário quer antes de mais nada liminar,
passando de fontes, rios e riachos a grutas, cavernas, pedras e rochedos.
Transitando da superfície e da beira dos rios e lagos ao seus fundos, do
interior nocturno das grutas ao seu portal luminoso, do mundo dos animais
ao dos seres humanos, do natural ao sobrenatural, a Serpente é o animal
chtónico por excelência, naquele jogo dialético entre o ocultar e o mostrar,
entre o tabu do olhar e a vontade de saber, entre o fascínio e o encanto do
mistério e a cobiça de um conhecimento apropriador e aviltante.
Como se percebe, a serpente com os seus encantos que fascinam e permeiam o
imaginário ribeirinho é o ser no qual a mulher subversiva é condenada a transformar-se,
passando a apropriar-se das suas características, percorrendo as águas do rio, ocultando um
mistério, despertando a vontade de saber, a cobiça pelo conhecimento da verdade, revelado
posteriormente como uma forma de exemplo.
A transformação em serpente, da mulher no final da primeira e da última versão, e
da criança em todas as versões apresentadas, mostra uma forma de punição que a relaciona ao
mal, à tentação e ao pecado. A igreja tem essa figura associada à libido, à luxúria, ao
rompimento das normas, como na narrativa bíblica de Adão e Eva. Perceba-se que o pecado
da tentação do Jardim do Éden foi cometido por Eva, a mulher, e não por Adão, o homem,
atribuindo-se assim mais uma culpa à mulher, pois segundo Lemaire (1999-2001), a ideologia
cristã do pecado e da punição aparece presente também já nos textos do século XII.
A serpente é considerada ainda como a sedutora do pudor virginal de Eva,
inspirando-lhe o desejo pelo coito sexual.
No arquétipo do relato bíblico a serpente aparece fazendo Adão (ou melhor,
Eva) acreditar que a árvore da morte era, na realidade, a árvore da vida; ela
própria, evidentemente, comeu os frutos da árvore da vida (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 824).
Sendo assim, a serpente é condenada pela cristandade que ressalta o seu aspecto
maldito e negativo. Segundo Cascudo (2008), para o povo, ela é o símbolo diabólico da
92
tentação do mal, e assim é retratada nas narrativas, por influência das formas exorcistas da
igreja. Quanto ao fato da serpente vir à procura de sua mãe para amamentar-se com o seu leite
nos dias de missas, entende-se também como uma influência da tradição ibérica, pois para
Cascudo (2008, p. 144) “segundo a tradição portuguesa, corrente por todo o interior do Brasil,
[...] a cobra procura as mães que amamentam os filhos, surpreendendo-as durante o sono, e
suga-lhes o seio, pondo a ponta da cauda na boca da criança para que não chore”.
No imaginário brasileiro, a serpente se faz presente em várias narrativas, com
várias nomenclaturas e enredos. Aparece na maioria das vezes como ser encantado, temido.
São várias as passagens bíblicas em que ela também aparece com essa conotação associada ao
mal, ao castigo, à maldição. Referindo-se a esse elemento simbólico do imaginário brasileiro,
Leite (2003, p. 92) nos diz que “quando se trata de mitos em forma de serpente, diversos seres
se apresentam: Boiúna amazônica; Minhocão mato-grossense, mineiro; Cobra Norato; Boitatá
etc”.
Nesta narrativa, ocorre também um processo comum em outras narrativas da
cultura brasileira, que é a zoomorfização das personagens. Nesse caso, a mulher é
zoomorfizada, transformada em serpente, símbolo da libido, fazendo com que o animalesco
venha aproximar o humano dos seus instintos básicos como o sexual.
A água, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009) possui significações simbólicas
em três temas dominantes; fonte de vida, meio de purificação e centro de regenerescência. Na
narrativa, a água do rio faz-se presente como elemento primordial para o desenrolar dos fatos.
Ela é o cenário para o misterioso, o encantado. É nela que mora a serpente e foi nela que a
mãe jogou a filha. Ao jogar a filha na água, a mãe espera livrar-se das consequências de ter
rompido com os princípios morais e religiosos, de ter engravidado e praticado sexo antes do
casamento. Assim, a água cumpre o papel de uma espécie de purificação e regenerescência,
pois vem esconder e dar fim ao seu pecado diante da sociedade, mantendo-a pura e casta
perante os olhos da sociedade e da igreja.
Mas o inesperado acontece, que é a punição e a revelação do pecado cometido. A
água torna-se o berço, a fonte da vida para uma serpente encantada que sai à procura de sua
mãe, causando a revelação do seu rompimento com os dogmas religiosos e morais, também
do abandono da maternidade, no momento em que a procura na igreja, para mamar em seu
seio. Passa a ocupar um papel antagônico, pois ao mesmo tempo em que pode ser usada como
fuga e apagamento da realidade, também contribui para a continuidade do drama, já que se
torna elemento vital para a sobrevivência da serpente/criança, como se fosse um útero para a
sua criação e desenvolvimento. E assim, a água segue misteriosa, rio abaixo, como “o símbolo
93
das energias inconscientes, das virtudes informes da alma, das motivações secretas e
desconhecidas” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 824).
4.1.2 Outras considerações sobre a narrativa
Nesta narrativa, percebe-se a presença do encantamento, quando traz o mistério e
o sobrenatural, elementos representados pela serpente encantada, que desfaz o encanto, ao ser
amamentada em sua mãe. Também no momento em que a mãe se transforma em serpente,
conforme narração da primeira e última versão apresentada.
Tal narrativa ainda serve de exemplo, por apresentar o rompimento das normas de
caráter social e religioso. Nela, há a presença da subversividade contra os preceitos morais, e
o desfecho é conduzido para uma lição de moral cuja personagem que contraria tais preceitos
sofre uma punição. Por ter se entregado aos prazeres do sexo antes do casamento,
engravidado e abandonado sua cria, atirando-a ao rio, a moça tem o seu segredo revelado
durante a missa, diante do padre e dos seus sermões e é transformada em serpente, condenada
a viver nas águas do rio ou embaixo do altar da igreja, servindo como exemplo para todos os
fiéis presentes. O momento é oportuno para a igreja aplicar a sua ideologia conservadora e
punitiva. Nesta narrativa, “os exemplos ensinam a Moral sensível e popular, facilmente
percebível no enredo [...]” (CASCUDO, 2006, p. 298).
Nas duas últimas versões apresentadas, pode-se ainda perceber a discriminação
socioeconômica. No relato, a filha única de um rico e respeitado fazendeiro engravida de um
tropeiro. Embora não apareça claramente a discriminação pela condição socioeconômica do
tropeiro, fica subentendido, pela atitude da filha ao buscar esconder a gravidez, que não havia
possibilidade de se permitir a sua união com um homem desconhecido, sem tradição familiar,
sem posses, fazendas, sobrenome. Pode-se inferir que se o mesmo fosse um filho de
fazendeiro de família conhecida, de nome respeitado, o desfecho não teria sido esse.
Torna-se mister salientar ainda, a força que essa narrativa exerce sobre os
moradores da região do Miradouro. Segundo o Sr. Jorge Pinheiro Meira e Marquileide
Oliveira, depois de séculos, os moradores próximos à igreja, ainda afirmam ouvir fortes
rugidos e murmúrios vindos de seu interior, que só cessam quando rezam o ofício. Também
outros moradores da região afirmam que a serpente mora no rio e a sua cabeça fica alojada
embaixo da igreja. Percebe-se, portanto, um forte teor de fé, de verdade quanto à existência da
94
serpente e de sua história, constituindo-se num elemento vivo do imaginário dos povos
ribeirinhos.
Em vários lugares do Brasil, também existem histórias que relatam uma serpente
cuja cabeça se localiza embaixo de alguma igreja. Isto talvez possa ter sido criado e difundido
pela própria Igreja Católica com a intenção de estabelecer um moralismo e controle do povo,
pois se sabe que muitas vezes os próprios padres costumavam criar certas narrativas religiosas
para justificarem algumas ações como a construção de igrejas ou a realização das Missões em
determinado lugar.
4.2 O NEGO D‟ÁGUA
O Nego d‟Água, conforme nos apresenta Cascudo (2006), é uma criatura
fantástica que habita no Rio São Francisco, favorecendo tudo aos amigos a quem ele chama
de compadres do Caboclo d‟Água, e perseguindo ferozmente os pescadores, barranqueiros e
pessoas com quem antipatiza, virando canoas, erguendo ondas, derrubando as barreiras,
afugentando pescarias. Recebe ainda outras denominações como Caboclo d‟Água, Compadre
d‟Água, Moleque d‟Água, Bicho d‟Água e outras mais, conforme a região.
Tal personagem habita o imaginário da comunidade do Mocambo dos Ventos, nas
águas profundas do rio. É também chamado de “Cumpade d‟Água” por muitos e as suas
características físicas mais relatadas em todo o São Francisco, assim como na região deste
estudo, são as seguintes, segundo Cascudo (2006, p. 89): “baixo, grosso, musculoso, cor de
cobre, rápido nos movimentos e sempre enfezado”. A Sra. Maria Francisca da Silva assim o
descreve:
Tem gente que já viu ele lá no Brejo, a cabecinha dele é assim redonda
[explicando com as mãos o formato da cabeça], mas não tem um fio de
cabelo. Ele é pequeno assim [...] Ele é nego preto e não gosta de preto não
[...]
Já Dona Maria Alexandrina Caxiado diz: “Eu já vi. Ele é deste tamanho assim
[mostrando com a mão a altura semelhante a de uma criança pequena], da cabeça careca [...]
Ele é piquinininho da cabeça careca [...]”.
As versões apresentadas a seguir por moradores do Mocambo dos Ventos
apresentam de um modo geral as mesmas características apontadas por Cascudo, mas com
algumas modificações de um narrador para outro:
95
a) Versão narrada pela Sra. Maria Alexandrina Caxiado (Dona Xandu):
Eu tenho uma nora, uma afilhada, que ele já carregou ela um pedaço e ela
ficou sem fala. Eu já vi. Ele é deste tamanho assim, da cabeça careca. Ele
veio atrás dela e perseguiu tanto que ela foi embora pra Xique-Xique. Ester
e Cumade Lene, Ela tá ali viva e sã, foi quem segurou ela e puxou quando
ela pegou a chorar. Aí ela tava batendo roupa o ano passado e disse:
- Minha madrinha!!!
Aí o menino [referindo-se ao Nego d‟Água] passou e botou a mão assim na
cabeça e pulou assim paf dentro d‟água. Ela não batia roupa só com medo.
Ele perseguiu muito ela. Pra agradar ele, tem de dar fumo, mas eu que não
vou dar fumo. Ele deixa qualquer barco parado no meio do rio e diz que ele
só gosta de mulher e mulher roxa, assim do cabelo bom, do cabelo ruim ele
não gosta não. Ele fica no seco vadiano27 e sai, fica escondido quando vê
qualquer pessoa. Um dia meus menino tava na ilha. Aí eu falei assim:
- Meninos, cês tão brigando aí?
Era ele quentando sol. Quando eu vi que era o cumpade, fiquei tremendo e
saí... Aí ele botou a mão aqui assim [colocando as mãos na cabeça] e pá
dentro d‟água. As pessoa tem medo dele comer as pessoa, mas ele não come
não. Quando o rio tá raso ele vai pro Rio Grande, ele só gosta de fundo;
b) Versão narrada pela Sra. Maria Francisca da Silva:
Tem gente que já viu ele lá no Brejo, a cabecinha dele é assim redonda
[explicando com as mãos o formato da cabeça], mas não tem um fio de
cabelo. Ele é pequeno assim. Diz que se a gente pedisse peixe a ele, ele
dava. Os velho de primeiro, dizia que se fosse pescar e jogasse um
pedacinho de fumo assim dentro d‟água, você tomava pauta28 com ele e
ganhava peixe. Eu nunca conheci ninguém que viu ele, agora diz que uma
mulher foi tomar banho e passaro a mão nela. Ela saiu daqui e foi morar em
Xique-Xique [referindo-se à mesma mulher da versão anterior]. Vejo dizer
que era ele [o Nego d‟Água]. Era num fundão que tinha ali. A moça era
bonitona, cabelão bom, né? Ele só gostava de mulher bonita, de gente feia
não, ele é negro preto e não gosta de preto não. A moça era morena, bonita
do cabelão na cintura;
c) Versão narrada pela Sra. Marilene de Souza Vargas:
Que eu lembre, só que uma tardezinha eu vinha panhar água, aí quando eu
tô enchendo o balde, caiu n‟água que nem um homem, sabe? O Nego
d‟Água. Aí eu fiquei pensando:
- Meu Deus, o que é isso?
Pensei que era uma pessoa, sabe? Fiquei esperando, né? Saí. Quando é que
essa pessoa saiu? Aonde? Aí eu peguei o balde seco e fui embora. Aí eu tive
medo.
Como se percebe nas versões apresentadas, o Nego d‟Água faz parte do cotidiano
do Mocambo dos Ventos. Assim como os outros personagens que compõem as narrativas do
lugar, a sua presença é relatada pelos narradores que afirmam com tamanha veracidade a sua
27
28
Na região, é comum usar o verbo vadiar no sentido de brincar.
Significa fazer amizade, conquistar.
96
existência. Quando os mesmos não afirmam ter vivenciado o fato narrado, declaram com toda
certeza a participação de alguém da comunidade, de pessoas mais velhas ou que já morreram,
o que tornam o seu testemunho mais verdadeiro. “Eu já vi. Ele é deste tamanho assim, da
cabeça careca [...] Quando eu vi que era o cumpade, fiquei tremendo e saí...” [Dona Xandu,
que afirma já ter visto]. Já a Sra. Maria Francisca diz que ela mesma não viu, mas que outras
pessoas do lugar já viram. “Tem gente que já viu ele lá no Brejo, a cabecinha dele é assim
redonda, mas não tem um fio de cabelo”. Dona Marilene de Souza Vargas também relata ter
visto. “[...] Aí quando eu tô enchendo o balde, caiu n‟água que nem um homem, sabe? O
Nego d‟Água”. A sua presença imaginária é muito forte entre todos, chegando até, durante a
pesquisa, a nos contagiar, o que justifica a afirmação no início deste trabalho, de que o Nego
d‟Água nos acompanhava durante as viagens, em nossa imaginação.
Os moradores tratam-no muitas vezes de “cumpade”, por considerá-lo um ser que
faz parte do seu cotidiano, principalmente na hora em que exercem as atividades diárias como
pescaria, banho, e outras. A expressão os aproxima dessa criatura fantástica e a intenção de
todos é estabelecer um vínculo de amizade, pois ninguém quer tê-lo como inimigo ou
contrariá-lo. Buscam agradá-lo a fim de ter os benefícios que ele pode trazer na pesca e na
navegação, já que, quando contrariado, afunda barcos, cria maletas29 e ondas, rouba os anzóis,
espanta os peixes, dentre outras ações. Segundo os moradores, ele deve ser presenteado com
pedaços de fumo e quando contrariado pode até levar, matar ou comer a pessoa. “Pra agradar
ele, tem de dar fumo [...] As pessoa tem medo dele comer as pessoa [...]” (Dona Xandu).
A religiosidade, uma marca presente na identidade ribeirinha, se mostra quando
ressaltam que também não se deve xingar ou cometer más ações, sob pena de ser castigado
pelo Nego d‟Água. Também outra marca da religiosidade é o culto das oferendas, que está em
todas as matrizes da cultura brasileira: indígena, portuguesa e africana. Presentear esse
personagem encantado com uma oferenda significa que se poderá receber em troca a graça
desejada, como o sucesso na pescaria. Na fala de Dona Maria Francisca, pode-se perceber
essas crenças. “Os velho de primeiro, dizia que se fosse pescar e jogasse um pedacinho de
fumo assim dentro d‟água, você tomava pauta com ele e ganhava peixe”. Através da narrativa,
toma-se conhecimento ainda do modo de vida da população do Mocambo dos Ventos,
revelando a pesca como o principal meio de sobrevivência.
O discurso advindo da cultura do branco europeu é reproduzido na narrativa. Sem
se dar conta, há uma fixação de valores que desfavorecem a cultura e os povos
29
Para os ribeirinhos, o mesmo que onda, movimento das águas.
97
afrodescendentes, quando ao narrar, afirmam que o personagem é um negro, mas que não
gosta de negro, de gente feia e só gosta de gente bonita. Nesse caso, a ideologia do
“branqueamento” está implícita, pois a expressão reflete a necessidade de se limpar o sangue,
através do casamento com pessoas mais brancas. O discurso racista se estabelece e se
referenda pelo próprio negro no momento em que ele mesmo apresenta o negro como gente
feia e o branco como gente bonita. Os estereótipos e preconceitos circulam dentro da
narrativa, sem que o narrador, afrodescendente, perceba e questione tais marcas.
E, de alguma forma, eles incorporam-se à violência explícita contra a
população de afro-descendentes, pelo uso de termos pejorativos, de
brincadeiras usadas aparentemente sem maldade ou da rejeição explícita a
traços do corpo negro. (FONSECA, 2006, p. 35).
Apresentam-se a seguir, algumas comprovações desse discurso preconceituoso
que desqualifica os traços fenotípicos do negro: “A moça era bonitona, cabelão bom, né? Ele
só gostava de mulher bonita, de gente feia não, ele é negro preto e não gosta de preto não. A
moça era morena, bonita do cabelão na cintura” (Maria Francisca). Nesse discurso, fica
estabelecida a pessoa negra como feia e a branca como bonita, considerando ainda o cabelo
do branco como bom e o do negro como ruim. Esses traços, que continuam a dar legitimidade
a essa desvalorização do afrodescente em relação à cor da pele e ao tipo de cabelo, ainda estão
enraizados entre nós e têm a sua origem numa sociedade escravocrata, constituída de senhores
brancos e de escravos negros. Fica comprovada assim, a deformação das qualidades do negro
que foi implantada pelo colonizador europeu e que dificulta a valorização e o reconhecimento
da identidade afrodescendente por toda a sociedade, até por si mesmos.
4.3 A MÃE D‟ÁGUA
Assim como o Nego d‟Água, a Mãe d‟Água é uma personagem que faz parte do
imaginário brasileiro em todas as regiões. A sua presença no imaginário dos povos do
Mocambo dos Ventos é inegável, visto que são muitos os relatos em que ela aparece. Cascudo
(2008) afirma que em todo o Brasil, a Mãe d‟Água é conhecida como a sereia europeia, alva e
loura, meio peixe, cantando para atrair o namorado, que morre afogado ao acompanhá-la para
as bodas no fundo das águas.
Porém, essa sereia acaba também sofrendo as personificações e características das
culturas afrodescendentes e indígenas. Toma-se como base, o mito europeu da sereia, mas é
98
ressignificado de acordo com a diversidade cultural brasileira. Assim, vale reforçar, que no
Brasil, este mito não é exclusivamente europeu, pois como a maioria dos mitos, a Mãe
d‟Água está presente de formas diferentes nas diversas culturas, não tendo origem em lugar
específico, mas existindo concomitantemente.
Para Leite (2003, p. 96), “o ciclo da Mãe d‟Água é apontado nos estudos
brasileiros, como assentado no cruzamento entre os imaginários indígena, português e
africano. Entretanto, em certos casos, ele seria mais fortemente africano”. Tal assertiva vem
confirmar a força da figura da mãe africana, da deusa-mãe que chegou ao Brasil através de
Iemanjá, que representa a Mãe d‟Água. Para as culturas afrodescendentes, ela é a deusa dos
rios, das fontes e dos lagos, “resultante de um sincretismo mítico, onde concorrem três orixás
yorubás, principalmente Yemanjá, Oxum Anamburucu ou Nanan” (RAMOS, 1940, apud
LEITE, 2003, p. 96).
Com isto, a influência africana acabou por sobressair-se, mas não se pode deixar
de ressaltar que o português, por não compreender direito a mítica indígena, ou mesmo
compreendê-la a partir de outros signos mais familiares, acabou associando também o mito
indígena das Ipupiaras30 e das Cis31 com a Mãe d‟Água. Sendo assim, houve uma
ressignificação desses mitos sobre as figuras aquáticas, destacando-se uma visão da Mãe
d‟Água, a qual ajuda os pescadores e moradores ribeirinhos em troca de presentes, de
donativos. As narrativas sobre a Mãe d‟Água, trazidas pelos moradores do Mocambo dos
Ventos assemelham-se a tal visão que se aporta em traços africanos, marcando assim a sua
afrodescendência cultural, como se pode observar nas versões que se seguem:
a) Versão narrada pelo Sr. Domingos Pereira de Carvalho:
Ela mudou pra serra, lá tinha um riacho, depois o riacho secou. Aí ela
mudou mais pra longe, ficou em riba da serra e quando batia o buzo de cá,
que a turma dizia:
- Bamburrou de peixe!
Ela
também
[a
Mãe
d‟Água]
batia
o
buzo,
buuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu! Nesse tempo eu era maior que esse
moleque aí [apontando para um garoto], eu batia nas lata, putuco, putuco,
putuco e a turma puxando a rede e eu putuco, putuco, putuco. Meu pai era
arraia de uma rede, aí batia o buzo:
- Ei, bamburrou de peixe!
A altura dos peixe ficava igual a dessa casa aí. Aí a turma dizia:
- Ê, aquele ali embamburrou!
30
Para Cascudo (2008, p. 283) “Ipupiara é o gênio das fontes, animal misterioso, que os índios davam como o
homem marinho, inimigo dos pescadores, mariscadores e lavandeiras”.
31
Segundo Cascudo (2008) o indígena não concebe nada do que existe sem mãe, a quem a chama de “Ci”. A
mãe é sempre necessária para que haja a vida. Devia haver uma “Ci” para todas as espécies animais, vegetais e
minerais.
99
Aí batia o buzo de cá e ela batia de lá. Olha, se você botava uma rede, se era
pra mandim era pra mandim, se botasse pra crumatá, era crumatá, botasse
pra piranha, era pra piranha, botasse pra traíra, era só traíra. Olha as ruma
que ficava! Era a Mãe d‟Água que ajudava, que dava, só dava o peixe que a
gente botava a rede;
b) Versão narrada pela Sra. Maria Francisca da Silva:
Eu vejo dizer que tem uma Mãe d‟Água. Diz que uma mulher foi pro riacho
tomar banho e quando chegou lá viu aquela mulher lá, aquela mulher do
cabelão, dos cabelos na bunda. Aí diz que ela rompeu e viu assim aquela
mulher tomando banho e penteando os cabelo, aquele cabelão. Quando ela
[a Mãe d‟água] viu ela, tchum, caiu dentro d‟água. Aí ela deixou um
pente em riba da tábua da mulher lavar roupa e ela não sabia o que era,
correu e não pegou. A riqueza que ela ia achar, mas não pegou. Era uma
riquezona que ela ia pegar, um pentão de ouro lá em riba da tábua. Ela de cá
ia tomar banho e correu com medo dela. A Mãe d‟Água era bonitona, vi
dizer que ela é rica. Eu sei contar que existe a Mãe d‟Água;
c) Versão narrada pela Sra. Maria Alexandrina Caxiado (Dona Xandu):
Eu já ouvi falar, mas nunca vi não. Não vou mentir, né? Diz que ela é alva,
do cabelão e com um cabo de peixe. Vi dizer que ela entrou prus brejos, que
lá tinha uma cachoeira. O povo diz que tinha tido ela. Quando tem uma
cachoeira alta, ela vai pru brejo, sai daqui e vai pru brejo;
c) Versão narrada pelo Sr. Valdemar Caxiado da Silva:
A Mãe d‟Água, quando a gente via, mergulhava. Era assim: cabelão bom, a
metade era de peixe e carne, sabe? Pra baixo era peixe e pra cima era carne.
Ela era roxa, da minha qualidade e o cabelo era aqui assim [mostrando com
as mãos, ser na cintura].
Em todas as narrativas apresentadas, percebe-se que a personagem encontra-se
totalmente inserida no cotidiano do lugar, uma vez que afirmam ter visto ou ouvido contar
uma história sobre sua aparição. Constitui-se como um ser encantado que habita as águas do
rio, assim como em outras regiões do Brasil. Como se vê nas descrições feitas, é considerada
uma mulher bonita, de cabelos compridos e com o rabo de peixe. Isso nos mostra a associação
com a figura mitológica portuguesa de uma sereia que é mulher da cintura para cima e peixe
da cintura para baixo, geralmente vista sobre uma pedra e penteando os cabelos.
Mas essa imagem, apesar de associada à forma europeia da sereia, é relatada como
de cor “roxa” assim como a dos narradores e não de cor branca. O cabelo também deixa de ser
louro para tornar-se escuro. Quanto à cor, é comum entre os ribeirinhos, utilizarem a
100
denominação “roxa” para representar o seu fenótipo negro, o que se entende como uma forma
costumeira de reduzir-lhe o peso da descendência africana e da escravidão. A associação com
o fenótipo negro faz com que a Mãe d‟Água assuma uma identidade mais próxima dos seus
narradores, o que lhe dá um pertencimento maior à sua cultura. Um indício dessa associação é
que a Iara encontrada no Norte do Brasil se apresenta com fenótipo branco e cabelos claros,
diferente da região do Mocambo dos Ventos.
O comportamento dessa mulher sereia assume uma identidade da mãe africana no
momento em que premia o pescador ofertando-lhe uma grande quantidade de peixes. “Era a
Mãe d‟Água que ajudava, que dava, só dava o peixe que a gente botava a rede” (Sr.
Domingos). Esse é o comportamento da deusa-mãe africana que ajuda seus filhos e que
recebe ofertas de prendas, como no caso do sabonete que muitos também afirmam presenteála, em troca da sua ajuda. Como na narrativa sobre o Nego d‟Água, as histórias da Mãe
d‟Água trazem como uma marca da religiosidade, o culto das oferendas, que está em todas as
matrizes da cultura brasileira: indígena, portuguesa e africana. Para alcançar uma graça, nesse
caso a boa pescaria, os peixes em abundância, deve-se presentear essa deusa-mãe encantada,
isto é, desenvolver a prática da oferenda.
4.4 O ARCO-ÍRIS
Outra presença entre as narrativas do Mocambo dos Ventos é a do Arco-Íris.
Mesmo apenas um morador tendo se disposto a contar a narrativa, os outros afirmaram já
terem ouvido falar do Arco-Íris, mas que não sabiam contar direito. Como se tem
conhecimento, o Arco-Íris está presente em todas as regiões do Brasil dentro do seu
imaginário. Segundo Cascudo (2008), também é conhecido como arco, arco celeste, arco da
chuva, olho-de-boi e ainda como arco-da-velha no sul do Brasil e em Portugal. Costuma beber
água nos rios, lagos e mares, podendo engolir gado, aves e crianças, depois desaparecer, após
ser observado a beber o líquido precioso. Na região do Mocambo dos Ventos, foi denominado
apenas de Arco-Íris, como se pode observar na narrativa da Sra. Marilene de Souza Vargas:
Diz que o Arco-Íris bebe água ali no meio do rio, né? Aí aquela água, diz
que ele joga em outro lugar ou então em outra lagoa ou em outros rios, ou
então assim: em outros lugar, na caatinga, sabe? Teve gente assim que já
viu isso, mas eu mesmo nunca vi ele fazer isso, eu já vi ele assim no meio
do rio. Diz também que ele leva as criança e até os bicho e que também ele
pode até secar a água do rio de tanto beber se ele ficar com raiva.
101
Nesta narrativa, também há a presença do encantamento, do fantástico, uma marca
comum em todas as apresentadas neste trabalho. O Arco-Íris é um elemento encantado, que
bebe água e é capaz de conduzir a água do rio para outros lugares e até mesmo, levar as
pessoas. Deixa de ser visto como um fenômeno de natureza científica, mas como algo
fantástico que possui existência própria, qualidades e atitudes de um ser mágico. Esta
personificação do Arco-Íris, assim como de outros elementos da natureza, é muito comum nas
práticas religiosas animistas, consideradas primitivas, como as africanas e indígenas.
Em todas as culturas de diversos povos pelo mundo, há várias simbologias e
explicações para a presença do Arco-Íris. Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 77, grifos dos
autores) apresentam o Arco-Íris como o “caminho e mediação entre a terra e o céu. É a
ponte de que se servem deuses e heróis, entre o Outro-Mundo e o nosso”. Essa sua função
está presente não somente na cultura ocidental, mas em muitas outras culturas. “Essa função
quase universal é atestada tanto entre os pigmeus quanto na Polinésia, na Melanésia, no Japão
– para mencionar apenas culturas extra-européias” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.
77).
A necessidade de ligação do plano terreno com o espiritual, com o divino está
enraizada em todas as culturas e dessa forma, em muitas delas, o Arco-Íris se constitui em
uma ponte de ligação entre os dois mundos, entre as duas esferas. No Japão, por exemplo, é a
“ponte flutuante do céu; a escada de sete cores, através da qual o Buda torna a descer do céu”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 77, grifo dos autores). Na Grécia, ele é tido como
“Íris, a mensageira rápida dos deuses. Simboliza também, de modo geral, as relações entre o
céu e a terra, os deuses e os homens: é uma linguagem divina”. (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 77).
Ainda dentro desta perspectiva, a Bíblia o traz como anúncio de bonança após a
tempestade. Depois do dilúvio, surge o Arco-Íris anunciando o fim da tormenta, uma aliança
de Deus com Noé. O Arco-Íris bíblico significa o pacto feito por Deus com Noé de que não
acabaria o mundo com dilúvio. Dessa forma, passa a ser visto pelos cristãos, geralmente como
anunciador de felizes acontecimentos ligados à renovação.
Mas também há outras culturas, como os povos Incas e outras tradições, em que
ele vem associado à outra face da sua simbologia, assumindo uma significação inspiradora de
temor, já que, por muitas vezes, é considerado também como uma serpente perigosa, nefasta,
causadora do mal.
A versão apresentada pela Sra. Marilene e conhecida na região aproxima-se de
uma concepção bastante corrente na Ásia Central, a qual
102
“Pretende que o arco-íris aspire ou beba a água dos rios e dos lagos. Os
incautos acreditam que ele pode até mesmo levar consigo os homens da
terra. No Cáucaso, exortam-se as crianças a tomarem cuidado para que o
arco-íris não as leve para as nuvens. (HARA, 1959, p.152 apud
CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 79, grifo dos autores).
Mais uma vez o Rio São Francisco é o cenário, é nele que o Arco-Íris aparece,
assim como os personagens das outras narrativas apresentadas. Tal circunstância nos faz
considerar que o imaginário ribeirinho no Mocambo dos Ventos está relacionado diretamente
com o Velho Chico, seus mistérios e encantos, pois em todas as narrativas pode-se perceber
uma relação direta com suas águas.
Como na versão da Ásia Central, a Sra. Marilene afirma que o Arco-Íris aspira a
água do rio e a leva para outros lugares. Para ela, não é apenas um acontecimento da natureza,
mas um ser, um personagem vivo, o qual constrói o enredo de suas narrativas, tornando-se um
ser encantado. Fica ainda latente, que ele se constitui na ponte que leva a água para os lugares
que necessitam dela, como a caatinga, castigada pela seca e escassez desse líquido tão
precioso e vital para o nordestino. Aparece nesse momento como o símbolo de boas novas, de
bons acontecimentos, de renovação e transformação de um ciclo, já que a água levada faz
brotar a vida na caatinga, vingar o alimento, matar a sede dos viventes. Ressalte-se que,
apesar da fartura da água no leito do rio, a caatinga seca, na maior parte do ano, grita por água
que se torna essencial para o cultivo das lavouras de subsistência como a da mandioca, do
milho e do feijão, dentre outras. Essa crença demonstra a fé e a esperança de um tempo
melhor, de fartura trazida pela água, pela tão desejada chuva.
A água mais uma vez faz brotar toda a vida na região e o Arco-Íris para a Sra.
Marilene e demais moradores recebe a conotação da ponte capaz de proporcionar vida à terra
castigada pelo Sol. Mas além de anunciador de boas novas, há também o lado nefasto, pois
“ele pode igualmente preludiar perturbações na harmonia do universo e, até mesmo, assumir
uma significação inspiradora de temor: é a outra face esquerda ou noturna, do mesmo
complexo simbólico [...]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 78). Nesse sentido,
existe ainda todo um imaginário em torno do misterioso rapto de crianças e de animais pelo
Arco-Íris. “Diz também que ele leva as criança e até os bicho e que também ele pode até secar
a água do rio de tanto beber se ele ficar com raiva” (Marilene Vargas).
Desta forma o Arco-Íris é visto como um ser encantado que tem a capacidade de
punir as crianças desobedientes ou mesmo os adultos, quando leva as crianças e os animais.
Assim, é temido e respeitado por todos. É preciso não desagradá-lo, pois ele pode “beber”
103
toda a água do rio, o que seria catastrófico para as comunidades. Por isso, “o sertanejo não
gosta do arco-íris porque furta água” (CASCUDO, 2008, p. 21) e também, porque geralmente
aparece após o fim da tão almejada chuva, significando que não irá chover mais naquele
momento, como no pacto feito entre Deus e Noé.
O temor da punição em relação à má conduta, ao pecado, à subversão aos
mandamentos religiosos se faz presente como marca do eurocentrismo católico. Logo, é
preciso não descumprir os mandamentos cristãos, é preciso agradá-lo, respeitá-lo, pois o
Arco-Íris pode também não representar somente boas novas, mas trazer transtornos e dores
como punição.
De acordo com Verger e Prandi, dentre outros estudiosos, nas culturas africanas
da região de onde vieram os negros escravizados para o Brasil, ou seja, para a cultura afrobrasileira de origem iorubana, a marca mais evidente de Oxumaré é o Arco-Íris, de quem é
senhor. Oxumaré é um orixá que representa polaridades contrárias, dos opostos como o
masculino e o feminino, o bem e o mal, a chuva e o tempo bom, o dia e a noite,
respectivamente, e sob as formas do Arco-Íris e de serpente. Cascudo (2008, p. 459) traz
Oxumaré como “[...] orixá do arco-íris. Santo iorubano ocupado em transportar água da terra
para o ardente palácio das nuvens onde reside Xangô, que depois a devolve em forma de
chuva”. Ao recolher a água da terra durante a chuva, levando-a para as nuvens, dá
continuidade ao ciclo da chuva, à vida. Ele é ao mesmo tempo macho e fêmea, pois não tem
sexo definido e durante seis meses tomava a forma de Arco-Íris, cuja função era levar a água
para o castelo de Oxalá, que morava em Orun (no céu). Após o cumprimento da tarefa,
voltava à terra por outros seis meses, assumindo a forma de uma cobra.
Para Cascudo (2008), o Arco-Íris, também representado pela serpente, aparece
como mito africano que se estende do Senegal ao Congo Belga. Já no que diz respeito à sua
origem, tanto os africanos como os indígenas sul-americanos tinham explicações semelhantes.
Cascudo (2008, p. 460) nos diz que os “indígenas e africanos tinham um elemento comum
para a explicação etiológica do arco-íris”, pois as serpentes, para os indígenas sul-americanos,
encontram-se presentes em todos os temas aquáticos, simbolizando o próprio elemento ou
seus habitantes e dirigentes, e não se pode afirmar que essa relação se concretiza por
influência africana entre esses indígenas.
O arco-íris é N‟Tyama, serpente que vive no fundo do rio Congo, no
primeiro rápido e, quando, depois da chuva, vem se aquecer à superfície, o
dorso se reflete nas nuvens, formando o espectro das sete cores. Entre os
indígenas sul-americanos, a mesma tradição é conhecida. Não parece, pela
104
sua antiguidade e processo verbal de exposição, que seja uma influência
africana entre os ameríndios [...] (CASCUDO, 2008, p. 460).
Deste modo, nota-se que o imaginário apresentado em torno do Arco-Íris no
Mocambo dos Ventos consolida-se sob influência maior da cultura africana e de seus orixás,
especificamente Oxumaré, e ainda das culturas indígena e portuguesa. Dessa forma, os fatos
narrados pelos seus moradores encontram uma relação com a cultura de seus antepassados. A
própria associação com a mudança de sexo daquele que passar por baixo do Arco-Íris
encontra também a fundamentação na sexualidade antitética do orixá. Muitos moradores
também afirmam ter ouvido dizer que se alguém passar por baixo do Arco-Íris muda para o
sexo oposto.
Vale destacar também o jogo performático da Sra. Marilene no momento em que
ao mesmo tempo, narra e lava roupas no leito do rio. (Figura 32). As expressões afirmativas,
apontando para as águas, dão credibilidade à sua história. E quando ela não vivencia o que
narra, deixa claro que outras pessoas presenciaram tais acontecimentos. Não apenas a Sra.
Marilene, mas todos os outros narradores apresentados demonstram uma preocupação com a
veracidade das suas narrativas, as quais já se pode considerá-las como de testemunho.
4.5 O RIO QUE DORME
O Rio São Francisco para todo o povo de suas margens é tido como um
companheiro de jornada, um lugar mágico, fantástico, que muitas vezes se torna personagem
das histórias contadas. No Mocambo dos Ventos, também se apresenta desta forma para a
maior parte dos seus moradores, que muitas vezes o vêem como um ser que possui alma e
sentimento, atribuindo-lhes em certas situações, características de um ser vivo, embora
envolvido em mistérios e encantamentos.
Até o nome carinhoso de Velho Chico serve para reforçar essa relação em que o
Rio aparece também como um personagem do imaginário ribeirinho. É como se esse nome
atribuído contribuísse para a aproximação e familiarização do povo com o rio. A narrativa que
se segue traz essa personificação do São Francisco, comum em todas as regiões percorridas na
sua viagem rumo ao mar.
O Rio dorme sim, as água dorme. Você vê quando foi. As hora ele ta
mexendo a água, aí na hora dela dormir, ó! Ela serena ali, fica quietinha,
que ninguém vê a maleta do rio. De manhã cedo, a gente sai para pegar
água, chega lá ta quentinha, e ta ói! Clarinha, que ninguém vê uma maleta
105
de jeito nenhum. Quentinha! Depois o vento chega e bate, suja a água
(Maria Francisca da Silva).
Como se pode observar, a narrativa traz a personificação de elementos do
imaginário ribeirinho, trazendo-os do lugar de cenário para ocupar o papel de um personagem,
de um ser fantástico e misterioso. Assim, o Velho Chico é ao mesmo tempo espaço mágico,
companheiro, confidente, testemunha e sujeito de muitas ações narradas, de muitos fatos e
episódios contados pelos seus crédulos narradores. O próprio apelido toponímico Velho
Chico, que muito tem para nos contar, já nos remete a uma personificação do rio, podendo
ainda ser considerado um narrador, dono de muitas histórias para contar. A ideia de
antiguidade posta vem até salvaguardar um símbolo de sabedoria, de conhecimento, de
experiência, comum principalmente aos narradores mais velhos.
O Rio, juntamente com a Serpente da Ilha do Miradouro, a Mãe d‟Água, o Nego
d‟Água e o Arco-Íris formam o elenco de um grande espetáculo da cultura ribeirinha no
Mocambo dos Ventos: as suas narrativas orais. São histórias e personagens encantadas que de
tantos testemunhos, já fazem parte do cotidiano e cuja veracidade não se contesta. Nas
margens do Velho Chico, navegam estas e outras histórias fascinantes que nos convidam a
todo instante a embarcar numa viagem fantástica por suas tão atraentes e misteriosas águas.
Tanto “O Arco-Íris” quanto “O Rio que Dorme” se apresentam de uma forma
diferenciada das três narrativas trazidas anteriormente, as quais existem como lendas, histórias
e causos em todo o território brasileiro. A própria estrutura e o modo de narrar não se
consolidam da mesma maneira. Pode-se, portanto, considerá-las como um gênero
diferenciado de narrativas, mas não menos importante para deixar de ser relatado neste
trabalho.
106
Figura 32 – Sra. Marilene, após suas narrativas, levando água do rio para casa
107
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ENTRE AS MARGENS E UM PORTO
POSSÍVEL
A identidade [...] é um conceito altamente contestado. Sempre que se ouvir
essa palavra, pode-se estar certo de que está havendo uma batalha. O campo
da batalha é o lar natural da identidade. Ela só vem, à luz no tumulto da
batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da
refrega. Assim, não se pode evitar que ela corte os dois lados. [...] A
identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma
intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa a ser devorado.
(Zygmunt Bauman, 2005)
É chegada a hora de “desaportar”, pelo menos por enquanto, dessa viagem pelas
águas encantadas do Velho Chico na região do Mocambo dos Ventos. Navegar nas suas
margens, tendo a oportunidade de conhecer a magia e mistérios das narrativas orais dos seus
moradores, proporcionou uma abordagem reflexiva sobre a construção da identidade cultural
dos povos ribeirinhos. Identidade esta, que, como se pode notar, se encontra em estado
líquido, assim como as águas do rio, ou seja, em um processo perene de autoconstrução
através das relações estabelecidas entre as diversas culturas coexistentes.
Na identidade cultural ribeirinha percebe-se a presença da pluralidade cultural,
pela ideologia presente nos discursos trazidos nas narrativas. São marcas culturais que
representam as principais matrizes de formação da cultura brasileira: indígena, portuguesa e
africana. Embora em alguns aspectos, o modelo cultural logocêntrico32 procure desmerecer a
cultura indígena e a africana, elas têm resistido e se encontram presentes nas narrativas orais,
como as apresentadas neste trabalho. Nesse sentido, “a literatura oral sofreu influências tanto
dos portugueses e africanos, quanto dos indígenas, preservando-se na memória do povo”
(CASCUDO, 2008, p. 334). Além disso, também foi e ainda é influenciada por marcas
culturais de outras culturas pós-coloniais, inclusive através dos meios de comunicação de
massa, principalmente a antena parabólica e a TV.
Dentro do imaginário ribeirinho, há uma fusão de diversos valores, conceitos e
saberes que, através da oralidade, têm permanecido na memória cultural, resistindo a essa
carga de “modernidade” trazida pelas tecnologias. Em todas as narrativas, as culturas
indígena, europeia e africana deixam suas marcas, mesmo modificadas ou ressignificadas.
32
Logocentrismo como uma visão cultural centrada no modelo eurocêntrico, branco, masculino, escrito e
fundamentado na razão.
108
Embora o Mocambo dos Ventos seja considerado historicamente como uma
localidade quilombola, mesmo não reconhecida oficialmente, jamais será válido afirmar que
por isso, a sua cultura é exclusivamente afrodescendente, pois é uma cultura centrada no
hibridismo e na liquidez, construída a partir de diversas influências culturais como a
eurocêntrica e indígena. As marcas da afrodescendência são muito fortes em todas as
manifestações culturais do Mocambo dos Ventos, mas não se pode afirmar que sejam as
únicas. Isto pode ser comprovado nas análises e discussões sobre as narrativas, trazidas
anteriormente neste estudo.
Ainda é necessário considerar que a formação cultural dessa região não se
encontra estabilizada, pois esse processo se constrói a todo momento, a partir da interação
com o outro, com o novo que chega. Assim como as águas do rio e as areias das dunas, a
identidade cultural dos povos do Mocambo dos Ventos e região encontra-se em estado de
movência.
As considerações finais deste trabalho se voltam para uma visão que direciona a
uma literatura como um lugar de entrecruzamento de linguagens, um lugar de construção e
desconstrução de identidades. Identidades que navegam entre as margens em busca de um
porto possível, de um reconhecimento diante de toda uma coletividade. Nesse sentido,
conclui-se que as narrativas orais, tão bem apresentadas pelos seus narradores, nos permitem
entender esse processo de construção identitária na região do Mocambo dos Ventos, por
trazerem, claramente, as marcas ideológicas oriundas das diversas culturas que ali co-habitam.
Pode-se observar, portanto, um acervo de narrativas orais que apresentam traços
de uma hibridização cultural. Claramente, aspectos da cultura portuguesa aparecem fundidos
com a cultura afrodescendente e indígena. Narrativas orais como estas, construídas no
hibridismo cultural, na miscigenação de culturas se afastam da ideologia do purismo estético.
Duarte (2002, p. 50) aponta que:
A ideologia do purismo estético, ela sim, faz o jogo do preconceito, à
medida que transforma em tabu as representações vinculadas às
especificidades de gênero ou etnia e as exclui sumariamente da “verdadeira
arte”, porque “maculadas” pela contingência histórica. Este purismo é, no
fundo, um discurso repressor, que cala a voz dissonante desqualificando-a
enquanto objeto artístico.
As narrativas trazem consigo a reprodução de vozes repressoras, dentro de uma
sociedade conservadora que se utiliza da linguagem para a solidificação de valores, normas e
crenças, especialmente os referendados pelo discurso etnocêntrico, tendo a Igreja Católica
109
como grande propagadora desse discurso. Bernd (2002, p. 45) chama a atenção para este fato,
quando afirma que “a linguagem poética é necessariamente plural e polifônica, devendo tocar
e sensibilizar o ser humano em geral independente da cor de sua pele, da religião que pratica e
das práticas culturais que lhe são próprias”.
As ações de fala presentes no Mocambo dos Ventos, cuja cultura é considerada
como de margens, de fronteiras, acabam construindo a autoafirmação identitária dos seus
moradores. Sobre as ações de fala, Habermas (2002, p. 95) afirma que “sob o aspecto do
entendimento, elas servem à tradição e à continuidade do saber cultural, sob o aspecto da
socialização, servem à formação e à conservação de identidades sociais”.
A identidade cultural desses povos vem representada em suas narrativas orais,
uma vez que incorporam na sua fala, a ideologia, a crença, os valores, os costumes e o
comportamento dos seus indivíduos, mesmo que sejam estes, natos ou produtos de uma
hibridização, pois a cultura, como afirma Habermas (2002, p. 96), “é o armazém do saber, do
qual os seus participantes da comunicação extraem interpretações no momento em que se
entendem mutuamente sobre algo.”
As narrativas orais da região do Mocambo dos Ventos proporcionam “a própria
difusão das tradições culturais por sobre as fronteiras de coletividade e comunidades de
linguagem” (HABERMAS, 2002, p. 98), pois o saber cultural vem representado através das
formas simbólicas da linguagem e é, através das ações de fala, repassado entre os povos. As
próprias pessoas assumem o papel de difusores das tradições, uma vez que através das suas
ações de fala, contribuem para a transmissão cultural.
Logo, tais narrativas deixam emergir traços identitários, que embora sendo
produto de hibridização, fazem-se reconhecer em meio a uma homogeneização da cultura
global. Vêm acompanhadas de uma ideologia, mostrando a face que muitas vezes o modelo
ocidental eurocêntrico tende a mascarar.
Assim, convém concluir esta reflexão acerca da identidade cultural dos povos das
margens ribeirinhas do Velho Chico com a seguinte afirmação: “Toda tradição cultural é
simultaneamente um processo de formação para sujeitos capazes de ação e de fala, os quais se
formam no interior dela e que, por seu turno, mantém viva a cultura” (HABERMAS, 2002, p.
100). Portanto, tais identidades são construídas a partir das relações com outras e permanecem
instáveis, líquidas e híbridas, pois são representadas por uma literatura plural e polifônica,
cujo discurso a todo instante, sofre diversas influências, seja através dos meios de
comunicação ou pelo contato com outras culturas de fronteiras. São identidades das margens
110
que navegam pela liquidez cultural, as quais serão sempre identidades em trânsito, na busca
de um porto possível para o reconhecimento, a igualdade e a valorização de sua cultura.
111
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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A "Literatura" Medieval. Tradução Amálio Pinheiro,
Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia
Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1997.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. 2a. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
117
ANEXOS
118
ANEXO A – Documento com a versão da narrativa “A Serpente da Ilha do Miradouro”, de
autoria de Jorge Pinheiro Meira, disponível no IBGE da cidade de Xique-Xique
119
ANEXO B – Cópias dos Termos de Autorização dos narradores para a utilização da fala e da
imagem na pesquisa
120
121
122
123
124
125
126
ANEXO C – Outras fotos da pesquisa no Mocambo dos Ventos e região
Autorização Domingos Pereira Carvalho
Autorização Maria Pereira de Carvalho
Autorização Maria Alexandrina Caxiado
Autorização Alberto de Souza Dias
Preenchimento das autorizações
Gravação das narrativas
127
Pescador
Lavadeiras
Embarcação
Entardecer
Rancho nas margens
Pescadores nas margens
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