Cetoacidose Diabética Versão Original: Versão Portuguesa: Gary David Goulin, MD Sílvia Soares, MD Manuela Correia, MD Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos – H. S. Maria Lisboa - Portugal Metas e Objectivos • Compreender a acção da insulina no metabolismo dos hidratos de carbono, proteínas e lípidos • Compreender a fisiopatologia da diabetes mellitus insulino-dependente (DMID) e da cetoacidose diabética (CAD) • Entender a atitude terapêutica no doente com CAD • Reconhecer as complicações que podem ocorrer durante o tratamento da CAD Introdução • A diabetes mellitus é uma síndrome em que existe um perturbação da homeostasia da energia causada por uma deficiência em insulina ou na sua acção, resultando no metabolismo anormal de hidratos de carbono, proteínas e lípidos • A diabetes mellitus é a patologia endócrina/ metabólica mais frequente na infância e adolescência Introdução • Os indivíduos com diabetes insulinodependente carregam o fardo da necessidade absoluta diária de insulina exógena, de monitorização do seu próprio equilíbrio metabólico e de prestar atenção constante à dieta Introdução • A morbilidade e mortalidade advêm das perturbações metabólicas e de complicações a longo-prazo que comprometem pequenos e grandes vasos levando a retinopatia, nefropatia, neuropatia, doença cardíaca isquémica e obstrução arterial com necrose dos membros Classificação • Diabetes tipo 1 (diabetes mellitus insulinodependente, DMID) – Caracteriza-se por deficiência grave de insulina e dependência da insulina exógena para prevenir a cetoacidose e manter a vida – Inicia-se predominantemente na infância – Provavelmente terá alguma predisposição genética e será mediada por mecanismos auto-imunes Classificação • Diabetes tipo 2 (diabetes mellitus nãoinsulino-dependente, DMNID) – Os doentes não necessitam de insulina e raramente desenvolvem cetoacidose – Geralmente surge após os 40 anos e associa-se a uma incidência elevada de obesidade – Como há um aumento de prevalência da obesidade na criança, surgem cada vez mais adolescentes com DMNID – A secreção da insulina é geralmente adequada; existe resistência à insulina – Não existe predisposição genética Classificação • Diabetes secundária – Ocorre em resposta a outras situações patológicas: • Doença pancreática exócrina (fibrose quística) • Síndrome Cushing • Ingestão tóxicos (rodenticidas) Diabetes Mellitus tipo 1 Epidemiologia • Nos EUA a prevalência da DMID em crianças em idade escolar é de 1,9 por 1000 • A incidência nos EUA é cerca de 12 - 15 casos novos por ano por 100000 • A relação sexo masculino / feminino é igual • Em Afroamericanos, a ocorrência de DMID é de cerca de 20 - 30% do observado em Caucasianos-Americanos Diabetes Mellitus tipo 1 Epidemiologia • O pico de apresentação ocorre aos 5 – 7 anos de idade e na adolescência • Os casos novos surgem com maior frequência no Outono e Inverno • A incidência de DMID está aumentada em crianças com síndrome de rubéola congénita Diabetes Mellitus tipo 1 Etiologia e Patogénese • O quadro clínico resulta da diminuição brusca de secreção de insulina • Os mecanismos que levam a insuficiência das células pancreáticas são, provavelmente, a destruição auto-imune dos ilhéus pancreáticos • A DMID é mais prevalente em indivíduos com doença de Addison, tiroidite de Hashimoto e anemia perniciosa Diabetes Mellitus tipo 1 Etiologia e Patogénese • 80-90% dos doentes com DMID diagnosticada de novo têm anticorpos anti-células dos ilhéus pancreáticos Diabetes Mellitus tipo 1 Fisiopatologia Insulina plasmática elevada (estado pós prandial) Insulina plasmática baixa (jejum) Fígado Captação de glicose Síntese glicogénio Ausência de gliconeogénese Lipogénese Ausência de cetogénese Produção glicose Glicogenólise Gliconeogénese Ausência de lipogénese Cetogénese Músculo Captação de glicose Oxidação glicose Síntese de glicogénio Síntese proteínas Ausência de captação de glicose Oxidação cetonas e ácidos gordos Glicogenólise Proteólise e libertação aminoácidos Captação glicose Tecido adiposo Síntese de lípidos Captação de triglicéridos Ausência de captação de glicose Lipólise e libertação ácidos gordos Ausência de captação de triglicéridos Diabetes Mellitus tipo 1 Fisiopatologia • A destruição progressiva das células leva a défice progressivo de insulina • À medida que a DMID progride instala-se permanentemente um estado catabólico com níveis baixos de insulina, que não é reversível com a ingestão de alimentos • As alterações secundárias envolvendo as hormonas de stresse aceleram a descompensação metabólica Diabetes Mellitus tipo 1 Fisiopatologia • Com a deficiência progressiva de insulina, a produção excessiva de glicose e a incapacidade da sua utilização levam a hiperglicemia, com glicosúria quando o limiar renal de ~ 180 mg/dL é ultrapassado • A resultante diurese osmótica provoca poliúria, perda urinária de electrólitos, desidratação e polidipsia compensadora Diabetes Mellitus tipo 1 Fisiopatologia • A hiperosmolalidade que resulta da hiperglicemia progressiva contribui para alterações da consciência na CAD • Osmolalidede sérica: – { Na+ + K+ séricos} x 2 + glicose + ureia 18 3 Diabetes Mellitus tipo 1 Fisiopatologia • A CAD ocorre por alteração do metabolismo dos lípidos – Existem concentrações aumentadas de lípidos totais, colesterol, triglicéridos e ácidos gordos livres – os ácidos gordos livres são desviados para a formação de corpos cetónicos devido à ausência de insulina; a velocidade de formação excede a capacidade de utilização periférica e excreção renal levando à acumulação de cetoácidos e acidose metabólica Diabetes Mellitus tipo 1 Fisiopatologia • Com a desidratação, acidose, hiperosmolalidade progressivas e redução da utilização cerebral de oxigénio, há depressão do estado de consciência e o doente acaba por entrar em coma Diabetes Mellitus tipo 1 Quadro Clínico • A diabetes na criança surge habitualmente com uma história de poliúria, polidipsia, polifagia e perda de peso, geralmente com duração até um mês • As alterações laboratoriais incluem glicosúria, cetonúria, hiperglicemia, cetonemia e acidose metabólica. A amilase sérica pode estar elevada. A leucocitose é frequente Diabetes Mellitus tipo 1 Quadro Clínico • Em até 25% das crianças a cetoacidose é a forma de apresentação de DMID, as manifestações iniciais são ligeiras e incluem vómitos, poliúria e desidratação – Situações mais graves incluem respiração de Kussmaul e hálito cetónico – Pode ocorrer dor ou defesa abdominal simulando apendicite ou pancreatite aguda – Em fase avançada surge obnubilação e coma Diabetes Mellitus tipo 1 Diagnóstico • O diagnóstico da DMID depende da associação de hiperglicemia e glicosúria com ou sem cetonúria • Deve fazer-se o diagnóstico diferencial de CAD com acidose e coma por outras causas: hipoglicemia, uremia, gastrenterite com acidose metabólica, acidose láctica, intoxicação por salicilatos, encefalite Diabetes Mellitus tipo 1 Diagnóstico • Existe CAD quando estão presentes hiperglicemia (> 300 mg/dl), cetonemia, acidose, glicosúria e cetonúria Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • A terapêutica desenvolve-se em 3 fases – tratamento da cetoacidose – período de transição – fase de continuação e vigilância Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • Objectivos da terapêutica da CAD – Expansão do volume intravascular – Correcção dos défices de fluídos, electrólitos e equilíbrio ácido-base – Início da terapêutica com insulina para correcção do catabolismo e da acidose Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • Expansão do volume intravascular – A desidratação é frequentemente de aproximadamente 10% – O soro para hidratação deve ser isotónico • por si só reduz ligeiramente a glicemia • raramente é necessário mais de 20ml/kg para equilíbrio hemodinâmico • Terapêutica dos desequilíbrios electrolíticos – K+ sérico está frequentemente elevado, embora o K+ corporal total esteja diminuído – Administra-se K+ precocemente, já que a resolução da acidose e a administração de insulina reduzem o K+ sérico Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • Também existe depleção de fosfato. Pode adicionar-se fosfato como KPO4 especialmente se o cloro sérico estiver elevado • A “pseudohiponatremia” é frequente – É de prever que o nível de Na+ aumente durante a terapêutica – O Na+ corrigido = Na+ medido + 0,016 (glucose medida - 100) – Se o Na+ não aumentar, pode existir uma verdadeira hiponatrémia (possivelmente aumentando o risco de edema cerebral) que deve ser tratada Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • RARAMENTE SE ADMINISTRA BICARBONATO – a administração de bicarbonato aumenta a acidose cerebral • o HCO3- combina-se com o H+ e dissocia-se em CO2 and H2O. Enquanto o bicarbonato passa lentamente a barreira hemato-encefálica, o CO2 difunde-se livremente, exacerbando a acidose cerebral e a depressão cerebral Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • As indicações para a administração de bicarbonato incluem acidose grave com compromisso cardiorrespiratório • Existe evidência crescente de que ocorre edema cerebral sub-clínico na maioria dos doentes com CAD tratados com soros e insulina Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • O edema cerebral é a principal complicação potencialmente fatal da terapêutica de crianças com CAD - Edema cerebral com manifestações clínicas surge em ~1% dos casos de CAD – A mortalidade é de 40 - 90% – O edema cerebral é responsável por 50-60% das mortes por diabetes em crianças Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica – O edema cerebral desenvolve-se habitualmente várias horas após instituição da terapêutica – O quadro clínico inclui cefaleias, alteração do estado de consciência, bradicardia, vómitos, resposta diminuída aos estímulos dolorosos e pupilas dilatadas, assimétricas ou fixas Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • O uso excessivo de soros, doses elevadas de insulina e, especialmente, o uso de bicarbonato associam-se ao aumento de formação de edema cerebral • Os soros devem ser limitados a ~ 3 L/m2/24 horas • Crianças com ureia elevada, PaCO2 < 15 torr ou ausência de aumento do Na+ sérico durante o tratamento têm maior probabilidade de surgir com edema cerebral • A terapêutica do edema cerebral pode incluir manitol, cloreto de sódio hipertónico e hiperventilação Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • Terapêutica com insulina – A perfusão contínua de insulina ev em doses baixas (~ 0,1 U/kg/h) é eficaz, simples e fisiologicamente adequada – O objectivo é diminuir lentamente a glicemia (< 100 mg/dL/h) – Devem realizar-se frequentemente análises com gasimetria para assegurar a resolução da acidose metabólica Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • A “Manutenção” ev faz-se com 2000 2400 cc/m2/dia em soro a 2/3 (0,66%) ou soro fisiológico – adiciona-se dextrose 5% quando glicemia ~ 300 mg/dL – adiciona-se dextrose 10% quando glicemia ~ 200 mg/dL Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • A insulina utiliza-se para tratar a acidose, não a hiperglicemia – a insulina não deve nunca ser suspensa enquanto persistir acidose • Quando a acidose estiver corrigida, a perfusão de insulina pode ser suspensa e iniciada insulina subcutânea • Com este esquema, a CAD é em geral corrigida em 36 a 48 horas Diabetes Mellitus tipo 1 Terapêutica • Reacções de hipoglicemia (choque insulínico) – O quadro clínico inclui palidez, sudação, sonolência, tremores, taquicardia, ansiedade, obnubilação, confusão mental, convulsões e coma – A terapêutica inclui a administração (se consciente) de bebidas ou alimentos ricos em hidratos de carbono – Administra-se glicagina 0,5 mg, se a criança estiver inconsciente ou com vómitos Bibliografia sugerida • Glaser N, et al. Risk factors for cerebral edema in children with diabetic ketoacidosis. NEJM 355;4:264-269. • Menon RK, Sperling MA. Diabetic Ketoacidosis. In: Fuhrman BP, Zimmerman JJ, ed. Pediatric Critical Care. Second Edition. St. Louis: Mosby-Year Book, Inc., 1998:844-52. • Kohane DS, Tobin JR, Kohane IS. Endocrine, Mineral, and Metabolic Disease in Pediatric Intensive Care. In: Rogers, ed. Textbook of Pediatric Intensive Care. Third Edition. Baltimore: Williams & Wilkins, 1996:1261-72. • Magee MF, Bhatt BA. Management of Decompensated Diabetes: Diabetic Ketoacidosis and Hyperglycemic Hyperosmolar Syndrome. In: Zaloga GP, Marik P, ed. Critical Care Clinics: Endocrine and Metabolic Dysfunction Syndromes in the Critically Ill. Volume 17:1. Philadelphia: W.B. Saunders Company, 2001: 75-106. Caso Clínico #1 • Uma criança do sexo masculino, 10 anos (~30 kg) recorre ao SU com vómitos e letargia com 24 horas de evolução • Os sinais vitais mostram Temp. 37ºC, FC 110 bpm, FR 25 cpm, PA 99/65 mmHg. O doente está letárgico, mas orientado. A observação mostra hálito cetónico, lábios secos, sem outras alterações • Lab: pH 7,05 PaCO2 20, PaO2 100, BE -20, Na+ 133, K + 5.2, Cl 96, CO2 8. A urina mostra 4+ de glicose e cetonúria importante Caso Clínico #1 • Qual a quantidade de soro a administrar em bólus? • Deve administrar-se bicarbonato? • Qual o sódio sérico “verdadeiro”? • Qual a dose de insulina a administrar? • Que soro ev deve iniciar? A que ritmo? Caso Clínico #2 • Uma criança do sexo feminino, 4 anos, encontrase numa UCIP em tratamento por DMID e CAD inaugural. Tem uma perfusão de insulina a 0,1 U/kg/h e soro a 2400 cc/m2/day. • Na última hora queixou-se de cefaleias de intensidade crescente. Foi encontrada inconsciente com pupilas dilatadas e fixas bilateralmente, FC 50 bpm e PA 150/100 mmHg • Qual é o seu próximo passo na terapêutica?