As recomendações das instituições multilaterais e seus impactos sobre o Brasil A distância entre intenção e gesto: as recomendações das instituições multilaterais de crédito e seus impactos sobre o Brasil Nelson Victor Le Cocq d’Oliveira * Introdução Os documentos elaborados pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento relacionados à economia brasileira são a base para a assinatura de contratos entre essas instituições multilaterais de crédito e o Brasil, o qual é ainda acionista dessas organizações internacionais. Conforme assinalado nesses próprios documentos, sua formulação é fruto do intercâmbio entre o corpo técnico das instituições e os quadros do governo brasileiro. Como fornecem a base para assinatura de contratos internacionais, e estes são ratificados pelo Congresso Nacional, desde 1998 parlamentares e organizações da sociedade civil passaram a reivindicar que seu conteúdo fosse tornado acessível à opinião pública, a despeito de que tais documentos sejam distribuídos aos órgãos do governo pelo Bird e BID com ressalvas à sua divulgação ampla.1 Tal ressalva pode ter como base a preocupação destas entidades em relação a sua preservação quanto a eventuais falhas analíticas, quer pelo fato de que tais relatórios impõem condicionalidades para a liberação de recursos que – a exemplo * Economista, mestre e doutorando pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro do Conselho Regional de Economia e colaborador do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul – Pacs. 1 O teor e intensidade das resistências oferecidas pelo Bird, pelo BID, e pelo governo brasileiro quanto ao debate sobre o conteúdo das recomendações destas instituições estão expostas em Aurélio Vianna Jr. (org), A estratégia dos bancos multilaterais para o Brasil, Brasília, Rede Brasil, 1998. 47 NelsonVictorLeCocqd’Oliveira do Fundo Monetário Internacional – implicam um explícito direcionamento nas prioridades da política econômica nacional. Este artigo propõe-se a discutir alguns dos pressupostos teóricos contidos na análise formulada pelo Bird e pelo BID com respeito aos problemas com que se depara a economia brasileira. Nosso foco de análise incide sobre os traços gerais que animam tanto a interpretação do quadro econômico como as proposições de política econômica que são apresentadas. Mais ainda, são alinhavados indícios de que as principais dificuldades que ora afligem a economia brasileira decorrem essencialmente da aplicação das políticas recomendadas pelas instituições internacionais. O conteúdo dos documentos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento para o Brasil O binômio ajuste fiscal - redução da pobreza dá o tom dos posicionamentos das instituições multilaterais de crédito em relação às prioridades de desenvolvimento econômico no Brasil. A retomada do crescimento econômico, segundo as premissas dessas instituições, está vinculada à realização do ajuste fiscal ora em andamento, e a redução do déficit público é colocada como condição necessária para a queda das taxas de juros domésticas. Não são poupados elogios ao programa de privatizações do governo brasileiro, nem à liberalização comercial e financeira que o país empreendeu no decorrer dos últimos dez anos. O quadro de instabilidade que marcou o conjunto de indicadores macroeconômicos nesse período é atribuído aos choques externos ocorridos e ao desajuste fiscal remanescente. Aliás, o desajuste fiscal também responde, sob esta visão, pela continuidade da vulnerabilidade externa e pelo déficit na balança de transações correntes. Neste sentido podemos assinalar os termos do documento Brazil: Country Assistance Strategy,2 na seção referente ao diagnóstico propositivo Brazil’s Development Agenda, item 5, onde é afirmado que: 2 Versão datada de 6 de março de 2000, Memorandum of the President of the International Bank for Reconstruction and Development and the International Finance Corporation to the Executive Directors on a Country Assistence Strategy of the World Bank Group for the Federative Republic of Brazil. 48 As recomendações das instituições multilaterais e seus impactos sobre o Brasil Brazil’s remaining economic vulnerability results from its continuing, though declining, fiscal and current account deficits. As fiscal deficits are closely correlated with current account deficits, fiscal adjustment is a key instrument for reducing vulnerability. Vulnerability would be further reduced if markets perceived a strong export response, as an indication of improved competitiveness, and, associated with this, a rising trade surplus making possible a gradual reduction in the current account deficit. Argumentos como os estabelecidos acima encontram-se em diversos trechos do documento em análise. A seção referente à estabilidade fiscal é enfática, como se verifica no item 32, a seguir: Lagging fiscal adjustment has been the underlying source of Brazil’s large external financing requirements and its vulnerability to market sentiments. Risks to a sustainable fiscal adjustment have contributed to high real interest rates and hindered the resumption of growth and the reduction of poverty. No parágrafo subseqüente, item 33, a própria crise desencadeada pela saída de capitais é atribuída ao déficit fiscal: Facing a crisis of market confidence linked to the fiscal deficit, the Government changed the exchange rate regime and tightened monetary policy, both of which temporarily aggravated the fiscal situation in 1999. [...] Interest rate increases designed to contain reserve outflows drastically increased the cost of Government borrowing, thus, making fiscal adjustment even more difficult. A causalidade assumida nesse documento responsabiliza claramente o déficit fiscal pelo conjunto de turbulências (desequilíbrios) que caracterizam a economia brasileira. Mesmo que cronologicamente o déficit fiscal se agrave após as medidas de liberalização da conta de capitais, da conta corrente e da extraordinária evolução da dívida pública, sua responsabilidade é enfatizada por uma lógica que se mostra alheia a causalidades temporais. O “Documento de País”3 elaborado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento também compartilha deste esdrúxulo padrão de diagnóstico. Cabe res- 3 Brasil – Documento de País 2000, versión para consulta informal – fev 2000. 49 NelsonVictorLeCocqd’Oliveira saltar que o documento do BID apresenta não apenas melhor desenvolvimento da análise fatual, como exibe um conhecimento mais próximo da realidade sócio-econômica brasileira. Neste caso, todavia, torna-se mais evidente a inconsistência entre a correta descrição dos acontecimentos e o endosso à centralidade do ajuste fiscal como forma de correção dos desequilíbrios macroeconômicos. É o que se depreende dos trechos citados abaixo, extraídos da primeira parte do documento, com sugestivo título de Principales desafios del desarrollo:4 1.4. No obstante estos resultados positivos, las políticas macroeconómicas que sustentaban el Plan Real comenzaron a perder su eficacia aún antes de la erupción de la crisis asiática em el último trimestre de 1997. Uno de los problemas principales fue la apreciación real efectiva de la moneda, derivada de la forma en que se aplicó la política cambiaria que se había adoptado. Este factor, junto con el incremento de las importaciones que resultó de la apertura económica, contribuyeron a un substancial deterioro de la balanza comercial, que pasó de un superávit (de 12 meses) de US$ 13 mil millones en julio de 1994 a un déficit de US$ 9,7 mil millones (su nivel más negativo) en agosto de 1997. Como consecuencia de este cambio y de la necesidad da atraer capital externo para financiar el creciente déficit en cuenta corriente, las autoridades fueron forzadas a aumentar significativamente las tasas de interés, lo que impactó negativamente la actividad económica y las finanzas públicas. 1.12. En el período 1993-95, la desaceleración del crecimiento fue en gran medida una consecuencia de las políticas del Plan Real, que exigió altas tasas de interés para poder financiar los crecientes déficits en la cuenta corriente que resultaron de la sobrevaluación cambiaria e la apertura económica. Aunque las altas tasas de interés ayudaron al país a obtener el financiamiento externo necesario, hicieron disminuir la actividad económica, generaron desempleo, 4 Embora não façamos aqui a transcrição, não são poupados elogios ao processo de privatizações e à abertura comercial e financeira do país, elogios estes que fornecem a moldura nitidamente ideológica que conforma (ou deforma) tanto o documento do Bird como o do BID. Neste sentido, cabe o registro de que o matiz ideológico prejudica a própria consistência técnica, como se depreende da afirmação de que monopólios naturais, como é o caso de alguns serviços públicos privatizados, tornaram-se mais competitivos. 50 As recomendações das instituições multilaterais e seus impactos sobre o Brasil estimularon la expansión de la economía informal y aumentaron el riesgo soberano de la deuda del gobierno. Posteriormente, esta tendencia hacia la estagnacion fue exacerbada por la crisis asiática a fines de 1997 y por el aumento del déficit fiscal producido por el incremento em el servicio de la deuda pública y el creciente desequilibrio en el sistema de seguridad social. Até aqui o documento analisa com razoável objetividade fatores determinantes dos desequilíbrios em que se encontra a economia brasileira. Não obstante, após assinalar que crescem as pressões internas no sentido de uma maior taxa de crescimento da economia, o texto ressalta que qualquer estratégia para conseguir crescimento mais rápido deve preservar a estabilidade de preços e o equilíbrio macroeconômico, para concluir que: En este contexto, Brasil tendrá que profundizar sus esfuerzos por conseguir un ajuste fiscal adecuado, ya que las finanzas públicas siguen siendo la principal fuente de desequilibrio macroeconômico. O Ajuste Fiscal surge como o deus ex machina ao qual é transferida a responsabilidade pela superação das mazelas que o pais atravessa. Como será visto a seguir, tal argumento é incompatível com a observação objetiva dos fatos, e só pode ser atribuída a um preconceito ideológico simplificador e destinado a moldar a realidade – e a teoria – as conveniências do capital financeiro internacional. Os antigos erros do Banco Mundial e do FMI : o passivo externo como fonte estrutural do desequilíbrio macroeconômico no Brasil dos anos 80 Uma visão retrospectiva dos anos da década de 1980 mostra um forte desequilíbrio do setor externo, relacionado com combinação entre o volume da dívida construída nos anos anteriores e a abrupta elevação da taxa de juros que incidia sobre as parcelas de amortização e o saldo restante.5 Os modelos preconizados na época pelos organismos internacionais – como o Bird e o FMI – para 5 Sobre a construção da dívida externa dos anos de 1970-1980 e suas seqüelas, vide Marcos Arruda, Dívida e(x)terna, Petrópolis, Vozes, 1999. 51 NelsonVictorLeCocqd’Oliveira que se atingisse o equilíbrio externo consistiram em assegurar a diferença entre exportações e importações, que foi impositivamente magnificada para tentar suprir o serviço financeiro da dívida antes contraída. O profundo desarranjo econômico e social resultante dessas medidas é bastante conhecido. O mecanismo de propagação inflacionaria é desencadeado pelas duas grandes desvalorizações que demarcam a passagem dos anos 70 para os 80,6 alterando os preços domésticos em favor dos produtos comercializáveis (tradables), direcionando de forma crescente a produção de manufaturados para o exterior e alterando custos internos pela transmissão aos insumos importados dos novos preços resultantes das desvalorizações. Medidas contracionistas adotadas visando a atenuar a elevação dos preços internos, como arrocho salarial e juros reais elevados, acabaram restringindo ainda mais a produção para o mercado doméstico, ao mesmo tempo que se desenvolvia um complexo sistema de contratos indexados e se ampliava o poder dos oligopólios instalados no país.7 As proposições do FMI e do Banco Mundial, levadas a cabo pelo governo militar e de alguma forma continuadas pelo governo civil que o sucedeu, foram responsáveis pela crise vivida na América Latina após a elevação das taxas de juros e o fechamento do mercado internacional de crédito para os países endividados. O modo como a questão foi enfrentada por esses países pode ser simbolizada pelo slogan adotado na época pelo ministro brasileiro Delfim Neto, segundo o qual “exportar é a solução”. O relativo equacionamento da questão da dívida externa após a adoção dos esquemas de securitização apoiados no Plano Brady possibilitou um certo alívio nas transferências internacionais por parte de países como o Brasil. Todavia, com o advento do chamado consenso de Washington e a implementação de políticas de liberalização financeira, o passivo externo brasileiro voltou a apresentar um forte viés ascendente.8 Novamente as instituições internacionais apre- 6 Em novembro de 1979 e em fevereiro de 1982, foram aplicadas desvalorizações de 30% da moeda nacional perante o dólar norte-americano. 7 Sobre estas características da inflação brasileira, vide F. J. C. Carvalho, “Alta inflação e hiperinflação: Uma visão pós-keynesiana”, Revista de Economia Política, Vol. 10, n. 4 (40), out-dez 1990. 8 Sobre esse período de transição entre a crise da dívida e a nova inserção brasileira sob o signo de globalização, vide R. Gonçalves, Ô abre-alas: A nova inserção do Brasil na economia mundial, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994. 52 As recomendações das instituições multilaterais e seus impactos sobre o Brasil sentam um receituário absolutamente desastroso para os países da América Latina, como solução de problemas decorrentes da implementação de suas anteriores recomendações. É o que veremos agora em relação ao caso brasileiro. O cerne da questão: o passivo externo como fonte estrutural do desequilíbrio macroeconômico no Brasil de hoje Uma análise factual e cronológica, coerente até com os registros apresentados nos documentos do Banco Mundial e do BID, induz a uma compreensão da conjuntura nacional distinta daquela propugnada por ambas as instituições. O que transparece é a existência de um foco de desequilíbrios originado, a partir de 1994, pela abrupta abertura da conta de capitais e da conta comercial, tornada esta deficitária pelo acelerado ingresso de mercadorias estrangeiras em um contexto de sobrevalorização cambial, aspecto inclusive essencial na estratégia de estabilização monetária adotada em 1994. Tabela 1 Balança comercial do Brasil – saldos em US$ bilhões Período Exportações Importações Saldo 1994 43,54 33,07 10,47 1995 46,50 49,66 - 3,16 1996 47,74 53,28 - 5,54 1997 52,98 61,35 - 9,07 1998 51,14 57,73 - 6,59 1999 48,01 49,21 - 1,21 Fonte: Boletim do Banco Central, diversos números. A implementação de um bem sucedido choque de oferta demandou como contrapartida à viabilização de um superávit crescente na conta de capitais. Dada a situação preexistente, em que os saldos em mercadorias compensavam os desequilíbrios da conta de serviços – impactados por pagamentos de juros e 53 NelsonVictorLeCocqd’Oliveira remessas de lucros – a erosão do saldo da balança comercial teria que ter como contrapartida, para fins de equilíbrio do Balanço de Pagamentos, um superávit na conta de capitais. Mesmo que a situação anterior fosse de equilíbrio na balança de transações correntes, a abertura comercial desencadearia um desequilíbrio a ser compensado pela entrada de capitais forâneos. A alternativa seria deixar que o dólar flutuasse livremente no mercado doméstico, mas isto impediria no nascedouro a pretendida estabilização monetária doméstica, apoiada em um choque de oferta externa. A estratégia de atrair capitais externos como solução para compensar o desequilíbrio da balança de transações correntes gera um agravamento do problema que se quer solucionar. Ademais, para que esses ingressos ocorressem, fez-se necessário desenvolver uma política monetária apoiada em juros elevados. A funcionalidade dos juros domésticos elevados foi estimular a captação de empréstimos externos, já que as taxas de juros internacionais estavam significativamente aquém das praticadas no mercado financeiro interno. Conforme Prates e Freitas,9 o retorno do crédito externo voluntário para o Brasil a partir de 1990 irá ocorrer principalmente através da emissão de títulos de dívida direta no mercado internacional de capitais. A adequação do marco regulatório doméstico era uma exigência para a viabilização dessas novas modalidades de crédito, muito embora a Lei 4.131, de 1962, já permitisse tanto o endividamento indireto (créditos bancários) como o endividamento direto das empresas sediadas no país. A alteração relevante na década de 90 foi a autorização da emissão desses instrumentos pelas instituições financeiras, nos termos e nos fins previstos pela Resolução 63 de 21.08.1967, segundo a Resolução CMN 1.835, de 31.07.1991. Prates e Freitas registram que, no momento de retorno do país ao mercado internacional de crédito, em 1991, a legislação mostrou-se bastante favorável a colocação de papéis no exterior, ao isentá-las de Imposto de Renda sobre juros e demais custos associados, desde que com prazo superior a dois anos. As fixed rate notes são o instrumento mais utilizados pelas empresas brasileiras e pelos bancos nas operações de repasses de recursos externos. Os bônus 9 M. C. P. Freitas e D. M. Prates, “Emissões brasileiras no mercado financeiro internacional nos Anos 90”, in M. C. P. Freitas, Abertura do sistema financeiro no Brasil nos anos 90, São Paulo, Fundap, 1999. 54 As recomendações das instituições multilaterais e seus impactos sobre o Brasil são papéis semelhantes às notas, porém com maior prazo de maturação, taxas mais baixas e envolvem a captação de maiores volumes de recursos. O preço do título é formado a partir de um spread que reflete o risco da operação e se superpõe a rentabilidade básica de um título do tesouro norte-americano com o mesmo período de maturação. O somatório entre o spread e a taxa básica forma o yield to maturity – YTM. A tabela abaixo, cujos dados foram extraídos de Boletins do Banco Central, nos mostra os fluxos de endividamento diretos nos cinco anos passados: Tabela 2 Captação de recursos externos / Bônus e notes – US$ milhões 1995 9.650 1996 18.046 1997 20.448 1998 25.777 1999 17.649 Além de estimular a captação de empréstimos externos, os juros altos também serviram para reduzir o consumo doméstico, aliviando a pressão sobre as importações, e atrair capitais de curtíssimo prazo para aplicações de renda fixa no mercado nacional. Um outro instrumento utilizado pelo governo brasileiro foi a liberalização das restrições para o chamado Investimento de Portfólio. A iniciativa neste sentido foi tomada por Armínio Fraga, quando diretor da área de câmbio do Banco Central, ainda durante o governo Collor, e ampliada sob a gestão de Fernando Henrique. A liberalização da conta de capitais tem permitido que as altas taxas internas de juros em conjunto com a privatização de empresas públicas e a mudança de controle acionário de empresas antes possuídas por grupos nacionais responda pelo ingresso de capitais em montantes suficientes para a cobertura dos déficits em transações correntes do balanço de pagamentos. A regulamentação dos investimentos estrangeiros em títulos e valores mobiliários de companhias abertas foi disciplinada através da Resolução do Conselho Monetário Nacional 1.289/87, a qual exigia a constituição de Sociedade ou Fundo de Investimento locais para viabilizar o ingresso de capitais no país. Estas determinações foram flexibilizadas pela criação da figura do Anexo IV, através da Resolução 1.832/91. Segundo Prates, o Anexo IV não estipula critérios de com- 55 NelsonVictorLeCocqd’Oliveira posição, capital mínimo inicial e período de permanência, permitindo a entrada direta de investidores institucionais, assim considerados os fundos de pensão, companhias de seguros, instituições financeiras estrangeiras e fundos de investimento constituídos no exterior. 10 Este procedimento permite o enquadramento dessas instituições no Decreto 2.285, que isenta os investidores estrangeiros coletivos de tributação sobre ganhos de capital em ações. Os valores referentes ao Anexo IV no período até 1997 são registrados por Prates, de quem transcrevemos o quadro a seguir: Tabela 3 Ano Estoque de Ativos Entradas Saídas Saldo Acumulado 1991 - 482 96 386 386 1992 - 2.967 1.652 1.314 1.701 1993 10.380 14.614 9.136 5.478 7.178 1994 20.971 20.532 16.778 3.754 10.932 1995 18.650 22.025 21.498 527 11.459 1996 23.681 22.936 19.342 3.594 15.053 1997 32.047 32.191 30.576 1.615 16.668 Segundo a mesma autora, a participação dos investidores estrangeiros no total negociado na Bovespa saltou de 6% em 1991 para 25,9 % em 1997. Os negócios dos investidores estrangeiros concentraram-se no mercado à vista e principalmente nas ações de primeira linha das empresas estatais em processo de privatização. Dentre as conclusões de seu estudo, explicita-se que a abertura do mercado de capitais brasileiro a investidores estrangeiros não foi capaz de gerar um fortalecimento dos mecanismos de investimento das empresas sediadas no Brasil, pois não houve uma proporcionalidade entre o crescimento dos mercados secundários e as emissões primárias das empresas. 10 D. M. Prates, “Investimentos de portfólio no mercado financeiro doméstico”, in M. C. P. Freitas, Abertura do sistema financeiro no Brasil nos anos 90, São Paulo, Fundap, 1999. 56 As recomendações das instituições multilaterais e seus impactos sobre o Brasil Outro estudo recente sobre o mesmo tema, e que transcreve dados referentes ao conjunto da década, chega a conclusões do mesmo teor. Pinto Jr. e Studart,11 apresentam os quadros reproduzidos a seguir, e que lhes permitem classificar as condições do mercado de capitais nacional como sendo “ainda ideais” para a investimentos financeiros (especulativos) de curto prazo, mas não têm atrativos significativos para a emissão por parte das empresas investidoras, nem tampouco para aplicadores de longo prazo – como é o caso de investidores institucionais como os fundos de pensão. As conclusões acima são corroboradas pela comparação entre as duas tabelas: Tabela 4 Mercados acionários secundários valores em US$ e média diárias de turn-over desde 1992 Ano Total* Média Diária* 1992 23.754,3 96,2 1993 39.590,8 161,6 1994 98.409,2 406,6 1995 79.515,9 327,2 1996 115.587,3 466,1 1997 216.100,6 867,9 1998 172.499,4 701,2 1999 91.278,6 369,5 2000 jan/mai 51.384,3 498,9 * US milhões Fonte: Comissão de Valores Mobiliários, in www.cvm.gov.br. 11 H. Q. Pinto Jr. e R. Studart, “Papel dos novos instrumentos de financiamento para as empresas de energia”, IE/UFRJ, 2000, mimeo. 57 NelsonVictorLeCocqd’Oliveira O desempenho das chamadas emissões primárias, que correspondem a investimentos reais financiados por ampliação do capital social das empresas, mostram-se totalmente em descompasso com o giro especulativo dos capitais aplicados em bolsas de valores. É o que podemos depreender dos dados presentes na próxima tabela, em que se fazem presentes todas as modalidades de financiamento empresarial proporcionadas pelo chamado mercado de capitais. Tabela 5 Mercados primários no Brasil 1995 a Maio de 2000* 1995 1996 1997 1998 1999 2000** Ações 1,92 1,18 3,97 4,11 2,75 0,47 Debênt. Conversíveis 0,91 1,33 1,48 3,36 1,59 0,28 Debêntures Simples 5,96 7,21 6,04 6,30 5,08 2,77 Quotas de Fundo Imob. 0,35 0,54 0,46 0,62 0,23 0,05 Certif.deInvest.Audiov. 0,04 0,18 0,28 0,25 0,14 0,05 Bônus de Subscrição 0,01 0,01 0,00 0,00 0,00 0,00 Notas Promis. Comerc. 1,12 0,50 5,15 12,90 8,04 2,77 Contr. Invest. Coletivo 0,00 0,00 0,00 0,00 0,03 0,30 10,94 17,37 27,54 17,88 6,69 Total 10,31 * Em US$ bilhões. ** Jan-mai. Dentre as razões para o descolamento entre a performance de mercados secundários e primários, os referidos autores assinalam: o o crescimento significativo da dívida pública, somado a uma política de juros reais positivos, que transforma os investimentos de renda variável e de mais largo prazo relativamente menos atraentes que os de renda fixa; o a excessiva volatilidade das bolsas brasileiras nos últimos anos, devida à relativa instabilidade macroeconômica e, especialmente, à volatilidade dos fluxos de capital externo de portfólio; o a forte competição das bolsas internacionais, que apresentam custo de emissão e menos volatilidade que as domésticas; 58 As recomendações das instituições multilaterais e seus impactos sobre o Brasil Prates12 irá ainda adicionar como fatores restritivos ao crescimento do mercado primário a existência dos processos de fusão e aquisição com participação ativa de investidores estrangeiros, já que os controladores optam por negociar o controle em vez de abrir o capital; além disso, o movimento de desnacionalização resultou, em muitos casos, no fechamento de capital de empresas anteriormente listadas em bolsa. Conforme a autora, as empresas estrangeiras, em geral, são de capital fechado, com fontes de financiamento essencialmente externas. Outro fator assinalado por Prates quanto ao comportamento das empresas de capital nacional, dadas as características predominantemente familiares, é o temor que estas sofrem quanto a uma eventual perda de controle acionário caso ocorra abertura de capital. No que se refere as empresas de grande porte, a captação de recursos mediante emissão de títulos de renda fixa no exterior ofereceu uma opção barata de financiamento, sem necessidade de que se promovesse a abertura de capital. Podemos considerar que a utilização destes instrumentos tende a enfraquecer ainda mais o potencial do mercado acionário doméstico, em ação conjugada com o processo de desnacionalização em curso. Tais fatores são ainda potencializados pelo quadro de taxas de juros domésticas elevadas, que polarizam para operações de renda fixa as aplicações dos fundos de pensão domésticos, reiterando um quadro clássico de fragilidade do mercado de capitais doméstico como fonte de financiamento do investimento. O que está posto de forma objetiva é que a abertura da conta de capitais e a contratação de empréstimos externos geraram um processo de vulnerabilidade externa cuja gestão é inviável perante os instrumentos convencionais. O crescimento da dívida externa e do investimento externo estão apresentados na Tabela 6: 12 D. M. Prates, “Investimentos de portfólio no mercado financeiro doméstico”, op. cit. 59 NelsonVictorLeCocqd’Oliveira Tabela 6 Evolução do Passivo Externo Saldos e Estoques – US$ Bilhões Ano Dívida Pública Dívida Dívida Investimento Investimento Privada Externa Direto de Portfólio total Passivo Externo total 1994 98,0 50,3 148,3 39,9 25,2 213,4 1995 98,8 60,4 159,2 44,2 24,2 228,0 1996 93,7 86,3 180,0 54,2 41,2 275,5 1997 85,7 114,3 200,0 71,3 55,6 327,1 1998 95,2 148,0 243,2 97,1 53,8 394,6 1999 100,0 140,8 241,2 127,1 28,9 397,2 Fonte: Boletins do Banco Central – Diversos Números. Os procedimentos adotados relativos a conta de capitais, franqueando e estimulando ingressos tanto através de empréstimos privados, investimentos de portfólio e investimentos diretos em aquisição de empresas públicas ou empresas privadas de capital nacional, acarretaram um agravamento crônico e crescente na balança de serviços, e dispêndios crescentes com amortizações. Tabela 7 Remessas de lucros, juros e amortizações – US$ Bilhões R. Lucros Juros 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2,48 2,59 2,37 5,59 7,15 4,05 6,33 8,15 9,84 10,38 12,09 15,17 Amortizações 11,01 11,02 14,42 26,02 33,36 45,35 Total 19,82 21,77 26,63 44,74 52,62 64,57 Fonte: Banco Central. O crescimento do pagamento de juros e remessas de lucros, conjugado com os volumes relativos a amortizações, passa a tornar-se atualmente o fator determinante da instabilidade que marca o país. 60 As recomendações das instituições multilaterais e seus impactos sobre o Brasil Os fatores acima descritos impactaram de forma cumulativa as finanças públicas, transferindo para o âmbito fiscal os desequilíbrios do setor externo. A expansão inusitada da dívida pública interna decorre tanto da política de subida nos juros, decorrente da estratégia de atração ou retenção de capitais voláteis, como da percepção das autoridades econômicas quanto à necessidade de esterilizar a contrapartida em reais dos dólares injetados pelos crescentes empréstimos e investimentos externos realizados. A Tabela 8 expõe o impacto fiscal decorrente dos desequilíbrios gerados no setor externo. Tabela 8 Dívida Pública, Tributos Federais e Juros Nominais – US$ Bilhões Período Títulos Federais Arrec. Tributária Juros % de Juros Nominais (em Mercado) Federal – S.R.F. Nominais sobre Arrecadação 1994 61,7 – – – 1995 108,4 80,9 18,7 23,1 1996 176,2 91,7 22,9 25,0 1997 254,5 107,1 20,0 18,7 1998 323,9 117,8 54,4 46,2 1999 388,3 142,6 94,3 66,1 2000(jan/mar) 438,8 – – – Fonte: Banco Central. A asfixia fiscal do setor público decorre da política monetária adotada nos anos em análise, e esta por sua vez foi adotada como estratégia de viabilização de um fluxo crescente de ingressos externos, sob a forma de empréstimos, investimentos de curto prazo e investimentos diretos externos destinados a aquisição de empresas nacionais, públicas e privadas. Os fatos aqui elencados opõem-se à visão corrente nos documentos das instituições multilaterais de crédito, onde se procura responsabilizar o déficit público pelos desequilíbrios da balança de transações correntes. A causalidade seqüencial aqui constatada – e que corresponde a cronologia factual – mostra que 61 NelsonVictorLeCocqd’Oliveira a abertura da conta comercial em um contexto de sobrevalorização cambial gerou desequilíbrios que as autoridades monetárias pretenderam resolver recorrendo aos mercados financeiros internacionais. A atração destes capitais foi obtida graças a uma contínua degradação das contas públicas, já que o mecanismo utilizado foi a política de juros elevados e contínua expansão da dívida pública. Após um determinado nível de endividamento externo, o foco do desequilíbrio das contas externas transfere-se para os encargos decorrentes do passivo externo – incluídos juros, amortizações e remessas de lucros . O mesmo movimento que gerou a ampliação do passivo externo implicou um crescimento exponencial e estéril da dívida pública interna, acarretando assim um acúmulo de pressões sobre o déficit público, o qual decorre principalmente de uma incidência também cumulativa de juros a serem pagos anualmente. A partir dessas constatações, podemos afirmar que querer atribuir ao déficit público um papel de protagonista no drama econômico vivenciado pelos brasileiros é uma tentativa que peca por ingenuidade ou malícia. A ingenuidade – fator grave nos que pretendem confeccionar diagnósticos propositivos de política econômica – consiste em imputar a uma variável dependente a capacidade de solucionar as restrições que são impostas pelo setor externo. A malícia consiste em perceber este fato e assim mesmo, apresentar os grilhões financeiros como elemento irremissível, insistir em lançar nas variáveis internas o peso do ajuste. Seja qual for a motivação, o fato é que a adoção das políticas propostas tem significado o enquadramento da ação estatal no papel de fomentar a aceleração da concentração de renda no país, agravando todos os problemas que o Bird e o BID afirmam querer auxiliar a resolver. A obtenção de contínuos superávits primários por parte do setor público demonstra o impacto do ajuste sobre o desempenho governamental. Estima o próprio governo, em seu memorando técnico de entendimentos com o FMI assinado em novembro deste ano, que será atingido um superávit primário de R$ 31,098 bilhões. Este volume de recursos significa a recusa governamental em atender suas obrigações de construir e de implementar mecanismos efetivos de atenuação do perverso perfil de distribuição de renda que caracteriza o país. Ao mesmo tempo, como o superávit obtido é inferior em cerca de R$ 70 bilhões ao pagamento previsto de juros da dívida pública interna – estimado em R$ 104 bilhões em 2000 – isto acarretará o inevitável crescimento desta mesma dívida, com a imposição de mais restrições aos gastos sociais do governo. 62 As recomendações das instituições multilaterais e seus impactos sobre o Brasil Os valores relativos à previdência social também denunciam o arresto de verbas sociais para utilização pelo Tesouro para fins de pagamento de encargos financeiros da dívida. Segundo dados da própria Secretaria do Tesouro Nacional, em 1999 foram arrecadados pela seguridade social contribuições no valor de R$ 96,13 bilhões, e efetuadas despesas no valor de R$ 86, 06 bilhões. O saldo de R$ 10,07 bilhões foi utilizado pelo governo para fins estranhos aos seus gastos sociais, o que desmascara a sistemática afirmação quanto ao déficit potencial da previdência social. Como é óbvio, do ponto de vista dos fluxos de entrada e saída de recursos, os ingressos estão diretamente correlacionados ao nível de emprego, enquanto o pagamento de benefícios constitui um conjunto de desembolsos estável – ainda que o governo tenha logrado mudanças legais que reduziram de fato estes valores, com a imposição de desconto sobre os próprios benefícios. Além do mais, o próprio governo estimula a contração dos fluxos de receitas, ao implementar políticas contracionistas que reduzem o nível de emprego e estreitam a base de arrecadação de recursos previdenciários, além de se abster de qualquer fiscalização efetiva sobre as condições atuais do mercado de trabalho. Quanto ao impacto fiscal das políticas adotadas, não há o que discutir, como reconhece o próprio documento em tela. O crescimento do volume da dívida foi conseqüência tanto da necessidade de atrair capitais forâneos para cobrir o déficit em transações correntes, como da resolução de conter a expansão monetária doméstica decorrente do afluxo destes capitais. Ao mesmo tempo que as taxas praticadas pelo Banco Central na rolagem da dívida pública mantém a atratividade para inversões externas, as taxas que vigoram nas concessões de empréstimos pelo setor financeiro ao setor privado, acrescidas dos extraordinários spreads (diferencial entre as taxas de juros de tomada e de concessão de empréstimos pelos bancos) que caracterizam nosso sistema bancário, auxiliam fortemente a controlar o consumo e, por conseguinte, a conter o volume de importações. A política econômica brasileira, a partir de julho de 1994, tem se caracterizado por uma persistente abertura dos mercados domésticos a produtos estrangeiros, e pela acelerada liberalização da conta de capitais. A balança comercial, que durante 15 anos foi superavitária, teve uma inflexão significativa, apresentando resultados negativos até que a desvalorização do real, em janeiro de 1999, promoveu a redução da demanda de importados sinalizando uma relativa reversão deste quadro. Cabe assinalar, contudo, que a busca de equilíbrio da balança comercial implica numa continuada contenção do nível de atividades doméstico. 63 NelsonVictorLeCocqd’Oliveira De fato, as transformações no processo produtivo induzidas tanto pela sobrevalorização cambial quanto pela acelerada desnacionalização do parque produtivo nacional – até mesmo em setores de não comercializáveis (non tradeable) – aguça um viés de encadeamento entre aumento do consumo interno e pressão nos volumes de importados. Durante o período em que o real permaneceu sobrevalorizado, o país passou a conviver com sucessivos déficits em sua balança de transações correntes. Assim, a atração de investimentos diretos ou de portfólio, além do endividamento no mercado internacional, tem permitido a manutenção do equilíbrio na balança de pagamentos. Os resultados obtidos combinam uma contínua estabilidade dos preços domésticos com um quadro de aguda vulnerabilidade perante os fluxos internacionais de capital.13 Embora com diferenças no formato e intensidade com que foram adotados, procedimentos relativos à liberalização comercial e financeira têm caracterizado um quadro similar em um conjunto de países que podem, genericamente, ser chamados de países de desenvolvimento intermediário, tais como Brasil, Argentina,14 México,15 Coréia do Sul, Indonésia,16 entre outros. Tal vulnerabilidade articula o desempenho doméstico com os diferentes movimentos de curto prazo do estado de liquidez internacional. Uma retrospectiva dos últimos seis anos assinala um conjunto de fortes contrações na economia doméstica derivados diretamente do refluxo de capitais externos. Estas crises foram nomeadas pelos seus sucessivos epicentros – a saber, crise mexicana, crise asiática e crise russa. A crise brasileira, que se impôs no segundo semestre de 1999, logrou ser 13 Uma visão de conjunto sobre a economia nacional após 1994 pode ser obtida em A. Mercadante (org) O Brasil pós-real: A política econômica em debate, Campinas, Ed. Unicamp, 1998. 14 Sobre o caso argentino, vide J. M. Fannelli e J. L. Machinea, “O movimento de capitais na Argentina”, in Ffrench-Davis e Griffith-Jones (orgs), Os fluxos financeiros na América Latina, Rio de Janeiro, Paz e Terra, Rio. 15 Sobre o experiência mexicana, vide A. Gíron e E. Correa, (orgs) Crisis financiera: Mercados sin fronteras, México, Instituto de Investigaciones Económicas, Unam / El Cabalito, 1998. 16 A crise asiática foi objeto de diversos artigos; destacamos aqui o de S. Griffith-Jones, “Reflexões sobre a crise asiática”, Política Externa, Vol. 7, n. 8, dez-fev 1998-1999, São Paulo, Paz e Terra/ Universidade de São Paulo, 1999. 64 As recomendações das instituições multilaterais e seus impactos sobre o Brasil contornada pela disponibilidade de recursos aportados pelo Fundo Monetário Internacional.17 No caso brasileiro, dado o significativo passivo internacional constituído em anos recentes – o qual conjuga os pagamentos referentes à amortização e juros da dívida externa e às remessas relativas a lucros das empresas estrangeiras – caso se verifiquem quaisquer restrições aos investimentos externos diretos, o comércio internacional tende a ser escalado como única fonte estável de ingressos líquidos. A utilização do comércio externo como instrumento de geração de recursos em dólares para que sejam honrados compromissos financeiros, contraídos sob o signo da liberalização da conta de capitais, pode reeditar traumáticas experiências vividas pela sociedade brasileira nos anos a partir de 1980, em condições agora ainda menos favoráveis.18 O endividamento contém alguns limites óbvios, que são avaliados pelos credores externos em função da própria carga de juros que de forma cumulativa incide tendencialmente sobre serviço da dívida. Trata-se do conhecido princípio do risco crescente, estabelecido por Kalecki, e que se aplica a países com limitada capacidade de gerar autonomamente divisas em moeda forte, aceitas como meio de pagamento dos contratos de empréstimo. O investimento direto externo, por sua vez, tem seu volume determinado ou pelo estoque de empresas públicas e privadas a ser vendidas a não residentes, ou por uma eventual retomada do crescimento econômico doméstico, que justifique a ampliação da capacidade instalada perante a ampliação previsível da demanda efetiva.19 Os constrangimentos da atual política econômica induzem o 17 Sobre as condições da economia brasileira à época, e sobre o conteúdo e as conseqüências do acordo, vide N. Le Cocq d’Oliveira, “O acordo do governo brasileiro com o FMI”, Jornal dos Economistas, Corecon/RJ, dez 1998. 18 Almeida retrata as condições em que o ajuste pró exportações incidiu na economia brasileira na primeira metade da década de 1980. J. S. G. Almeida, “Instabilidade da economia e estrutura financeira das empresas no Brasil do ajustamento recessivo”, Texto para Discussão 178, Instituto de Economia Industrial, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1988. 19 O papel positivo do investimento externo direto como fonte de capitais sem custo para países hospedeiros tem sido contestado com pertinência por J. Kregel, “Riscos e implicações da globalização financeira para a autonomia de políticas nacionais”, Economia e Sociedade, n. 7, dez 1996, Campinas, Instituto de Economia da Unicamp, 1996. 65 NelsonVictorLeCocqd’Oliveira governo a recusar fazer investimentos públicos e a direcionar os superávits primários para pagamento dos encargos financeiros da dívida. Mantendo taxas de juros elevadas para conter a demanda interna de forma a não sobrecarregar o volume de importações, o governo afasta a hipótese de atração dos investimentos externos via retomada do crescimento econômico. Com eventual esgotamento no estoque de ativos domésticos passíveis de venda a capitais externos,20 o comércio exterior sofrerá novas pressões surgidas das demais componentes do Balanço de Pagamentos. Conclusões e proposições A continuidade da atual política de ajuste fiscal tem acarretado graves restrições à retomada do crescimento econômico, e se constitui hoje no principal óbice à melhoria do padrão de distribuição de renda no país. A continuidade do recurso a capitais externos, seja como empréstimos, seja na modalidade de investimento externo – direto ou de portfólio – só irá acentuar os desajustes do setor fiscal, além de implicar um crescente agravamento do passivo externo. Isto porque tanto no pagamento de juros e amortizações como nas remessas de lucros, o que se configura é um dispêndio crescente em divisas, as quais só poderiam ser autonomamente obtidas via a balança comercial. Não é outro o motivo que faz com que setores governamentais e vinculados aos mercados financeiros passem a propugnar por uma nova onda de “substituição de importações”, sem contudo enunciar quais as medidas necessárias para atingir tal objetivo. Recorrer a novas desvalorizações cambiais simplesmente significaria caminhar para a reedição – em escala muito ampliada – da traumática experiência dos anos 80. É fundamental assinalar que a atual gestão de política econômica recomendada pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento revela-se um elemento extremamente pernicioso do ponto de vista da construção democrática da sociedade brasileira. O conceito contemporâneo de democracia é incompatível com o grau de exclusão aos direitos elementares de cidadania, 20 O processo de desnacionalização em curso e seus impactos estratégicos é tratado por R. Gonçalves, Globalização e desnacionalização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1999. 66 As recomendações das instituições multilaterais e seus impactos sobre o Brasil para não dizer de sobrevivência de amplas parcelas de nossa população. Esta exclusão é agravada pela contínua retração de gastos públicos fundamentais. É preciso boa dose de soberba intelectual para ignorar que, em países com o nível de desigualdade no acesso a renda e a propriedade como o Brasil, a vida democrática só irá se desenvolver se o Estado assegurar o direito à educação, à saúde, à propriedade democrática da terra e dos meios de produzir, ao trabalho e à obtenção de renda, isto é, tudo aquilo que é negado por uma política econômica que pratica uma brutal transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. A oligarquia dirigente das instituições financeiras mostra-se descomprometida com qualquer iniciativa destinada ao crescimento da renda, do emprego e de toda forma de trabalho digno. Nosso sistema financeiro, compartilhado por instituições nacionais e internacionais, é o principal beneficiário do estrangulamento das finanças públicas e – em decorrência – da crescente miséria que se alastra pelo país. Nossas autoridades, apoiadas pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, praticam a política fiscal do Xerife de Nottinghan. A carga tributária é imposta de forma absolutamente regressiva, onde as alíquotas não diferenciam a extraordinária disparidade de rendas hoje existente, e os benefícios da arrecadação tributária destinam-se ao enriquecimento daqueles que se apropriam de juros e de outras benesses às custas da erosão financeira do erário. As medidas adequadas à efetiva solução do problema nacional passam ao largo dos relatórios das instituições multilaterais de crédito. A imediata centralização do câmbio, a imposição de controles seletivos sobre importações supérfluas, a determinação de um percentual do saldo da balança comercial como limite máximo para transferências a título de pagamento de amortizações, juros e remessas de lucros, são medidas urgentes e imediatas. Do ponto de vista da necessária reconstrução democrática da economia nacional, faz–se urgente a adoção de uma política fiscal que priorize as graves demandas sociais, cujo não atendimento tem trazido uma evidente degradação da ordem econômica e entravado a retomada do crescimento econômico e o desenvolvimento das instituições democráticas no país. A renegociação e escalonamento dos pagamentos da dívida pública interna são indispensáveis, e seus desembolsos deveriam priorizar o aporte de recursos para projetos sérios de investimentos produtivos por parte do empresariado na- 67 NelsonVictorLeCocqd’Oliveira cional. Trata-se de mecanismo muito simples, onde os próprios bancos poderiam investir ou repassar os haveres a que têm direito perante o Tesouro Nacional para aqueles dispostos a investir em áreas consideradas prioritárias pelo próprio Poder Executivo, ou por resoluções do Congresso Nacional. Exemplos de áreas prioritárias deverão ser a construção de uma malha de transportes ferroviário e de cabotagem e projetos de construção habitacional em áreas indicadas por prefeituras e governos estaduais, além de projetos de ampliação da oferta de bens de consumo. Estes investimentos, deverão constituir a contraparte ao procedimento de pagamento de juros e do principal dos haveres hoje registrados como títulos da dívida pública. Os demais terão todos os seus direitos assegurados, sendo contudo o pagamento realizado conforme as disponibilidades de recursos do Tesouro, em um prazo máximo de 15 anos. A utilização dos recursos tributários arrecadados será destinada prioritariamente a implementação de um plano geral de trabalho, balizado pelo objetivo de plena implementação dos direitos sócio-econômicos, políticos e culturais de cada uma e todas as cidadãs e cidadãos. Nele, a reestruturação e ampliação das funções públicas referentes a saúde, a educação, a ações contra a fome e pela democratização da propriedade da terra serão elementos indispensáveis para a reorganização social e institucional; onde o reaparelhamento das forças armadas, sua capacitação para garantia das fronteiras nacionais, e a reestruturação dos aparatos policiais e reeducação das polícias em âmbito nacional e estadual contem de fato como prioridades fiscais. Por fim, quanto a recursos parafiscais como o Fundo de Amparo ao Trabalhador, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e similares, sua administração será co-gestionária e sua utilização será tornada capilar pela reestruturação e ampliação das instituições financeiras públicas, e seu principal objetivo será a efetiva democratização do crédito em nosso país, com linhas de crédito orientadas para a produção dos pequenos, médios e micro empreendedores rurais e urbanos, hoje colocados à margem de qualquer atuação viável de intermediação financeira. D d 68